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Titulo e texto amparados pela Lei n. 6 988 de 14 de dezembro de 1973. Copyright @ Maria Angélica Motta-Maués 1° edicdo - UFPA - 1993 EDITORA DA UNIVERSIDADE. Diretor: Ivan Brasil Editor Executive: Maria das Dores Sarmento Revisio Editorial: Maria das Dores Sarmento, Lisbela Braga, Berenice Loureiro CATALOGACAO: Biblioteca setorial do CFCH. Maués, Maria Angélica Motta M448 “Trabalhadeiras” e “Camarados”: rela- gées de género, simbolismo e ritualizagio numa comunidade amazénica. Belém: Centro de Filosofia e Ciéncias Humanas/UFPA, 1993 228 p. (Colegdo Igarapé) ISBN: 85-247-0085-8 1, Mulher - Amazénia. 2. Sexualidade. 3. Ritual. I. Titulo CDD - 19 ed. 305.4209811 CDU - 396.1811) Depésito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n. 1 825 de 20/12/1907. Para Eurydes, minha mde, por sua enorme generosi- dade, com saudade, Para Marcia, Stivia e Renata, minhas “meninas”. Para Edil, Joana, Stivia, Maria dacinta, Irene, Ana, Branca, companheiras de trabatho em Ttapud, “Disse (Deus) & nsuther: Multiplicarei os teus traba- thos e teus partos. Dards & luz com dor os filhos e es- ‘ards sob o poder do marido e ele te dominard. E dis- se a Addo: Porque deste ouvidos & voz de tua muther e comeste da drvore que ex te tinha ordenado que néo contesses, a terra seré maidita por tua causa; tirarés dela o sustento com trabathos penosos todos os dias da tua vida. Ela te produzird espinhos e abrothos e tu comerés a erva da terra. Comerds 0 pée com o suor do teu rosto, até que voltes @. terra, de que foste toma- dot. (Génesis, II, 16-19) “O papai dizia: F, vocés, minhas fitha e minha mu- thé, © caso bem maginado faz 0 carcanhé arrepiado, porque vocés tém, nds Go temo cotela (cautela), mas vocés tém um bocado de eotela’ {...). Porque, sabe, n6s todo os méa nés some visitada (menstruada), eles ndo sdo visitado, néo tém filo como nés que tivemo, odo tempo tao pescande, née 96 fiquemo em casn, eles vao pro mar pesed (,..)." (muther de Itapud) AGRADECIMENTOS Como todo trabalho intelectual, este néo constitui um es- forgo isolado ou particular, mas 6 o resultado de uma série de contribuigées maiores ou menores, que tornaram possivel a sua realizagéo. Desse modo, embora nao possa mencionar aqui todas elas, desejo salientar, na forma dos agradecimentos que se seguem, pelo menos aquelas que, de algum modo, foram mais significativas. Devo mencionar, portanto, os professores do Curso de Pés-Graduacao em Antropologia Social da Universidade de Brasilia, pela valiosa contribuigéo 4 minha formagéo profis- sional, oferecendo as melhores condigdes para um amadureci- mento intelectual no campo da Antropologia. Entre eles, dois merecem um agradecimento mais particular: Roberto Cardoso de Oliveira e Kenneth 1. ‘Taylor. © primeiro, além dos dois eur- 808 seus de que participei como aluna, ajudou-me muito a de- finir certos pontos ligados ao trabalho que pretendia desenval- ver, ouvindo-me e discutindo comigo as idéias para realizé-lo. © prof. Ken Taylor, de quem também freqitentei dois cursos, orientou-me durante varios meses, até a fase que antecedeu a elaboragéio de meu projeto de pesquisa, portando-se sempre com a gentileza e competéneia que the sao peculiares. Na fase de elaboragao do projeto de pesquisa, contei com a ajuda de Martim Alberto Ibaftez-Novién que nao s6 se dispés a discutir temas ligados ao meu trabalho, como me proporcionow 0 acesso a uma bibliografia que de outra forma nao teria con- seguido. Quero agora expressar-lhe meus agradecimentos. Lembro agora o meu professor de Etnologia e Etnografia do Brasil, na Universidade Federal do Pard, Arthur Napoledo Figueiredo, que, ainda durante o curso de graduag&o, foi a viii primeira pessoa a despertar em mim, como alids fez com tantos alunos seus, um interesse pelos estudos antropolégicos. Ao saudoso Napoledo a gratidéo da aluna, sempre. Agradeco ainda as erfticas e sugestées valiosas dos colegas Anaiza Vergolino e Roberto Santos, da Universidade Federal do Pard, que tiveram a gentileza de examinar cuidadosamente e discutir comigo este trabalho na sua forma original. Devo agradecer também 4 Universidade Federal do Para, a CAPES, ao CNPq e 4 FINEP. A primeira liberou-me para que pudesse freqiientar, durante trés anos, o Curso de Pés- Graduacéo em Antropologia Social da Universidade de Brasi- lia, as duas seguintes concederam-me bolsas de estudo durante esse perfodo e a altima financiou o projeto de pesquisa que foi desenvolvide para a elaboragao deste trabalho. Heraldo Maués e eu partilhamos, entre tantas outras, a experiéncia fascinante do trabalho de campo em Itapud e dis- cutimos, como temos feito sempre, os resultados de nossas pesquisas nesse local. Por esse didlogo permanente, as obser- vagées e criticas que fazemos um ao outro tem um valor e um eardter especiais que, de minha parte, quero aqui agradecer. Agora, os agradecimentos mais significativos de todos os que precisam constar aqui. Eles siéo devidos ao meu orienta- dor, Prof. Kiaas A.A.W. Woortmann ¢ 4s mulheres de Itapua, que, afinal, tornaram possivel a realizag&o deste estudo. Neste sentido, este trabalho é tanto deles quanto meu. Ao Prof. Klaas Woortmann, quero agradecer por tudo o que se deve a um bom orientador. Pelo acompanhamento exi- gente que dispensou ac meu trabalho, pele seu interesse esti- mulante a cada discusséo do material de campo, e mais, pela maneira simples e informal de conduzir a orientagéo. As mulheres de Itapud, particularmente aquelas com quem trabalhei mais intensamente, que me introduziram pa- cientemente e com extrema sabedoria no universo complexo das representagdes da sua sociedade. Sei que com isso acres- centei mais uma tarefa as muitas que elas j4 desempenham. Quero aqui agradecer-lhes por tudo o que me ensinaram, pelos momentos agradaveis em que souberam transformar as longas e repetidas entrevistas para a coleta de dados, e pela honra da sua amizade calorosamente demonstrada até hoje. © (GHG Apresentacaio Nenhuma imagem me parece mais elogiiente para definir © trabalho do(a) antropélogo(a) do que aquela evocada por Ma- linowski, nas paginas iniciais de Argonautas do Pactfico Oci- dental: “Tmagine-se 0 leitor, sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical préxima a uma aldeia nati- va, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista’. Nessas poucas linhas, a solidie con- funde-se com a determinagao de ir até o fim e, desse modo, Malinowski nao sé revolucionou com a Antropologia, mas igualmente o conjunto das ciéncias sociais. Todas as vezes que precisei ler a obra de um grande antropdlogo, seja por ossos do oficio, seja para exercitar o perverso prazer da leitura, acabei sempre encontrando a mesma soliddo e a mesma determinagdo que o texto de Malinowski me sugeria. E era sempre com amo- reso respeito e uma certa veneragdio que eu me aproximava desses textos, que me falavam de terras e povos longinquos, de costumes exéticos e culturas tae estranhas. Das sociedades primitivas até a problemética da Antropologia Social, o traba- Iho antropolégice tornou-se, na minha trajetéria de professor ¢ pesquisador, a referéncia mats importante para mostrar arela- tividade das culturas e a historicidade das normas, valores ¢ tradiedes, tornando-se arma de combate ao etnocentrismo que nos deformou enquanto alunos, cidaddos e profissionais, Foi em dezembro de 1984, através de Anaiza Vergolino e Silva, que os originais do livro de Angélica Maués que ora apresento, chegaram as minhas mos, Sabendo do meu inte- resse pela problematica do corpo e da produgdo da subjetivida- _de nas sociedades ocidentais contemporaneas, Anaiza entre- gou-me © texto de Angélica, com a certeza de que naquelas pa- ginas eu encontraria um material de valor inestimavel e que me ajudaria a pensar as questées que, naquele momento, me ocupavam. E foi sempre com renovado prazer que atravessei o Natal e o Ano Novo daquele ano devorando a etnografia de Angélica. Natal e Ano Novo passados em Itapud, numa itha préxima de Vigia, em companhia das mulheres, entre cantos e rezas, rituais repetidos a cada menstruagéo, gravidez, puerpé- rio € menopausa, corpos plenos de significados, desafiando o corpo emoldurado em plastico dos out-doors da cidade grande. Duas grandes linhas de interpretagéo podem servir de guia a leitura deste livro: a primeira, privilegiara a repressio histérica que se abateu sobre a mulher e da qual a comunidade feminina de Itapud é um exemplo, uma vez que em todas as es- feras da vida social ~ a doméstica, a econdmica, a religiosa, a politica e a ritual - a mulher tornou-se apenas um elemento de apoio, coadjuvante do homem, o grande protagonista; entre- tanto, creio ser possivel uma outra linha de interpretagdo, que sem esquecer os mecanismos de poder que, historicamente, produziram a subjetividade feminina enquanto ser submisso, passivo e dependente do homem, sé entende a necessidade des- sa estratégia de dominacdo, na medida em que, em algum pon- to, a mulher constitui formas. isténcia. E é justamente no carater poluente, venenoso e perigoso do corpo feminino, que reside a sua resisténcia. A ordem, harmonia e equilibrio que reinam pretensamente no mundo dominado pelos homens, se opée 0 corpo, com suas intensidades e desejos, gerando perigo e instaurando a desordem. E nesta perspectiva, retomando Van Gennep e Levi-Strauss, Angélica Maués mostra que pelo fato de participar de processos eminentemente naturais mas que, num contexto ritual, sdio também estados de liminaridade, a mulher oscila entre os domini i cultura. Essa oscilagéo, essa liminaridade, essa ambigiiidade radical, encon- tra e deixa suas marcas no corpo. A hist6ria nfo passa ao largo do corpo; ao contrario, o cor arcado_pela historia e a historia tem no corpo, 5 nério_privilegiado. A histéria de itapud esta escrita e inscrita no corpo de suas mulheres. I pa- ta essa segunda leitura possivel que gostaria de chamar a atengéo: disseminadas como uma rede por toda a extenséo do social, as relagdes de poder dominantes sé se estabelecem como tal, na medida em que se apropriam dos focos de resisténcia; xi existindo tais focos, as lutas politicas, por sua vez, 86 existem a partir deles, tomando-os como apoio. Leitura possivel, interpretagéo possivel, apresentagéo possivel, de quem se sabe fascinado pelo texto que apresenta. Fascinagéio que encontra e se encontra, nas ruelas, furos e estreitos de Itapud, a solidao e a determinagaéo de Angélica Maués e suas mulheres. Convido-os a participarem dessa fas- cinagao. Ernani Pinheire Chaves Dept? de Filosofia Belém, julho de 1987. NOTA INTRODUTORIA Este trabatho constituiu originalmente minha dissertagdo de mestrado em Antropologia Social, apresentada ao Instituto de Ciéncias Humanas da Universidade de Brasilia em novem- bro de 1977. Salvo algumas modificagdes e pequenos acréscimos deri- vados de eriticas e sugestées que me foram feitas, o texto guarda em si a mesma forma e contetdo iniciais. Preferi manté-lo assim, nesta publicagao, pois creio que a andlise que o mesmo contém possui um referencial de alcance maior que o dos estreitos limites de tempo e lugar. Neste sen- tido, apesar de focalizar a situagdo da mulher em uma pequena localidade da Amazénia, este trabalho, tomado de outra _pers- pectiva, refere-se a um modelo de relagdes homem/mulher Deste mode, espero que ele, somando-se a outros, possa ajudar a penser sobre a condicéo de sujeigio e discriminacd imposta milenarmente 4 mulher, a qual,.sendo uma imposicéo social, aparece como se fosse a ‘a1 natural” das coisas. Desejo agradecer & diregdo tro de Filosofia e Cién- eias Humanas da UFPA, bem como ac seu Conselho Editorial, @ oportunidade que me ofereceram para publicar este trabalho, ensejando deste modo, uma divulgacao mais ampla do mesmo. Sumario EPIGRAFE AGRADECIMENTOS APRESENTACAO NOTA INTRODUTORIA INTRODUCAO CAPITULO I: A COMUNIDADE: ASPECTOS GERAIS 1.1 ACESSO A COMUNIDADE 1.2 DIVISAO ESPACIAL 1.3 FONTES DE ALIMENTO 14 HABITACAO 1.5 A VIDA DIARIA 1.6 A POSICAO DO HOMEM E DA MULHER CAP{TULO I: A PESCA: UM DOMINIO MASCULINO 2.1 APESCA a) Utensilios de pesca b) Embareagées de pesea ©) A tripulagdo das embarcagées de pesca 4) Tipos de pescaria e) Condigées naturais e sua influéncia nas pescarias f) A comercializagao do pescado 2.2 RELACOES DE TRABALHO NA PESCA CAPITULO III: A AGRICULTURA: UM DOMINIO FEMININOQ? 3.1 AS ATIVIDADES AGRICOLAS Instrumentos agricolas Tipos de rocas O cielo de trabalho na roga 3.2 AS RELAGOES DE TRABALHO NA AGRICULTURA 3.3 RELACOES DE TRABALHO E ATRIBUICOES POR SEXO 45 45 46 47 48 57 Xvi CAPITULO Iv: 08 PAPEIS SEXUAIS DA MULHER 4.1 TREINAMENTO INFANTIL: DIFERENGAS BASEA- DAS NO SEXO 42 AS RELAGOES ENTRE OS SEXOS: 0 NAMORO E O CASAMENTO 43 OS PAPEIS SEXUAIS DA MULHER CAPITULO V: AS ATRIBUIGOES DA MULHER E DO HOMEM 5.1 O “BEM LIMITADO” 5.2' AS ATRIBUICOES NA ESFERA ECONOMICA. 5.3 ATRIBUICOES NAS OUTRAS ESFERAS: RELIGIAO, RITUAL E PODER CAPITULO VI: O CICLO BIOLOGICO DA MULHER: MENSTRUACAO E MENOPAUSA 6.1 PROCESSOS NATURAIS E SIMBOLISMO 6.2 OS ESTADOS FISIOLOGICOS DA MULHER 6.3 DIFERENGAS ANATOMICAS E FISIOLOGICAS 6.4 A MENSTRUACGAO a) Menarca b) Percepgées e crengas sobre a menstruagdo ¢) Proibigdes de ordem natural 4) Proibigdes de ordem sobrenatural 6.5 AMENOPAUSA CAPITULO VII: 0 CICLO BIOLOGICO DA MULHER: GRAVIDEZ E PUERPERIO 7.1 AGRAVIDEZ - 1.2 O PARTO: RITUAL DO NASCIMENTO 7.3 O RESGUARDO POS-PARTO 74 PRESCRIGOES PROPRIAS DO RESGUARDO CAPITULO VIII: 0 CICLO BIOLOGICO DA MULHER: SIMBOLISMO E RITUALIZACAO 8.1 TABUS ALIMENTARES E ESTADOS DE LIMINARI- DADE a) Acrianca nos dois primeiros anos b) A purga c) Oluto d) Oxamanismo 61 61 64 70 79 81 91 103 104 106 106 108 108 110 113 119 122 129 130 136 143 145 155 156 161 162 163 163 2) A convalescenga e a doenga 8 Estados liminares da mulher e simbolisme do sangue 82 GRAVIDEZ B MISTURA DE ALIMENTOS » 83 AS BTAPAS DO CICLO BIOLOGICO DA MULHER COMO DESEMPENHO RITUAIS CAPITULO IX: A MULHER COMO FONTE DE DESORDEM EF PERIGO 9.1 OS PODERES PERIGOSOS DA MULHER 92 “VENENO”, “PANEMA” E POLUICAO FEMININOS 9.3 A INTROMISSAO DA MULHER EM DOMINIOS MAS- CULINOS a) Dominios cruciais: pesca, poder e xamanismo b) Dominios nao cruciais ¢} O afastamento da mulher dos damfnios cruciais 9) Aintromissao feminina CONCLUSAO e TRABALHADEIRAS E CAMARADOS: A SUJEICAQ : FEMININA BIBLIOGRAFIA Byii 164 164 165 168 418i 182 184 188. 188 190 191 199 211 MAPA DO MUNICIPIO DE VIGIA COM A LOCALIZAQAG DE ITAPUA Des Negro APA Adantase do Reh Pret. ce Det. tet. — dyn. ge UGA-PA-SERFHAU-1TO INTRODUCAO Em toda sociedade humana, qualquer que ela seja, os ti- pos de relagées entre seus membros obedecem a regras cultu- rais que thes s&o préprias, em que os mesmos so classificados como pertencende a determinadas categorias de status 6, como tal, assumem certas identidades, As quais eles devem confor- mar-se, para tornar essas relacdes gramaticais (cf. Goodenough 1985:6-7). Entretanto, nfo devemos esquecer que essas re- lagdes tém lugar em um determinade contexto social, em que as praticas dos individuos que o compiem concorrem para que, diante de determinada realidade, eles construam o seu mundo eognitive que vai, por sua vez, influir naquela no sentide de guiar, de certa forma, o comportamento dos atores no sistema > social. Por outro lado, a cada categoria deniro do sistema vorres- pondem certas atribuigdes que nao podem ser analisadas por uma recorréncia apenas 4 “realidade” social, mas, além disso, ~ estéo ligadas a todo um sistema mais ample e profunde de cardter simbélico que, de certo modo, atua no sentido de esta- belecer limites e de conduzir a agée social dos individuos. E, portanto, tendo em vista esse tipo de consideragdo, que pre- tendo focalizar o problema que sera objeto de minha andlise. OBJETIVO DO ESTUDG Neste trabalho, proponho-me a investigar em detalhe ¢ status das mulheres e, implicitamente, dos homens, em uma comunidade de pescadores, examinando as atribuigdes reco- 2 nhecidas como préprias a cada uma dessas categorias de pes- soas, com base nas diferengas entre os dois sexos. Maior énfase serd dado ao estudo do ciclo de vida biolégico da muther, pois certos estados que the sao peculiares, ligados a esse ciclo (menstruagio, gravidez, puerpéria e menopausa), colocam-se como uma das diferencas basicas entre homens e mulheres na comunidade. Esses estados fisiol6gicos sfo sempre passiveis de elaboragéo simbélica, o que, entre outras coisas, explicaria a posicao da mulher no sistema social. Este tema tem uma certa tradig¢éo na literatura antro- polégica fora do Brasil’, embora, em nosso pais, a matéria pu- blicada nao o trate especificamente. Ademais, nos dias de hoje, tem crescido o interesse antropolégice pelo mesmo, visando a uma aplicag&éo no campo da medicina, de modo especial no que diz respeito 4 implantagéo de programas de satide e de as- sisténcia & infancia e 4 maternidade. Além do que ja foi mencionado, examinarei outros aspec- tos da vida da comunidade, de alguma forma, ligados ao inte- resse principal do trabalho. Assim, estudarei também os aspectos mais importantes do sistema social, do sistema de crencas e do ritual, na medida em que os mesmos mantém co- nexées com minha problemética particular de investigagéo. Um outro aspecto a ser examinado, pela sua importaéncia no que se refere aos processos fisiolégicos femininos, 6 0 dos habi- tos e crencas alimentares da comunidade, que fazem parte de um complexo sistema que relaciona categorias de pessoas e alimentos”. ABORDAGEM ANALITICA O estudo das percepgées sociais dos individuos pode ser feito dentro de varias perspectivas, conforme seja a otica privi- legiada pelo analista. Em meu caso achei mais conveniente optar por um tipo de andlise que nos permita visualizar a situagdo de maneira mais abrangente, visando estabelecer as conexées que existem entre os dois sistemas presentes na atua- lizagéo de concepgées e comportamentos das pessoas, o simbé- ce 3 lico e o social (ef. Douglas 1966, 1970; Turner 1973, 1974; Leach 1964). As situagGes a serem analisadas para se chegar, como pre- tendo, a-uma definigdo do status das mulheres na comunidade estudada, particularmente aquelas que dizem respeito ac seu Siclo biolégico, estabelecem diferencas entre c refletem tanto nos seus desempenhos soci repre- sentacdes que cada um (homem e mulher) possui sobre a sua atuacdo social. Assim sendo, para conseguir detectar a nature- za simbélica dos elementes que participam da situago focali- zada, achei mais conveniente desenvolver um tipo de anélise contextual, ne sentido de trabalhar com os simbolos enquanto tais, naquele universo cultural, vendo o simbelo como signifi- cado_e néo como simples categoria formal, conforme nos propoe ‘Mary Dou uglas (1970). Isto significa que nao desejo par- tir de imposigbes apenas analfticas, mas tratar a situagdo como se apresenta naquele grupo social especifico, inclusive buscan- do, sempre ane ee vel, uma interpretagao dos prépr Por Gaeea| io estes procedimentos que pretendo seguir em minha andlise ndo sfo incompatfiveis com a postura anali- tiea adotada nos estudos de Lévi-Strauss (1964, 1970a, 1970b, 1970c), embora néo seja meu objetive realizar uma andlise es- truturalista formal. Nao obstante, acredito que as idéias desse autor poderéo me ajudar na formulagéo de um modelo “nati- vo” que, a despeite de poder ser apreendido a partir das in- formagtes explicitas e da observacao do comportamento das pessoas, s6 pode ser formulado como uma construgdo do pes- quisador ao trabalhar seus dades. Dentro de uma perspectiva de andlise de sistemas simbs-) _licos, a realidade investigada sera tratada no nivel do “modelo | consciente’’, idando com a percepgao das relagées sociais pelos > > préprios membros da comunidade e, no nivel do “modelo in- | consciente’’, vendo-a do ponto de vista do sistema de represen- | tagdes, tentando atingir a “‘estrutura profunda” de que fala | esse autor (ef. Lévi-Strauss 1970c: 303 - 305). 4 APESQUISA OQ local onde desenvolvemos a pesquisa de campo’ foi a povoagiio de Itapud, que fica localizada no municipio de Vigia, pertencente & Micro-Regiao Homogénea do Salgado, no Estado do Pard. Esta Micro-Regifo 6 uma das mais populosas do Estado, apresentande um total de 149.922 hab., com uma den- sidade demogréfica de 23,25 hab.fikm?, sé inferior & da Mi- cro-Regiéo de Belém (480,38 hab./km®), segundo o censo de 1970. O municipio de Vigia possui uma populagéo total de 19.410 hab., dos quais 14.324 no distrito da sede, onde esta lo- calizads Itapud (Paré 1973: 57 - 70). Nossa opgdo pelo local para realizar a pesquisa se deveu a duas razées principais: primeiro, por desejarmos fazer o traba- Tho no Estado do Pardé; e também porque, escolkendo uma co- munidade relativamente préxima & cidade de Belém (onde exercemos nossas atividades profissionais), poderemos ter mais oportunidades de continuar a desenvolver o estudo pos- teriormente. Itapué possui uma populacio de 617 hab., segundo o cen- so que pessoalmente realizamos‘, e tem como suas atividades econémicas principais a pesca artesanal e a agricultura de sub- sisténcia. DURACAO DA PESQUISA A pesquisa, com residéncia fixa em Itapua, teve inicio no princfpio do més de dezembro de 1975 e prolongou-se até os primeiros dias de abril de 1976, tendo, portanto, numa primei- ra fase, a duragdo de quatro meses de permanéncia no campo. Anteriormente j4 haviamos estado na localidade, em fevereiro e em julho de 1975, por perfodos que nado excederam a uma semana, sendo que em julho foi realizado um survey exploraté- rio, durante o qual foi possfvel levantar alguns dados impor- tantes para a elaboracdo de nossos projetos de pesquisa. Em setembro, de 1976, depois de um periodo de andlise preliminar dos dados jé coletados, voltamos ao campo, onde permanece- cee coc?’ 5 Tos por cerca de um més, aproximadamenie. Desta vez, porém, ficamos residindo na cidade de Vigia. O TRABALHO DE CAMPO Antes de fixar residéncia em Itapud, estivemos no lugar tentando conseguir um local onde pudéssemos ficar residindo, durante nossa permanéncia na povoagao. Nesse particular, en- contramos alguma dificuldade, pois, como as casas so geral- mente pequenas (com 3 eémodos apenas) e as familias sempre numerosas, nao foi possivel, camo pretendiamos, ficar moran- do com uma familia da comunidade, o que certamente nos eolocaria numa posicaa melhor quanto 4 observacao e partici- pagdo na vida da populacao local. Por outro lado, também nao havia nenhuma casa desocupada que pudéssemos alugar. A solugéo, encontrada por algumas pessoas da propria comunidade, foi a de utilizarmos, como moradia, dois compar- timentos da escola estadual do 1° grau que funciona em Ita- pud, que nde eram usados como salas de aula. Como o periodo da pesquisa coincidiu aproximadamente com o das férias esco- lares, esse fato nfo’ causou estorvo ao funcionamento normal da escola, além de que os compartimentos ocupados serviam de depésito e copa (esta Gltima, utilizada simultaneamente por nés e pelos funciondrios da escola). E essa foi entéo a nossa “casa” durante o perfodo mais longo que passamos no campo (dezembro de 1975 a abril de 976). A primeira semana foi usada para manter contatos in- formais com os moradores, a observagéo de seus habitos did- trios e também para conseguir informagdes de cardter geral so- bre a vida da comunidade, inclusive as relacionadas com meu interesse mais diretamente ligado A pesquisa. No inicio consi- derei qualquer pessoa disponfvel, principalmente mulheres, como informantes, para aos poucos ir selecionando aquelas que se transformaram em minhas informantes mais regulares, Muitas vezes minha tarefa era dificultada pela atividade das mutheres nas rogas, que as afasta continuamente da casa, o que naturalmente buscava resolver procurando as que esti- vessem disponfveis, embora nem sempre fossem as mais inte- 6 ressantes para meu objetivo. Neste particular, procurei varias vezes acompanhé-las a seus locais de trabalho, ocasiGes em que aproveitava nao sé para conversar com elas, mas também para observé-las na execugdo dé suas tarefas e, mesmo, participar delas algumas vezes. Um outro problema, foi com relagéo as especialistas (“parteiras” ou “‘assistentes”’, como sao chamadas), pois, como as que geralmente atendem as mulheres em Itapud moram em outra povoagao ou, no caso de uma delas, na cidade de Vigia, e ainda trabalham normalmente nas atividades agricolas, torna- ya-se dificil um contato com elas, tendo de aproveitar suas vindas para assistir aos partos para abordd-las, o que nem sempre era possfvel, ou entdo percorrer uma boa distancia a pé até a localidade em que residem para conseguir colher suas in- formagées. A Gnica especialista do lugar, com quem trabalhei mais intensamente, apesar de ter bastante experiéncia (j4 que “assiste” hé mais de 20 anos), néo mais atende costumeira- mente as mulheres, limitando-se aos casos em que néo ha pos- sibilidade de esperar pela chegada das outras assistentes, o que alias nao é raro acontecer. Além das especialistas e de outras mulheres, principal- mente as mées com vdrios filhos, que funcionaram como informantes principais, também tomei como informantes criangas e jovens, geralmente em entrevistas informais, sem uso de gravador. No final da primeira etapa do trabalho de campo foram gravados varios discursos de mulheres e homens, onde, tentando conseguir suas auto-representagdes, optei, de- pois de enfrentar muitas dificuldades, por solicitar historias de vida dessas pessoas, procurando atingir assim de algum modo meu objetivo, o que nem sempre foi conseguido. Quando voltamos ao campo, em setembro de 1976, para complementar os dados da pesquisa, trabalhei quase exclusi- vamente com duas mulheres, que jé tinham sido minhas in- formantes anteriormenté. Ambas sdo casadas e tém filhos, sendo uma ainda relativamente jovem e a outra mais velha, ja possuindo inclusive um neto. Naturalmente me utilizei também da observacao partici- pante, que é sempre valida, embora nao deixando de estar 7 consciente de minha posigéo como elemento estranho & comu- nidade e dos limites de “participagéo” que essa posigéio impunha. A POSICAO DA COMUNIDADE De um modo geral as pessoas reagiram muito favoravel- mente A nossa presenga, talvez porque jé as haviamos, de al- guma forma, preparado para nossa permanéncia em Itapué, através dos contatos anteriores que mantivemos com elas. Al- gumas pessoas, diante da colocagdo de nosso interesse em co- nhecer aspectos da vida da comunidade, mostraram-se por sua vez interessadas em saber se haveria algum resultado concreto de nossas pesquisas, na forma de melhorias para a localidade. E claro que procuramos esclarecer nossa posigéo, fazendo ver que nado tinhamos condigées de oferecer-Ihes qualquer coisa nesse sentido. Por outro lado, no meu caso, particularmente, apesar de as pessoas sempre se mostrarem solicitas 4s minhas constantes indagagées, em certas coisas elas se mantiveram re- servadas. Por exemplo, eu nunca consegui assistir a um parto, apesar de terem nascido dez criangas durante os quatro meses que passamos residindo em Itapud, inclusive uma delas na ca- sa que fica bem ao lado da escola onde moravamos; elas sempre davam um jeito de eu sé saber depois que a crianga ja havia nascido. As pessoas em Itapud, embora aceitando a nossa presenga e nos ajudando em nosso trabalho, nunca puderam entender o que faziamos ali; acho que para elas nés éramos uma espécie de “‘turistas’’ e estévamos simplesmente “passeando” (quando encontrévamos alguém este sempre dizia: “ja vai passear, nao?”), pois seria mesmo muito dificil para eles considerar o que estavamos fazendo como trabatho, diante da experiéncia totalmente diversa que possuem. Alias, quanto a esse ponto, o meu papel ainda era mais dificil de ser entendido, pois elas nao conseguiam me ver fazendo um trabalho igual ao de R. H. Maués (meu marido). Para elas eu devia estar apenas ali para © acompanhar e executar as tarefas préprias de uma esposa, de acordo com os tipos de atribuigées que, segundo sua concepgao, essa posigao acarreta, NOTAS 1 Entre os trabalhos que tratam a respeito dos status da mulher e das con- cepgées ligadas aos estados fisiolégicos que lhe 880 préprios, encontram-se os de Ardener (1972), Douglas (1966), Evans-Pritchard (1964), Harfouche (1965), Skultans (1970), Yalman (1961), além de outros que sero citados no decorrer deste estudo, sempre que tiverem relevancia para o desenvol- vimento da minha andlise. 2 Os hAbitos e crengas ligados ao alimento, em Itapué, local onde desenvolvi a peaqutisa de campo de que resultou este trabalho, j4 foram analisados com detalhes, em um estudo redigido em colaboragao com Raymundo He- raldo Maués (Motta Maués e Maués 1976). Por essa razéo, reproduzirei aqui algumas das andlises elaboradas para aquele trabalho, adaptando-as e corrigindo-as no que se tornar n io, 3 O trabalho de campo foi desenvolvido juntamente com R. H. Maués, que também colhia dados pera sua dissertagdo de mestrado (Maués 1977). 4 Bate censo foi realizado em julho de 1975, também em companhia de R. H. ‘Maués, com a ajuda de um pequeno grupo de estudantes do 2° grau (mo- radores da cidade de Vigia, que conheciam bem a comunidade). CAPITULO I A COMUNIDADE: ASPECTOS GERAIS A localidade de Itapud fica cercada por pequenos rios e, para seus moradores, constitui uma “ilha”. Esses rios esta- belecem a separagdo entre Itapud e as outras localidades e, também entre as partes que compéem a diviséo espacial da propria comunidade, assim como favorecem a ligacdo com a ci- dade de Vigia, principal ponto de referéncia de seus moradores. Por outro lado, a presenga desses rios 6 sumamente importan- te para a atividade pesqueira que eles desenveivem, nao sé por thes permitir utilizd-los com essa finalidade, como ainda por dar-Ihes oportunidade de acesso até a baia de Marajé e ao oceans, sendo que naquela bafa se desenvolve grande parte do trabalho dos pescadores da comunidade. 11 ACESSO A COMUNIDADE O acesso a Itapud, partindo da sede do municfpio, faz-se por transperte fluvial ou terrestre. O transporte fluvial é feito, mnuitas vezes, em pequenas embarcagdes, que séo chamadas de “montarias” e “‘cascos” pela populagéo local. Além disso, exis- tem duas pequenas embarcagées motorizadas, a que dio o nome de “lanchas”, que efetuam o transporte mais ou menos regular de passageiros, mediante o pagamento de pequena quantia (1 cruzeiro) como passagem. A duracdo da viagem 6 de 30 a 45 minutos, se for de casco ou montaria e, de lancha, é de cerca de 15 minutos. 10 Quanto ao transporte terrestre, ele é feito em condigdes muito precérias e somente no perfodo do ano em que diminui a intensidade das chuvas, que vai mais ou menos de julho a no- vembro. A viagem de taxi, partinde da cidade de Vigia, dura aproximadamente 20 minutos, mas nao é utilizada pela popu- lagdo local; somente visitantes, geralmente moradores da cida- de de Belém, 6 que utilizam essa condugéo, quando nao viajam ~ em seus carros particulares. Mesmo assim é extremamente ra- ro ver-se um vefculo motorizado na povoagao de Itapua, exceto durante a festa do Menino Deus, padroeiro da comunidade, quando alguns taxis da cidade de Vigia se deslocam para Ita- pud (se as chuvas permitirem), a fim de ‘‘fazer linha” dentro da comunidade. 1.2 DIVISAO ESPACIAL Os moradores de Itapua estabelecem uma divisdo espacial local que lhes permite situar-se no seu ambiente. Assim, eles distinguem, na prépria comunidade, trés divisdes, que séo de- signadas pelos nomes de Itapud, Itapud de Fora e Acai. A pri- meira 6 a drea onde se concentra a maior parte da populagéo, comegando a partir do local de embarque e desembarque das canoas com a maré alta, a margem de um igarapé, lugar conhe- cido como Porto da Camila (nome da proprietéria da casa mais proxima ao porto), estendendo-se dai através da chamada “rua principal” e de suas ramificagées no sentido do interior da “ha”. A segunda divisdo, Itapud de Fora, 6 como designam uma ponta de terra que formava anteriormente uma praia de areia, em frente ao chamado Furo da Laura, que também passa de- fronte da cidade de Vigia. Essa terra pertence a um homem da localidade que 6, alids, com sua familia, o (nico morador do lo- cal, utilizando grande parte da 4rea como pastagem para as poucas cabegas de gado bovine que possui. Embora o Porto da Camila seja o principal da comunida- de, como ele sé pode ser utilizado com a maré alta, na baixa- mar o embarque e desembarque é feito através de Itapué de Fora, com grande dificuldade para os proprios moradores, es- it pecialmente as pessoas idosas, devido & grande quantidade de lama existente no caminho e a necessidade de a pessoa andar equilibrando-se em troncos de palmeiras ali colocados para evi- tar de sujar os pés. O Aeai possui limites menos definidos espacialmente, em- bora os moradores de Itapué nao tenham dividas quanto a demarcagéio desta diviséo. E a designagéo comum para um aglomerado de casas que ficam numa localizagéo mais ou me- nos afastada do que 6 chamado de Itapua. Essas casas j4 ficam mais préximas de uma outra comunidade, que é Caratateua, da qual se separam pelo rio Acai, existindo uma ponte de ma- deira que permite a passagem de veiculos (inclusive cami- nhées), possibilitando desse modo também a ligagdo terrestre de Itapud com outras localidades. Como a parte da comunidade onde se concentra o maior namero de casas 6 0 que chamam de Itapué, essa diviséo é também conhecida como “‘povoacao”. As habitagdes, a nao ser mo que concerne 4 “‘povoagdo”’, sao distribuidas de maneira muito esparsa, havendo mesmo, as vezes, uma grande distan- cia entre uma e outra casa, sendo o acesso e a comunicagéo entre elas feitos através de “caminhos”, quando o terreno proximo 6 aproveitado para a agricultura. Assim como as pessoas estabelecem uma divis&o da locali- zacéo espacial da comunidade, usando para isso denominagées proprias, também usam uma nomenclatura para as areas que ndo ocupam, mas que sao de alguma forma utilizadas por elas. A faixa de terra que fica beirando a 4gua (dos rios e igarapés) 6 chamada de “mangal’’; logo a seguir, entre estes e a “terra firme”’, fica outra zona intermediaria, que 6 conhecida local- mente como “‘varja’(varzea). A parte da chamada terra firme, além dos terrenos, das habitagdes e das rocas, possui trechos ocupados por vegetagdo que, conforme seja de grande porte e mais densa, ou de pequeno porte e mais rarefeita, recebe, lo- calmente as denominagées de “mato grosso” no primeiro caso e “capoeira” no segundo; a capoeira por sua vez, pode ser di- vidida em “capoeirinha” ou “mato fino” (caso a densidade do mato seja bem pequena) e “capoeiréo” (um tipo de capoeira que jd se aproxima mais do mato grosso). A adaptagao ao meio 12 ambiente e a sua exploragio fazem parte das estratégias de so- brevivéncia dessa populagao, em um grau muito elevado, con- forme teremos oportunidade de ver no decorrer deste trabalho. 13 FONTES DE ALIMENTO Como fontes de alimento s4o utilizados os cursos d’dgua mais préximos ou o proprio mar, que fornecem uma parte pri- vilegiada da dieta da populagao, o peixe, além de mariscos como o siri e o camarao. O mangal fornece o caranguejo e 0 ca- ramujo, que so eventualmente apanhados pelos moradores de Itapud, assim como o turu, um animal vermiforme que se forma no interior do tronco das arvores caidas que apodrecem, e aostra sernambi. Na “varja” cresce 0 agaizeiro, uma palmeira de cujos fru- tos se extrai um suco chamado agai, utilizado como alimento misturado & farinha de mandioca, e de cujo caule é extraido o palmito (este, nao utilizado como alimento pela populagéo lo- cal)‘. A terra firme também funciona como importante fonte de alimentos, pois é af que ficam localizadas as rogas de man- dioca, os animais domésticos e a caga, assim como também intmeras rvores frutiferas que existem, tanto cultivadas co- mo em estado nativo. Devo dizer, entretanto, que, dos alimentos fornecidos pe- las fontes mencionadas, os que sao normalmente utilizados pe- los itapuaenses sao o peixe e a farinha da mandioca. Os outros (siri, camar4o, caranguejo, turu, etc.) 86 0 sao na falta do pei- xe, ou seja, nas ocasides de escassez, quando este nao 6 conse- guido pelo pescador. O caranguejo, particularmente, quase s6 6 conseguido nos periodos chamados na comunidade de “sauata”, durante os quais ele “anda” pelo mangal”. Quanto as frutas, estas so mais utilizadas pelas criangas e considera- das, ainda assim, apenas como complemento de uma refeigéo mais substancial. 1.4 HABITAGAO As casas em Itapué, na sua grande maioria, sdo construi- das com material encontrado na prépria localidade, sendo 13 utilizadas com essa finalidade certos tipos de palmeira, princi- palmente as que séo conhecidas pelos nomes de “‘sororoca” e “boiugu”’, cujos troncos servem como esteios e as folhas (cha- madas comumente de “palha’’) para a cobertura e as paredes. Também sao comuns as casas de taipa ou de “enchimento”, que usam como material das paredes uma armagao de madeira em forma de grade, preenchendo os espagos vazies com barro, sendo algumas depois alisadas e pintadas; a cobertura tanto pode ser de palha, como de telha de ceramica. Existem ainda as casas de madeira, cujas paredes s&o fei- tas com tabuas compradas em outras localidades, o que acon- tece também com as telhas. Em Itapud s6 existe uma casa de tijolos, que alids nao est4 conclufda e, seu proprietdrio, que é dono de dois barcos de pesca (chamados na comunidade “rebo- ques”) 6 criticado pelas outras pessoas, que acham um des- perdicio esse investimento em uma “simples” casa de moradia. O piso da maioria das habitagées é de “terra” ou “chao bati- do”, sendo raros os pisos feitos com tdbuas. O padrao normal de habitacdo é a casa de trés cémodos, constando de sala, um quarto e cozinha. Em geral a pessoa le- vanta a armacao de casa jd com as dimensées necessérias para eomportar essas divisdes, mas na maioria dos casos “fecha” sd © quarto de dormir, deixando, apenas cobertas, mas sem pare- des, uma parte na frente e outra atrés que, mesmo nessas con- digdes, funcionam como a sala e a cozinha, respectivamente. Na parte da frente 6 colocado um banco de madeira para as vi- sitas e, na outra ficam o fogao e a mesa de refeigées. Uma casa desse tipo 6 a primeira que o casa! constrdi, esperando me- thoré-la depois, o que nem sempre acontece, havendo inGmeros casos de pessoas que vivem nesse tipo de habitagao, partilhan- do todos do mesmo aposento para dormir, adultos e criangas. Somente um nimero muito reduzido de residéncias possui mais de um quarto de dormir. O mobiliério das casas pouco varia, constande de bancos, mesas, caixas de madeira para guardar roupa (uma espécie de bav), cama de casal (sé alguns a possuem) e fogio de lenha. Algumas, melhor aparelhadas, possuem um armério para lou- ga, um guarda-roupas, cadeiras e até fogio a gds (que é usado 14 em raras ocasiées, servindo mais como indicador de uma si- tuagdo financeira melhor daqueles que o possuem), Quase to- das as donas de casa possuem maquina de costura e, em varias casas, existem rédios a pilha (nao existe energia elétrica na comunidade). O radio 6 um dos objetos mais valorizados em Itapué, pois é através dele que as pessoas sabem o que ocorre fora de seu meio. As condigées de higiene sao muito precdrias. As latrinas e banheiros ficam sempre no quintal préximos & cozinha e, en- tre estes, 0 poco que fornece a dgua para todas as necessidades domésticas. Essa proximidade entre as instalagdes sanitarias e © pogo certamente favorece a contaminagéo da agua e, como ela 6 consumida sem nenhuma espécie de tratamento (as pes- soas colocam a agua diretamente do pogo em recipientes de barro, chamados “‘potes”, para bebé-la), isto pode ser um dos fatores (ao lado da subnutrigéo) que provocam o aparecimento de doencas parasitarias e outras que parecem evidentes, mes- mo aos olhes do leigo, especialmente nas criangas. 1.5 AVIDA DIARIA As atividades didrias das pessoas, em Itapué, comegam sempre muito cedo. Para 0 pescador, principalmente se for uma segunda-feira, normalmente seu primeiro dia de trabalho. na pesca, elas se iniciam muito antes que os primeiros raios de sol comecem a surgi, pois 6 por volta das duas ou trés horas da madrugada que ele sai de casa e, geralmente, acompanhado de mais dois outros pescadores, seus companheiros de tripu- lag&o no reboque, se dirige para o porto a fim de sairem para o mar, onde iréo passar a semana toda pescando. Devo dizer que a atividade normal de trabalho na pesca, em Itapud, obedece a dois padrées basicos: um primeiro, seguido pela maioria dos pescadores, em que estes saem para o mar na segunda-feira, sé retornando no sdbado; e outro em que o pescador sai e volta todos os dias, muitas vezes pescando apenas durante a noite. Para a mulher, o trabalho diario comega um pouco mais tarde. LA pelas cinco horas da madrugada, quando o dia come- ga a clarear, ela levanta para dar inicio 4s suas tarefas didrias. I | | } | | 15. Seu primeiro trabalho 6 preparar o café para a refeigéo da ma- aha, que se compée dessa bebida, tomada sempre misturada A farinha de mandioea. Além disso, ela deve tratar de outros ser- vigos, como lavagem de roupa, providenciar o abastecimento de 4gua da casa, enchendo vasilhas para o uso doméstico e o pote de barro que guarda o Nquido usado para beber. Depois desse servigo e de tomar o café junto com os filhos, ela sai para seu trabalho na roga, isto j4 por volta de sete horas da manha. Para a grande maioria das mulheres que moram em Ita- pud essa é a rotina de todas as manhas. Aquelas que possuem filhas j4 mocinhas nem sempre se incumbem dessas tarefas, pois, como existe o costume de dar incumbéncias domésticas desde muito cedo para as meninas, sao estas que, naquela fase, ja substituem em parte a mae, cuidando em seu lugar das obri- gagées da casa, ficando a mulher quase totalmente voltada para o trabalho na roga, que 6, alids, o servigo que todas prefe- rem. Entretanto, se a mulher nao tem quem a substitua nas tarefas domésticas, ela acumula normalmente as duas ativida- de (da casa e da roca), executando a primeira nos intervalos de seu trabalho agricola, por vezes de madrugada ou a noite, con- tanto que ndo interfiram ou venham a prejudicar seu desem- penho no cuidado da roga. A tmica tarefa doméstica que the exige um hordrio rigido é o preparo dos alimentos, pois estes so sempre preparados na hora das refeigées, 0 que no entanto coincide com o periodo normal de intervalo dos trabalhos na roga. Essa rotina s6 6 quebrada por uma doenga ou durante o perfodo de resguardo pés-parto, quando a mulher nao sai de casa; além disso, também, aos sébados, domingos e dias consi- derados santificados pela comunidade, as atividades fora de ca- sa so suspensas. Logo que o dia amanhece comega a movimentagao de pes- soas nas casas, pelas “ruas” e “caminhos” de Htapud. Alguns se dirigem ao “comércio" para fazer compras, outros vao para suas rogas, outros se dirigem ao porto para tomar a lancha ou suas montarias a fim de viajar até a cidade de Vigia. O movi- mento de viagens para a Vigia é sempre maior no sabado e na segunda-feira; no primeiro porque, como nao se trabalha nas 16 rogas, as pessoas estao livres para cuidar de outros interesses _ na cidade e, na segunda-feira, deyido ao fato de que, como 0 _ posto médico nao funciona no fim da semana, os problemas de doenga que surgem nesse periodo aguardam o inicio da outra para serem tomadas as providéncias. ~ Por volta de sete horas comega 0 movimento maior das) = criangas que se dirigem & escola, pois, apesar de o inicio das ~ aulas ser apenas as oito horas, desde cedo elas comegam ase ~ yeunir as proximidades do prédio para aproveitar o tempo, an- tes da chegada das professoras, pricando e correndo no terreno ao redor. O hordrio de inicio das aulas também nao é muito ri- gido, inclusive porque, pelo menos no turno da manhé, duas professoras vém da cidade de Vigia para dar aula em Itapué e, muitas vezes, se atrasam, devido & viagem de barco que tém de fazer; mesmo as professoras que residem na comunidade nfo _ observam com rigidez 0 hor4rio estabelecido. a As criangas que ainda nao freqiientam a escola, ou que es- ~ tudam 4 tarde, passam o tempo em brincadeiras pelos terreiros ~ ou pelos caminhos, principalmente os meninos, pois as meni- ~ nas sio mais solicitadas.para ajudar em casa, quando nao sao ~ levadas pelas maes também para a roga, a fim de ja irem fa- ~ zendo seu aprendizado naquela atividade e, ao mesmo tempo, dando uma pequena ajuda, que, alids, é sempre necesséria. As mulheres que ndo estao nas rogas, normalmente as j4 ber velhas, ficam cuidando de outros trabalhos em casa, la- vando roupa, costurando e, muitas vezes, fazendo 0 papel de “babés” para os netos, enquanto suas filhas estdo na roga tra- balhando. iS Qs homens que, em Itapud, séo na maioria pescadores, _ quando néio estéo no mar, geralmente ficam sem se ocupar com _ coisa alguma, conversando com os outros nas ruas ou no — comércio, onde aproveitam para beber (especialmente cachaga — ou cerveja), sendo raro aquele que ajuda a mulher nos traba- Thos didrios nas rogas ou em casa. Um outro ponto de encontro ~ dos homens é o porto, onde as vezes esto outros cuidando dos ~ bareos de pesca (limpando, fazendo algum reparo), sendo, alidés~ este um local de uso exclusivo, com aquela finalidade, dos ho-~ mens. As mulheres s6 vao ao porto para tomar as embareagdes ~ 17 a fim de irem a Vigia, ou quando tém necessidade de falar com seus maridas, se estes estiverem trabalhando 14, mas nao eos- tumam demorar-se ali. Ndo obstante, os homens que nao sic pescadores e trabalham em outras atividades como a lavoura, a confecgdio e conserto de redes e barcos de pesca, ocupam-se de suas tarefas normais durante todo o dia. Mais ou menos na metade do dia, cerca de doze horas, as pessoas se reunem em casa para o almogo, As mulheres voltam da roga um pouco antes para Ppreparar a refeigao; as criangas, a essa altura, ja valtaram da escola; os homens que esto em ter- ta também retornaram a suas casas e entao, todos juntos, co- megam a segunda refeigao do dia que, quase invariavelmente, consiste de peixe cozido com farinha de mandioca. Apés a al- mogo as mulheres vao cuidar dos afazeres domésticos (lavagem de louca, abastecimento de Agua da casa), para retornar pouco depois ao seu trabalho na roga. Os homens geralmente apro- veitam essa hora para repousar um pouco em suas redes, 0 mesmo fazendo a mulher, quando nao tem que se ocupar na roga. Nesse intervalo de tempo da hora do almogo, e até um pouco depois, so poucas as pessoas que se véem circulando fo- ra de casa. A calma desse momento do dia é quebrada, em seguida, pela movimentagio das criangas que freqientam a escola no periodo da tarde e que, como seus colegas da manhd, também se dirigem para ld muito antes da hora da aula, que 6 mareada para as 14 horas. E por volta dessa hora também que as mu- theres retornam ao trabalho na roga, e ent4o a rotina segue como a da manha. Durante a tarde hé sempre um grupo de ra- pazes que se retne para um jogo de futebol no campo que exis- te na comunidade. Ao cair da noite todos voltam as suas casas; as mulheres Preparam o jantar, que 6 novamente peixe cozido com farinha ou, quando o peixe escasseia, café com farinha ou mingau. 5 nessa hora antes do jantar que as mutheres aproveitam para cuidar dos pequenos jardins que sempre so plantados & frente de suas casas, e pode-se ver pequenos grupos de pessoas con- versando antes de escurecer completamente. O movimento aumenta nos dois comércios, com os homens conversando e 18 bebendo um pouco, ou aproveitando para jogar o bilharito que funciona em um deles. E também nessa hora que as pessoas fazem as Gltimas compras do dia, principalmente o querosene, que é comprado diariamente, para alimentar as lamparinas que iluminam as casas na noite que jé se aproxima. Quando escurece completamente, so poucas as pessoas que circulam pelas ruas e caminhos, pois a essa altura todos j4 estéo em casa para a refeigéo comum. Depois do jantar as mu- Theres ainda continuam acordadas por mais tempo, cuidando das tarefas domésticas que seu trabalho na roga nao permite que tratem durante o dia. Enquanto isso, alguns homens ainda se demoram nos comércios, conversando e bebericando, e ha sempre uma turma de rapazes jogando bilharito ou conversan- do em uma esquina; mas como as préprias casas de comércio também fecham cedo, por volta das oito e, no maximo nove ho- ras da noite, a grande maioria das casas em Itapud esté fecha- da e seus moradores dormindo, para logo mais enfrentarem as tarefas de um novo dia. Nos dias de sébado as atividades mudam um pouco; esse 6 o dia em que os pescadores, que passaram a semana no mar, “entram”’, isto é, retornam a Itapua. A partir da manha come- gam a chegar reboques com suas tripulagées; se a pesca foi boa eles voltam trazendo algum dinheiro e por vezes objetos com- prados na cidade de Vigia, além, naturalmente, da parte que thes cabe na diviséo do peixe entre os tripulantes e que dever alimentar sua familia durante a semana. Se o trabalho no mar nao rendeu, entéo muitas vezes eles néo podem trazer para ca- sa nem mesmo o peixe que seja suficiente para o consumo fa- miliar, o que nao é raro acontecer. E comum ver-se, no sdbado, varios pescadores no porto, lavando os reboques em que trabalham, ou fazendo algum pe- queno reparo nos mesmos. Nesse dia as mulheres néo traba- Tham nas rogas, a nao ser que tenham grande necessidade, aproveitando para cuidar das tarefas domésticas, que ficaram atrasadas pelo tempo dedicado Aquela atividade durante a se- mana. Como o marido chega da pesca nesse dia, ele traz roupa suja que precisa ser lavada e as vezes consertada, para estar pronta na segunda feira. 19 Os domingos e feriados (muitas vezes eles guardam dias santificados, mesmo que no sejam feriados) sao dedicados a visitar parentes e amigos, ou a uma ida até a cidade de Vigia para fazer compras na feira-cu no comércic (eo que também ocorre no sabado)} e, & tarde, geralmente hé um jogo de futebol no campo da comunidade, cuja assisténcia maior ou menor de- pende do interesse despertado pela partida; quando o time de itapua joga contra um de fora, até as mulheres se deslocam, acompanhadas de todos os filhos (mesmo os “de colo”), para verem o jogo, pois muitas vezes tém seus maridos e filhos fun- cionando como “‘craques”’. As festas dangantes so raras em Itapud, o que nao signi- fiea que seus moradores néo gostem de dangar. Pelo contrario, rapazes e muitos homens casados (geralmente sem levar as mulheres), que se dirigem para outras localidades, onde se rea- lizam festas. Muitas vezes, essas pessoas chegam a percorrer grandes distancias a pé, passando por matas, zonas pantano- ‘sas, ou viajando em lanchas e montarias, pelo prazer de parti- cipar de uma festa dangante, mas também porque isto nao deixa de ser uma oportunidade para encontros de namorados, ou entre amigos para um boa bebedeira, nao deixando de haver sempre uma briga entre os mais exaltados, pois tudo isso afi- nal, faz parte da diversao. Como vimos, a vida dos moradores de Itapua gira em tor- no de duas atividades principais: a pesca e a agricultura, e estas se colocam como uma espécie de marco divisério entre o que, no tocante ac que é considerado como “‘trabatho”’, 6 préprie do homem e da muther. Nos proximos capitulos (II e Il) veremos como se apresentam, na comunidade em foco, estes dois seto- res téo determinantes, dos quais, podemos dizer, depende a propria continuidade de sua existéncia. 1.6 A POSIGAO DO HOMEM E DA MULHER A mulher possui, em Itapu4, um status que é, como vere- mos no decorrer deste estudo, claramente de inferioridade, assumindo em relagéo ao homem uma posigéo de total de- pendéncia, o que, alids, sempre acontece em todas as socieda- 20 des. As explicagées para esta situagéio poderiam ser de varios tipos, como as que recorrem & psicologia ou a biologia, procu- rando ai as razdes para as diferencas entre as posigdes dos se- xos. Nao discutindo aqui a validade dessas abordagens, devo dizer que pretendo, em meu trabalho, tentar encontrar uma explicagéo de cardter sociolégico para o problema, segundo uma orientagao analitica que remonta a Durkheim, com a sua conhecida proposigéo de explicar o social pelo social (1972: 96). Desde 0 inicio de meu trabalho em Itapud, uma das coisas que mais me chamou a atengéo foi a intensa ritualizagéo que envolve os processos fisiolégicos femininos, 0 que me pareceu ser 0 indicio de algo que talvez ajudasse a entender o problema que me propunha investigar. Como sabemos, os processos aci- ma mencionados séo sempre passiveis de serem elahorados simbolicamente, sendo, além disso, percebidos como uma das diferengas bdsicas entre o homem e a mulher. Realmente, conforme procurarei demonstrar no decorrer deste trabalho, principalmente nos capitulos que tratam espe- cificamente do tema, a imposicdo de um status inferior, assim como a situagéo de dependéncia da mulher itapuaense, é justi- ficada pelos membros do grupo, tanto homens como mulheres, e se mantém gracas a recorréncia justamente as suas peculia- ridades bioldgicas e & simbolizacao de que sao objeto. O fato de ter privilegiado, na andlise, o ciclo biolégico da mulher, justifica-se assim pelo que ficou dito acima, mas também por ser 0 critério de diferenciagéio sexual que 0 préprio grupo manipula. Por outro lado, quero deixar bem claro desde logo que, embora tomando por base processos naturais, estes apenas servem como elementos de que o sistema social se utili- za para promover e justificar uma situacao. Portanto, apesar da existéncia de um referente natural (ou bioldgico), 0 proces- so de diferenciagéo, desenvolvide a partir dele, 6 de cardter eminentemente -social. Ele se acha encaixado no modelo in- consciente, que informa todo o quadro das relagdes sociais em que se defrontam homens e mulheres, assim como também surge ao nivel do modelo consciente, na forma como 6 percebi- da a atuagéo e o modo de ser de ambos os sexos no seu desem- penho social. at A mulher, pelo fato de participar de processos eminente- mente naturais que, num contexto ritual, sfo também estados de liminaridade (cf. Van Gennep 1960: 16-11), esta continua- mente transitando entre dois domfnios, o da natureza e o da cultura (ou sociedade), Esta situagdo de descontinuidade, a que se opée a posigéo estavel do homem, implica uma série de ameagas e proibicdes, que lhe sao impostas pelo sistema social, as quais acabam por resultar numa espécie de freio a sua par- ticipagao efetiva nas diversas esferas que compoem aquele sistema. Além disso, a mulher é também considerada fonte de desordem, sendo dotada de uma espécie de poder perigoso e estando, continuamente, sujeita 4 poluigéo, que a afeta pes- ‘soalmente e com a qual ela pode contaminar os outros seres (inclusive o homem). : Pot tudo isso, como ja disse, so colocados limites para sua atuacdéo social em todos os dominios. Isto ainda se torna mais evidente no que se refere a trés deles, a pesca, o poder e o xamanismo que, por serem cruciais para o sistema, como ve- remos no Capitulo IX, nao podem ser expostos & desordem, sendo entéo praticamente vedados 4 mulher. Alids, pode-se di- zer mesmo que nAo existe, em Itapud, um dominic que seja ex- clusivamente feminino, o que néo acontece com o homem. Em todas as esferas de atuagao, tais como a doméstica, a econdmica, a religiosa, a politica e a ritual, a posigéo mais im- portante, de diregdo, podemos dizer assim, cabe sempre ao ho- mem. A mulher surge como elemento de apoio, necessario, mas que parece nao contar muito, no eémpute geral de participag&o dos dois sexos. Essa atuagio feminina resume-se, entao, a prestagdo de servigos, em que ela nao visa a si propria, mas age totalmente em funcdéo dos outros. Se estabelecermos uma diviséo geral da sociedade focali- zada, em termos da oposigao entre os setores ptiblico e privado, podemos dizer que compete ao homem atuar no primeiro, en- quanto 4 mulher fica reservada uma participagao apenas res- trita ao segundo. A partir desta diviséo mais abrangente é que se colocam as atribuigdes do homem e da mulher nos diversos dominios. 22 No que se refere 4 esfera doméstica, hé uma divisdo de atribuigdes pela qual cabe ao homem centralizar, em suas méos, todo o controle e diregao do grupo doméstico, sendo den- tro dele a autoridade maxima, a quem todos devem obedecer e acatar. A ele também fica creditada a responsabilidade, pelo menos em termos de um modelo ideolégico consciente, pela manutengao de sua familia, uma vez que o dinheiro, para os itapuaenses, é percebido como um bem masculino. A mulher, dentro dessa esfera, surge numa posigéo oposta a do homem, em termos do que mencionei acima. Ela fica restrita a uma atuagaéo no sentido da prestagéo de servigos (as tarefas pré- prias de uma dona de casa), totalmente voltada para o interior desse pequeno mundo, que 6 sua casa, e no qual, apesar do de- sempenho mais ativo que ela tem, fica situada sempre em se- gundo plano. Na esfera econdmica, s6 o homem atua na pesca, contro- lando totalmente essa atividade, enquanto a mulher tem uma participagéo mais destacada, embora nao exclusiva, na agricul- tura (trabalho nas rogas). A pesca é a atividade econdmica mais importante e é também a mais valorizada pelo grupo, sendo através dela que se efetua (pela comercializagao do pes- cado) a insergéc da comunidade no esquema de produgéo pes- queira do municipio, e através deste, da Micro-Regido de que faz parte. E, desse modo, uma atividade que se apresenta vol- tada para fora da comunidade. A agricultura, ao contrério, nao possui o mesmo grau de importancia conferido & pesca, sendo desenvolvido apenas no ambito da comunidade, e dentro desta, limitando-se praticamente & esfera de cada grupo doméstico. A atividade de cunho catélico, na forma como existe em Itapud, 6 desempenhada mais ativamente pelo elemento femi- nino. Esta atuagao se faz sentir, principalmente, no tocante a praticas rituais como ladainhas, novenas, ete. Entretanto, toda a diregao do culto fica entregue aos homens que, mesmo consi- derando a atividade nesse campo como prépria das mulheres, nao abrem mao de suas prerrogativas de superioridade nesse setor. A esfera politica esta praticamente vinculada, com exclu- sividade, & participagéo do setor masculino do grupo. Assim 23 como a atividade religiosa de cunho catélico é vinculada ideo- logicamente a um desempenho feminino, a politica vai ser o contrario. Entretanto, enquanto, no que se refere A primeira, ocorre uma intromissao determinante do elemento masculino, © mesmo nao se da no que tange 4 segunda, pois a mulher nao tem participagdo alguma na composigéo e atuagéo dos grupos politicos que existem na comunidade?. No que diz respeito ainda a pratica de rituais, podemos estabelecer também uma diferenga importante quanto A parti- cipagdo do homem e da muther. Em Itapua, como de resto na maioria da sociedades humanas, tanto as ocasiédes do nasci- mento, como as da morte das pessoas, sAo objeto de intensa ri- tualizagéo. Nesses rituais hé uma participagdo das mulheres que é quase exclusiva no primeiro caso (naseimento) e, pelo menos, predominante no segundo (morte). Por outro lado, no que tange a pratica dos rituais do xamanismo (“‘pajelanga”’), dé-se justamente o contrario. O xamanismo se apresenta, na comunidade, como um dominio que pode ser considerado como masculino, nao admitindo, nos seus aspectos mais importantes _ e positivos (cura de doencas, por exemplo) a participacéo da mulher‘. As colocagées que fiz acima sobre a posigéo da mulher e do homem em Itapué, seréo melhor desenvolvidas‘e tratadas analiticamente ac longo deste trabalho, ao final do qual tenta- remos enfeixar a andlise em um modelo global, que torne mais explicitos os varios aspectos do problema investigado, colocan- do-os no contexto mais amplo do sistema social do grupo. Para tanto, nos dois capftulos seguintes (Hf e IID, procu- rarei descrever as atividades econdmicas dos itapuaenses, a fim de dar ao leitor uma viséo a respeito, ndo apenas das ativida- des em si, mas também da divisdo social do trabalho que, na comunidade, se faz sobretudo por sexo. O quarto capitulo apresentaré uma anélise dos papéis sexuais da mulher, visan- do a introduzir o tema do capitulo seguinte, que trata a respei- to das atribuigdes do homem e da mulher, completando a visio jé oferecida pelos capitulos anteriores e procurando mostrar que, em Itapud, nao existe um dominio de atribuigdes exclusi- vamente feminino. Os irés capitulos seguintes (VI, VIL e VII) 24 terao por finalidade analisar os processos fisiolégicos femini- nos (menstruagio, gravidez, puérpério e menopausa) em seu significado simbélico e como situagées liminares pelas quadis a mulher deve passar no decorrer de sua vida. Dois desses processos podem ser’ destacados, pelas impor- tantes mudangas de status que acarretam: a menstruagéo (com referéncia particular 4 menarca) e a menopausa. A mens- truagéo no seu inicio (menarca) assinala a passagem de uma situagéo mais ou menos indiferenciada do ponto de vista se- xual, em que a menina é praticamente equiparada ao menino, para a de mulher; quanto A menopausa, trata-se de um proces- so em que, no seu final, segundo os itapuaenses, a mulher “vira homem”. Entre esses dois marcos do ciclo biolégico fe- minino 6 que se situam as sucessivas fases de menstruagao, gravidez e puerpério a que a mulher esta sujeita e que, com ex- cegéo da gravidez, implicam numerosas ameacas de ordem na- tural e sobrenatural, proibigdes, as quais restringem o campo de atuagao da mulher no sistema social. Tentarei demonstrar, ao final deste estudo, que as elabo- ragées simbdlicas desenvolvidas pelos membros da comunidade em torno dos processos fisiolégicos femininos (acompanhadas de certas praticas sociais correspondentes) se apresentam co- mo responsaveis pela atribuigéo de um status feminino que, numa escala valorativa, se situa como de inferioridade em re- lagéo ao homem, surgindo como justificagées para a manu- teng&o desse status. NOTAS 1 A exploracéo do agaizeire é controlada, neste particular, por uma fabrica de palmito que funciona na cidade de Vigia, sendo que alguns moradores de Htapud, eventualmente, se dedicam a asa atividade extrativa, 2 O sauaté ocorre durante es fases de lua cheia ou lua nova, no perfodo chuvoso (“inverno”), aproximadamente de dezembro a abril. Nessas oca- sides, as 4guas crescem de volume (‘4guas grandes”) e invadem os locais (‘buracos”) onde o animal vive no mangal, forgando-o a deixar seu escon- derijo, da ser facilmente apanhado pelas pessoas. 3 Existe em Itapud uma faccdo politica dominante, sendo as demais de qua- se nenhuma expressividade. A facgio mais forte é comandada por um grupo formado por quatro irmaos, que pertencem a uma das famflias mais conceituadas do lugar. Dos quatro, dois séo comerciantes, um 6 pescador (sendo 0 que possui a situagso financeira mais modesta) e o outro é 0 dele- gado de policia da cidade de Vigia. Este 6 0 verdadeiro chefe politico da comunidade, apesar de que 6 um dos comerciantes o que aparece publi- camente nesta funcao. 4 Nao obstante, como se veré mais tarde, no Capitulo V, existe uma mulher que procura exereer a fungéo de pajé na comunidade. Basa mulher encon- tra muita dificuldade para se afirmar nessa posigéo, sendo seu caso, pe- Jas peculiaridades que apresenta, uma situagdo que ilustra muito bem a regra de excluséo das mulheres das fungoes importantes da atividade xa- manfstica. PIVPIPIVIVSPIIIAAPIVIDIFPIVIVAFIIVIAIAID IAI IIIA HKD | | [ | CAPITULO If A PESCA: UM DOMINIO MASCULINO Neste capitulo, e no préximo, tratarei das principais ati- vidades econémicas dos itapuaenses, examinando os seus di- versos aspectos, as formas que assumem nelas as relagdes de trabalho e a posigéo de homens e mulheres em relagéo as mesmas. A pesca 6 uma atividade masculina, sendo controlada e desenvoivida apenas pelos homens. A agricultura, apesar de ser concebida como uma atividade feminina, e de ser exercida em grande parte pelas mulheres, conta também com a partici- pagéo dos homens, que nela desempenham algumas das tarefas mais importantes. Em Itapud, o homem que participa, como tripulante, nas embarcagdes de pesca, recebe a designag&o especial de “cama- rado”’, enquanto a mulher que trabalha, como diarista, nas ro- gas, 6 chamada de “‘trabalhadeira”. Estes dois termos indicam exatamente as posigdes que, no modelo ideolégico do grupo, correspondem ac homem e & mulher, respectivamente. O “camarado” é um homem que participa com outros da atividade pesqueira e divide com eles as tarefas préprias desse tipo de trabalho, assim como os lucros que resultam de seu desempenho em cada expedigéio de pesca (o peixe e o dinheiro ganho com sua venda). Ele surge, portanto, no plano das re- presentag6es, mesmo quando nao detém o controle sobre os meios de produgéo, como alguém que trabalha em conjunto “com” outros mas néo “para” outros, na medida em que divi- 28 de com seus camarados.e o dono (ou donos) daqueles meios os resultados de seu trabalho, que 6 um bem que the “pertence” totalmente. : A “trabalhadeira” é a mulher que aluga a sua forcga de trabalho para outras pessoas (donos de rogas), obtendo com is- so um pagamento em dinheiro (de que ela naa dispée, alias, s6 em proveito préprio), mas nfo participa efetivamente da di- viséo do produto agricola. Ao contrério dos homens, portanto, ela trabatha para os outros, pois, mesmo que a mulher nao execute tarefas nas rogas de outras pessoas e sim na sua pré- pria, ela participa, na realidade, apenas como produtora de bens (o alimento, no caso) e nunca como proprietdria dos meios de produgao. Com efeito, mesmo sendo a agricultura de- finida ideologicamente como um dominio feminino, o seu con- trole fica com o homem; a mulher trabalha nas rogas, mas o seu verdadeiro dono é o homem, frente ao qual ela 6, apenas, em todos os sentidos, como veremos em nossa anélise final (Cap. IX), a “trabalhadeira’”’, mas nunca algo que se aproxime do que é definido como ‘“‘camarado”. 21 APESCA Como acontece em todo o municipio de Vigia, a pesca desenvolvida pelos moradores de Itapud 6 marcadamente arte- sanal, feita com o emprego de instrumentos rudimentares, mé- todos de conservagao que se reduzem praticamente a salga, um tipo de comercializagéo que sempre traz mais vantagens aos nao pescadores (“‘aviadores” e “marreteiros” ou “aparado- res”) e com predomindncia de relagées de trabalho que se ca- racterizam pela parceria. : A 4rea onde potencialmente atuam os pescadores de Ita- pua é a mesma onde também trabalham outros pescadores do municipio e de munic{pios vizinhos. Essa éroa abrange a foz do. rio Pard, entre a ilha de Marajé ¢ o continente, as costas da mesma ilha, a foz do rio Amazonas e o litoral do Amapé (cf. IDESP 1968: 9-10). Na realidade, porém, na época da pesquisa, nenhum dos pescadores da comunidade se encontrava engaja- 29 do em pescarias que exigissem um deslocamento a distancias maiores do que a costa da itha do Marajé. a) Utensilios de pesca Os utensilios (ou “‘aparetiios") de pesca que s&o usados com maior freqiiéncia pelos pescadores de Itapua incluem a re- de, o anzol, a linha, a tarrafa, o curral eo matapi. Além desses, sao conhecidos outros instrumentos como o arpao, 0 pugdeo gancho, que néo sao por vezes referidos espontaneamente pelo informante, ou séo mencionados como coisas do passado (caso do arpao). Os anzéis sao muitas vezes agrupados para formar o es- pinhel (ou tiradeira), que pode conter até mais de uma centena de anzéis. As redes de pesca podem ser confeccionadas de al- godao, nylon ou plastico, sendo de varios tipos, que so desig- nados pelos nomes de rede “de malhar”, rede “de lango”, rede “de tapar igarapé” e “‘zangaria”. Além dessas redes os pesea- dores utilizam a tarrafa, uma espécie de rede pequena, que exige grande habilidade da parte de quem a emprega. O curral 6 construfdo pelo pescador & beira dos rios ou nas partes rasas dos mesmos e da bafa do Marajé, havendo necessidade de registré-lo na Colénia de Pescadores, para as- Segurar a posse, uma vez que a drea utilizada para a sua colo- cagéo nao é considerada propriedade particular. O curral tem duragdo temporéria, que 6 em média de um ano, sendo ne- cessario refazé-lo depois desse periodo. Na época de nossa pes- quisa s6 havia um pescador em Itapud que trabalhava nesse tipo de pescaria. O matapi 6 usado para capturar peixes pequenos e ca- marées, sendo umi tipo de armadilha feita com cipé. O arpao, embora, segundo os informantes, ji tenha sido utilizado em époea nao muito distante, hoje nao é mais usado pelos pesca- dores da comunidade. O pucd, usado na pesca do camarao, e o gancho, que serve para a captura do caranguejo no mangal, nao sdo utilizados com muita freqiéncia em Itapud. 30 6) Embarcagées de pesca Embora os pescadores de Itapud conhecam e distingam outros tipos de embarcagéo, as que sfo mais usadas por eles para a pesca ou para o transporte (de pessoas ou mercadorias) sao as que designam pelo termo “‘canoa”’, Eles as classificam, de acordo com seu tamanho, em trés tipos: canoa grande, mé- dia e pequena. Em Itapud s6 as canoas pequenas so empre- gadas na atividade da pesca, apesar de que todos os trés tipos podem ser usados para essa atividade. Alids, na comunidade, 86 existe uma canoa grande, que é empregada pelo seu pro- prietério na compra e venda de peixe (“marretagem”); ne- nhum morador de Itapué possui uma canoa média (“igarité” ou “bolacheira’’). As canoas pequenas recebem as denominagées de casco, montaria, batelao e reboque. O casco e a montaria, as menores de todas, séo usadas em Itapué para as pescarias “na beira”’ (préximo A costa), com a utilizagéo de anzdis ou redes peque- nas; o reboque, um pouco maior, é usado nas pescarias “de fo- ra’’, com o emprego de redes de malhar que podem chegar a ter até 500 a 600 bragas. Os dois primeiros tipos de canoas peque- nas séo embarcagées movidas a remo, enquanto o reboque sempre utiliza uma vela, podendo ser também movido a remo, na falta de vento. Se a um reboque se adaptar um motor ele passa a ser conhecido como “lancha”’, sendo desse tipo as lan- chas que fazem o transporte de passageiros entre Vigia e Ita- pud; entretanto, as lanchas nao sao usadas na pesca e sim na compra e venda de peixe ou no transporte de carga e passagei- ros. O reboque é a embarcacdo mais usada na pesca e, devido as suas dimensées reduzidas, pode-se dizer que 6 realmente uma aventura passar nele uma sémana no mar, como fazem os homens de Itapua. c) A tripulagao das embarcagées de pesca \, 4 Em Itapué a pesca 6 praticada tanto individualmente co- mo em pequenos grupos. No primeiro caso, ela é feita em cas- ¢0s ou em montarias, utilizande o anzol, pois o uso da rede jé fore ¢ 31 exige pelo menos dois pescadores, um para remar e outro para operar com ela. A tripulagdo de um reboque, onde a pesearia s6 pode ser feita em grupo, é composta em geral de trés pescadores, havendo um “encarregado” e dois “camarados”. O enearrega- do € o responsdvel por todas as operagées da pesca, inclusive he que se refere s decisées que devem ser tomadas ou as tran- sagdes que se efetuam para a comercializagéo do peixe. Devido a isso, o encarregado, quando nao é 0 proprietério do reboque, deve ser alguém de sua confianga e, ento, o esco- thido geralmente 6 algum parente do mesmo (um compadre estaria incluido nessa categoria) ou até um amigo. Para a esco- tha dos camarados o parentesco também funciona como crité- ric, embora em menor escala. Nesse caso, um outro fator que influi na escolha é a necessidade que alguém tenha de traba- thar para sustentar a familia; devido a esse fator, os homens solteiros, sem responsabilidade de dependentes, quase sempre serdo preteridos para dar a vez a outro com situagéo contraria asua, d) Tipos de pescaria A atividade da pesea 6 praticada pelos pescadores de Ita puaé de acordo com diversas modalidades, que sao classificadas por eles segundo a utilizagdo de vérios critérios. Se o pescador tomar por base os utensilios usados na pesea, ele a classifica em 5 tipos: a pescaria de rede, a de anzol, a de curral, a de tar- rafa e a de zangaria (ou camboa)!. Os pescadores de rede, de curral ¢ de tarrafa recebem designacées especiais que sito, res- pectivamente, “redeiros”, ‘‘curralistas” e “tarrafeadores”’; os que trabalham com outros tipos séo simplesmente chamados “pescadores de anzo!” ow “pescadores de zangaria’. Pode-se também considerar o local onde a pesca se realiza, se perto ou Jonge da costa e, entdo, teremos a pescaria ‘“‘da bei- ra”, no primeiro caso, e a pescaria “de fora”, no segundo. Um outro critério classificatério que o pescador utiliza é 0 tempo de duragdo da pescaria. A que se faz de acordo.com o movimen- to das marés, sendo portanto de duragéo reduzida, recebe o nome de “marisco’’, sendo praticada muitas vezes nos interva- 32 los das ocupagées normais e, em geral, feita com a utilizagéio do anzol ou da rede, dentro dos rios ou perto da costa”. As outras sao chamadas simplesmente de ‘“‘pesearia”, sem que possuam uma designagéo especial. O pescador ainda distingue os tipos de pescaria pelo local até onde ele se desloca para seu trabalho no mar; nesse caso, embora néo aplique rétulos a esses tipos, pode-se perceber a existéncia dessas categorias pelas designagées dos tipos de pes- cadores que as praticam. Vemos assim que quem pesca na re- giéo do Cabo Norte é chamado de “‘pescador do Norte” ou “nortista”; 0 que pesca na foz do Amazonas é o pescador “amazonense”; aquele que pesca nas costas da ilha do Marajé é conhecido como “‘marajoara”; para quem pesea no municipio de Vigia e suas imediagdes usa-se apenas o termo “‘pescador”’. Em Itapud, a grande maioria dos pescadores trabalha num tipo de pescaria em que so empregados o reboque e a re- de de malhar. E a pescaria de fora em que, como ja dissemos anteriormente, eles passam uma semana inteira pescando. Se o pescador deixou em casa peixe suficiente para sua familia, ele s6 retorna no sébado; se isso nao acontece, regressa no meio da semana para trazer a comida e torna a voltar para a pesea, isto se néo consegue alguém para levar o peixe para a familia em seu lugar. e) Condigées naturais e sua influéncia nas pescarias As condigdes naturais exercem grande influéncia sobre a pesca, como é ébvio: ventos, marés, chuvas, etc. De todas elas, porém, a mais importante é o grau de salinidade da agua. Este fato 6 enfatizado em um estudo realizado pelo Grupo de Estu- dos de Pesca do Instituto de Desenvolvimento Econ6émico-So- cial do Paré (IDESP), que realizou seu trabalho de campo no municfpio de Vigia em 1965-66. Neste estudo séo mostradas as influéncias daquele fator (salinidade da agua) no que se refere aos tipos de espécies de peixe capturados conforme a época do ano, determinando duas safras, a de inverno (espécies de 4gua salobre e doce) e a de vero (espécies de Agua salgada e salobre) (cf. IDESP 1968: 18). 33 Para os informantes com quem trabalhei ocorrem na ver- dade 4 fases distintas: a da “Agua salgada”, a da “descida da Agua’, a “da 4gua doce” e a da “subida da agua”. A descida da gua, que ocorre-por volta do més de dezembro, 6 considerada a mais farta. Também durante a subida da agua (més de ju- nho) a quantidade de peixes 6 considerdvel, embora inferior 4 da descida. A razio apontada pelos informantes é que, nessas fases, espécies de peixe “do doce” e “‘do salgado” podem ser capturadas ao mesmo tempo. As fases da agua salgada e da &gua doce s&o consideradas menos fartas ou normais; é também nestas fases que ocorrem perfodos de escassez, em que © pescador, fregitentemente, consegue muito pouco resultado, ou nenhum, do seu trabalho no mar. f) Acomercializagéo do pescado O peixe 6 vendido no mar, aos chamados “marreteiros”, que o procuram ao final da tarde, em embarcagées motoriza- das. Normalmente ele 6 vendido fresco e levado para a cidade de Vigia, onde costuma ser revendido a um comerciante (também chamado marreteiro, ou “aparador”). Alguns marre- teiros, dependendo das circunstancias, optam por vender o peixe diretamente no mercado da cidade, o que Ihes proporcio- na um lucro maior. Nao obstante, essa pratica néo é comum, por ser muite trabalhosa. O marreteiro que quiser vender seu peixe no mercado po- de contratar um “talhista” (pessoa especializada em cortar o peixe para vendé-lo ao consumidor) ou vendé-lo pessoalmente. Esta segunda hipétese é quase impraticavel, pois, normalmen- te, 0 marreteiro retorna do mar com o peixe bem tarde da noite (&@s_vezes até de madrugada) e teria de estar acordado bem cedo, no dia seguinte, para iniciar a venda. Mesmo para con- tratar um talhista seu trabalho seria grande, porque teria de providenciar o gelo para a conservagao do peixe e fiscalizar sua venda, Por isso, é preferivel vender o peixe trazido do mar ao aparador, homem de maiores recursos, que dispée de varios empregados para cuidar dele. 34 Ha aparadores que residem na cidade de Vigia e outros que se deslocam de outras cidades (especialmente Belém) para comprar o peixe. Na cidade de Vigia funciona um frigorifico, cujo proprietario reside em Belém, mas possui uma espécie de gerente, que funciona também como aparador. Os outros apa- radores nao dispéem de frigorificos e sfo obrigados a comprar o pelo em uma fabrica existente na cidade. Entretanto, uma boa parte do peixe 6 salgado para poder ser conservado. Os marreteiros que compram o peixe diretamente no mar, via de regra, estéo ligados.a um aparador na cidade de Vigia. O apa- rador “‘fornece o capital” (dinheiro) ao marreteiro e este fica obrigado a “‘entregar” o peixe somente aquele comerciante; poucos s&o os que trabalham por conta prépria, com seu prdé- prio capital?. Ao comprar o peixe do marreteiro, o aparador 6 obrigado a vender uma parte (30%) na cidade de Vigia, para atender as necessidades de consumo da populagdo; o restante pode ser enviado para outras cidades. Isto acontece também com os aparadores que néo residem em Vigia, sendo uma determi- nagéo da Prefeitura, fiscalizada pela policia local. A policia ta- bela os peixes a serem vendidos no mercado da cidade, 0 que em parte contribui para regular os precos do peixe vendido no mar pelos pescadores. Nao obstante, 0 peixe vendido no mar nao esta sujeito a nenhuma tabela e sofre uma variagéo muito grande no seu prego, dependendo da maior ou menor quanti- dade de peixe que esta sendo capturado no municfpio. Em épo- cas de fartura de peixe, como é de esperar, o prego baixa; quando o peixe escasseia, 0 prego sobe, mas nunca a ponto de se igualar ou tornar-se superior ao da tabela em vigor no mer- cado da cidade‘. Os marreteiros que compram o peixe no mar, se inquiri- dos a respeito, declaram sempre que seu lucro é de cinguenta centavos por quilograma de peixe, néo importando a classe; 0 mesmo dizem os aparadores. Na realidade, esses lucros podem ser bem maiores, dependendo de alguns fatores. O marreteiro que trabalha com “‘compromisso” (isto é, que recebe o dinheiro de um aparador para comprar o peixe, obrigando-se a vendé-lo 35 80 mesmo aparador) geralmente lucra muito pouco ou, na ver- dade, ndo tem lucro nenhum, porque sua divida sempre au- menta junto ao “patrdo”, do qual dificilmente se liberta. O marreteiro que trabalha por conta propria, se for habil em seus negécios, pode prosperar e, muitas vezes, transforma-se ele propria em aparador. Mas os lucros maiores, na realidade, pertencem aos apa- radores, comerciantes que tém geralmente varios marreteiros trabalhando para eles sob “compromisso” e que funcionam, também, como “‘armadores’’ (nome que se emprega em Vigia para designar os proprietérios de embarcagées de pesca, que nao trabalham como pescadores), Esses comerciantes (armado- res, aparadores) servem, por outro lado, como “‘aviadores” do pescador na cidade de Vigia, sendo, por isso, aqueles que mais se beneficiam da produgéo pesqueira do municipio. O lucro de marreteiros e aparadores varia, outrossim, em fungdo da maior ou menor quantidade de peixe que est4 sendo capturada, nao 86 no municipio de Vigia, como também nos municipios vizi- uhos e, até, em locais relativamente distantes, como Icoaraci e Mosqueiro (vilas pertencentes ao municipio de Belém, onde se pratica a pesca). O pescador, entretanto, 6 quem menos ganha. Depois de uma semana inteira no mar, se a pescaria foi feliz, ele retorna com algum dinheiro, que muitas vezes é gasto inteiramente no sdbado, ao pagar suas dividas no comércio, fazer algumas com- pras e tomar uma boa bebedeira. O pescador normaimente vende seu peixe a um Gnico marreteiro, que € considerado seu “‘fregués”. Quando isso néo é possivel, o peixe 6 vendido a qualquer marreteiro que esteja interessado na compra. Se ele nfo consegue vender o peixe fresco no mar, restam-lhe duas opgées: salgar o peixe ou seguir o mais rapido que possa até a cidade, a fim de vendé-lo direta- mente. Pode acontecer que nao consiga seguir nenhum destes dois caminhos, por falta de sal ou de vento e, neste caso, todo 0 seu trabalho fica perdido, pois o peixe se estraga e tem de ser langado no mar®, 36 22 RELACOES DE TRABALHO NA PESCA Os estudos que conhecemos a respeito da produgao pes- queira no municfpio de Vigia e em outras zonas do Estado do Paré acentuam a importancia da parceria e do aviamento QDESP 1968, Santos 1969). Em trabalho intitulado “A Rodo- via Belém-Brasilia”, publicado em 1967 pela Editora da Fun- dagéo IBGE, Orlando Valverde e Catharina Vergolino Dias, descrevendo a vigéncia do sistema de parceria e aviamento na Micro-Regigo do Salgado, dizem o seguinte: “O produto da pescaria 6 dividido em duas partes: metade fica para o dono da canoa; e a outra metade fica para o pescador, que a divide com a tripulagdo. Estes, nada recebem, pois vivem endividados com 0 pairdo pelos aviamentos que thes fornece (...). O dono da ca- noa vende ao marreéeiro e deduz da divida de cada pescador a quantia que deveria pagar a cada um deles” (Apud Santos 1969). Também a pesquisa do Grupo de Estudos de Pesca do IDESP enfatizou o tema, que é apresentado nas seguintes pa- lavras: ““Funciona na pesca do Munic{pio (Vigia) o sistema de parceria, tornando-se nitida a distingéo entre patréo e empre- gado na distribuigéo do produto consegiiente & produgéo. De modo geral, o patrao é o proprietario exclusivo do equipamen- to (embarcagio, linhas, redes, etc.) e nao atua diretamente na captura. Dos 77 pescadores entrevistados, 57 (74%) sfo parcei- ros e 20 (26%) pescadores sio auténomos. Os pescadores auté6- nomeos realizam uma pequena pesca nas proximidades do Muniefpio, estando inclufdos entre eles os pescadores que rea- lizam a pesca individual. A remuneragao é feita na partilha do produto, cabendo 50% ao patrao. O restante é dividido entre os pescadores, sem que se possa determinar quanto cabe a cada um, sabendo-se que o Arraes (encarregado), pela posigéo que ocupa, participa com um quinhao superior aos demais. Ao lado disso, o patr&o opera com o sistema de ‘aviamento’, entregan- do os géneros alimenticios ao pescador, para consumo em via- gem e para a familia durante sua auséncia. Posteriormente, a divida decorrente desse ‘aviamento’ 6 deduzida do produto de cada pescaria, depois de descontados os 50% do patrao. No ge- ¢ reerer 37 ral, “‘os pregos dos géneros alimenticios sao fixados acime das médias correntes na localidade” IDESP 1968: 15). O sistema vigente em Itapud, embora ndo diverginde es- sencialmente de que foi descrito nas citagdes acima, apresenta algumas particularidades que devem ser consideradas. A pesca. é geralmente feita em grupos de dois a quatro pescadores, nos reboques e, mesmo nas montarias, algumas vezes trabalham dois ou mais pescadores. A parceria 6 comum, sendo que, mui- tas vezes, o dono da embarcagéo e/ou da rede néo participa diretamente da captura. Isso determina um sistema de distri- buig&o dos resultados da pescaria semelhante ao deserito nos trabalhos antes citados, de que tratarei adiante, Os informan- tes mencionaram também que, nas pescarias de curral, as ve- zes 0 mesmo pertence a mais de um dono, ou o proprietario (curralista”) néo 6 0 mesmo pescador que vai “‘despesc4-lo”, embora o Gnico proprietario de curral em Itapud detenha uma propriedade individual, que explora em conjunto com os filhos solteiros (onde nao chega a configurar-se um caso de parceria). Em toda a comunidade existem apenas sete peseadores que, habitualmente, se dedicam A pescaria individual, em montarias de sua propriedade, com a utilizagdo do anzol. Existe na comunidade um total de 60 canoas, sendo uma canoa grande, 26 reboques, 23 montarias e 10 cascos. Dessas, a Gnica canoa grande 6 utilizada por seu proprietdéric no comér- cio do peixe salgado, que manda vender em Belém e, algumas vezes, na compra do peixe fresco, que conserva com gelo para o transporte. Os reboques sao todos usados na pesca e, das mon- tarias, apenas doze sAo utilizadas sistematicamente nessa ati- vidade. As demais montarias e os cascos existentes servem para o transporte individual de seus proprietaérios ou, no caso dos comerciantes iocais, também de suas mercadorias 86 even- tualmente sao utilizades na pesca, freqieentemente um “ma- risco”, Em toda a comunidade, hé um total de 29 redes de malbar, com mais de 300 bragas de comprimento, que sao as mais importantes para as pescariss de seus moradores; ha também redes pequenas (caiqueiras, tainheiras ¢ outras), de menor importancia, que normalmente so usades apenas nas pescarias que chamam de marisco. 38 Em Htapud existe um total de 87 pescadores, dos quais somente 11 sdo proprietérios de reboques (dois deles possuin- do 2 reboques cada). Nove pescadores possuem montarias usadas sistematicamente na pesca. Dos 20 pescadores que pos- suem canoa de pesca, apenas 15 s4o proprietarios de redes de malhar, sendo que também dois deles possuem 2 redes cada. Assim, pode-se verificar que apenas 23% dos pescadores de itapud sio proprietarios de embarcagées de pesca, enquanto uma percentagem ainda menor (16%) possui redes de malhar. Mesmo assim, a maioria das embarcagées de pesca e das redes pertence a pescadores, embora a diferenga seja pequena em re- lagéio aos nao pescadores. Os pescadores que possuem canoas de pesca e/ou redes gozam de uma situacdo privilegiada, por causa do sistema de pareeria, que determina uma diviséo dos resultados da pesca- ria que favorece o proprietdrio dos meios de produga&o. O sistema nao difere substancialmente do que é descrito por Val- verde e Dias e pelo Grupo de Estudos de Pesca do IDESP. H4 porém que considerar a propriedade dos meios de producao. Assim, 50% do resultado da pescaria, depois de deseonta- das as despesas, pertence A canoa e A rede (isto 6, a seus proprietarios). Se a canoa e a rede pertencerem a um Gnico in- dividuo, ele recebe a metade do lucro lfquido da pescaria. Mas é possivel que a canoa pertenca a uma pessoa e a rede a outra. Neste caso cada um receberé 25%. Retirando-se os 50% per- tencentes 4 canoa e a rede, os outros 50% serdo divididos igualmente entre os membros da tripulagéo (encarregado e camarados). O. encarregado pode ainda receber uma “gratifi- cagao” da parte do dono da canoa, sem que haja uma percen- tagem estipulada, essa gratificagéo normalmente s6 6 paga quando a produgio foi compensadora e nfo houve nenhum prejufzo, nao sendo, pois, obrigatéria. Pode ocorrer que o pro- prietério da canoa e/ou da rede seja um dos tripulantes e, neste caso, além dos 50 ou 25%, conforme o caso, ele também rece- bera sua parcela como membro da tripulagdo. Nos casos em que o pescador nao detenha a propriedade dos meios de pro- dugéio (canoa e/ou rede) ele se subordina a um ou dois patrées, 39 sendo mais fregiiente que o patrao seja um 36, detendo sozinho a propriedade desses meios. © aviamento dos pescadores é feito por comerciantes de Htapud, principalmente uma mulher, que possui a casa de comércio mais forte da comunidade®. O aviamento consiste no fornecimento da “despesa’” para a pescaria (sal, café, agdcar, farinha, carvao e querosene), além de uma conta que fica aber- ta no comércio para o fornecimente de outros géneros & familia do pescador. Este aviamento é fornecido nao sé aos pescadores, mas também aos “armadores” (proprietérios das canoas de Pesca) que nfo possuem comércio. O valor dos bens de consu- mo (“despesa””) para uma pescaria de uma semana regula por volta de Cr$100,00, quantia que deve ser paga pelo proprieté- tio da canoa e da rede, néo sendo de responsabilidade do sim- ples pescador. Durante a semana, na auséncia do pescador, a famflia pode “‘aviar-se” no comércio, isto 6, comprar a crédito, mas geralmente evita fazer isso, se possui uma divida conside- rada muito grande. Hé pescadores ¢ armadores’ que algumas vezes se endivi- dam e, quando a divida é muito grande, o proprietario do comércio passa a restringir-lhes o crédito, chegando mesmo a corté-lo, em certos casos, Em caso de corte de crédito, o aviado tem a opgdéo de procurar comprar na outra casa de comércio da localidade e, normalmente, nado paga mais a divida deixada no comércio de que era fregués; entretanto, 6 sempre aceito com restrigdes pelo outro comercianie, que reluta em conceder-Ihe um crédito muito amplo. O fato de o devedor de um comércio ser aceite no outro, mesmo com restrigdes, se deve em parte & existéncia de uma forte rivalidade entre os dois comerciantes que mantém casas de comércio na localidade. Como se verifica, nao ocorre, em Itapud, uma dependéncia estrita entre aviador e aviado. Algumas das razdes desse fato sdo as seguintes: a) As pescarias séo de curta duragéc (no méximo uma semana) e o pescador, antes de partir, j4 deixou uma pequena quantidade de peixe para o consumo da familia nesse perfodo. Caso isso néo tenha sido possivel, normalmente ele volta de- pois de um dia no mar para abastecé-la ou, entéo, manda o 40 peixe por alguém que esteja de regresso A comunidade. Além disso, a famflia do pescador, geralmente, dispde pelo menos da farinha de mandioca de sua prépria roga, o que a ajuda a man- ter-se na sua auséncia. b) A “despesa” da pesearia 6 bastante reduzida e de valor relativamente pequeno, em razfio mesmo de sua curta duragéo. Uma parte da mesma, a farinha, como dissemos, 6 normalmen- te fabricada pelo proprio pescador e sua familia. O peixe, que é consumido durante a pescaria, 6 fornecido pelo mar. ce) Vigora em Itapudé um sistema de distribuigéo de ali- mentos pelo qual, especialmente quando alguém esté necessi- tado, o alimento é oferecido gratuitamente por parentes e/ou amigos. Muitas vezes, em casos de maior necessidade, até di- nheiro 6 oferecido & pessoa, néo como empréstimo, mas como doagao®, d) O peixe que esté sendo apanhado durante a pescaria 6 vendido no préprio mar aos marreteiros. O dinheiro 6 guarda- do pelo encarregado, para posterior prestagéo de contas. Caso haja falta de qualquer um dos itens da “‘despesa”, durante a pescaria, o encarregado compra ou pede aos marreteiros que comprem por ele o que esté faltando, para debitar esse dinhei- ro na prestagéo de contas que faré, posteriormente, junto ao proprietério da canoa e da rede. e) A fungéo aviadora tipica ou “‘histérica” se apresenta, em Itapud, dividida entre elementos pertencentes a varias eategorias, nao ficando, portanto, concentrada, como no avia- mento cléssico, nas méos de um s6 “patrao”. Ela 6, entéo, como que partilhada entre o aviador propriamente dito (forne- cedor de bens de consumo a crédito), o dono da embarcagao, o dono da rede, o marreteiro e o aparador. Esta poderia ser a razAo principal que determina a baixa dependéncia do pesca- dor em relagao ao aviador. Com efeito, no caso dos pescadores de Itapudé, nao ocorre aquela relagao de sujeigéo do pescador (aviado) para com a pa- trdo (aviador), que 6 deserita para o conjunto do municfpio nos trabalhos anteriormente citados. Essa relagdo é facil de estabe- lecer-se nos casos de pescarias de longa duragéio (pescadores do Norte, que trabalham na altura do Cabo Norte), em que o pes- 41 cador permanece cerea de trés meses longe de casa. Por outro lado, o sistema social vigente na cidade de Vigia difere do de Itapua, favorecendo naquela o aparecimente de relagdes de trabalho de carater mais impessoal, onde as diferengas de clas- se e de status econdmice entre patroes (que geralmente acumu- lam os papéis de comerciante com casa de comércio montada, aparador e aviador) e pescadores (simples aviados) sic muito acentuadas. Esse actimulo de papéis, como jd vimos, nao ocorre em Hapud. 42 NOTAS 1 Gamboa nao & um tipo de rede, como a zangaria. Entretanto ambos sio processes pelos quais o peixe 6 “cercado” durante a maré alta, na beira dos rios e, quando a maré baixa, o peixe é facilmente apanhado. Na pesca de zangaria usa-se esse tipo de rede para cercar o peixe, enquanto que a camboa é uma armagio de pedras que cumpre a mesma finalidade; por is- s0 os informantes costumam equiparar os dois processos, incluindo-os num £6: pesca de zangaria ou camboa. 2 Na cidade de Vigia ease tipo de pescaria 6 conhecido pela designagéo de “chega-e-vira” (cf. IDESP 1968: 13) porque hé muitos pescadores que se especializam nele. Em Itapué, como so poucos os pescadores que se dedi- cam a ele, usa-se a expresséo ‘“‘marisco”, que tem a conotagéo de um tipo de’ pescaria sem importéncia, que a6 se faz nas horas vagas. 3 Um desses marreteiros que trabalha por conta prépria contou-nos que, no prinefpio, ele trabalhava para um aparador que é seu compadre. Este lhe fornecia apenas o dinheiro necessério para comprar 0 peixe dos pescado- res, pois o informante possufa sua propria embarcagéo motorizada. Mes- mo assim, ele era obrigado a entregar o peixe comprado no mar ao compa- dre, com um luero muito pequeno, insuficiente até para atender o susten- to de sua famiflia, Isto contribuiu para que ele se endividasse e jé estava mesmo pensando em vender sua embarcagdo para se dedicar a outra ati- vidade, quando resolveu romper o contrat com o aparador que lhe em- prestava o dinheiro. Em uma ocasido em que havia comprado uma quan- tidade grande de peixe, vendeu-o todo, com bom lucro, a um aparador vindo de Belém. Isto, segundo disse, foi suficiente para pagar a divida que tinha com 0 compadre, Como ele j4 gozava da confianga dos peseadores, embora tivesse ficado sem capital, foi poss{vel comprar o peixe para pagar mais tarde e, com isso, ele conseguiu libertar-se da dependéncia em re- lagdo ao aparador, formar o eeu proprio capital e pagar o restante da dfvi- da que possufa com outros comerciantes. Mesto assim, néo foi fécil li- vear-se da dependéncia, pois o aparador chegou a denuncid-lo a polfcia, pelo “crime” de estar vendendo a outros o peixe que trazia do mar. * A tabela estabelece os precos por classes de peixes. Em setembro de 1976, 08 pregos por Kg do peixe fresco tabelado pela polfcia eram os seguintes: primeira classe, Cr$ 7,00; segunda classe, Cr$ 6,00; terceira, Cr$ 5,00; quarta, Cr§ 4,00 e quinta, Cr$ 3,00. Nesea mesma ocasido, os marreteiros estavam pagando, no mar, o prego de Cr$ 5,00 pelos peixes de primeira classe. Mas a corvina, de segunda classe, estava sendo paga a Cr$ 6,00. 0 filhote, também de segunda, era pago a Cr$ 4,50, enquanto os demais pei- 43 xes da mesma classe custavam ao marreteiro Cr$ 4,00 por Kg. Quanto aos peixes de terceira, a gurijuba e a dourada eram pagas também a Cr$ 4,00, mas os demais somente a Cr$ 3,00. Entre os peixes de quarta classe, a pratiqueira era cotada a Cr$ 3,00, enquante a denfuge, a uritinga e a pi- ramutaba a Cr$ 2,50 ¢, os demais, a Cr$ 2,00. Quanto aos de quinta, 0 Prego variava entre Cr§ 0,56 a Cr$ 1,50, exceto o cagdo des variedades pa- to, tehaqueira, cornuda, sucuri, cati-cagdo e filho-de-tubardo, bastante desvalorizado, que era pago a Cr$ 2,00 pelo peixe inteiro (sem pesar). 5 Além da falta de vento, que pode ser considerada um acidente menos gra- ve, 0 pescador est4 sujeito a outros, que no séo tao raros: a rede que se rasga e se perde, total ou parcialmente; acidentes pessoais (ferroadas de arraia e outros peixes, ferimentos, fraturas); e mesmo natfégios, nos quais as vezes se perde a canoa, os utensflios de pesca e até a vida. A volta. Para a terra, no sébado, é sempre um acontecimento auspicioso para a familia e para o préprio pescador. 6 © caso dessa mulher-comerciante que, dentro do modelo ideolégico local de atribuigées ligadas aos sexos, parece constituir uma excegio, serd ana- lisade, com detalhes, no Capitulo V. 7 Isto 6, proprietérios de embarcagées, que née trabalham na pesca. 8 Voltarei a tratar a respeito deste sistema de distribuigdo de alimentos no Capitulo V. PPAIPIVPIDIS IIA IVIRAVIDS PPIIPIPIPVAVIVAII AIR IIDID GD CAPITULO II A AGRICULTURA: UM DOMINIO FEMININO? Tratarei agora a respeito da atividade agricola em Itapud, a qual é concebida, pelos membros da comunidade, como um dominio feminino. Nao obstante, embora a participagdo da mu- ther na agricultura possa ser considerada como predominante, veremos que o homem também participa, em larga medida, dessa atividade, executando algumas das tarefas mais impor- tantes (como a derrubada e a queimada) e colaborando, ativa- mente, em outras, onde, 4s vezes, exerce a fungéo encarada como principal pelos itapuaenses (no caso do plantio, por exemplo). Por outro lado, embora no Ambito do grupo doméstico as rogas sejam consideradas como pertencentes 4 mulher (que é chamada “dona da roga’’”), na realidade elas pertencem ao ho- mem (em um domfnio ptiblico), pois este é o proprictério da terra em que sao cultivadas ou, no caso de serem plentadas em terrenos de outros proprietdrios, 6 quem se entende com estes, para regular as relagdes de trabalho a serem estabelecidas e, em consegiiéncia, o sistema de partilha dos frutes obtidos através dele. 3.1 AS ATIVIDADES AGRICOLAS A agricultura, em Itapué, é uma atividade a qual se dedica a maioria das mulheres que acumulam o trabalho nas rocas com suas incumbéncias domésticas. Ela é executada também, 46 como a pesca, com o emprego de técnicas bastante rudimenta- res, tendo como principal e quase exclusive produto a mandio- ca, que se destina & fabricagao de farinha!. Ao contrario da pesca, cuja produgdo, na sua maior parte, se destina & comercializagéo, o produto das rogas se restringe ao consumo familiar e, muitas vezes, nem para isso é suficiente. As rogas sao cultivadas em dreas geralmente afastadas das casas, o que ocasiona um deslocamento constante das mu- Iheres entre as duas, em torno das quais gravita seu raio de agao. Apesar de definida como “trabalho de mulher”, a ativi- dade agricola também conta com a participacéo do homem, como foi dito acima, havendo além disso alguns homens, em itapud que se dedicam predominantemente aos trabalhos da lavoura (geralmente aqueles j4 de idade avangada, que néo participam mais.das expedig6es de pesca). a) Instrumentos agrtcolas Os utensflios usados para as tarefas da roga séo em ni- mero bastante reduzido, pois grande parte do trabalho se faz usando como “ferramenta” as préprias maos. Entre os ins- trumentos de trabalho, o mais utilizado é o “ferro-de-cova” ou simplesmente “ferro”, que é também chamado de “ferro-de- eapina”; ele serve para limpar o mato que cresce na roga, quando a mandioca jé esta plantada, operagéo que é designada pelo nome de “capina”’. Geralmente cada mulher tem seu ferro, sendo que as ve- zes mandam fazer um, de proporgées reduzidas, para presen- tear as meninas, que j4 acompanham, eventualmente, suas maes 4 roga a fim de comegarem o seu treinamento nessa ati- vidade. Além de seu uso naquele servigo, o ferro pode ser usado para arrancar a mandioca da terra, quando a “‘batata” que se forma na raiz 6 muito grande e nao dé para fazé-lo s6 com as maos. A enxada, empregada também na capina, é instrumento usado sé pelos homens quando fazem esse servigo. As mulhe- res acham que a enxada néo arranca direito o mato (apenas corta na superficie), sendo que ele torna a brotar rapidamente, AT enquanto que, com o ferro, elas tiram também a raiz, deixando apenas a terra revolvide. Ha inclusive, por causa disso, 0 cos- tume de, quando capinam homens e mulheres no mesmo roga- do, eles de enxada e elas de ferro, cada grupo fazer o servigo em partes diferentes da roca. Para fazer a derrubada do mato, a fim de preparar o ter- reno para o plantio - operagdo que recebe a designagao de ‘“‘ro- gar’” - usa-se o machado para derrubar as drvores maiores ¢ 0 tergado para os arbustos; alguns poucos empregam também a foice no servigo de rogar. ) Tipos de rogas Em Itapué as rogas so classificadas em dois tipos, de acorde com o perfodo de ano em que séo plantadas, reéebendo as designagées especiais de “roga de janeiro” e “roca de verao”’. A roga de janeiro é a primeira a ser plantada durante o ano, embora nem sempre seja usado para isso o més que Ihe dé o nome. A preparagao do terreno comega no fim do ano ante- rior, pois ele deve ser rocado em dezembro, antes de chegaren as chuvas mais fortes e continuas, 0 que prejudicaria a quei- mada. Quando nao podem, por algum motivo, preparar o ter- reno em dezembro, as pessoas esperam que o tempo “Jevante”, isto 6, os pequenos perfodos em que deixa de chover nessa épo- ca, para entaéo fazer a queimada. Esses intervalos em que nao chove na época invernosa, recebem a designacdo de ‘“‘veranico do mata-milho”, pois geralmente morre uma parte do milho que foi plantado nas rogas, em eonseqiiéncia da falta de chuvas nesses perfodos. A roga de verdo, que completa o ciclo de plantio do ano, deve ser plantada no més de setembro, tendo para isso o terre- no sido preparado no més de agosto. Naturalmente que estes periodos de preparo da terra e plantio nao sao rigidos, ocor- rendo variagées, pois, muitas vezes, por causa de algum impre- visto (uma doenca, morte de alguém na familia, resguardo p6s-parto, etc.), nao 6 possivel a pessoa “botar roca” no tempo certo. Esses atrasos, embora possam prejudicar um pouco sua 43 atividade, nao podem logicamente ser previstos, o que faz com quie, por exemplo, rogas de janeiro sejam plantadas em margo e rogas de.verfio em dezembro (como pudemos observar durante e trabalho de campo). As condigées naturais, como acontece em relagéo A pesca, também influenciam na agricultura. Quando o “verdo” (época em que quase nao chove) 6 muito forte, determinando periodos mais ou menos longos (2 a 3 meses) sem chover, se isto coinci- de com a época do plantio, a produgio agricola fica prejudica- da, pois por vezes as pessoas nao tém condigées de fazer a segunda roca do ano, uma vez que é necessério que caiam chu- vas para molhar o terreno antes e depois de plantada a “‘mani- va”. Por outro lado, também quando o “inverno” é muito rigoroso, a producdo da roga de verao pode ser até totalmente perdida, pois a chuva alaga o terreno das rogas (a agua chega até a quase cobrir as plantas) e a batata da mandioca apodrece. Para evitar de perder toda a produgio, as pessoas “‘arrancam”. a mandioca antes do tempo devido e, entéo, como ela nado teve tempo de se desenvolver normalmente, a quantidade de fari- nha fabricada diminui bastante. c) O ciclo de trabalho na roga \O ciclo de trabalho de uma roga inclui as seguintes ativi- dades: \‘rogar” (isto é, preparar o terreno), plantar, capinar (fazer a limpeza da roca), colher e preparar a farinha. A primeira etapa da preparagdo do terreno é a derrubada do mato. Segue-se a queimada, depois de passados alguns dias, para que os galhos e as folhas fiquem bem secos. Depois de queimado 0 rocado”, sempre resta alguma coisa que nao quei- mou bem, e entdo faz-se a “coivara”, que nao é uma segunda queimada, em que se junta tudo aquilo que néo queimou sufi- cientemente, exceto uma certa quantidade de madeira (galhos de 4rvores), que 6 aproveitada como lenha para uso doméstico, sendo carregada pelas mulheres em feixes, que sio arrumados ao redor do rogado. Em seguida vem a “planta”, que é como se designa em Itapud a atividade do plantio propriamente dito. Em primeiro 49 lugar 6 preciso obter os pés de “‘maniva’’ para serem planta- dos, o que se consegue cortando (“‘decutando”) em outra roga que j4 esteja madura; os pés da maniva (talos) sio arrumados om feixes e carregados para o local onde vaio sar plantados. Marca-se o dia para plantar, pois 6 sempre bom que haja um intervalo entre o corte da maniva eo plantio, para dar tempo de “brotar aqueles olhozinho” nos talos, o que facilita o flo- rescimento. No dia em que vai ser feito o plantio, a “dona da roga’”’ convoca um bom ntimero de pessoas (que varia conforme o ta- manho da roga), algumas das quais 840, muitas vezes, parentes (filhas casadas, netas, sobrinhas, etc.). As pessoas convocadas que no sao parentes recebem pagamento em dinheiro ou em servigo, isto 6, a dona da roga se compromete a ajudé-las na mesma ou em outra tarefa em sua roga. Se a roga nao for grande o trabatho 6 executado pelo grupo doméstico, sendo que, até essa etapa da atividade, faz-se necesséria a presenga do homem, que entao sacrifica uns dias de trabalho na pesca para ajudar sua mulher na roga. Na manha do dia da “planta” todos os que vdo fazer o servigo se reGnem bem cedo na casa da dona da roga para se- guirem juntos para o local; antes de iniciarem o trabalho, 6 servido o café com farinha de mandioca para todos e, mais tar- de, pelo meio da manhé, é oferecida uma “merenda”, que consta geralmente de um mingau preparado com arroz (ou fa- tinha de mandioca) e leite de coco. O almogo 6 por conta dos trabalhadores, mas geralmente a dona da roga costuma reunir os membros de sua “familia” (parentes), que eatéo participan- do do trabalho, para almogarem em sua casa. A tarde, se o tra- balho continua, é servido mais um café durante esse periodo. A essa reunido de pessoas para fazer a “planta” da-se, em Itapudé, o nome de “putirum” (mutirao) e as pessoas dizem que, em tempos passados, ninguém recebia dinheiro por isso; 0 sistema funcionava como um grande circulo de trocas em que uns prestavam servigos espontaneamente nas rogas de outros. Hoje, eles falam que isso néo acontece, pois mesmo quem nao recebe em dinheiro “cobra” a ajuda prestada em forma de tra- balho em sua roga. Talvez nossos informantes se refiram a 50 uma maior informalidade do sistema, sem que houvesse uma exigéncia de compensagao mais ou menos compulséria como existe hoje, ou pode ser também apenas uma idealizagéio do passado, como muitas vezes sabemos que acontece. Na roga o trabalho de plantio se divide entre homens e mulheres, aqueles cabendo cortar em pedacos os “‘talos” da maniva e fazer as “‘covas’’, isto 6, abrir com a enxada os sulcos na terra onde os talos vao ser enterrados. Quando fazem esse servigo, os homens s&o designados pelo termo “‘coveiros’’. As mulheres nunca fazem as covas, cabendo a elas ir plantando a maniva logo apés a abertura dos sulcos pelos homens. A partir daf, o trabalho correré por conta das mulheres, durante os longos meses em que é preciso cuidar da roca, limpando-a pe- riodicamente do capim e outras ervas, até chegar a época da colheita e da preparagéo da farinha. Nesta Gltima fase, os ho- mens, se estiverem disponiveis, também colaboram com suas mutlheres*. Além da mandioca, 6 costume, em Itapu4, plantar o milho nas rogas, 0 que acontece logo no dia seguinte ao do plantio daquela, ou entéo se deixa passar alguns dias para semeé-la. Quando a roga é de “capoeirinha”’, isto 6, quando o mato que foi queimado era um “mato fino’’ (de pequeno porte), as pes- soas dizem que nao é bom plantar o milho, pois ele nao se de- senvolve bem. O milho é semeado entre os pés de maniva, em intervalos néo muito pequenos, do comprimento de um cabo de enxada, segundo nossos informantes, que dizem: “Se planté mais unido fica esmirrado” (nao se desenvolve). Terminado o plantio, apés um intervalo de cerca de dois ou trés meses, vai-se proceder a primeira “‘capina”’, sendo que esta recebe a designagéo especial de ‘“‘basculha’’, que significa uma limpeza mais grossa, pois na segunda o mato ja cresce menos, devido ao modo como fazem’a basculha. As mulheres enfiam o ferro nos pés de mato que crescem ao redor da mani- va e os arrancam com a raiz; colocam outro mato que néo pos- sa “grelar’’ e jogam o que arrancaram em cima, evitando com isso que o capim se alastre em demasia. Passados mais outros tantos meses, é preciso fazer outra eapina, que jé 6 mais facil e menos demorada do que a primei- BL ra. Entao as mulheres vao “‘capinando, sacudindo a terra ¢ jo- ganda ali mesmo”. O capim assim deixado apodrece com a gua da chuva, o que é considerado bom para o desenvolvi- mento da mandioca. As vezes, na época mais chuvosa (inver- no), a roga de janeiro tem de ser capinada trés vezes, porque nesse perfodo as chuvas aumentam a intensidade do cresci- mento do capim. As pessoas em Itapuad, costumam dizer que, para se fazer uma boa colheita de mandioca, 6 preciso deixar que ela se de- senvolva durante um ano e meio, mas se ha necessidade ela pode ser colhida até com seis meses depois de plantada; entre- tanto, isto vai influir na produgdo da farinha, pois, como a mandioca néo teve tempo de se desenvolver bem, renderd menos com relagaéo a quantidade do produto. Na realidade 6 muito dificil que alguém espere passar um ano para “‘desman- char” a roga, como dizem, pois, conforme vao tendo necessida- de de farinha (“conforme a precisao”) e assim que 6 possfvel, comegam a arrancar a mandioca. Muitas vezes néo usam toda a que foi plantada, utilizando de cada vez s6 uma parte da mesma. A fase final do ciclo de atividades de uma roga em Ttapud é a fabricagao da farinha, que é 0 objetivo de todo o trabalho de- senvolvido durante meses seguidos. Ela inclui uma série de operagoes, conforme veremos a seguir. A primeira etapa consiste em arrancar a mandioca da ter- ra, 0 que é feito com as préprias maos, ou com a ajuda do ferro de capina, quando necessério (se a batata for muito grande). Depois disso ela é transportada em “paneiros” (cestos feitos com as talas de uma planta chamada “guarumé”) para uma espécie de pogo, onde deverd ficar mergulhada na agua (“de molho”) durante 4 dias, o que se designa com a expresséo “bo- tada da mandioca”. Este pogo, onde a mandioca é depositada, consiste numa escavagéo feita no terreno, ja proximo a varzea. No quinto dia é que vao retirar de 14 a mandioca para fazer a farinha. Ainda no pogo vai-se tirar a casca da mandioca (“‘pira- car”) com as maos, levando-a para a “casa do forno”, nome dado a construgao especial, destinada a fabricagéo de farinha, 52 que consiste em um simples abrigo coberto de folhas de pal- meiras, ou telhas, onde ela é depositada na “‘tébua”’. Esta 6 um troneo escavado, apoiado no chao por dois toros de madeira, onde a mandioca 6 lavada com a dgua, retirada do pogo, que fornece esse liquido para o uso doméstico. Em seguida a man- dioca 6 amassada com as maos, ou com a ajuda de uma “mao- de-pilao”’, ge ela nao estiver bem mole. Depois desse processo de manipulagao, a mandioca é colo- cada no “‘tipiti” (prensa de palha trangada, semelhante 4 usa- da pelos indios), para ser espremida, a fim de se extrair o suco (“tucupi”), que geralmente nao é aproveitado, a nao ser para a obtengéo da “tapioca”, uma espécie de polvilho utilizado no preparo da farinha de tapioca. Finalmente, a “massa” da mandioca é colocada aos pou- cos no forno®, que foi previamente aquecido, com a Ienha obti- da da propria roga, devendo ser revolvida sem parar, com o auxilio de um instrumento chamado “‘rodo” (um cabo de ma- deira preso a uma espécie de espatula), para evitar que fique queimada; essa operagao é repetida varias vezes e cada quanti- dade de massa de mandioca colocada no forno constitui o que se chama de “fornads”’. Conforme a quantidade de massa pode-se passar até um dia inteiro na “fazegdo da farinha”, expressao usada em Ita- ud para designar a fabricagéo desse alimento. A farinha pre- parada dessa maneira recebe o nome de “farinha d’dégua”’ (porque s6 utiliza a mandioca que fica de molho) e 6 esse tipo que 6 habitualmente utilizade para o consumo na comunidade, apesar de conhecerem e eventualmente fabricarem outros ti- pos de farinha. 3.2 AS RELACOES DE TRABALHO NA AGRICULTURA Os principais meios de produgéo, no que diz respeito & agricultura de Itapud, sdo o “‘mato”’ (terra) e o forno. As pes- soas que séo proprietarias de ambos os meios de produgéo, ou de apenas um deles, estdo em situagéo de vantagem em relagao 4s que nao os possuem, pois estas ficam dependendo daqueles meios para poderem “‘botar” sua roga ou fazer sua farinha. 53 Em Itapud, nem todos possuem mato, isto é, uma 4rea de terra que se utiliza para fazer roga. Isto, entretanto, ndo chega a causar maiores problemas, pois sempre ha algum parente ou amigo que, possuinde esse bem, permite o seu uso por outros, através de uma das modalidades de relagéo de trabalho mais utilizadas pelos itapuaenses, a “meiada”, cujo funcionamento serd explicado a seguir. Como a atividade das rogas é de sub- sisténcia, esse tipo de relagdo de produgédo se encaixa perfeita- mente no sistema, atendendo, no caso, as solicitagdes de ambos os elementos implicados nela. Além da exploragao eventual de pequenas Areas de terra para roga, que fieam geralmente préximas das casas (no fim do quintal), onde o trabalho 6 feito pelas mulheres do grupo doméstico, sfio poucas as pessoas que, possuindo rogas maio- res, conseguem manter a exploragiio ao nivel desse grupo®. As formas que assumem as relagées de trabalho agricola em Itapud séo a ‘‘meiada”, a “‘empleita”, a “didria” e 0 “‘a- jutério” (ou “‘troca de servigo”’). A meiada, que é a forma mais comum dessas relagées, apresenta varias modalidades, de acordo com o modo como se relacionam proprietérios e nao propriet4rios da terra (“ma- to”), para efeito de sua utilizagéo no plantio da mandioca. O contrato entre as partes interessadas pode ser feito de diversas maneiras: a) Se o dono do mato entrega o terreno pronto para o plantio, este é dividido em duas partes iguais, uma para o pro- prietario e outra para o parceiro, trabalhando cada um em sua. “banda” de roga; quando forem fazer a farinha, a pessoa que pediu o mate tem que dar a metade de sua produg&o para o dono do terreno. b) Numa segunda modalidade de meiada, se o proprieta- tio “nao quer ter trabalho”, como dizem os itapuaenses, ele 56 dé a terra e o meeiro é quem faz todo o servigo, desde rogar até fazer a farinha; depois do preparo desta, faz-se a diviso, fi- cando duas partes para o que trabalhou e uma para quem deu o mato. E 0 que se chama, em Itapué, “‘duas por uma”. e) Outra forma de meiada é aquela em que a pessoa pede © mato para o dono, manda rogar e, depois de rogado, véo os 54 dois interessados dividir a roga.ao meio, ficando partes iguais para cada um, que entao passam a cuidar por conta propria de seu quinh&o; nesse caso 0 meeiro nfo divide a farinha com o proprietario da terra. \. A “empleita” 6 usada para certas etapas da atividade agricola, como: preparar um rogado, capinar a roga, limpar um laranjal. A “empleita” 6 contratada entre o proprietério e o empreiteiro, sendo que, para a roga, 0 prego é calculado por ta- refa. Para a “empleita” do laranjal o prego é acertado sem me- dir, apenas na base de um célculo mental do empreiteiro, pela observagéo do tamanho do terreno e do estado do laranjal. No que se refere a roga, hé uma diferenga de prego, conforme o ti- po de terreno. Se se trata de “capoeirinha” o prego 6 de cerca de 60 a 70 cruzeiros, e se for “capoeirao”, 0 prego seré maior (100 cruzeiros), sempre cobrados por tarefa’. A pessoa que faz a “empleita” deve procurar trabalhar o mais rapido possfvel, a fim de obter lucro, pois senao sera melhor contratar por didria. O contrato por didria é mais usado para o servico de capi- na das rogas, mas também é feito para a fabricagéo da farinha. As pessoas que alugam seus servicos por dia nas rogas recebemm um pagamento em dinheiro, o que pode ser feito ao final de ca- da etapa diéria de trabalho, ou somente no fim da semana, conforme o que tenha sido combinado entre elas e o proprieté- rio. Embora, na maioria dos casos, o prego pago seja o mesmo por qualquer dos dois tipos de servigo aos quais o contrato por diéria 6 aplicado, algumas pessoas estabelecem uma diferenca entre a capina e a “fazegao da farinha’”’, pagando-se um pouco mais por este Gltimo servigo. Quem trabalha por dia tem direito ao café da manhae a duas merendas, uma as 9 da manhi e outia as 3 da tarde, que constam também de café com farinha. Se a pessoa que contrata alguém para trabalhar em uma roga acha que 6 possivel, d4 também o almogo, mas isso sé acontece quando ha uma certa fartura de peixe. S6 no dia da preparagéo da farinha 6 que a dona da roga fornece comida para suas trabalhadeiras, porque elas néo podem se afastar do local onde estao trabalhando, pois se trata de um servigo que nao permite interrupgéio. Por isso 6 costume dizer-se, em Itapud, que ‘“‘o trabalho de fazegio aera (cH oe re cece? ¢ 56 da farinha néo tem hora do meio-dia”, iste 6, néo dé folga para ealmoco. Quando se precisa contratar pessoas para trabalhar pelo sistema de “empleita” ou didria, caso os trabalhadores sejam do sexo masculino, 6 sempre o homem quem os escolhe e esta- belece o contrato. Se se trata de mulheres a serem contratadas, isto 6 feito pela mulher (dona da roga). Nao obstante, o paga- mento desses trabalhadores, sejam homens ou mulheres, 6 sempre feito pelo marido da dona da roca. “Ajutério” ou “troca de servigo” sic og nomes pelos quais se designa, em Itapud, um tipo de relagéo de trabalho que se caracteriza, além da grande informalidade que preside o contrato entre as partes, por ndo se utilizar dinheiro na tran- sagéo, também pelo fato de que decorre sempre um espace de tempo entre o cumprimento do contrate por uma e outra das partes. Essa modalidade de contrato é usada quase exclusivamen- te para o servigo de limpeza das rocas (capina), embora possa eventualmente ser utilizada para a fabricagao da farinha e ou- tras tarefas agricolas. De modo geral sfo apenas as mulheres que, quando necessitam de ajuda para dar conta de seu traba- iho nas rogas, solicitam a colaboracéo de outras, que sio sem- Pre parentes (incluindo-se as comadres nesta categoria) ou amigas suas, comprometendo-se a pagar essa ajuda da mesma. forma, quando a outra por sua vez necessita dela® O uso do forno para fazer a farinha também acarreta cer- tas obrigagées das pesscas que néo o possuem para com seus proprietérios, como acontece com o uso do mato, conforme j& mostrei. Em Itapud so bem poucas as pessoas que possuem esse meio indispens4vel para a produgéo da farinha de man- dioca; sendo assim, a grande maioria depende dos que possuem forno (15 pessoas ao todo) para a etapa final do trabatho nas rogas. Para usar o forno de outro a pessoa tem que “pagar na farinha”, isto 6, de cada “fornada” que é feita, 1 kg 6 para o dono do forno. Assim, por exemplo, se a quantidade de man- dioca der para colocar 6 vezes a massa no forno, o dono rece- berd 6 kg de farinha. 56 Pelo exposto acima, podemos dizer que o sistema de ex- ploragao e uso dos meios de produgéo, no.que se refere as rogas em Itapud, relacionande proprietérios e néo proprietérios des- ses meios, apresenta caracteristicas peculiares; nao existe en- tre eles uma relagéio de dependéncia, nem tampouco esta se configura como de patrio-empregado, caracterizando-se o sis- tema por possuir um grau elevado de informalidade nessas relagées de trabalho, na forma como se apresentam na comu- nidade. Mesmo eas pessoas (geralmente mulheres) que alugam sua forga de trabalho para atuar como diaristas na atividade agricola, s6 o fazem eventualmente, por perfodos limitados, pois normalmente tém suas préprias rogas e, muitas vezes, mais tarde, contratam aquelas mesmas pessoas que as contra- taram, também como diaristas, para trabalhar nas rogas que possuem. As principais razées que podem ser apontadas como res- ponsdveis por este tipo de situago sao as seguintes: a) N&o existem em Itapud grandes proprietérios de terra e, além disso, com raras excegées, as pessoas que moram na comunidade possuem pelo menos uma pequena 4rea (geral- mente o terreno onde constroem suas casas) com que podem contar eventualmente para fazer uma roca. b) A produgao agricola principal, a farinha, no se desti- ne & comercializagéo; sua produgéo se limita ao atendimento do consumo familiar, néo sendo mesmo suficiente para cobrir essa demanda, ocasionando a necessidade de complementar o abastecimento com uma parcela adquirida fora da comunidade. A produgéo, portanto, néo visa ao lucro. c) A atividade econémica mais importante de Itapud 6 a pesca, que destina, come jé vimos, a maior parte de seu produ- to & comercializagdéo, ao contrario da agricultura, que é fun- damentalmente de subsisténcia. Assim sendo, o trabalho nas rogas é visto mais como uma atividade complementar, que se apresenta totalmente voltada para o interior da prépria comu- nidade. Além disso, as tarefas da roga séo executadas predomi- nantemente pelas mulheres, que normalmente sfo excluidas, pelo préprio sistema social, de qualquer intromissao nas ativi- dades lucrativas. 57 3.3 RELACOES DE TRABALHO E ATRIBUICOES POR SEXO Na meiada hé uma clara divisdo no que diz respeito & par- ticipagéo do homem e da mulher, estabelecendo-se assim, uma diferenga de atribuigdes entre os sexos. Nesta forma de contra- to, qualquer que seja a modalidade, ha sempre a necessidade de as partes implicadas estabelecerem a divisao do terreno (casos @ e c) ou, pelo menos, de se entenderem sobre a partilha da produgéo (caso 6). Em qualquer dos casos, séio sempre os ho- mens, geralmente os maridos das mulheres que vao trabalhar “de meia”’, que estabelecem entre si o contrato, inclusive diri- gindo-se juntos ao local da roga, para fazer a partilha desta, quando isto se faz necessério. Nas modalidades 6 e c, que exi- gem o preparo do terreno para a formagao da roca, o homem participa das primeiras etapas (até o plantio), ficando para a mulher todo o trabalho que vem a seguir (o cuidado e a limpe- za da roga), até a colheita e a preparagao da farinha, conforme jAdissemos acima. A “empleita” 6 um tipo de contrate em que se engajam, predominantemente, os homens, porque, em geral, visa & pre- paragdo de um rogado ou A limpeza de um laranjal, que sfo as tarefas agricolas para as quais ela 6 mais empregada. As mu- theres 86 participam dessa modalidade de contrato quando ele se destina & capina das rogas, mas nfo 6 comum usarem a “empleita” com essa finalidade. No contrato por dia de servigo (didria), embora se possa admitir a participagdo de homens e mulheres, sio predominan- temente as mulheres que se engajam. Em decorréncia disso 6 que se generalizou o uso do termo “trabalhadeiras”, emprega- do para designé-las, enquanto nao existe outro correspondente para os homens que eventualmente alugam seus servigos nas rogas. Por outro lado, apesar de essa ser uma modalidade de contrato por exceléncia das mulheres (trabalhadeiras), ocorre uma discriminag&o no que se refere as recompensas pelo seu trabalho, em comparacéo com o do homem, na forma da remu- neragéo que é feita a uma e a outro. Embora ambos executem 58 os mesmos tipos de tarefas (capina, ou preparo da farinha), o pagamento que eles recebem héo é o mesmo. Desse modo, constatamos que o prego pago por'um dia de trabalho é de 5 eruzeiros para a mulher e 10 para o homem, sendo que, quan- do se paga mais pelo trabalho de fabricagdo da farinha, esse prego sobe para 6 e 12 cruzeiros, respectivamente. Como ve- mos, o homem recebe sempre o dobro da quantia que 6 paga a mulher. Quando procurei uma explicacgao para essa diferenga as pessoas me diziam que, sendo homens, eles deviam ganhar mais, embora algumas informantes nao concordassem com es- se argumento. Esse fato nos remete outra vez ao modelo que informa as relagées entre homens e mulheres, em Itapud, no qual aqueles sempre assumem o papel mais destacado e detém o controle das coisas. Se, em certos aspectos da participagéo masculina na agricultura, a atuagéo do homem é considerada mais impor- tante que a da mulher, nada mais natural, de acordo com a ideologia do grupo, que o mesmo acontega quando o que esta em jogo é a recompensa pelo seu trabalho, ainda que este seja © mesmo que o da mulher. Além disso, convém lembrar que, ideologicamente, é creditada a0 homem a responsabilidade pe- lo sustento de sua familia e, desse modo, em que pese a contri- buigéo da mulher, como esta nao 6 praticamente levada em conta, é o homem que tem direito A obtengéo de uma renda maior, para atender aquele tipo de exigéncia que, na realidade, em Itapud, nao 6 s6 a ele que cabe. 5g NOTAS 1 De acorde com a classificagao apresentada por Erie R. Wolf, o tipo de agri- cultura praticado em Itapué, como de resto na maior parte do Brasil, é de “sistemas de pousio de longa duragao” ou cultivo swidden: “Os campos sdo limpos, ateando-se fogo & vegetagdo: grama, pequenos arbustos ou flo- restas; depois sao plantados até que haja queda na produgio e abandona- dos para readquirir sua fertilidade por certo perfodo de tempo. Entio ou- tros terrenos sao franqueados ao cultivo, sendo reocupados depois que 0 perfodo de regeneragio esteja superado” (Wolf 1970: 38). 2 Os itapuaenses estabelecem uma diferenga entre o que designam de “‘ro- cado" e “roga”. Durante a fase de preparagio do terreno a area que vai ser cultivada 6 chamada de rocado: depois que plantam a maniva ou qual- quer outro cultive é que o local recebe o nome de roga. 3 H& uma distingéo entre “maniva” e “mandioca”. O primeiro termo de- signa a parte da planta que fica para fora da terra e o segundo é usado apenas para a batata que se forma na raiz e que é utilizada na fabricagéo da farinha e de outros alimentos. 4 Sobre esse aspecto da participagio dos dois sexos no trabalho agricola existe, em Itapud, uma associagio metaférica entre a fertilizagao da terra © o processo de repredugdo humana, onde os papéis dos homens ¢ das mu- Theres sdo aproximados, num plano simbdlico. Este fato ser4 explorado analiticamente na Ultima parte deste estudo. : 5 © forno é uma construgio de barro ou tijolo, tendo na parte superior uma espécie de recipiente de latao ou cobre, onde 6 colocada a massa para co- zer. De um dos lados, fica uma abertura na parede do forno, onde se colo- aa lenha para queimar. 6 As rogas em Itapud sdo plantadas por tarefa, medida que equivale a 25 bragas, Uma roca grande ¢ a que tem de 4a 5 tarefas, mas essas sfc a ex- cegio. O tamanho usual das rogas geralmente néo ultrapassa as trés tare- fas, tendo a maior parte apenas uma ou duas. 7 Sobre a diferenca entre “capocirinha” e “‘capoeirée”, ver o Cap. L 8 Embora o “putirum”, descrito acima, envolva uma espécie de troca de servigo, ele néo é identificado com o “ajutério”: para os informantes, o “putirum” #6 acontece na ocasiéo do plantio. ye , Zs , yo 2 J PISS J J } 2 psa dS d PIPIPIPSAISA IDI , CAPITULO IV OS PAPEIS SEXUAIS DA MULHER Neste capitulo pretendo fazer uma andlise a respeito dos papéis sexuais da mulher itapuaense, visando com isso apre- sentar ao leitor os elementos necessdérios para a compreensao do que sera tratado sobretudo no capitulo seguinte, que anali- sa as atribuigdes da mulher e do homem na comunidade. An- tes, porém, sera necessério abordar os temas relacionados ao treinamento infantil, focalizando as diferengas no processo de socializagao de meninos e meninas, e ao namoro e casamento, onde também serdo destacadas as diversidades nas relagédes en- tre os sexos. Este capitulo e o préximo, portanto, se encontram inti- mamente ligados, pois seu objetivo 6, basicamente, o de estabe- lecer um confronto entre homens e mulheres, tanto no que tange ao treinamento infantil, como as relagGes entre essas duas categorias de pessoas, e também no tocante As atribuigdes ou papéis sociais que cabem a eles desempenhar. Tudo isso sera mostrado tendo como pano de fundo as representagdes co- letivas dos itapuaenses a respeito da mulher, tal como elas surgem quando se considera os seus papéis sexuais. 4.1 TREINAMENTO INFANTIL: DIFERENCAS BASEADAS NO SEXO Até um certo perfodo da infancia ndo existe praticamente diferenga quanto aos cuidados e ao treinamento dispensado 62 aos meninos e meninas. E jé por volta dos oito e nove anos de idade, quando se iniciam com maior peso as solicitagdes no sentido de uma prestagao de servigos dentro do grupo domésti- co de que fazem parte, que essa diferenca vai se fazer notar com relevancia. Enquanto os meninos dispdem de um periodo muito maior de “liberdade”, que se traduz numa quase iseng&o de obrigagées, as meninas so chamadas logo a desem- penhar tarefas dentro do esquema de atribuigées caracteristi- cas do seu sexo. O treinamento da menina visa, acima de tudo, a prepard- la bem para seu futuro papel de esposa, mae e dona-de-casa, mas, a0 mesmo tempo, essa preparagdo, uma vez que possui um carater eminentemente pratico, assume um outro objetivo que é bastante importante dentro de cada grupo doméstico, jé que as meninas, ao se prepararem para suas fungées, substi- tuem em parte as mées nas tarefas domésticas, liberando-as, de certae forma, para que se dediquem mais aos servicos das rogas. Ajprimeira tarefa normalmente desempenhada pela crane do sexo feminino em Itapué.é “tomar conta” dos irméos‘menores, que ficam entregues & sua responsabilidade durante quase todo o dia, j4 que a mulher, na maioria dos ca- sos, 86 permanece em casa por algumas horas no intervalo de- dicado ao almogo e, depois, no fim da tarde, quando encerra suas tarefas agricolas. E comum mesmo que as mées, ao matri- cularem suas filhas na escola que funciona na comunidade, procurem conciliar os horérios de aulas das mesmas, distri- buindo-as pelos dois turnos (manhé e tarde) para permitir que sempre esteja pelo menos uma em casa a fim de desincumbir-se daquela e de outras tarefas, para que ndo cause problemas ao seu trabalho fora de casa. Além do cuidado com os irmaos, as meninas sao encarre- gadas de “olhar” por tudo durante a auséncia da mae, e mes- mo quando ela est presente, sao solicitadas invariavelmente a prestar-lhe ajuda, ou mesmo a executar em seu lugar os servi- gos necessérios. Isto significa que elas dividem com a mae os trabalhos de limpeza da casa e do terreiro e prestam-lhe também uma ajuda complementar em outras tarefas, como o f PE TET ETT an ares 7 ao i i i 63 preparo dos alimentos e a lavagem da roupa da familia. Como e alimento mais comumente utilizado é 0 peixe salgado, do qual 6 necessdrio extrair 0 excesso de sal para poder consumi- lo, isto geralmente fica a cargo das meninas, j4 que a mae nao permanece em casa para poder fazé-lo. Assim, também no que se refere 4 lavagem de roupa, a mulher, antes de sair para a roca, deixa a mesma j4 em parte cuidada e entao o que falta é completado pelas filhas. Esta prestagéo de servigos que, de modo geral, é feita pelas meninas, realmente implica uma redugdo bastante acen- tuada de suas horas de lazer, pois mesmo quando elas partici- pam de brincadeiras préprias de sua idade, ficam sempre um pouco tolhidas pela assisténcia que tém que prestar aos irmaos de idade inferior a sua. E um quadro muito comum, em itapua, ver-se meninas em grupos, carregando ao colo criancinhas que ainda nao sabem andar e que so levadas de um lado para ou- tro por suas irmas. Por outro lado, essa participagao ativa da menina, desde muito cedo, nas tarefas domésticas, proporciona-Ihe uma expe- riéncia que é importante dentro do contexto social em que ela vive, ndo sé, como ja disse, para o desempenho do préprio gru- po doméstico, como também no sentido mesmo de uma atuacéo individual satisfatéria, j4 que ela néo demora muito a ser cha- mada, pelo casamento, a ocupar a posigéo que o sistema lhe reserva, Ao lado do aprendizado doméstico, a menina também é treinada nos trabalhos da roga, o que comecga um pouco mais tarde, quando ela esta mocinha (ao redor de 12 anos), embora antes participe esporadicamente em certas tarefas considera- das mais adequadas a sua idade. Como, em Ttapud, 0 trabalho agricola é considerado a atividade feminina por exceléncia, in- clusive a que 6 preferida pelas mulheres, 6 praticamente indis- pensdvel que todas saibam como desempenhé-la, ainda mais que normalmente elas virdo a ter a sua propria roga para cui- dar quando casarem!. Em Itapué os pais fazem sempre questao que seus filhos freqiientem a escola, tanto meninos como meninas. Neste par- _ ticular pode-se dizer que ocorre uma evasdo por parte dos me- 64 ninos antes do término da primeira etapa de escolaridade, pois geralmente ha uma coincidéncia entre esse periodo e o inicio de seu treinamento nas expedigdes de pesca. Come, de um lado, eles néo véem muita perspectiva de poderem continuar os es- tudos, uma vez que em sua localidade sé existe uma escola priméria e, de outro, surgem as solicitagdes da propria familia, 9 que resulta daf é quase sempre deixarem a escola pelo traba- tho no mar. As meninas costumam ir até o final do curso que a escola oferece, apesar de suas outras obrigacées. Além disso, é costu- me das maes mandarem ensiné-las a costurar (quando nao o fazem elas pr6prias), bordar, fazer flores, pois isto também faz parte das caracteristicas de uma moga “‘prendada”. Devo lem- brar aqui que as diferengas no treinamento dos meninos e me- ninas estdo ligadas aos seus futuros papéis como adultos; por isso os meninos nao séo treinados em qualquer das tarefas domésticas, nem nos servigos préprios das mulheres nas rogas. 4.2 AS RELACOES ENTRE OS SEXOS: O NAMORO EO CASAMENTO Em Itapué, as relagdes entre os jovens sao revestidas de grande informalidade e, desde muito cedo, as vezes antes mes- mo da puberdade, eles comegam a manter ligacdes de namoro, em que ndo é raro chegarem as relacédes mais intimas. Essas relagées, se nao reconhecidas formalmente pelos pais, também nao chegam a ser proibidas ou desencorajadas. As oportunida- des e condigdes que propiciam esse tipo de comportamento sao sempre muito freqiientes, pois a “vigilancia” que os adultos exercem € apenas formal, no sentido de uma satisfagéo que se deve dar aos outros, néo chegando a se constituir num empeci- tho para aquele tipo de relacionamento?. As experiéncias sexuais pré-conjugais dos jovens consti- tuem assim um comportamento que poderiamos considerar, sendo padronizado, pelo menos muito usual entre os itapuaen- ses. Em conseqiéncia disso, 6 muito comum a ocorréncia da gravidez antes do casamento. Quando isto acontece, e logo que 0 fato é “descoberto”, os pais da moga procuram os do rapaz Jade dt bk kk kD A ke ke des in 65 para participar-Ihes o ocorrido, a fim de que ele repare a sua “falta”. Mesmo que a moga nao fique esperando um filho, se 0 rapaz “‘mexe” com ela (mantém relagdes sexuais) e 0 caso se torna conhecido, a mesma providéncia é tomada. Como resul- tado disso, geralmente o casamento 6 logo providenciado, ou entao 0 casal passa a viver junto, para depois casarem, o que 6 mais freqiiente acontecer. E interessante notar que nunca hd uma recusa por parte do homem em assumir a responsabilida- de de casar com a moga?, O casamento “‘no juiz e no padre”, principalmente este Ultimo (religioso), 6 muito valorizado em Itapud. As pessoas estabelecem uma distingdo entre o casamento ritualizado e a “amigagao’’, que 6 apenas um contrato informal entre o casal. Apesar de, & primeira vista, a diferenga nao se fazer notar, al- guns elementos mostram que ela existe, conforme sera visto melhor mais adiante. As pessoas nunca se referem aos mem- bros de um casal que vive “‘amigado” pelos nomes de marido e mulher, ou esposo e esposa, que 6 como tratam habitualmente 0s que so casados; eles sio designados pelos termos “amante” ou “companheiro (a)”’ e até mesmo os que esto nessa situacdo fazem questéo de usar esses termos quando falam deles pré- prios*. Por outro lado, os casais que vivem amigados séo em nu- mero bem menor que os casados formalmente. Também nao ha preceupacaéo por parte da mulher que est nessa situagéo (amigada), em procurar forcar 0 casamento, pois o normal 6 que depais de algum tempo isso acabe ocorrendo, nao havendo praticamente o “‘perigo” de ser abandonada por outra, pois es- te 6 um tipo de comportamento totalmente desaprovado em Itapué: o homem dificilmente encontraria alguém na prépria eomunidade para companheira. O casamento costuma ser devidamente comemorado, rea- lizando-se a ceriménia ou na cidade de Vigia, ou mesmo em Itapud, no dia da festa do padroeiro local®. Apés a ceriménia segue-se um dia inteiro de comilangas e bebedeiras, 0 que é patrocinado principalmente pelo noivo. Se a moga ja esta gra- vida, ou mesmo que ndo esteja, se o rapaz ja lhe fez o “benefi- cio” (isto 6, manteve relagdes sexuais com ela), a mesma néo 66 deve ir “vestida de noiva”’ (vestido branco e longo, com véu e grinalda); nesse caso, a noiva deve usar um vestido de cor clara (rosa ou azul) e curto, pois o branco deve ser reservado As “donzelas”. Entretanto, muitas vezes néo Seguem esse costume, mes- mo que a gestagdo seja bem evidente, ou que a moga ja tenha algum filho, 0 que também néo costuma ser muito criticado pelas outras pessoas, Podemos atribuir isso a duas causas: primeiro porque o préprio sistema social nao supervaloriza a virgindade da mulher, conforme veremos posteriormente e, em segundo lugar, porque, como 6 o noivo que patrocina a festa e © traje da moga, o fato de ela usar um vestido de noiva confere um certo prestigio a ele®. Depois de casados é comum o casal ficar residindo por al- gum tempo na casa dos pais de um deles (muito mais freqiien- temente com a “familia” da moga), até que tenham condigées de fazer sua prépria casa, dentro dos padrées que jé descrevi no Capitulo I. Para isso eles costumam receber ajuda dos pais, através da doagéo de uin terreno, ou da colaboragéio nos traba- thos de construgéo da casa. Nao hé entéo em Ttapud, o costume de estabelecer residéncia fixa junto aos parentes quer de um quer de outro dos cénjuges, pois todos quando casam aspiram a ter sua propria moradia. A mulher sempre depende do marido para tomar qualquer deciséo, s6 exercendo autoridade de maneira circunstancial. Como o homem fica boa parte do tempo afastado de casa, devi- do a sua atividade na pesca, ela as vezes 6 chamada a desem- penhar um papel mais atuante, mas, sempre que 6 possivel, espera pela volta do marido para que os problemas sejam re- solvidos. Como dizia uma das mulheres: “Pra resorvé 6 mais é 0 home, a nao sé na farta dele, que ele passa pra pesea e ela tem que agi direito mesmo”’. O exercicio da autoridade, seja em que nfvel for, é uma atribuigéo masculina, e o homem que de alguma forma foge a esse padrao costuma ser muito criticado pelas mulheres, que nao admitem um marido que nao “‘mande” em sua prépria ca- sa, nem mulher que queira “‘mandar mais que o homem”’. 4 ON Oo oof Popa ow Torr te 67 A mulher itapuaense, de um modo geral, vive sempre sob a autoridade de um homem. Quando ainda solteira, deve obe- diéncia ao pai e, na falta deste, a um irmao mais velho ou ou- tro parente que seja credenciado para isso. Ao casar, tem que prestar contas de seus ates 20 marido. Se ela fica vitiva ainda jovem, volta a dever obrigagées ao pai, mesmo que n&o more em sua casa, até que case novamente (o que invariavelmente acontece); se jé estiver com mais idade, provavelmente teré um filho adulto, a quem deverd satisfagéo também. Em Itapua os jovens costumam casar muito cedo, princi- palmente as mogas. Em geral a mulher, aos dezoito anos (e nao é raro mais cedo ainda), jé esté casada (ou amigada) e tem um ou mais filhos. E muito comum mesmo que ela, com menos de quarenta, j4 seja avé, embora possa ainda estar tendo seus proprios filhos. Os homens sempre ficam mais tempo solteiros, casando geralmente depois dos vinte. O casamento nao significa uma transformagéo muito acentuada na vida do homem, no sentido do comportamento que tinha quando solteiro, pois embora ele passe a arcar com as responsabilidades de uma familia, isto néo o impede de manter quase as mesmas atitudes de antes. A propria maneira como as pessoas encaram e pensam a posigéo do homem e da mulher, nessa situagdo, contribui para isso. No casamento hé naturalmente uma divisdo entre direitos e deveres, 86 que os primeiros séo préprios, na maioria, do homem, ficando para a mulher quase apenas os segundos. Ao homem cabe principalmente a obrigagéo de conseguir dinheiro para o sustento de sua familia, além de prover sua alimentacao com o peixe. Isso em termos ideais, pois, se verifi- carmos melhor, veremos que a renda que ele consegue com seu trabatho na pesca, mesmo quando poderia ser suficiente (pelos padrées locais) para isso, na realidade nao costuma ser desti- nada, na sua maior parte, para essa finalidade, a ndo ser em ocasides especiais”. Mesmo no que se refere ao problema da alimentagéo, uma boa parcela de colaboragao cabe & mulher, através de seu tra- balho nas rogas, onde além do alimento (a farinha), consegue também, por vezes, o dinheiro para ajudar nas despesas

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