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Fillipino Lippi, Alegoria (c. 1485-14: Na serpente que mata um dos irmaos eater Lippi figura a peste. A tela admite outras signiticagdes, coro a da inveja que opée Caim e Abel. A inscrico latina da faixa diz “ deterior pestis [est] gluam] famy inimicus fest” (Nenhuma peste € pior que a discdr Alegoria construgdo ¢ interpretagao da metéfora Joao Adolfo Hansen SBD-FFLCH-USP LH s223d, 0 Wo & ig UUNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitar JOS8-TADED JORGE Coortenador Geral Universite FERNANDO FERABIRA COSTA ISBN 85.268 0726 ~ conn interpreta da metsfara~ I. Hansen Jo Adio, epp.s08 Direitos surornis de Joio Adolfo Hansen, 2006 Direitos desta edigio Heda / Editora da Unieamp, 2006 SUMARIO I= Alegoria - Estado da Questo 2 I-A Alegoria como Expressdo ou Alegoria ica ou “Alegoria dos Poetas” 27 a) Tota Allegoria ou Alegoria Perfeita ou Enigma 54 b) Permizta Apertis Allegoria ov. Alegoria Imperfeita 66 c) Mala affectatio ou Inconsequentia Rerum ou Incoeréncia 67 III-A Alegoria como Interpretacdo ou Alegoria Hermenéutica ou “Alegoria dos Tedlogos” o Santo Agostinho 109 Beda 3 Santo Tomas de Aquino ne A Carta XIIT 194 IV—Alegoria de Renascimento 139 A Experiéncia Florer ina 140 Aristoteles, Cesare Ripa e outras formas alegéricas: Divisa, Empresa, Emblema, Rebus 178 Cesare Ripa e 0 Iconologia 181 Emblemas e Divisas go Divisa/Empresa 194 Emblema 200 Rebus 207 Bibliografia comentada 25 Glosstrio 293, Ateconta — Estapo pa questio A alegoria (grego allés = outro; agourein = falar b para significar a. A Retérica antiga assim a constitui, teorizando-a como modalidade da elocugéo, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso. Retomando defini- Wes de Aristételes, Cicero e Quintiliano, entre muitos, Lausberg assim a redefine, iz A.alegoria é a metafora continuada como tropo de pensa- ‘mento, e consiste na substituigdo do pensamento em cau- sa por outro pensamento, que esté ligado, numa relaglo de semelhanga, a esse mesmo pensamento'. Nesse sentido, ela é um procedimento construtivo, constituindo o que a Antigiiidade greco-latina e crista, continuada pela Idade Média, chamou de “alegoria dos poetas”: expressio alegorica, téenica metaférica de re- presentar e personificar abstragdes. Escrever sobre ela implica, pois, retomar a oposigio retdrica sentido prd- 'o/sentido figurado, nao para valida-la, mas para reconstitut-la em alguns pontos de seu funcionamento antigo e de suas retomadas, Segundo este, a metafora & ia (Fundamentos de una ciencia 283 es. "Hilnrich Lausberg, Manual de rer . 8 Jodo adolfo nawsan ALEGONIA construgdo e interpretagao da metéfora um termo 2°, “desvio”, no lugar de um termo 1.°, prio” ou “Literal”. Desta maneira, nos textos antigos que langam mao de procedimentos alegorizantes, hé um pres- suposto ¢ um efeito, que permitem isolar a estrutura e & fungao da alegoria: ela é mimética, da ordem da repre- sentagdo, funcionando por semelhanga. Ha ouira alegoria, contudo, que nfo se confunde com a dos poetas épicos greco-romanos e medievais nem com a dos autores hebraicos do Vélko Testamento. Ba que se chamou “alegoria dos teblogos”, recebendo muitas vezes as denomi- nagdes de figura, figural, ipo, antitipo, tipologia, exemplo. A “alegoria dos tedlogos” nao é um modo de expresso verbal retdrico poética, mas de interpretagao religiosa de coisas, ho- ‘mens ¢ eventos figurados em textos sagrados. A rigor, portanto, nao se pode falar simplesmente de “a alegoria”, porque ha duas: uma alegoria construtiva ow retérica, uma alegoria interpretativa ou hermenéutica. Blas so complementares, podendo-se dizer que simetri- camiente inversas: como expressdo, a alegoria dos poetas uma maneira de falar e escrever; como interpretacéo, a alegoria dos teélogos é um modo de entender e decifrar. Nos seus estudos sobre Dante, C. S. Singleton escreve que a alegoria expressiva é intencionalmente tecida na estrutura da propria obra de ficclo — ou, como diz R. criativa”, 20 passo que a de interpreta- gio & “critica”? O verbo grego dllegorein, por exemplo, tanto significa “falar alegoricamente” quanto “interpre- tar alegoricament 2S, Singleton, Dante studies, 1: Commedia. Elements of struc ‘Mass, 1985. 8’ Hollander, Allegory In Dante's Commedia, >, Cambridge, inceton, 1963 Genericamente, a alegoria dos poetas é uma semén- tica de palavras, apenas, ao passo que a dos teélogos uma “semantica” de realidades supostamente reveladas por coisas, homens e acontecimentos nomeados por pa- lavras. Por isso, frente a um texto que se supée alegérico, o leitor tem dupla opgéo: analisar os procedimentos for- mais que produzem a significagio figurada, lendo-a ape- nas como convengio lingitistica que ornamenta um dis- curso préprio, ou analisar a significagio figurada nela pesquisando seu sentido primeizo, tido como preexistente nas coisas, nos homens € nos acontecimentos ¢, assim, revelado na alegoria Pensada como dispositivo retérico para a expresso, a alegoria faz parte de um conjunto de preceitos técnicos que regulamentam as ocasides em que o discurso pode ser omamentado, As regras fornecem lugares-comuns— sopoi (grego) ou loci (latim) ~ e vocabulario para substi- tuigdo figurada de determinado discurso, tido como sim- ples ou proprio, tratando de determinado campo temético, Assim, est4tica ou din&mica, descritiva ou narrativa, a alegoria é procedimento intencional do autor do diseur- so; sua interpretagao, ato do receptor, também esta pre- vista por regras que estabelecem sua maior ou menor clareza, de acordo com o género e a circunsténcia do dis- curso. Veja-se um exemplo: no Canto VI da Eneida, quan- do Vizgilio escreve: “Anquisea e diva estixpe,/ Descer a Dite é facil; dia e noite/Seus eancelos 0 Tartaro fran- queia:/Tornar atris e & luz, eis todo o ponto,/ Kis todo 0 afa” (tradugio de Odorico Mendes), Enéias acaba de che- gar A Itélia, fugindo de Tréia, Vem manchado da culpa do envolvimento com Dido, rainha de Cartago, e da de Virgilio alegoria de Poussin éenigm Etin Arcadia ego (1638-1640). Citagao das Bucdlicas eclegiaca, aludindo morte dos companheiros Miseno e Palinuro, Buscando purificagdo, dirigiu-se a Sibila de Cumas, cuja fala o tre- cho reproduz, a quem pediu intercessio para descer ao Hades e obter informagdes sobre o futuro. A nékyia, ou descida aos Infernos, foi lida —ja na Antigitidade — como metéfora continuada do mito de Orfeu, que desce em busca de Buridice. Orficamente, a viagem de Enéias pelo mundo inferior seria alegoria do percurso da alma hu- mana pela vida ativa, enquanto se prepara para tornar- se instrumento da ago divina e atingir a beatitude da vida contemplative. Segundo seus intérpretes, Vir teria usado de um discurso figurado para ocultar outro, proprio e sagrado, de olhos profanos. Nessa mesmna linha, a Antigitidade viu na alegoria um modo de ornamentar discursos propondo-os & interpreta- do —mas sempre mantendo a distingao retorica de senti- do préprio/figurado. Por exemplo, Platéo, Republica TI, 378; Heraclito, Questées homéricas, 5, 2; Salitstio, Sobre os deuses ¢ 0 mundo, II, 1V; Artemidoro de Eifeso, Interpre- tagdo dos sonhos; e, principalmente, os autores que se ocu- param de Retérica, como Aristételes, Cicero, Quint eo andnimo que escreveu a Retérica a Herénio. E eviden- te que a leitura “critica” de Virgilio supde que 0 poeta temha realmente escrito alegoricamente~o que nem sem- pre é facil de determinar. O importante a manter da dis- tinggo, porém, é que a alegoria greco-latina, tanto cons- trugio quanto interpretagio, era essencialmente lingiistica Quanto & “alegoria dos tedlogos”, hermenéutica ou “critica”, é cristae medieval, tendo por pressuposto algo estranho a Retérica de Antigilidade greco-romana, 0 essencialismo, ou a crenga nos dois livros escritos por Deus, io Jodo adolf HANSEN -ALEGONL construgao @ interpretagao da metéfora o mundo ea Biblia. Nas palavras de Séo Boaventura: “To- dos os seres criados simbolizam Deus. Pois Deus é a ori- gem de todas as coisas, todo efeito é simbolo de sua causa” (Liner mentis in Deum, M1, 12). Formando um conjunto de regras interpretativas, a alegorizacao crista toma determinada passagem do Ve- tho Testamento — 0 éxodo dos hebreus do Egito guiedos por Moisés, por exemplo — e prope que, numa passa- gem determinada do Novo Testamento, seja a ressurrei do de Cristo, hé uma repetigo, No caso, nao se interpre- tam as palavras do texto, mas as coisas, os acontecimen- 03 € os seres histéricos nomeados por elas. Moisés, 0 ho- mem, &interpretado como o exemplo (figura ou tipo) que prefigura Cristo em seu tempo. Come Cristo é Deus, se- gundo 0 Gristianismo, Moisés também posfigura o Cris- to eterno, Como sua figura, Moisés & umbra futurarum, ‘sombra das coisas futuras”. Aqui, o sentido proprio das coisas comparadas & a vida eterna; a historia, sua figura, o que implica circularidade e repetiggo. Dante fez da ale- goria dos tedlogos um principio construtivo da Divina Comédia, como se verd. Assim, ao passo que a Retérica greco-latina teorizou a alegoria como simbolismo lin- gilistico, os padres primitivos da Igreja e a Idade Média a adaptaram, pensando-a como simbolismo lingliistico revelador de um simbolismo natural, das coisas, escrito desde sempre por Deus na Biblia e no mundo, Por outros termos, os padres fizeram a distingo de sentido literal, expresso por “letras” de palavras humanas como senti- do literal proprio e sentido literal figurado, e sentido es- piritual, revelado por coisas, homens e acontecimentos das Escrituras. 784). Alegoria neocléssica jalmente encomendada a outra 4 jodo adolfo HaNsen avacosta construc e interpretacao da metéfora Existe, pois, certa tensio e até confusio entre as duas alegorias, muitas vezes superpostas, tanto na produgio de textos quanto em sua interpretaglo, O Apocalipse, es- erito por So Joao Apéstolo por volta de 96 d.C., no final do reinado de Domiciano, é um bom exemplo. O texto 6 hermético, exigindo a interpretagao do leitor. Esta demons- tra — para aguém das significagdes religiosas — que foi aplicada uma convengao retérica alegorizante 4 produ- ‘do do texto, escrito como “alegoria dos poetas” ou dis- curso figurado substituindo discurso proprio, interpre- tavel como “alegoria dos tedlogos”, Hé nele uma visio, em que Jogo contempla a luta de Sata, o grande Dragio, er contra Cristo e a Igreja, alegorizeda por uma mull Sata tem duas Bestas auxiliares que sobem, uma do mar, da terra a outra: guerreiam os santos, esforgam-se por seduzi-los, A segunda Besta ostenta o nitmero 666 (dpoc., 12-4, 13-18). Muitos intérpretes véer, na passagem, alusio a acon- tecimentos que mediaram os reinados de Nero ¢ Domi- ciano: pestes, alegorizadas por cavaleiros e trombetas, ¢ perseguigdes aos cristios. A Besta que sobe do mar é, se- gundo interpretagdes, o Império Romano; suas sete ca- begas, 0s sete imperadores de Roma, dos quais Domiciano €0 tiltimo, nomeado por alusdo & lenda contracrist en- to corrente de Nero morto e ressuscitado (Nero redux) e pelo mimero 666 ou 612°. A leitura do Apocatipse ad- mite as duas interpretagdes alegéricas citadas: herme- neuticamente, os significados enigmaticos do texto soa figura do Significado essencial por vir no fim dos tempos, DA, Robert e A. Tricot, Initation biblique, 3me &d,,Paris-Tournal, Descée et ie, 1954, pp. 270 es retoricamente, os significados figurados cobrem um sentido proprio de dificil ou impossivel decifragio, Desta maneira, pode-se chegar a resultados bastante diversos: da perspectiva da Retorica antiga, o texto do Apocalipse seria julgado “inconseqiéncia” (inconsequentia rerum) ou “incoeréncia” (mala affectétio), expresses normativas de Quintiliano que sto aplicéveis a discursos mal formados. Do ponto de vista da interpretagio crista essencialista, 0 texto é revelagio da Verdade sob véu de enigmas. A questo & pratica, relacionada & recepgao: imaginem-se dois romanos do tempo de Domiciano, um deles convertido, Tendo 0 Apocalizse. No que wm veria mé aplicagéo de regres retéricas, outro ouviria a Voz da Coisa. Confusdo semelhante ocorre no Romantismo, quan- do 0 simbolo passa a ser violentamente oposto a alego- ria, Confundida numa sé ~ a alegoria ~ & entdo concei- tuada come particular para o universal (Schelling, Goethe), como invélucro ou revestimento exterior e ar- tificial de uma abstragdo. Segundo os romanticos, 0 sim- holo ~ que a tradig&o antiga, greco-latina, medieval ¢ renascentista ndo distinguia da alegoria— é uma espécie de paradigma ou classe da qual ele é 0 ‘nico elemento. Por isso, sua significag&o é sempre imediata; em sua par- ticularidade, ele contém ou expressa o geral. Por exem- plo, a cruz e o Cristianismo. Oposta ao simbolo, a alego- ria é teorizada como forma racionalista, artificial, meca- nice, arida e fria, Retoricamente, a alegoria diz b para significar a, como se escreveu, observando-se que os dois niveis (designagéo concretizante be significagdo abstra- ta a) so mantidos em correlagdo virtualmente aberta, que admite a incluso de novos significados. Além disso, Delacroix, A Liberdade guiando 0 povo (1830). Na romantica exaltacdo da Revolugéo de 1830, a funcdo alegorizante de um simbolo civico é transparente e imediata. a alegoria pode funcionar por mera transposigio: o sig: ado da designagio b pode ser totalmente indepen- dente do significado da abstragio a—sirva de exemplo a prdtica muito rotineira do jornal O Estado de 8. Paulo que, na outra ditadura, substituia noticias censuradas por mechos de Os Li ram que a alegoria é exterior ao pensamento pretendi- fadas. Assim, os romanticos postula- do, como um luxo discursive que se permite dispender signos imteis para a economia do sentido, que poderia ser significado imediatamente. Dado o intuitivismo e expressivismo da poética ro- méntica, a alegoria s6 poderia ser considerada forma ferior do conceito, pois temporalmente sucessiva. It, por exemplo, o que dé a entender Hegel, no Tomo II de sua Estética. Da mesma maneira, Creuzer: No simbolo, o préprio conceito ¢ mostrado no mundo corpéreo, ¢ em imagem o vemos, direta ou indiretamen te, Assim, 0 simbélico ¢ marcado pelo mome: falta ao alegérico, em que ovorre uma strie de momentos" Em outros termos, romanticamente o simbolo é 0 uni- versal no particular; a alegoria, o particular para o uni versal. 5 essa espécie de lapso entre a designagio figura- da bea significagao propria a que foi objeto privilegiado da critica romantica, No intervalo, ela interpretou um dado diacrénico ou a sucessividade de varios momentos “Crouzes, Symb ‘tad por Waker pp. 172-3 1d Mythologie der alten Valker, besoncers der Griechen, smin inl Dramma Barocco Tedesco, 2 ed, Torin, Einaudi, 8 joao adolfo iansen ALEGORLA construpto e interpretagao da metéifora progressivos para a efetuagao do significado pretendido. Pode-se avangar aqui, rapidamente, que os roménticos introduziram na andlise da alegoria a mesma definigao da Retérica antiga, mas voltando-a contra si mesma. Assim, pensaram-na como um ato de discurso — 0 dis- curso é sempre sucessivo, no que estavam corretissimos — para congelé-la como estrutura ou fato de lingua, ge- neralizando sua coneeituagéo para toda alegoria, ana- cronicamente. Havia interesse em faré-lo: no Romantis mo, como é sabido, as regras retéricas da elocugio séo transferidas para 0 sujeito, apagando-se como regras, dando-se como nao-retérica natural. As nogdes romanti- ‘cas da arte como expresso incondicionada do artista- génio em contato fulminante com poténcias csmicas levavam a descartar a alegoria justamente por causa do seu cariter evidente de convengaio retéorica, Alids, 0s ro- manticos foram e so partidarios do orgénico e do mito. Herder langou o esquema, que até hoje tem sucesso, do classico como mecdnico e do romantico como orgénico. A forma é mecénica quando conferida a um material qualquer como adigio acidental ~ como quando se dé uma forma particular, com um molde, a qualquer massa mole, para que a conserve depois de endurecer, como jé escreveu Wellek citando um dos Schlegel. Nesse esque ma, aalegoria é mecnica, pois nela tudo pode significar tudo, uma vez que qualquer molde pode dar forma a nao importa qual abstragdo, perdendo-se 0 tpico. Quanto a forma organica, ¢ inata, revelada a partir do interior mais espiritual do artista em contato intuitivo com a Nature- za, Para manter aqui a metéfora orgénica carissima a roménticos, a flor deve ser simbélica, principalmente cexpressiva, tipica e muito religiosa. A alegoria ¢a da flor de plastico: simulacro das pétalas, é defeito, pois abre um abismo entre o figurado e a significagdo quando se evi- dencia como procedimento racionalista artificial e “frio”. Walter Benjamin demonstrou como Baudelaire lan- ga mao da alegoria justamente devido a seu carater con- vencional, como destruigio do organico e extingao da apa réncia. Fazendo da alegoria a maquine-ferramenta da modernidade e pensando-a como antidote contra 0 mito, 40 mesmo tempo que a incorpora como método de escrita e de critica, Benjamin a propde como 0 outro da Histéria: Lendo no “outro” da alegoria 0 reprimido da Historia, cle no consegue encontrar sua expresso através dos domi- nados, mas s6 através dos dominadores, Se 0 Traverspielbuch (Origem do drama barroco alemao) havia descoberto na figura de Richard IIT de Shakespeare uma alegoria disfar- gada da maldade, o Trabatho das passagens desvendaré 28 litanias baudelairianas a favor de Sat e de Caim como uma definigio inconsciente a favor do proletariado, representado prototipicamente naquelas figuras por par- te dum Poeta nao pertencente aquela classe. Por outro lado, aquela encarnagao da “maldade” guardaria subrepti- ciamente os tragos da visio dos proprios dominadores. Benjamin insiste em Baudelaire como um poeta de visto alegérica e alegorizante’ ‘Nao assim Lukes, que, na forma de um historicismo radical, retoma a querela romAntica contra a alegoria nos processos que moveu contra o expressionismo e ou S Flavio Kothe, Para ler Benjamin, Rio de Jan também Walter Benjamin, trad. «org. de Flivia Kathe, S50 Poul, At Goya, “O sonho da razdo produz monstros" (Los caprichos) (1799). A alegoria iluminista da Razdo adormecida é buscada por Goya em Jean-Jacques Rousseau, aludindo 20 reacionarismo da Espanha catélica tras vanguardas histéricas, bem como contra Kafka, Joyce, Beckett. Lukées julga a alegoria um modo inferior e su- perado de formar. Segundo sua opinio, a alegoria é pro- pria das artes da Transcendéncia, isto é, das artes cujo sentido esta dado fora delas, na Eternidade. Tal concep- ‘gio significa que o artista contemporaneo ¢ formalista, quando alegorizante, pois opera com uma forma vazia a que néo mais corresponde nenhuma transcendéncia num mundo de fragmentos e mercadorias ou, ainda, porque prope reacionariamente a transcendéncia num mundo em que ela é ideologia. O divertido que, falando em nome de um dever-ser da arte engajada na representa gio organica, isto é, realista segundo seus parametros, Lukées generaliza para toda alegoria o que historicamen- te se aplicaria apenas & alegoria medieval. Assim, escre- ve que no se pode considerar o problema da alegoria, quer do ponto de vista da estética, quer duma perspecti- va critica, sem comegar por sublinhar a diferenga, tal qual ela nos é revelada pela histéria, entre casos em que oprimado da transcendéncia significa, em relagio as te dencias para a autonomizagao do objeto estético, um “ain. da nao” (Bizéncio; Giotto), e aqueles em que se deve ver um “néio mais” (Kafka etc.). No primeiro caso, 0 objeto estaria dominado pelo valor transcendente, néo sendo auténomo; sendo imagem, seu sentido esta fora e além, na Bternidade. No segundo, a transcendéncia esta ausen- te, oobjeto é auténomo, rhas, por ser alegérico, reintroduz o niilismo, fantasma de Deus, propondo uma pseudotota- lidade ~ 0 que deve ocorrer em toda a produgio artistica contemporanea que escapa ao realismo conforme Lukécs © prescreve: icas, @ gravura figura o humor negro daquele tado para 0 célculo geométrico, pensa por imagens espaciais e nfo por absiragdes fllos6ficas e, assi sempre aquém da contemplagéo super! se na esfera da “imaginag3o” ou das quantidades espacials, que & forma primeira do engenho humano, conforme os renas- centistas. Desta maneira, também alegorico 0 numero | do lo “Melancolia |”. Enquanto categoria estética — ela propria muito proble- miatica ~a alegoria dé, com efeito, uma expresso estética a certas concepsdes do mundo, cujo cardter é justamente o de dissociar o mundo, fundamentando-o numa transcen- déncia essencial [sic], eavando um abismo entre o homem eoreal, Sea alegorizagao, enquanto orientacio de estilo, & esteticamente tao problematica, porque implica, no ar- tista, uma concepgto de mundo que recusa, por principio, © mundo terreno [.... Gregos ¢ romanos pensaram a alegoria como orna- mentagio de discursos produzidos numa pratica forense e poética, pritica regida por preceitos que, por serem con- vengées, evidenciavam justamente seu cardter particu- lar de prética e, assim, o valor imanente, néo-transcen- dente, do discurso produzido. Além disso, tambéra terpretgfo greco-romana era exclusivamente li no havendo nenhuma transcendéncia em suas alegorias. Como se sabe, Jiipiter esta no Olimpo, Venus em Chipre... Lukées ainda poe em paralelo a histéria da arte me- dieval ¢ a pintura de Giotto, Segundo ele, o sentimento do mundo terreno sobrepée-se 20 alegorismo, em Giotto, apesar dos temas religiosos, porque as artes plisticas es- capam mais facilmente aos “perigos do alegorismo Expurga assim, para citar alguns exemplos alegéricos em diferentes épocas, a Melancolia, de Diirer, 0 Et in Arcadia ego, de Poussin, 0 A liberdade guiando o povo, de Delacroix, 0 Guernica, de Picasso. E que a pintura, que no plano da concepgdo cobra seu sentido alegérico G. Lukics, Realismo catico hoje, Brasil, Coordenada-Editora de Brat Lida., 1969, p. 66, adolfo manson 24 joao ‘uRconta construgto e interpretagito da metifora duma perspectiva transcendente, pode conservar formal- mente, apenas do tema, um valor estético imanente, sen- do entéo decorativa Incorporando a oposigéo metafisica “sensivel/inte- ligivel” A sua critica, Lukécs concede algum valor des- critivo & pintura, gragas ao decorativismo, como ocorre nos mosaicos bizantinos... A coisa é dogmitica e con- sisteem impor um modelo do dever-ser da arte, afunilando- atoda em fungao do finalismo e da instrumentalizagéo implicitos. O historicismo de Lukécs, espécie de etapismo na arte, leva-o a teorizar a alegoria como temporalidade datada que ele generaliza transistoricamente para todos os tempos. Ora, generalizar para todos os tempos o con- ceito medieval de alegoria é um apagamento da propria historia em nome de uma Historia organica. Nesse sen- tido, salvo a do Carnaval, a alegoria ¢ ma —e, com maior rigor, mesmo a do Carnaval, pois 0 marqués francés sambando na avenida sucessiva e progressista suprime 0 tépico, termo empregado por Lukaes para qualificar o que ¢ totalmente determinado. A alegoria da peruca francesa € rococé oculta a realidade do cabelo favelado e pixaim, que nela se aliena. A comissio julgadora cobra perucas pixaim, Aqui, nao se fala mais de arte, coisa alias de pouca importan ia, sendo como instrumento. Como jé se viu, o Ministério lukacsiano tem alegorias que o proprio simbolo finge desconhecer. Como a metafora , o hipérbato.ou a ironia, a alegoria é apenas umn modo de formar entre outros, virtualidade significante, no sendo adequado hipostasié-la numa esséncia ~ a Alegoria~ cuja “maldade” manticamente. Afinal, hé boas e més alegorias, e arecu- deplorada ro- Géricault, A Hiena. Alegoria fisiondmica. Os tracos deformados do rosto da personagem figuram seu cardter baixo e malvado que é traduzido metaforicamente pelo titulo, o nome do animal camiceiro. 26 joto adoifo navsew ALBGORIA construco ¢ interpretacao da metdfora sa de um mundo nao significa, necessariamente, recusa do mundo. Se a alegoria fosse somente o que se diz que é 9s $e — um artificio mediante 0 qual uma série de associa, uma a uma, a uma série de imagens, como es- cxeve Croce ~ seria dificil considerar seu mau uso. Como ndo hA interesse em repetir 0 que é simples nem em duplicar o complicado’ escreve Wind, uma imagem des- tinada a duplicar um pensamento seria supérflua ou perturbadora. Se um pensamento é complicado e difici de seguir, necessita de ser vineulado a uma imagem trans- parente, da qual pode derivar certa simplicidade. Por outro lado, se uma idéia é simples, hé alguma vantage em representé-la através de uma rice figurago que pode ajudar a dissimular sua nudez, arremata Wind, reme- tendo a alegoria assim pensada a Plato, que a utiliza como artificio sofistico — como alegoria retdrica celona, Baral Edito- vias ~ Serie leanoldgica. TL— A Ateconra como ExPREssio ov ALEGORIA RETORI- CA. OU ALEGORIA Dos Porras A alegoria definida como procedimento de ommamen- tagdo pode ser estudada mais detidamente a partir de ‘um poema do primeito livro das Odes, de Hordcio, Nele, a Ode XIV, Ad Rempublicam (A Repiblica), aqui traduzida bastante livremente, desenvolve um lugar-co- mum alegérico, o da viagem por mar. A Repitlica O nave, levam-te ao mar novas Ondas! Que fazes? Rapido entra No porto. Nao vés como 0 costado despojado de remos E 0 mastro ferido do rapido Africo E as vergas gemem, e como sem cordas A quilha mal pode suporter O mar enfurecido? Nao tens velas inteiras Nem deuses a quem invoques oprimida pelo mal. Embora tu, pinho do Ponto, Filha de ilustre floresta, ‘Te orgulhes de tua origem e de tua nobreza imitil,

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