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QUILOESPECIAL

FOTOS: ARQUIVO IBASE

Da
África
para o
Brasil

10 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
MBOS
O Artigo 68 da Constituição Federal obriga o Estado a
reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de
todo o Brasil – sua inclusão foi fruto da pressão exercida por
lideranças quilombolas de todo o país durante o processo
constituinte em 1988. Mas ainda falta um bocado para tal
direito ser garantido de fato a essas populações. Segundo
levantamento realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e
divulgado em maio, das 2.228 comunidades reconhecidas como
quilombolas pelo governo federal, apenas 70 possuem registro
no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O número total em si já é uma polêmica, pois a Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq) avalia que existam cerca de 4 mil
comunidades no Brasil. Do que foi levantado pela UnB, grande
parte dessas terras concentra-se na região Nordeste, são 1,4 mil
territórios. Maranhão, com 642 comunidades, está em primeiro
lugar; seguido da Bahia, com 396; e Pará, com 294.
Para esta edição, a equipe da revista Democracia Viva visitou
três dessas comunidades: Conceição das Crioulas, em
Pernambuco; Ivaporunduva, em São Paulo; e São José da Serra,
no Rio de Janeiro. O resultado desses encontros você confere
nas páginas seguintes.

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QUILO
Por Iracema Dantas
ENTREVISTA

Givânia Silva
Vereadora exercendo o
MARQUES CASARA

segundo mandato pelo


Partido dos Trabalhadores,
em Salgueiro, sertão de
Pernambuco, Givânia Silva,
37 anos, traz na sua trajetória
pessoal a história da
reconstrução da identidade
de um povo – um povo
quilombola. Nascida em
Conceição das Crioulas,
distante 50 km da cidade de
Salgueiro, Givânia é referência
para os(as) jovens que
despertam para o exercício da
cidadania. Para ela, a luta pela
terra e a preservação do meio
ambiente não podem estar
distante da luta pela
cidadania: “Enquanto algumas
pessoas estão preocupadas
com esse ou aquele animal que
está em extinção, e nós também nos preocupamos com isso, estamos
preocupadas com as pessoas que estão em extinção. O meio ambiente
para nós não é descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas
dentro. Não adianta deixar o animal se a pessoa não puder mais existir”.
Além de professora, formada em Letras, Givânia é uma política
bastante atuante dentro e fora do estado de Pernambuco. É a única
mulher, a única negra e a única pessoa de origem pobre eleita
vereadora em sua cidade. Nesta entrevista à Democracia Viva, conta
sua luta pessoal e o caminho percorrido até a atual consolidação do
movimento quilombola e a criação da Associação Quilombola de
Conceição das Crioulas (AQCC), em 2000.

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MBOS
Democracia Viva – Qual a origem das famílias brancas. Meu pai, que é agricul-
de Conceição das Crioulas? tor, era um dos mais resistentes. Ele achava
Givânia – Não temos registros escritos, mas que, ao ir morar numa casa de família branca,
a história oral nos diz que Conceição surge a poderia acabar grávida e não estudar.
partir de um grupo de seis mulheres negras Já minha mãe pensava ao contrário, ela
que por lá fixaram residência. Na época, era achava que, se fosse para engravidar, isso
bastante forte na região o plantio do algo- aconteceria em qualquer lugar, não era estu-
dão e elas seguiram essa tradição. Com a venda dando fora, saindo de casa que isso iria acon-
de rendas e do fio de algodão, tornaram-se tecer. Ela é artesã e trabalhava com cerâmica.
donas da terra. As pessoas mais velhas dizem Era com esse recurso que ela comprava mate-
que o documento dessa terra data do ano de rial para a gente estudar. Ela sempre defen-
1802. Acreditamos que as mulheres chega- deu que precisávamos estudar e sabia que
ram 40 a 50 anos antes. esse era o meu sonho. Enquanto as meninas
Democracia Viva – E como surgiu se animavam quando começavam a trabalhar
esse nome? com a agricultura, eu lamentava cada vez que
Givânia – Mais uma vez, só temos a histó- ia para a roça. Isso me causava um sofrimen-
ria oral. Pelo que sabemos, depois da chegada to enorme, eu queria estudar, queria ir para a
das mulheres, veio um homem que trouxe uma cidade, e meu pai não deixava porque dizia
imagem de Nossa Senhora da Conceição. En- que a gente tinha que trabalhar para com-
tão, fizeram uma promessa: caso se tornas- prar uma casa.
sem donas daquelas terras, construiriam a ca- Democracia Viva – Você tem
pela para Nossa Senhora da Conceição. Não irmãos e irmãs? Alguém seguiu
sabemos a data exata da construção dessa ca- uma trajetória semelhante a sua?
pela, mas foi por causa dela que temos o nome Você tem filhos?
de Conceição das Crioulas, na verdade um dis- Givânia – Tenho três irmãs e três irmãos.
trito da cidade de Salgueiro. A construção foi Quem não pôde estudar na época está estu-
um marco da conquista da terra. dando agora, mesmo com idade mais avança-
Democracia Viva – Sua trajetória da. Não tenho filhos, mas tem uma carrada de
é bastante incomum para uma gente de que eu cuido, são filhos dos outros.
mulher negra, do interior de Meu filho é o trabalho.
Pernambuco. Você cursou o ensino Democracia Viva – Foi sua mãe
superior e é uma vereadora muito que incentivou seu estudo?
atuante. Pode contar um pouco Givânia – Sim. Quando eu tinha 16 anos,
da sua história? surgiu a minha grande oportunidade. Uma
Givânia – Nasci em Conceição e fui a pri- funcionária da Secretaria de Educação foi lá
meira mulher a chegar à universidade. Eu me em casa comprar artesanato, e a mamãe con-
formei em Letras, em 1996. Até o início da tou que meu sonho era estudar. Essa funcio-
década de 90, normalmente as pessoas só es- nária disse: “Realmente, é muito complica-
tudavam até a quarta série. Para dar continui- do levar uma pessoa para casa de uma
dade aos estudos, era preciso ir para a cidade família. Mas existe um programa na prefei-
e não tínhamos transporte regular. Algumas tura em que ela podia tentar ingressar. Como
meninas até tentavam estudar na cidade, mas contrapartida, vai ter que dar aula para crian-
havia resistência por parte dos pais porque ças. Se ela passar num teste, será aceita”. Eu
muitas acabavam sendo domésticas nas casas fui, fiz o teste, passei.

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E S P E C I A L S QUILOMBOS

Democracia Viva – Assim você de trabalho, inclusive dinheiro para viagens.


iniciou seu trabalho como Essa experiência me abriu novos horizontes.
professora? Meu trabalho era na Pastoral da Juventude,
Givânia – Sim, de 1984 a 1986 fiquei nes- eu era liberada só para fazer articulações pe-
se programa da prefeitura de Salgueiro. De los municípios do sertão. Minha formação na
segunda a quinta-feira, eu dava aula. Na sex- Igreja Católica foi toda na linha do grupo que
ta e no sábado, estudava em horário integral. discutia política, as comunidades eclesiais de
Quando terminei o que correspondia à oita- base eram um campo de debates, a Pastoral
va série, recebi o convite para continuar e fa- da Juventude era muito forte. Resolvi prestar
zer o segundo grau. Em seguida, em 1989, vestibular e passei, comecei a faculdade en-
houve o primeiro concurso para a rede muni- quanto trabalhava na Igreja.
cipal de ensino. Re- Democracia Viva – Esse seu
solvi fazer o concur- envolvimento já se refletia na sua
so e fui aprovada, comunidade?
tornando-me efetiva Givânia – No começo de 1992, foi que-
No começo no quadro de pro- brada a primeira corrente em Conceição. Uma
fessores. Paralelo a família tradicional, ligada ao PFL [Partido da
de 1992, foi isso, eu já atuava, Frente Liberal], administrava a cidade de Sal-
estava bem engaja- gueiro desde sempre e nem se preocupava
quebrada a da na Pastoral da Ju-
ventude, nas comu-
em fazer campanha eleitoral. Para surpresa
geral, um candidato da família perdeu pela

primeira corrente nidades eclesiais de


base. Trabalhava até
primeira vez em toda a história de Salgueiro.
Conseguimos eleger como prefeita uma pro-
sexta-feira; aos sába- fessora da base da Igreja, catequista, coorde-
em Conceição. dos e domingos, eu nadora desse nosso movimento. O normal,
ia para as comuni- até então, era que votássemos em quem o
Conseguimos dades, reunia e ani- fazendeiro da região mandasse. Meu pai di-
mava os jovens para zia que, se o fazendeiro votasse no cachorro,
eleger como os encontros. ele também votaria. Não precisava pregar um
Em 1991, tirei papel de propaganda, fazer comício, nada.
prefeita uma uma licença sem ven- Em 1993, eu já estava em Salgueiro fazendo
cimentos porque mi- faculdade e me tornava bastante conhecida
professora da nha situação estava
insustentável. Não
na região. Foi justamente nessa época que os
conflitos começaram; fui ameaçada de morte

base da Igreja, era admissível que


uma professora da
pela primeira vez. Eu era uma professorinha
de 25 anos de idade.
rede municipal fizes- Democracia Viva – O que
coordenadora se o que eu estava fa- representou essa mudança
zendo: questionan- no cenário político?
do nosso do distribuição de Givânia – Quando quebramos a oligar-
merenda, debaten- quia da cidade, disse à professora que a úni-
movimento do os salários, discu- ca coisa que eu queria era a construção de
tindo as necessida- uma escola de quinta a oitava série em Con-
des da comunidade... ceição. Não queria nem voltar a ser funcioná-
O povo começava a se ria do município, queria apenas que a nova
organizar para vir administração olhasse para Conceição de for-
para a cidade reivindicar carro-pipa, constru- ma diferenciada. Em 1995, a escola ficou
ção de estrada. E eu era servidora do municí- pronta, e eu continuava a trabalhar na Igreja.
pio... Licenciada, fui trabalhar em um progra- A prefeita dizia para mim: “Discuta com a
ma da Igreja Católica. comunidade o nome da escola”.
Democracia Viva – E como era Foi nesse processo que começamos a dis-
esse trabalho? cutir a história de Conceição por um olhar ét-
Givânia – Era um projeto financiado pela nico. Nós nos perguntávamos se éramos to-
Misereor [agência de financiamento], da Ale- dos negros. Começamos a assumir a nossa
manha, e tinha bastante recurso. Recebia salá- identidade, a nos assumir negros; até então
rio, que não era ruim, e tinha boas condições todo mundo era moreno, eu inclusive. Demos

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ENTREVISTA GIVÂNIA SILVA

à escola o nome de um professor que nem era ninguém mais. Pior: colocaram no lugar dos
da rede municipal nem do estado, mas era a antigos professores, os brancos, as filhas
pessoa que sabia ler na comunidade. Por isso, dos fazendeiros. Foi uma ocupação. Numa
era tido como professor e era descendente di- comunidade negra, numa escola de negros,
reto das negras fundadoras. Depois de resol- não tinha um professor negro. Como eu era
vida essa etapa, veio um novo desafio. A concursada, me jogaram para a periferia.
prefeita me disse: “Se a escola é para ser um Continuei dando aula normalmente, fazen-
apoio à comunidade, para dar continuidade a do o melhor que podia. Às sextas-feiras, eu
esse trabalho que vocês fazem lá, a diretora voltava para Conceição, continuando o tra-
não pode ser de fora. Você deve retornar para balho, não mais dentro da escola, mas do
o município e ser diretora da escola”. mesmo jeito.
Eu ganhava três salários mínimos e passa- Democracia
ria a ganhar um salário e meio, com a gratifi- Viva –
cação de diretora. Já no dia seguinte – acho Quando você
que por amar muito o que faço, quando deci- se candidatou
do, decido de vez –, pedi demissão do projeto novamente? Nos dois anos
da Igreja. Meus amigos acharam que eu esta- Givânia – Em
va louca, faltava pouco para eu me formar na 2000. Minha candi- em que fiquei
faculdade. Eu disse: “Não vou abandonar a datura já era natu-
faculdade, vou freqüentar as aulas pelo me-
nos três dias por semana”. Pedi demissão e fui
ral, meu nome esta-
va consolidado na
como diretora,
tomar conta da escola.
Democracia Viva – Como foi esse
cidade, a discussão
do Movimento Naci-
em 1995 e 1996,
retorno à sala de aula? onal das Comunida-
Givânia – Foi uma experiência maravilho- des Quilombolas vi- a escola apareceu
sa. Consegui, com ajuda da Pastoral, selecionar rou uma referência.
professores que se afinavam com nossas idéias. Não entendia muito em uma pesquisa
Cheguei para eles no primeiro dia e disse: “Eu de comunicação,
não sei ser diretora, nunca dirigi nada, nem como ainda não en- sobre educação e
minha casa”. As pessoas não acreditavam... tendo, mas fizemos
Construímos essa escola juntos. Nos dois anos uma campanha do pobreza como uma
em que fiquei como diretora, em 1995 e 1996, “só faltou seu voto”.
a escola apareceu em uma pesquisa sobre edu-
cação e pobreza como uma das melhores pro-
Com esse slogan, eu
me elegi vereadora,
das melhores
postas de educação da zona rural. Foi uma fes-
ta! A escola se firmou ainda mais. Antes de
sem nada, sem um
centavo. Eu estava
propostas de
estudar qualquer coisa que estivesse nos livros há seis meses sem re-
didáticos, tinha que estudar primeiro sobre ceber salário. Con- educação da zona
Conceição. Em 1996, já estava no PT e me trariando todo mun-
candidatei pela primeira vez. Fui vitoriosa pela do, dentro e fora do rural. A escola se
manhã e, de noite, já não estava mais eleita. grupo, fui a segun-
Democracia Viva – Como foi isso? da mais votada. firmou ainda mais
Givânia – Fui eleita, mas o voto ainda era Democracia
no papel... Foi uma grande surpresa, eu não Viva – Você
tinha nem material, tinha saído candidata ape- se candidatou
nas pela conjuntura. Na minha cabeça, eu no também em
máximo iria somar voto para outra pessoa se 2004?
eleger e eu voltaria para a escola para fazer o Givânia – Em 2004, eu me reelegi tam-
que gosto. No dia seguinte à eleição, pela bém sem grana, sem nada. Minha cabeça não
manhã, por um voto eu fiquei como suplente. consegue admitir algumas coisas, por isso é
Resumindo a história: na contagem final eu muito difícil para mim. Minha campanha sou
não estava eleita por um voto! A professora eu, Deus e algumas pessoas que acreditam em
que era prefeita também não fez o sucessor. mim. Ou esse mundo da política tem que me-
A nova administração demitiu todo lhorar, ou não é meu mundo. Não sei, alguma
mundo que trabalhava comigo na escola; coisa está errada nesse casamento. Ou eu es-
eram contratados. Só ficou a merendeira, tou errada, ou o mundo está muito distorcido.

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Democracia Viva – Refere-se quem tem dinheiro, não vem nenhuma possi-
à falta de apoio político dentro bilidade de aposta porque quem tem dinheiro
do seu partido? quer lutar por outras coisas. É muito difícil, é
Givânia – Não é bem isso. Por causa do uma experiência que cada pessoa tinha que
acirramento dos conflitos e da visibilidade que viver para saber o que é: se manter numa pos-
temos tido, o partido até tem apoiado bastan- tura de não se distanciar daquilo que acredita.
te. O partido sabe que quem está falando por Democracia Viva – A AQCC
Conceição não é mais nenhum fazendeiro. também surgiu em 2000?
Todo o processo que vivemos hoje não é só a Givânia – Sim, a AQCC surgiu num mo-
questão da terra, tem um recheio político muito mento maravilhoso, quando a gente começou
forte, de manutenção desse espaço comum, a discutir de forma mais forte a questão da
um espaço político- posse da terra. Pelo instrumento do governo,
eleitoral de poder. A a terra seria titulada em nome de uma organi-
terra, como meio de zação. Só que a gente já tinha começado um
produção, é o que processo de interação com todas as comuni-
A AQCC surgiu menos importa para dades. Já que as comunidades eclesiais de base
esses fazendeiros. O já não mobilizavam, as associações estavam
num momento que importa é a pro- cada uma em seu canto, 30 famílias, 25 famí-
priedade da terra, o lias, começávamos a discutir uma estratégia
maravilhoso, poder que significa
estar ali naquele
de interação entre essas associações. Aí sur-
giu essa história, e nós só consolidamos um

quando a gente meio. A questão é


que não concordo
processo que já vínhamos discutindo, que era
ter um instrumento que não substituiria as
com alguns acordos associações que já estavam lá e, ao mesmo
começou a discutir que são feitos para tempo, pudesse interagir em todo o território,
garantir recursos que não é pequeno. Era mais uma articulação,
de forma mais para a campanha. Fiz um modelo de instrumento que articulava to-
minha campanha de das, garantindo as especificidades locais, por-
forte a questão moto-táxi, a pé, do que existem comunidades que estão a 22 km,
jeito que dava... a 34 km das outras. Como isso se daria pen-
da posse da terra. Outro ponto de sando em um território? A gente nem chama-
tensão é quanto a va de território, mas como a gente pensava
Era mais um alianças políticas.
Havia uma possibili-
isso? A AQCC surgiu nesse contexto. Assim,
surgiu essa história que terminou empurran-

modelo de dade de aliança com


a qual não concor-
do para tal modelo que seria uma associação.
Até então, não tínhamos clareza do que seria,
dava, que tinha fa- discutíamos, começávamos a construir nesse
instrumento que zendeiro no meio. rumo. A AQCC surgiu em 2000, exatamente
Eu briguei dentro do quando a comunidade seria titulada. A gente
articulava todas partido, não é que entendia que esse instrumento era bastante
não admitisse, mas forte – como é –, mas era preciso que a gente
as comunidades defendi minha posi- não só criasse mais uma associação para ficar
ção e acabei tendo o lá, mas era importante pensar a comunidade.
maior apoio dentro Nesse mesmo ano, elaboramos um plano de
do partido. Isso trou- desenvolvimento sustentável da comunidade,
xe, de certa forma, em que a AQCC assume várias tarefas.
um problema: o outro grupo tinha muito di- Democracia Viva – A AQCC
nheiro, e algumas pessoas do partido enten- é composta por pessoas
diam que era importante ter o dinheiro para de diferentes associações?
fazer a campanha. Eu entendia de forma dife- Givânia – Sim. A coordenadora-geral é de
rente: se o povo me quisesse novamente na uma associação, o secretário já é de outra. Na
Câmara, iria votar; se não votasse, paciência, prática, a AQCC atua através de comissões . As
eu iria continuar meu trabalho do mesmo jei- comissões são: Juventude, que é a mais nova,
to. Sem contar também que se trata de um Educação, Comunicação, Saúde, Meio Ambiente,
partido de cidade pequena, as pessoas que- Patrimônio e Geração de Renda. Achamos que
rem ajudar, mas não têm como. Por parte de ainda precisamos avaliar e estudar mais esse

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ENTREVISTA GIVÂNIA SILVA

modelo, de forma que se torne mais operativo, Mas faz parte da nossa tradição as mulheres
mas não passa pelas nossas cabeças uma nova serem muito fortes, o próprio nome nos dá
mudança de perfil ou estrutura. esse status de fortaleza.
A mudança que houve foi no estatuto, em O que não fizemos ainda – e precisamos
2004. Revisamos a missão, que antes era ga- fazer – é um debate de forma sistemática
rantir a posse da terra para os moradores de sobre questões de gênero. Sempre discuti-
Conceição; hoje, a missão é muito mais am- mos a saúde, a educação, a geração de ren-
pla, definimos nossos valores, nossas crenças. da etc. Acho que, por isso, esse recorte es-
A AQCC luta pelo desenvolvimento da comu- pecífico para a questão das mulheres acaba
nidade, levando em conta sua realidade e sua não acontecendo. Mesmo conhecendo as di-
história, a valorização das suas potencialida- ferenças nos indicadores entre homens e mu-
des, a conscientização do povo negro da sua lheres de maneira ge-
importância para construção de uma socieda- ral, temos muito essa
de justa e igualitária. coisa do global, do
Democracia Viva – Por que apenas conjunto. Estamos
a questão étnica está explícita? lutando juntos, mas Um desafio
Por que não a questão sabemos que a voz de
das mulheres? Conceição sai muito que envolve as
Givânia – Quando discutimos a revisão do mais pela mulher que
estatuto, o mais forte foi mesmo a questão do
território. Debatemos muito o papel da AQCC
pelo homem.
Democracia
mulheres é uma
Viva – Qual é
para promover o desenvolvimento e fortalecer
a identidade étnica. Creio que a questão das o percentual
campanha para
mulheres é tão natural que não tínhamos sen- de homens e
tido falta disso, na prática. Algumas discus- mulheres na recuperar o maior
sões em torno da questão de gênero em Con- comunidade?
ceição foram tão longe que hoje os meninos é Givânia – Não prejuízo que já
que reivindicam ampliar as discussões sobre temos essas informa-
garantir os direitos dos homens! De qualquer ções, mas creio que tivemos: a questão
forma, acho que a pergunta deve ser debatida as mulheres são em
coletivamente. Vou levar essa inquietação para maior número. Mas, do estudo. Hoje,
discutir em Conceição. quanto às lideranças
Democracia Viva – E quais são os
maiores desafios atualmente para
da comunidade, a
maioria é mulher.
muitas mulheres
as mulheres de Conceição? Democracia
Givânia – Um desafio que envolve as mu- Viva –
de 40, 50, 60
lheres – mas também toda a comunidade – é Quantas
uma campanha para recuperar o maior prejuízo pessoas anos estão
que já tivemos: a questão do estudo. Hoje te- vivem do
mos muitas mulheres de 40, 50, 60 anos que artesanato retornando para
estão retornando para a escola. Outro desafio em Conceição
para as mulheres – que mais uma vez é de das Crioulas? a escola
todos – é nos mantermos lá. Isso significa não Essa é a
só a permanência na terra, mas as condições principal
dessa permanência. fonte de
É importante entender que em Conceição renda da
não temos ações sistematizadas exclusivas das comunidade? Quais os
mulheres. O que temos é essa liderança natu- significados dessa atividade?
ral. Mesmo no caso do artesanato, que tem Givânia – Essa não é apenas a nossa prin-
mais mulheres participando, também temos cipal fonte de renda, é a principal fonte de
artesãos. Nossa metodologia – nossa tradição, renda, de resistência e de existência. As pes-
jeito, cultura – nos tem feito caminhar juntos, soas fazem artesanato, mas também plantam
homens e mulheres. A liderança feminina em milho, feijão e batata e criam galinhas e al-
Conceição é muito natural e não incomoda gumas cabras. O artesanato é uma das possi-
mais. Ao contrário, estamos lá e temos lide- bilidades. O artesanato é muito forte porque
ranças masculinas maravilhosas, importantes. carrega a marca e a história da comunidade, é

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por isso que é a principal, mas não necessaria- des indígenas e quilombolas ainda estão na-
mente em termos financeiros. É mais do que a quela região. Temos um pertencimento mui-
questão financeira, existem esses outros signi- to grande da terra, mas existem coisas que
ficados. No início, quem trabalhava com o caroá precisamos debater mais. A questão é muito
era apenas uma pessoa, a Júlia, que virou uma profunda; meio ambiente sou eu, é você, é
das nossas “bonecas”. Antes de morrer, ela teve uma planta. Enquanto algumas pessoas es-
a felicidade de ver tudo isso, ver aquele tão preocupadas com esse ou aquele animal
caroazinho, que ela só fazia um saco para guar- que está em extinção, e nós também nos preo-
dar milho, transformado em uma boneca ou cupamos com isso, estamos preocupadas com
em uma bolsa maravilhosa. Hoje, as filhas as pessoas que também estão em extinção. O
dela estão no artesanato, além de outras cem meio ambiente para nós não é descolado das
pessoas. Às vezes, pessoas, é a natureza com as pessoas dentro.
quando as vendas Não adianta deixar o animal se a pessoa não
melhoram, o grupo puder mais existir.
aumenta; quando Democracia Viva – Qual sua
Prefiro acreditar fica bastante tempo opinião sobre a transposição
sem vender, algumas do Rio São Francisco?
que a transposição pessoas saem para Givânia – Prefiro acreditar que a transpo-
cuidar da roça, de- sição pode ser benéfica para o Nordeste. Essa
pode ser benéfica pois voltam.
Democracia Viva
é uma decisão política que já foi tomada, vai
acontecer. Só não sei qual será a real contri-
– Quantos
para o Nordeste. modelos de
buição para a vida das pessoas. O que sei é
que a transposição não é e nem será a solução
bonecas vocês definitiva para a seca. A transposição tem que
Essa é uma decisão fazem? ser vista como uma obra que vai ajudar certos
Givânia – São setores, mas que pode causar outros proble-
política que já foi dez, todas com nome mas. Não podemos achar que os pobres estão
e com história. A bo- todos agrupados em tal lugar e que o canal
tomada. Só não neca nunca é vendi- vai passar e resolver tudo. Não é assim, na
da separadamente. nossa lógica do sertão não é assim. Não é por-
sei qual será a A história é o mais im- que chegou água em uma roça que as pessoas
portante. Já estamos da região podem ir trabalhar lá. Essa é a cultu-
real contribuição em um segundo mo-
delo de embalagem,
ra da terra. Se a transposição passasse dentro
de Conceição, por exemplo, seria muita con-

para as pessoas. sempre com o nome


de uma mulher da
fusão, porque essa água seria entendida
como sendo de quem mora ali. No sertão, a
comunidade e com lógica da água é outra...
O que sei é que informações sobre Democracia Viva – Em que se
ela e sobre Concei- diferencia a luta pela terra feita
não é solução ção. Uma delas é pelo movimento quilombola
Francisca Ferreira, da luta feita pelo Movimento
para a seca umas das primeiras dos Trabalhadores Rurais
negras que chegaram Sem Terra (MST)?
à comunidade. Ainda Givânia – Na nossa perspectiva, quando
não é suficientemen- discutimos terra, estamos discutindo territó-
te rentável para vi- rio. O que é uma terra para um assentado e o
ver só do artesanato. Para produzir as bone- que é uma terra para um quilombola? Pela
cas e continuar tendo acesso ao caroá, é ótica da Contag [Confederação Nacional dos
fundamental que a questão da terra esteja Trabalhadores na Agricultura], do MST e de
totalmente resolvida. outros movimentos que legitimamente lutam
Democracia Viva – Como a AQCC pela questão da terra, o que se quer é que a
tem atuado em relação ao meio terra seja produtiva. Para nós, as nossas terras
ambiente? não são as melhores terras, mas nós quere-
Givânia – Se tem alguma preocupação mos aquela terra porque há, entre nós e a ter-
com a preservação do meio ambiente, de cui- ra, um sentimento de pertencimento. Quan-
dado com a natureza, é porque as comunida- do falamos de território, parece que algumas

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ENTREVISTA GIVÂNIA SILVA

pessoas não compreendem que estamos fa- Democracia Viva – Não seria uma
lando de terra. Dentro da terra, existem as pes- questão para debater com outros
soas, a escola que queremos que seja afinada movimentos, além do governo?
com a história da comunidade, com a história Givânia – Mas os outros movimentos pen-
do povo negro. Precisamos pensar que a saú- sam de forma diferente. O interessante é como
de tem de refletir as doenças que são específi- garantir a união dessas lutas sem perder a
cas do nosso povo, o que significam os valo- identidade: não só eles, que têm uma cons-
res e os saberes populares e tradicionais da trução diferente da nossa, mas também nós,
comunidade, as benzedeiras, os chás, as me- que temos nossa identidade quilombola. É um
dicinas alternativas, os remédios que as mu- entendimento de cada um olhar de um jeito,
lheres fazem, as pessoas que rezam e curam, os princípios são comuns, caminhamos para o
que não são curandeiras, mas são benzedei- mesmo lugar, mas
ras. Queremos muito mais do que o acesso a ora eles podem ir na
uma terra improdutiva que está nas mãos de estrada asfaltada e
um fazendeiro. Temos um pertencimento, uma nós na estrada de
relação de cumplicidade, é a terra onde meu chão, ora nós vamos Para nós, terra
bisavô nasceu, onde minha avó nasceu. Mi- numa bicicleta, e
nha mãe é ceramista porque a avó dela tam- eles, num jumento. não só produz
bém era. Cuidar da cerâmica não é só gerar Enfim, os meios po-
renda, mas é também manter a história da co-
munidade viva. São esses aspectos que os
dem ser diferentes,
mas estamos cami-
milho, feijão,
movimentos que a gente citou não têm.
Democracia Viva – O
nhando para um lu-
gar só, para essa
batata, tomate,
pertencimento a que você se transformação. O
refere se dá por outros valores certo para mim é cenoura etc.
que não estão relacionados só que o governo tem
à produção. Essa é a contribuição que fazer a reforma Produz sentimento,
do movimento quilombola para agrária. Mas a refor-
o debate sobre questão agrária? ma agrária a partir história, cultura,
Givânia – Para nós, a terra não só produz do pensamento do
milho, feijão, batata, cenoura, tomate etc. Ela MST é uma; do pen- saberes, muita
produz sentimento, produz história, produz samento da Contag
cultura, saberes, muita coisa mesmo. São
legítimos todos os movimentos que defen-
é mais parecido com
a do MST; das comu-
coisa mesmo. São
dem e lutam pelo acesso à terra, mas não é o
suficiente para nós. Se o governo diz: “Aqui
nidades indígenas e
quilombolas é com-
legítimos os
está complicado por causa dos fazendeiros, pletamente diferen-
mas existe uma área ali que é boa, tem água te, mas é uma refor- movimentos que
e vai dar tudo certo”, não aceitamos. Não vai ma agrária. O modelo
dar certo porque nesse local tem muita coi- que está aí não cabe defendem e lutam
sa a ser vivida, é nesse local que queremos às comunidades qui-
produzir. É por isso que até investimos em lombolas, portanto pelo acesso à terra
outras coisas, porque percebemos que só temos que ter um
milho, feijão e tomate, se existisse água, não modelo de distribui-
segurariam, não dariam sustentabilidade à ção de terra para
comunidade. Este para nós tem sido o gran- quem quer a terra
de desafio: pautar esse tema pelo olhar de para produzir milho, feijão, uma casa para
pertencimento. O aparelho de Estado está morar e temos que distribuir terra para aque-
pronto para fazer a distribuição de terra a les que estão lá há 300 anos e tiveram suas
partir de uma área que será loteada por fa- terras invadidas. No nosso caso, foi um movi-
mílias. No nosso caso, não só existe um ter- mento contrário: ocuparam as nossas terras. E
ritório comum, mas sim uma individualida- não fomos só invadidos, não levaram só as
de lá dentro. Não pense que a roça de Maria terras, levaram a liberdade das pessoas, escra-
é a mesma que a minha, não. Eu tenho a vizaram as pessoas que lutaram mais de 200
minha roça, Maria tem a dela. Mas o nosso anos por liberdade, e hoje ainda há restos
território é maior do que isso. dessa escravidão.

JUN / JUL 2005 19


E S P E C I A L S QUILOMBOS

Democracia Viva – Qual a relação mesmo não sendo um movimento só de


da AQCC com a Conaq mulheres. Isso ocorreu porque, na Articu-
[Coordenação Nacional de lação, não existia a representação da mu-
Articulação das Comunidades lher negra rural.
Negras Rurais Quilombolas]? Democracia Viva – A cidade de
e com o movimento negro? Salgueiro ainda vive em conflito?
Givânia – Estamos na Conaq, foi uma das Não conseguiram ainda a
coisas que ajudamos a articular em 1995. Por regularização da terra, não é?
sermos secretaria executiva, representamos Givânia – Sim, ainda temos conflitos. O
Pernambuco na Conaq. Com o movimento território já foi reconhecido, foi identifica-
negro, temos algumas articulações também do. Existe um documento da Fundação Cul-
por meio da Conaq. tural Palmares reconhecendo Conceição das
Em Pernambuco, o Crioulas como território quilombola. O que
movimento negro é falta é o processo de desintrusão, ou seja,
menos intenso, da- levantar o que os fazendeiros construíram
Às vezes me sinto das algumas dificul- de bens e indenizá-los para que possam sair
dades que enfren- do território.
triste, mas sei tou, está em um Democracia Viva – Vocês sofrem
processo de reestru- ameaças?
que só está turação. Entende-
mos que temos uma
Givânia – Estamos sendo ameaçados
desde muito tempo. Ameaça de morte é

acontecendo tudo pauta comum: o


combate ao racismo.
uma coisa já corriqueira. Os conflitos se in-
tensificaram bastante não só entre as lide-
Mas também com ranças mais velhas, recentemente tiveram
isso porque não olhares diferentes. investidas muito fortes contra a juventude,
Nosso discurso é o o que nos deixou bastante preocupados
queremos mais combate ao racis- porque os jovens têm outro temperamen-
mo, mas o que é to, isso foi este ano.
concordar com combater o racismo Democracia Viva – Há muitas
para uma pessoa lideranças ameaçadas?
o que foi feito urbana e o que é Givânia – Que tenham recebido amea-
combater o racismo ças, direita ou indiretamente, são cerca de
contra nós a para nós que vive-
mos na zona rural?
15 pessoas. A gente tem tentado publicizar
isso ao máximo, mas não existe um esquema
Democracia Viva
vida toda. Se – Como é a
de segurança. Eu hoje, por exemplo, tenho
limitações. Nem sempre posso ir aonde que-
aproximação ro; antes, eu andava de moto, já não vou
a gente estivesse com o mais. Eu ia para Conceição em qualquer ca-
movimento minhão de feira, hoje não posso mais. Na
concordando, não de mulheres? O minha cabeça, isso é também uma forma de
fato de estar na escravidão, não consigo lidar muito com
teria conflito zona rural limita isso. Por exemplo, houve uma festa de con-
o entrosamento clusão de curso na comunidade, e eu recebi
com outros uma recomendação da própria polícia de
movimentos? não ir, porque era uma festa grande no meio
Givânia – L i m i t a da rua, não havia controle. Foi muito difícil
muito. A distância, as nossas condições e não estar lá naquele momento, é complica-
a nossa estrutura se transformam em al- do explicar. Ao mesmo tempo, há uma sen-
gumas dificuldades de participação. Com sação de “o que eu fiz, por que isso?”.
a Internet, podemos acompanhar o deba- Às vezes me sinto triste, depois me ani-
te um pouco melhor. Mesmo assim, um in- mo porque sei que só está acontecendo tudo
tercâmbio freqüente com o movimento fe- isso porque nosso povo despertou, porque
minista continua sendo difícil. Em relação não queremos mais concordar com o que foi
à Articulação de ONGs de Mulheres Negras feito contra nós a vida toda. Se a gente esti-
Brasileiras, até tivemos uma avanço. Atu- vesse concordando, estaria tudo bem. Não
almente, a Conaq faz parte da Articulação, teria conflito.

20 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
ENTREVISTA GIVÂNIA SILVA

Democracia Viva – Os dados para investir nessas áreas. Por exemplo, há uma
recentes que o governo federal norma no Ministério da Saúde que diz que as
informou dão conta da existência equipes de saúde da família que atuam em
de cerca de 2 mil comunidades comunidades quilombolas têm 40% de incen-
quilombolas. Esse número tivo; então, o médico, a enfermeira e toda a
está perto do real? Como vivem equipe que estiver lotada em uma comunidade
essas comunidades? quilombola vão receber 40% a mais que os pro-
Givânia – Na verdade, os dados da Conaq fissionais que trabalham em outras áreas. Há
mostram que são cerca de 4 mil comunidades, uma corrida das prefeituras para garantir esses
o dobro do que o governo fala. Só no estado recursos. Precisamos fazer um debate dentro
do Maranhão foram identificadas cerca de 700 da Conaq para fazer valer nosso direito. O mu-
comunidades. Há cinco anos, se dizia que havia nicípio que receber esse recurso vai ter que
quatro comunidades quilombolas em Pernam- aplicar onde realmente deve. Mas tudo isso tem
buco; hoje sabemos que são cerca de 60. muito a ver com a forma como a comunidade
Um problema comum é a questão da terra, a está organizada, com a forma como as forças
questão das políticas públicas, saúde e educa- políticas se dão.
ção se constitui em um elemento. Enquanto nós, Democracia Viva – Conceição das
de Conceição, estamos discutindo de forma Crioulas é a maior comunidade
ampla e profunda a proposta de educação dife- quilombola de Pernambuco?
renciada em território, com possibilidade de até Givânia – Sim, temos 3.700 pessoas na co-
o fim do ano sistematizar isso, existem comuni- munidade, não é uma comunidade pequena.
dades que ainda estão brigando para que a es- Aqui em Pernambuco e no Brasil, em alguns
cola seja feita. São estágios diversos. Estive re- campos, nós somos referência. Por exemplo,
centemente no Maranhão e percebo que há muito nessa temática da educação, somos a comuni-
para ser feito. Mesmo em estados com um nível dade quilombola com maior acúmulo. Isso é
de vida diferenciado, com renda maior, com visi- um processo que vem se construindo há dez
bilidade maior, como o próprio Rio de Janeiro e anos. A gente, que vem de uma cultura de base,
São Paulo, a situação das comunidades não é discute e faz muito. Mas não temos tudo pron-
melhor. Conceição significa hoje uma das comu- to, é preciso paciência. É claro que precisamos
nidades que ousadamente podem ser conside- vencer isso, é um desafio porque muito tem
radas bem-sucedidas, apesar de tudo isso. sido feito. Nós acumulamos bastante coisa so-
Democracia Viva – Então o avanço bre essa temática, mas não é a realidade geral.
das políticas sociais com relação Democracia Viva – A AQCC está
aos territórios quilombolas está articulada com a Conferência
relacionado com o nível de Nacional sobre Igualdade Racial?
organização política? Givânia – Sim, nós não só ajudamos a co-
Givânia – Tem tudo a ver. Se a comunidade, ordenar o processo da conferência regional, que
localmente, não tiver um debate, os prefeitos aconteceu na nossa cidade. Mas também o que
dizem que elas nem existem, são apenas negros queremos é levar para a conferência estadual a
rurais, elas não se constituem como elementos afirmação de que promoção da igualdade racial
políticos, como segmento, como força, como é, para os quilombolas, antes de qualquer coisa,
grupo étnico. É claro que em algumas adminis- o direito à posse da terra, isso é promoção da
trações isso é mais fácil de negociar. Uma situa- igualdade racial. Essa questão da posse da terra
ção assim não acontece com Conceição sem que vai aparecer bastante forte, dada a conjuntura.
pelo menos a gente discuta antes, se não puder- Também vamos estar numa consulta que acon-
mos barrar algo que não queremos, vamos pelo tecerá em Brasília que vai eleger um percentual
menos discutir algumas mudanças. Em outras de delegados para a conferência nacional e de-
comunidades, não é a mesma coisa porque as vem acontecer outros debates por lá.
pessoas não estão no mesmo nível de organiza- Democracia Viva – Você tem
ção. Os recursos passam pelos municípios e há acompanhado o debate sobre
uma tendência muito grande de invisibilidade cotas nas universidades públicas?
dessas comunidades por parte das prefeituras. Qual é a sua opinião?
Por outro lado, está ocorrendo um movi- Givânia – Tenho acompanhado como par-
mento contrário agora. Algumas prefeituras têm te interessada. Aqui, o debate não tem a mes-
procurado comunidades quilombolas porque ma intensidade que no Sudeste. Por outro lado,
sabem que existe dinheiro no governo federal digo que ainda não estamos discutindo cotas

JUN / JUL 2005 21


E S P E C I A L S QUILOMBOS

porque o debate é sobre cotas nas universi- nardo Boff. Meus olhos brilharam quando
dades e ainda estamos brigando para fazer lhe disse que, mesmo que não soubesse, ele
escolas nas comunidades, estamos realmen- tinha muito a ver comigo, com a minha for-
te em níveis diferenciados. Conceição hoje mação. Essa foi uma indicação da Articula-
pode dizer que vai brigar por cotas nas uni- ção de ONGs de Mulheres Negras para parti-
versidades porque já tem alunos para isso. ciparmos desse fórum, e junto com a
Mas é uma realidade apenas de Conceição. Articulação coordenamos uma ação para os
No Maranhão, por exemplo, as comunidades parlamentares, foi bacana, aconteceu lá na
ainda estão muito mais distantes das cidades Assembléia Legislativa de Porto Alegre. Co-
e dessa realidade. ordenamos uma mesa, lançamos um material
Pessoalmente, falando como negra, acho da Articulação.
que é uma política imediata, não pode se cons- Foi uma experiência muito interessante,
tituir em uma política definitiva, mas neste muito importante. Só acho que o Fórum é
momento é estratégica, temos que apostar. Se muito grande. Claro que a diversidade tem que
o acesso à educação for no ritmo que vai, a ser garantida, mas receio que a gente discuta
gente não consegue chegar. Mas defendo as muita coisa e não consiga alinhar aquelas dis-
cotas como parte de um processo de transi- cussões com o objetivo do Fórum. Tenho medo
ção. Melhorar a escola pública é o que nos de que isso não aconteça.
interessa, porque aí vai sim melhorar a vida Democracia Viva – E qual a
dos negros e a educação para a população contribuição do movimento
negra. Chegará um momento em que nós mes- quilombola para a construção
mos vamos dizer: “Bem, não quero mais cota, de um outro mundo possível?
não”. Mas isso vai levar muitos anos. Como Givânia – Normalmente, as pessoas nos
quilombola, posso dizer que o movimento procuram e dizem: “Ah, tem comunidade qui-
quilombola ainda não debateu o suficiente lombola?”. Primeiro, é um suspense para per-
sobre cotas. guntar se tem, depois também tem uma coi-
Democracia Viva – Como você avalia sa que é interessante, a nossa visão sobre
o processo Fórum Social Mundial? esse tema. A gente tem contribuído muito
Givânia – Participamos do Fórum Social para esse debate. Se hoje o governo afirma
Nordestino, em 2004, em Recife, de uma for- e várias organizações estão concorrendo para
ma um pouco complicada. A distância preju- trabalhar com os movimentos quilombolas,
dicou nossa participação. Para vir à cidade, com as comunidades quilombolas, o gover-
precisamos ter R$ 300, é o mínimo para pa- no principalmente, foi a Conaq que levou
gar a passagem, hospedagem. Não tínhamos para dentro do governo essa temática. O
dinheiro para ir às reuniões preparatórias, desenho não está bom, a execução, muito
acompanhamos o processo por e-mail, e isso pior. Mas seria impossível discutir comuni-
termina prejudicando um pouco. Mas pauta- dade quilombola no Ministério do Trabalho,
mos a nossa temática. Nós nos mobilizamos no interior de todos os ministérios, se a gen-
para que outras comunidades também parti- te não tivesse feito uma pressão e tivesse
cipassem, conseguimos ter representações ido na construção do GTI. Claro que tem a
das cinco regiões, mas não foi uma presença determinação, tem a criação da Seppir [Se-
maciça. Entendemos que nosso fortalecimen- cretaria Especial de Políticas de Promoção da
to depende também da presença em encon- Igualdade Racial], mas a própria criação da
tros desse tipo. secretaria já nasce com o apoio da Conaq.
Em relação ao Fórum Social Mundial, só Temos críticas, mas é esse debate que estamos
não fui ao da Índia e ao primeiro em Porto pautando, que temos levado e que achamos
Alegre. Lá fizemos várias atividades da que é uma contribuição importante. Não é a
Conaq, discutimos a questão da regulariza- partir de uma pesquisa acadêmica, de um
ção fundiária das terras de quilombo em olhar de alguém que foi lá fazer um relató-
parceria com o Cori, com a Rede Social de rio, uma visita, é de quem está lá no dia-a-
Defesa dos Direitos Humanos e o Instituto dia, vivendo os problemas, tentando encon-
Pólis. Mas também participamos de outras trar saídas. Inclusive eu acho que, para as
ações, como o Fórum Mundial pela Dignida- organizações da sociedade civil, esse é um
de Humana. Tive o privilégio de dividir a mesa debate novo, não é algo claro ainda para
com uma pessoa que tem muito a ver com todo mundo. Acho que a gente tem contri-
minha história de formação de igreja: Leo- buído nesse sentido.

22 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
ENTREVISTA GIVÂNIA SILVA

Democracia Viva – Como você temos representação no GT de Educação, Participaram desta


avalia a questão quilombola no Conselho de Desenvolvimento Susten- entrevista: Janaína
no governo Lula? tável, assento no GT de Infra-estrutura, no Jatobá, coordenadora do
Programa de Mobilização
Givânia – Para avaliar o governo Lula é Conselho da Mulher etc. Houve, sim, um
de Recursos da Oxfam-
preciso fazer algumas considerações do que crescimento qualificado da nossa participa-
GB; Márcia Laranjeira,
foi o governo Fernando Henrique. Passamos ção no governo.
coordenadora de
oito anos tentando mostrar que existiam co- Na nossa luta, passamos oito anos ex- Comunicação do SOS
munidades quilombolas. No dia 13 de maio plicando o que são as comunidades tradicio- Corpo; e Rosângela
de 2002, com o aval da Fundação Cultural Pal- nais, e as pessoas não conseguiam compre- Bueno, assistente de
mares, o governo de FHC vetou, na íntegra, ender. Agora, estamos há dois anos e meio Relações Institucionais
um projeto que reconhecia as terras quilom- explicando, e outras pessoas também não con- do Ibase
bolas. Era um texto muito mal escrito, horro- seguem compreen-
roso, mas era um primeiro passo. der. Estão sempre
No governo Lula, começamos um novo querendo nos colo-
debate. Começamos a dialogar com o gover- car dentro de um
no ainda na transição. Tivemos duas reuniões modelo que está na Para avaliar o
durante a transição para pautar essa história e cabeça deles, na ló-
disso o que restou foi a criação de um grupo gica deles. Não con- governo Lula é
de trabalho, do qual fizeram parte eu e outras seguem compreen-
lideranças no Brasil: o Ivo, do Maranhão; o
Silvano, do Pará; a Gonçalina, do Mato Gros-
der que as coisas
podem acontecer,
preciso fazer
so; o Ronaldo, do Rio; o Oriel, de São Paulo; e
o Potássio, do Rio Grande do Sul. Com esse
mas não por aquela
lógica que está pen-
considerações do
grupo de trabalho (GT), construímos o Decre- sada há 500 anos.
to 4.887, que foi sancionado pelo governo no Essa é uma dificul- que foi o governo
dia 20 de novembro de 2003. dade real. É um mo-
A partir disso é que começou a existir uma delo na cabeça das Fernando Henrique.
política mais desenhada para a questão dos pessoas. Ou se pen-
quilombos. O desenho ainda não está bom, sa uma forma de Passamos oito anos
mas é alguma coisa, pelo menos temos uma flexibilizar isso, ou
política. O que está sendo muito complicado estaremos fora. Os tentando mostrar
é a implementação desse decreto e das ou- conceitos deles es-
tras ações. Percebo que há muita fragmenta-
ção, há muito recorte no sentido de fazer coi-
tão formados, tem
muita coisa para ser
que existiam
sinhas e não encarar o foco, a garantia da
terra. Não temos um saldo muito bom, espe-
quebrada, é uma
mudança radical de
comunidades
ramos que seja esse um dos debates da con- paradigma. O Estado
ferência sobre igualdade racial. Foram titula- nunca pensou nada quilombolas. Agora,
das apenas três comunidades no Pará, não para nós mesmos.
foi nenhuma das comunidades que listamos Nós somos excluí- começamos um
como prioritárias, que são as que têm confli- dos desse Estado
tos atuais: no Rio de Janeiro, Marambaia; no que está aí, não há novo debate
Maranhão, Alcântara; e no Rio Grande do Sul, nada, não há políti-
em Porto Alegre, Morro Alto. Enfim, não te- ca nenhuma, não há
mos um saldo tão bom, esperamos que dê lei nenhuma, não há
tempo de melhorar alguns indicadores que, quase indicador ne-
para nós, não são satisfatórios. nhum que fale da gente. Como poderemos
Democracia Viva – Você diz que o querer estar dentro de um negócio em que
saldo não foi bom, mas seu relato não existimos?
não mostra uma maior participação? O nosso grande desafio, não só com o
Givânia – Sem dúvida. Na Conaq, temos governo Lula, é dizer a esse Brasil – que ajuda-
representação em grande parte dos conse- mos a fazer – que existimos. Essa é a grande
lhos e espaços políticos. Nossa participa- comunicação que temos a fazer. E dizer que
ção aumentou e conseguimos gerar uma existe significa fazer com que as ações volta-
política. O que falta é a parte do Estado, é a das para esses grupos sejam pauta das deci-
questão da operacionalização. Por exemplo, sões políticas, e não ações fragmentadas.

JUN / JUL 2005 23


QUILO
Iracema Dantas*
REPORTAGEM

Crioulas de
Conceição
O nome da comunidade é Conceição das Crioulas, mas, diante da força da liderança feminina,

a inversão no título desta reportagem faz todo sentido. Distante 500 km de Recife, Pernam-

buco, o município de Salgueiro, no Sertão, abriga o maior território quilombola do estado.

São aproximadamente 17 mil hectares, onde vivem 4 mil pessoas em dez diferentes sítios,

com 30 a 50 famílias cada. Sem dados oficiais sobre essa população, moradores e mora-

doras da comunidade acreditam que o número de mulheres é maior que o de homens.

Mas não só a atualidade é marcada pela forte presença feminina. A própria origem de

Conceição das Crioulas está absolutamente ligada a seis mulheres negras que chegaram à região

ainda no fim do século XVIII. Foram elas que, com a venda do algodão, juntaram dinheiro para

comprar a área que hoje é conhecida como Conceição de Crioulas. Na origem do nome, a

participação de Francisco José – um negro que chega a essas terras trazendo consigo uma

imagem de Nossa Senhora da Conceição. Ao oferecê-la às mulheres, resolvem construir uma

capela para a santa. Começa, assim, a história de uma república de mulheres – onde homens,

jovens, crianças e idosos(as) orgulham-se da ascendência e influência femininas em sua cultura.

24 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
MBOS
mulheres à frente
do desenvolvimento
sustentável
Conceição das Crioulas tem uma forte expres- negro da sua importância para construção de
são no movimento quilombola e tem na luta uma sociedade justa e igualitária, a quebra da
pela terra sua principal atuação. Fundada em barreira do preconceito e da discriminação ra-
julho de 2000, a Associação Quilombola de cial. Atualmente, além da luta pela terra, a AQCC
Conceição das Crioulas (AQCC) – ONG criada está voltada para a implantação de um projeto
e dirigida por lideranças da comunidade – tem político-pedagógico para regiões quilombolas
dado visibilidade à empreitada. Encrustada em – realizado em parceira com a Comissão dos
uma área de conflitos agrários, Conceição das Professores Indígenas de Xukuru (Copixu), a
Crioulas é reconhecida como território rema- Prefeitura Municipal de Salgueiro e o Centro
nescente de quilombo pela Fundação Cultural de Cultura Luiz Freire. Outra iniciativa em curso
Palmares. Mesmo assim, a região ainda des- é a geração de renda por meio do artesanato
perta a cobiça de fazendeiros que vêem na or- feito com fibra de caroá – uma planta nativa. A
ganização popular um entrave para seus des- preservação do meio ambiente e o resgate e va-
mandos. A AQCC conta com os apoios da lorização da cultura local também fazem parte
Universidade Federal de Pernambuco, por meio da atividade. Uma das maneiras encontradas para
do projeto Imaginário Pernambucano, da isso é bem inovadora: as principais peças desse
Oxfam-GB, da ActionAid Brasil, do Centro de artesanato são bonecas que receberam o nome
Cultura Luiz Freire, do Sindicato dos Trabalha- de dez mulheres consideradas “especiais” pela
dores Rurais de Salgueiro, do Movimento de comunidade. Uma delas é Francisca Ferreira, uma
Mulheres trabalhadoras Rurais do Sertão Cen- das seis negras que fundaram Conceição das
tral e da Prefeitura Municipal de Salgueiro. Crioulas. Em cada embalagem, além do nome e
A AQCC tem como objetivos o desen- história da personagem, estão informações ge-
volvimento da comunidade – levando em conta rais sobre a comunidade. Outro cuidado é quanto
sua realidade e sua história –, a valorização das ao manejo da planta que dá origem à fibra, sen-
suas potencialidades, a conscientização do povo do sempre respeitado o tempo da colheita.

JUN / JUL 2005 25


E S P E C I A L S QUILOMBOS

Aparecida Mendes, a
Cida, 34 anos, é coordenadora
executiva da AQCC e divide seu
tempo como estudante de Pe-
dagogia, em Salgueiro. É ela
quem enfatiza o aspecto de
resgate da cultura quilom-
bola: “Quando Conceição sur-
giu, o artesanato veio junto
com o plantio de algodão. As
mulheres negras que aqui che-
garam faziam diferentes tipos
de renda. Hoje fazemos bone-
cas e outros objetos com a fi-
bra do caroá e do catulé e com
o barro, mas não se trata ape-
nas de venda. Cada uma des-
sas peças conta nossa histó-
ria”. O artesanato feito a partir Aparecida Mendes, a Cida, é coordenadora executiva da AQCC
do algodão foi abandonado
no fim da década de 1980,
por conta da praga do bicudo,
da popularização dos fios sintéticos e também presentes com as rezadeiras e mesmo com
da dificuldade em manter as terras para plantios. alguns rituais de religiões de origem africa-
“Ficamos à mercê do nada. As pessoas iam em- na: “É meio escondido, como se algo estives-
bora para a cidade grande e quem aqui ficava se errado, mas que resistiu assim como o pró-
dependia da aposentadoria dos mais velhos ou prio povo. Uma contradição nisso tudo é que
das frentes emergenciais contra a seca”, conta todo mundo se diz católico”. A busca pelo
Cida. O grupo de pessoas – cerca de 200, na resgate da cultura africana também está pre-
maioria mulheres – envolvido com o artesana- sente por meio da educação: “Para nós, edu-
to ainda não pode viver exclusivamente da ati- cador não é só quem está na sala de aula com
vidade mas nem pensa em abandoná-la: “As o quadro e giz. As lideranças contam muito.
pessoas não recebem salário. O pagamento de- Hoje a escola já está bem voltada para a nos-
pende da encomenda e das vendas. Mas a ati- sa realidade, mas ainda falta resgatar a nossa
vidade tem contribuído muito para manter nos- origem como povo do continente africano.
sa identidade, a história da comunidade. Temos Sonho o dia em que possa dizer de qual país
muito orgulho das nossas peças”, explica a africano eu sou descendente”.
coordenadora executiva. Luiza Maria de Oliveira Silva tem 37 anos
Apesar da origem católica, Cida não e representa essa herança. Nascida em um sítio
esconde que o sincretismo religioso presen- próximo à Conceição, Nívia mudou-se para a
te em Conceição das Crioulas também aflorou comunidade logo após seu casamento. O exer-
nos últimos tempos: “Na medida em que fo- cício de benzedeira surgiu da necessidade: “Mi-
mos redescobrindo, vimos influências que nha filha mais velha vivia doente e eu tinha que
não são da Igreja. Passamos a observar as in- ficar na dependência de outras pessoas. Então,
fluências das religiões de matriz africana. Só resolvi aprender e hoje me orgulho de poder
não temos isso aprofundado. É uma pena ajudar a manter essa tradição”. Outra atividade
que a Igreja Católica tenha colocado na cabe- desempenhada por essa benzedeira é o artesa-
ça do nosso povo que tudo que vem das reli- nato, cuja renda é gasta integralmente para a
giões africanas é coisa do demônio”. Um criação de seus quatro filhos e duas filhas. “Que-
exemplo vem do poder exercido pela Mãe ro muito poder ensinar a reza para outra pes-
Magá, também homenageada em forma de soa, mas mulher só pode ensinar para homem.
boneca. Segundo Cida, ela era uma espécie E homem só pode ensinar para mulher. Quem
de líder espiritual e conselheira. Além disso, sabe um dos meus filhos tem o dom?”.
Mãe Magá era uma experiente parteira e sem- Sobre a mais forte característica dessa
pre “sentia” o que ia ou não dar certo. Cida comunidade – a liderança feminina –, a coor-
garante que até hoje essas influências estão denadora executiva da AQCC explica: “Em

26 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
REPORTAGEM CRIOULAS DE CONCEIÇÃO – MULHERES À FRENTE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Conceição, as mulheres sempre acreditaram em que sonhava em ir para São Paulo. Agora,
primeiro nas possibilidades. É claro que os ho- não me imagino longe daqui. Outro ganho
mens também participam das nossas iniciati- pessoal é o direito de falar, de me colocar,
vas e projetos, de todas as conquistas, mas mesmo com as barreiras que temos que en-
são elas se engajam e acreditam primeiro nas frentar. Não abro mais mão da minha fala”.
mudanças, mesmo quando as coisas são mais A AQCC possui seis comissões – Juven-
difíceis.” De novo, o artesanato é um exem- tude e Educação; Comunicação; Saúde; Meio
plo. No início, apenas as mulheres trabalha- Ambiente; Patrimônio; e Geração de Renda –
vam e iam buscar a matéria-prima nas matas e formadas pelas lideranças da comunidade,
foram elas também que viram na atividade a cada qual responsável por levar adiante a dis-
possibilidade de gerar renda de forma mais cussão e a execução de diferentes iniciativas.
sistemática. Na hora de buscar parcerias e di- Integrante da Comissão de Educação, Márcia
vulgar o trabalho, foram as mulheres que fize- do Nascimento, 31 anos, diretora da Escola
ram isso. Mas se inicialmente os homens, não José Néu, de primeira a quarta série, na Vila de
participavam hoje fazem parte ativamente do Conceição das Crioulas, explica o papel do
grupo dedicado ao artesanato. grupo: “Discutir, a partir da educação que te-
Numa realidade assim, era de se espe- mos, qual a educação que queremos para a
rar que a violência contra a mulher não acon- nossa comunidade, que tem uma especifici-
tecesse. Surpreendentemente, acontece. E é dade étnica. Temos discutido um refererencial
discutida de forma corajosa. Em Conceição, as de educação para a comunidade tendo como
mulheres fazem questão de lembrar que o ra- base a história e a cultura do nosso povo, nos-
cismo também é uma forma de violência. Cida sos valores”. Em todo o território, existem dez
resume o que sentem sobre o assunto: “A di- escolas públicas, que ainda seguem o currí-
ferença é que encaramos esse fato como mais culo tradicional, mas que fazem parte da cons-
um desafio que temos a vencer; é mais uma trução de um projeto político-pedagógico
barreira que enfrentamos. E não é só a violên- inovador. Há dez anos, em
cia doméstica. É a violência da discriminação 1995, quando foi inaugu-
racial também. É mais fácil valorizar algo feito rada a única escola de
por um homem do que por uma mulher. Per- quinta a oitava série, os
cebemos claramente que algumas das barrei- debates sobre educação
ras e violências que enfrentamos no trabalho foram iniciados incentiva-
da AQCC com outras instituições vêm do fato dos pela então diretora
de sermos mulheres e negras. A agressão mo- Givânia Silva (leia mais na
ral é maior”. Ela própria já passou pela experiên- entrevista). O projeto Edu-
cia, quando, no meio de um debate, um fa- cação e Etnia, consolidado
zendeiro disse: “Você é uma menina que não em 2003, já desenvolveu
sabe o que diz”. Ela lembra que, logo em se- três das etapas previstas:
guida, um homem disse a mesma coisa com oficinas de leitura e escri-
outras palavras e foi respeitado: “Eu chamo ta, um diagnóstico e uma
isso de violência; é uma tentativa de fazer ca- pesquisa sobre as históri-
lar. Sofremos violência que, infelizmente, não as contadas pelas pessoas
vem só dos machistas. As mulheres que come- mais velhas. A última eta-
çam a se destacar em reuniões e representa- pa, a edição de um livro
ções começam a ter problemas. A questão racial didático para escolas qui-
às vezes é tão forte que, por isso, defendemos lombolas e não-quilombo-
os educadores da comunidade e esperamos las, ainda depende de fi-
que percebam a importância da valorização da nanciamento. Nele haverá
diversidade racial para a auto-estima”. São bar- temas como a luta pela ter-
reiras que acabam transpostas. A fala de Cida ra, as festas e tradições,
não deixa dúvida: “Fico lembrando de um tem- além da própria história de
po em que éramos tão isoladas que imaginar Conceição das Crioulas.
dar uma entrevista era impossível! Hoje tanto Márcia resume toda essa
me sinto segura a falar da minha história pes- trajetória: “Uma coisa é a
soal como da situação da comunidade. Aprendi gente imaginar o que é
e ganhei muito ao fortalecer o carinho que melhor; outra é ouvir o que Francisca Ferreira, a boneca que resgata
a história da fundação de Conceição
tenho pela minha comunidade. Teve uma época as pessoas da comunidade

JUN / JUL 2005 27


E S P E C I A L S QUILOMBOS

Boneca viva

A idéia de recriar em bonecas algumas das mulhe- devemos nos valorizar e nunca
res de Conceição surgiu em 2000, justamente quan- aceitar a discriminação. Tenta-

A BONECA LOURDINHA
do era iniciado o projeto pedagógico. Cida conta ram nos impedir de ter educa-
que a história de Conceição era totalmente oral, ção e não conseguiram, so-
sem registros escritos: “Nossa preocupação era que mos fortes”. Ela acredita que
essa riqueza se perdesse nas gerações mais jovens. as bonecas representam tam-
As bonecas são uma forma de fortalecer a identi- bém uma forma de combate
dade e homenagear as mulheres que fizeram e que ao racismo, já que cria uma
fazem esta comunidade e que têm se doado com referência positiva para os(as)
muita intensidade”. mais jovens: “As crianças ago-
Mas as bonecas são também uma forma de ho- ra dizem que somos famo-
menagem às atuais lideranças femininas. Lourdinha, sas e se orgulham. Minha fi-
que também cursa pedagogia, é uma das mulheres lha fica encantada quando
transformadas em bonecas. Professora e artesã, foi dizem que a mãe dela é
escolhida por seu trabalho de valorização da beleza uma boneca. As que estão
e auto-estima da mulher negra. Indicada pelos(as) vivas e as que não estão
jovens(as) para virar boneca, Lourdinha considera mais aqui são todas sím-
que esse é um grande reconhecimento: “Valorizo bolos da nossa luta contra
mesmo a minha cor e falo para meus alunos que qualquer discriminação”.

pensam. Por isso, em 2004, fizemos um época só tínhamos escola até a quarta série.
mapeamento dentro do território quilombola Trabalhava em casa de família para poder ter
de Conceição das Crioulas”. Foram realizadas onde ficar na cidade. Me formei e fiz concurso
entrevistas com lideranças, pessoas mais velhas para o magistério, em 1995. Quando fui lotada
e também com a juventude; além de questões em Conceição, não tinha uma ligação forte com
sobre o currículo programático, o perfil de pro- essa história de um povo. Hoje, sei que aprendi
fessores e professoras foi altamente discutido. mais do que ensinei. Não tinha essa consciên-
Segundo Márcia, baseado nessa “fala coleti- cia de ser uma quilombola. Não me considera-
va”, está sendo construído um projeto político- va uma quilombola.” Dez anos depois de che-
pedagógico para escolas quilombolas. En- gar à escola mais antiga da Vila, Márcia se sente
quanto todo o processo não está sistematizado, pertencente a essa comunidade: “Foi com a che-
a AQCC faz questão de participar dos mecanis- gada da escola de quinta a oitava série, pelas
mos tradicionais de educação: “Nós construí- mãos da Givânia, que começamos a buscar essa
mos o atual currículo com a Secretaria Muncipal história que nos era negada. Hoje sei da minha
de Educação de Salgueiro, colocamos nossas história e da história de resistência de um povo
ações e propostas para contemplar a nossa e me identifico com isso. Sou uma quilombola.
história. O que não está lá, nós colocamos”, Somos ensinados que ser negro é feio, e não
afirma Márcia. No diagnóstico, a questão do queremos ser feios; negamos nossa identida-
currículo foi ressaltada pela maioria das pesso- de. Só quando entendemos nossa história, pas-
as ouvidas, sendo apontada a necessidade de samos a nos orgulhar da nossa raça. É muito
que os mais jovens aprendam seus costumes, importante saber que faço parte de um povo
seus valores, suas histórias e que sejam prepa- que há mais de 500 anos foi massacrado, as-
rados para a realidade local. Segundo Márcia, sassinado e ainda está aqui resisitindo. Que
ao mesmo tempo em que é citada a importân- estamos firmes e fortes. Me sinto muito orgu-
cia de crianças, rapazes e moças aprenderem a lhosa de pertencer a esse povo“.
trabalhar na roça, por exemplo, é bastante en- Além da escola de ensino fundamen-
fatizada a necessidade de “ler e escrever bem”. tal, que tem mais de 220 estudantes, a Vila
Nascida a 12 km de Conceição das Criou- tem a Escola José Mendes, que vai de quinta a
las, a própria Márcia tem, na sua história pes- oitava série e também oferece ensino médio a
soal, a prova de quanto o resgate da identidade mais de 800 pessoas. Além dos(as) morado-
cultural na educação é capaz de mudar as pesso- res(as) locais, as unidades atendem estudan-
as. “Vim para Salgueiro para poder estudar; na tes de toda a região. “Mesmo estando dentro

28 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
REPORTAGEM CRIOULAS DE CONCEIÇÃO – MULHERES À FRENTE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

de uma área quilombola, valorizamos a diver- própria história da comunidade e está sendo exi- *Iracema Dantas
sidade cultural. Quilombola e não-quilombo- bido em encontros dos quais o grupo participa. Coordenadora de
las podem aprender juntos.” Outros dois já foram filmados e estão em fase de Comunicação do Ibase
Adaumi, de 24 anos, estuda Pedago- finalização: um sobre as quebradeiras de coco do
iracema@ibase.br
gia e integra a Comissão de Juventude e Edu- Maranhão e outro sobre um encontro entre edu-
cação. Um dos projetos implementados por cadores indígenas e quilombolas, que aconteceu
essa comissão é o jornal Crioulas. “Fazemos da em abril deste ano. “As filmagens com as quebra-
reunião de pauta à redação; só a diagramação deiras foram feitas recentemente num intercâm-
e a impressão são feitas fora daqui. Mas nós é bio que fizemos com a Associação em Áreas de
que aprovamos o produto final”, explica. São Assentamento do Estado no Maranhão (Assema).
os(as) jovens que se encarregam de fazer as O outro fala do encontro com os indígenas e
fotos, entrevistas e matérias, escolhendo cada também sobre o que significa a educação”.
um(a) o tema de sua preferência; a produção Para Adaumi, a liderança feminina de
gráfica é assinada pelo projeto Imaginário Per- Conceição das Crioulas, como disse Cida, é algo
nambucano, da Universidade Federal de Per- natural: “Somos gratos pelas mulheres não se-
nambuco. Editado a cada três meses, o jornal rem acomodadas e nem alienadas. Elas sempre
Crioulas já está na sétima edição e é distribuí- procuram formar as pessoas de comunidade
do para 4 mil pessoas em todo o Brasil. para o mundo. Elas pensam no bem de Concei-
O mais novo empreendimento da Comis- ção das Crioulas. Mesmo que os homens te-
são é o Crioulas Vídeo – feito em parceria com o nham também papel de liderança, as mulheres
Centro de Cultura Luiz Freire, de Recife, e com a fazem isso de uma maneira mais forte e mais
Universidade de Lisboa. O primeiro vídeo conta a voltada para o coletivo”.

Artesanato e preservação do meio ambiente

Os(as) moradores(as) de Conceição das Crioulas instalada na região, mas foi desativada com a con-
têm grande consciência da importância do ma- corrência do sisal.
nejo na retirada dos recursos naturais. Prova dis- O barro está presente até os dias atuais nos
so é que pessoas mais experientes sempre ensi- utilitários do povo de Conceição. Até a década de
nam a iniciantes o “tempo certo de colher”. Além 1950, aproximadamente, usavam-se apenas louças
de não retirarem plantas em fase de crescimen- de barro. Muitas dessas peças eram vendidas em
to, fazem questão de manter um rodízio nas áre- feiras e lojas de cidades próximas como Cabrobó,
as de extração das diferentes matérias-primas Floresta e Salgueiro, em povoados e por encomen-
usadas no artesanato local. Outra consciência da. As mulheres que trabalham com esse tipo de
ecológica vem de uma campanha para impedir o artesanato são conhecidas como louceiras e per-
banho no açude da região. Mesmo diante de um tencem todas a mesma família consangüínea.
“convite ao oásis”, os(as) moradores(as) de Vila O catulé, uma palmeira silvestre bem comum
da Conceição, especialmente os(as) mais jovens, no sertão, fornece uma amêndoa de onde se extrai
fazem questão de debater freqüentemente a im- óleo. Sua palha é aproveitada no artesanato, sendo
portância de manter a qualidade da água dispo- transformada em chapéus, cestas, bolsas etc. A palha
nível para a comunidade. Diante de um quadro de catulé sempre esteve presente na produção de
como esse, a inexistência de uma rede de sanea- vassouras e esteiras, sendo considerada uma ativi-
mento básico é algo a lamentar. Por enquanto, a dade tipicamente das pessoas mais velhas.
comunidade conta apenas com energia elétrica. Para a coordenadora executiva da AQCC, é im-
A conquista para muitos acabou por inibir as portante que o artesanato seja visto como algo
rodas de conversa nas portas das casas, como além de geração de renda. “No caso do Caroá, uma
conta Tia Marina, uma das mais antigas mora- planta nativa, por exemplo, a cada extração a força
doras da Vila: “Agora todo mundo tem parabó- da planta aumenta. Sabemos que não podemos ti-
lica e fica vendo novela. Antes, a gente fica con- rar aleatoriamente.” O artesanato de Conceição das
versando e olhando o céu”. Crioulas revela uma outra questão: “Precisamos das
Entre os recursos naturais mais utilizados estão plantas nativas para o nosso trabalho. Temos que
o caroá, o barro e o catulé. O caroá é uma bromélia preservar a natureza. O problema é que muitos
que fornece a fibra para a confecção das bonecas. fazendeiros tocam fogo nas plantações só para im-
De caule curto, a planta possui espinhos em sua bor- pedir que a gente retire a fibra; outros simples-
da, com folhas que lembram o formato de uma rosa. mente arracam as plantas. Alegam que estamos
Em meado do século XX, uma fábrica de caroá foi tendo muito dinheiro com isso”.

JUN / JUL 2005 29


QUILO
AnaCris Bittencourt*
REPORTAGEM

Ivaporunduva,
terra de lideranças
e conquistas
No extremo sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, no interior do município de

Eldorado, vive uma das mais antigas populações quilombolas do Brasil. A comunidade

de Ivaporunduva é um exemplo de convivência saudável entre os seres humanos e o

meio ambiente. Todos os projetos de desenvolvimento sustentável, que vem

implementando nos últimos cinco anos, levam em conta a preservação e a utilização

dos recursos naturais sem danos à natureza. A defesa dos direitos coletivos, muito bem

sedimentada, tem sido combustível vital para o funcionamento das engrenagens de uma

organização que tem contribuído decisivamente para a garantia de conquistas como a

titulação da terra e servir de exemplo às outras 53 comunidades quilombolas do Vale.

Formada há mais de 300 anos, por um grupo de pessoas que se rebelou contra a escra-

vidão e cuja resistência garantiu sua liberdade muito antes da abolição da escravatura,

hoje a comunidade se depara com novos desafios: garantir o êxito desses projetos e

impedir que seja construída uma barragem no Rio Ribeira do Iguape, uma ameaça às

populações daquela região.

30 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
MBOS
A Associação Quilombo de Ivaporunduva exis- Boa parte das conquistas de Ivaporun-
te informalmente desde a década de 1980, duva deve-se a um diferencial que salta aos
mas seu estatuto só foi colocado no papel re- olhos na visita à comunidade: seu poder de
centemente, há 11 anos. Envolve cerca de 300 liderança. “Um problema notório nas comuni-
pessoas de 80 famílias e tem acumulado vitó- dades quilombolas é a ausência do serviço pú-
rias: a região conta com abastecimento de água blico. Se nossa comunidade está indo bem é
e luz elétrica, melhorou estradas dentro da área porque as próprias pessoas de lá correram
do quilombo e garantiu a permanência de atrás para suprir suas deficiências. Oxalá to-
canoeiros para fazer a travessia dos(as) das as comunidades tivessem informação para
moradores(as) no Ribeira; tem desenvolvido isso. A história dos quilombolas não é fácil de
projetos de geração de trabalho e renda; re- contar. O Vale do Ribeira tem um movimento
formou a casa onde funciona a escola de pri- consolidado e minha comunidade se destaca
meira a quarta série; construiu uma praça que por concentrarmos um maior número de lide-
se tornou ponto de encontro em torno da Igreja ranças. Isso tem nos favorecido no desenvolvi-
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pre- mento de projetos, se reflete na busca pela
tos – construída no século XVII e tombada segurança alimentar, pela sustentabilidade”,
como patrimônio histórico pelo Conselho de explica Oriel Rodrigues, 34 anos, advogado,
Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, professor de História no pré-vestibular da co-
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo munidade e representante das comunidades
(Condephaat) e também recententemente res- do estado de São Paulo na Coordenação Nacio-
taurada; e construiu uma pousada para rece- nal de Articulação das Comunidades Negras
ber visitantes dispostos(as) a fazer ecoturismo Rurais Quilombolas (Conaq).
e conhecer a história local. Se as lideranças mais velhas não tive-
Mas a grande mudança está vindo como ram oportunidade de estudar, foi a partici-
resultado de três projetos de desenvolvimento pação intensa em movimentos sociais que
sustentável, implementados a partir de 2001 contribuiu na sua formação, atitude segui-
em parceria com o Instituto de Estudos da pelas pessoas mais jovens. Foi o caso de
Sociambientais (ISA), sediado na capital José Rodrigues da Silva, 43 anos, uma das prin-
paulista. O estreitamento das relações entre a cipais lideranças no quilombo e coordenador
organização e as comunidades quilombolas da da associação: “Quando falamos de liderança
região começou em 1996, quando o ISA elabo- e conhecimento, sempre digo que existem dois
rou o Diagnóstico Sociambiental Participativo tipos de faculdade, a formal e a faculdade da
do Vale do Ribeira. E se intensificaram na luta vida, do mundo. Esta, onde aprendi, é a mais
contra as barragens (leia boxe sobre o assun- difícil porque temos que aprender tudo ao
to). Hoje, os projetos contam com apoio do PD/ mesmo tempo. Muito cedo percebi que, se
A Consolidação, do Ministério do Meio Ambi- quisesse ajudar a resolver as necessidades do
ente, da Escola Superior de Agricultura Luiz de nosso povo, precisava aprender mais em
Queiroz (Esalq) e da Fundação de Amparo à menos tempo. Por isso, fui conhecer movi-
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No mentos, tentar participar para aprender a nos
início, tiveram também o apoio da Fundação organizar”, diz ele, que estudou até a sétima
Ford. Durante a realização do diagnóstico, o série do ensino fundamental.
ISA constatou a existência de 50 comunida- Para Zé Rodrigues, outro fermento que
des quilombolas, hoje o movimento já fala em faz com que a comunidade se desenvolva é a
54. As comunidades têm em média 50 famíli- noção muito forte de coletividade. “Ficamos
as, cada uma com seis integrantes. aqui isolados até há algum tempo e nossos

JUN / JUL 2005 31


E S P E C I A L S QUILOMBOS

ancestrais sempre valorizaram a idéia do pa- nutrição. Para Maria, oferecer um melhor
rentesco, da amizade, do trabalho conjunto. atendimento de saúde é ainda um desafio
Eles achavam que esse era o melhor cami- na região.
nho para um grupo que já vivia isolado, se “Temos em Eldorado um posto que
não nos uníssemos, se ficássemos dispersos, presta os primeiros-socorros, contamos com
nada daria certo. Essa linhagem continua até agentes comunitários de saúde toda sema-
hoje, somos todos parentes, vivemos em fa- na, mas ainda é pouco. Gostaríamos de ter
mília. Se alguém tem um problema, todos aju- um atendimento específico para o povo qui-
dam. Abrimos mão da ascensão individual em lombola, um médico que ficasse aqui e acom-
prol da ascensão coletiva, preferimos traba- panhasse nosso cotidiano. Hoje, quando pro-
lhar e lutar juntos para alcançar os mesmos curamos um hospital fora da comunidade,
objetivos.” Para se ter idéia de até onde vai somos respeitados, mas já fomos bastante
essa noção de conjunto, as terras do quilom- discriminados e sofremos muito com isso,
bo não têm divisas, cada pessoa planta onde eram horas de fila de espera para nada. Ago-
quer, cria seus animais em pasto comunitá- ra, somos mais reconhecidos até pela nossa
rio, até existem roças individuais, mas, na atitude”, afirma.
hora da colheita, todo mundo participa. “Nin- O grupo de artesanato, do qual Maria
guém aqui é rico nem miserável, temos o su- faz parte, formou-se em 1997, depois de um
ficiente para viver, terra para trabalhar, rio curso de capacitação oferecido pela Esalq. Da
para pescar, temos muita coisa boa para usar turma de dez pessoas, a maioria era homem,
coletivamente”, enfatiza. mas aos poucos as mulheres lideraram o pro-
jeto. “Como se tratava de um trabalho deta-
lhado e que precisava ter paciência para fazer
Elas ganham mais
e vender, os homens se afastaram e nós toma-
A população de Ivaporunduva tem mais ho- mos conta. Nessa época, as mulheres não ti-
mens que mulheres (60% contra 40%, se- nham uma fonte de renda, sempre trabalha-
gundo levantamento realizado em 2001 pelo mos na roça, só para sobreviver, não havia
ISA). Mas também conta com lideranças fe- dinheiro. Por isso, nos interessamos pelo arte-
mininas. É o caso de Maria da Guia Marinho sanato”, conta Araci Atibaia Pedroso, 61 anos,
da Silva, 43 anos, ca- que coordena o grupo.
sada com Zé Rodri- O aprendizado foi passando de uma
ARQUIVO IBASE

gues. Ela participa para outra. Hoje, cerca de 20 mulheres, de 14


do grupo de produ- a 70 anos, estão envolvidas na atividade que
ção e comercializa- já rende uma média de R$ 300 por família.
ção do artesanato da Depois do primeiro, outros cursos, em parce-
palha da bananeira – ria com o ISA, foram organizados, e a quanti-
um dos projetos de dade de artesãs aumentou. A matéria-prima
desenvolvimento ci- é o tronco da bananeira, de onde se tiram
tados – e também é filetes, mais grossos ou mais finos, trançados
membro da Pastoral com a ajuda de um tear e ornamentados com
da Criança. sementes locais para se transformar em pul-
Uma vez por seiras, colares, bolsas, carteiras, tapetes, es-
mês, realiza visitas teiras, caixinhas e cestas. Cada peça tem uma
mensais de orienta- etiqueta, com a história resumida da comu-
ção às famílias des- nidade. Recentemente, foi construída uma
sa e de outras comu- casa para servir de oficina, armazenamento e
nidades, a respeito venda das peças. Porém, por ser um local
de saúde, higiene e onde não bate sol e a palha da banana ser
alimentação, cuida- um material sensível à umidade, elas só usam
dos com grávidas e o espaço para venda, fazendo e guardando
crianças, fazendo os produtos em casa.
ainda a pesagem de Esse é um obstáculo a galgar, aprender
bebês e ensinando a a livrar a palha dos fungos, o que as tem impe-
multimistura, com- dido de estocar material. “Estamos fazendo
O Vale do Ribeira abriga um valioso patrimônio plemento vitamínico um curso para resolver isso, assim poderemos
ambiental, tombado em 1999 pela Unesco
de combate à des- aumentar bastante a produção. Temos tido

32 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
REPORTAGEM IVAPORUNDUVA , TERRA DE LIDERANÇAS E CONQUISTAS

ARQUIVO IBASE
CRÉDITO: BRUNO WEISS/ISA
Maria da Guia e o grupo de mulheres do artesanato: o trabalho tem garantido uma renda de R$ 300 mensais às famílias da comunidade de Ivaporunduva.
Recentemente, foi construída uma sede para expor e vender os trabalhos

bons resultados e o nosso esforço tem sido te, uma peça do artesanato produzido com a
recompensado. Muita gente que não conhe- palha, um produto secundário da atividade
cia o quilombo acaba conhecendo nossa his- agrícola, chega a ser comercializada por até
tória através desse trabalho”, diz Araci. três ou quatro vezes o preço de uma caixa de
As vendas são feitas na própria sede, bananas orgânicas”, explica o coordenador
para visitantes, mas também em exposições, dos projetos no ISA, Nilto Ignácio Tatto.
feiras e eventos na capital. Para ela, a ativida-
de transformou a vida das mulheres. “Alguns
Turismo e educação
homens não gostaram quando deixamos o tra-
balho nas roças em troca do artesanato, mas Buscando um futuro menos acidentado para
não dá mesmo para fazer as duas coisas. De- a juventude do quilombo, o que não falta é
pois, aos poucos, eles perceberam que passa- incentivo para estudar, aprender, participar
mos a ajudar no sustento da família, a melho- de cursos, seminários e eventos dentro e fora
rar as condições da casa, comprar material de da comunidade. Mas sempre com a consci-
escola para as crianças e, às vezes, até fazer ência de que esse aprendizado precisa ser apli-
um passeio. O que mudou muito na vida da cado ali. O curso pré-vestibular comunitário,
gente é que o tempo todo dependíamos dos organizado em 2004 com apoio da rede
homens e, a partir do momento em que come- Educafro, levou, no início deste ano, 13 es-
çamos a ter renda também, eles nos deram tudantes para a universidade. “Tentamos
mais valor”, enfatiza. mudar a idéia de que negro não serve para
Um ponto a destacar é que o trabalho pensar, não serve para ser intelectual. Das
artesanal vem dando mais lucros que o cultivo pessoas que entraram na universidade ago-
da banana orgânica, outro projeto de desen- ra, quatro estão fazendo Direito. Aqui no
volvimento sustentável, coordenado pelos Brasil, Medicina e Direito ainda são cursos
homens da comunidade. “Esta é uma ativida- para elite, temos que quebrar esses privilé-
de em fase de estruturação, mas já tem signi- gios. Tenho certeza de que essas pessoas,
ficado importante geração de renda para al- quando terminarem os estudos, vão traba-
gumas famílias locais. Os cursos realizados lhar com a nossa comunidade, a simbiose
motivaram o ingresso de outras pessoas na que temos favorece isso”, afirma Oriel.
atividade, aumentando o número de artesãs e Sua trajétoria é um exemplo da dedica-
a quantidade de peças produzidas, assim como ção de quem faz parte dessa família. Nascido em
as possibilidades de comercialização. A cria- Ivaporunduva, teve que deixar a comunidade ain-
ção da identidade visual, logomarca e de eti- da pequeno para acompanhar seu pai que arru-
quetas para identificação foi de fundamental mou trabalho na capital. Voltaram quando ele
importância para a maior visibilidade dos pro- estava com 12 anos. Oriel continou estudando
dutos e para agregar valor às peças. Atualmen- em outro município, Itapeúna, decidido a fazer

JUN / JUL 2005 33


E S P E C I A L S QUILOMBOS

ARQUIVO IBASE
constituinte que resultou na inclusão do Ar-
tigo 68 na Constituição Federal – este obri-
ga o Estado a reconhecer, regularizar e titu-
lar os territórios quilombolas de todo o
Brasil. Ivaporunduva está entre as poucas já
tituladas, mas essa titulação só alcançou um
terço das terras originais, são pendências a
resolver no futuro.
“Antes das comunidades quilombo-
las terem o direito garantido pela Consti-
tuição, era comum as pessoas saírem da-
qui por falta de oportunidades, elas se
dirigiam à capital ou às cidades vizinhas para
tentar a sorte. Depois que tivemos esse di-
Lideranças jovens desenvolvem o projeto de parceria com estudantes para preservar a reito garantido, a comunidade se organi-
história quilombola. Da esquerda para a direita, Ladio dos Santos, Paulo Pupo e Denildo zou, nos estruturamos em um sistema cole-
tivo de trabalho. Hoje, é comum a pessoa
sair para fazer um curso, temos oportuni-
ARQUIVO IBASE

dade de nos preparar pensando em dar esse


retorno para a comunidade”, anima-se Pau-
lo Silvio Pupo, 25 anos, uma das vozes jo-
vens envolvidas no trabalho de preservar a
história da comunidade.
Ele é um dos três monitores que
acompanham estudantes e professores(as)
de escolas particulares da capital e de ou-
tros municípios em visitas semanais à co-
munidade. Trata-se de uma verdadeira aula
de educação ambiental e cidadania. Dentro
da igreja, os grupos assistem a uma pales-
tra sobre a história do quilombo – dura cer-
ca de 30 minutos, com ênfase nas lutas que
enfrentaram, na questão do preconceito, o
convívio com a terra, a corrida pelos direi-
A escola de primeira a quarta série foi recentemente reformada para atender
tos e a organização comunitária como cha-
às demandas locais ve dessas conquistas –, conhecem os proje-
tos que estão sendo desenvolvidos e
almoçam uma comida tipicamente quilom-
um curso técnico de contabilidade. “Nesse bola – como frango caipira com mandioca,
período, já participava como militante da arroz e feijão mulatinho, verduras e legu-
causa quilombola, fosse contra as barragens mes, suco de lima e doce de banana, tudo
ou pelo registro da terra. É difícil conciliar a cultivado no local, sem agrotóxicos.
militância com o estudo, queria muito ter o “Desenvolvemos com os estudantes
curso superior. Cheguei a fazer História, Biolo- uma atividade turística mais voltada para o
gia e Antropologia, mas terminei o curso de étnico e o cultural. São estudantes a partir
Direito, no ano passado. Isso tudo me serviu da quinta série que querem conhecer como
de aprendizado, porém meu conhecimento vivemos. Mas se torna uma oportunidade
maior vem mesmo da militância em movi- de repassar informações sobre a população
mentos sociais”, conta. quilombola no Brasil e também mudar uma
As representações em instâncias fora visão distorcida que a maioria tem a nosso
da comunidade, como no Movimento dos respeito. Em geral, as escolas passam infor-
Atingidos por Barragens (MAB), na Pastoral mações bem equivocadas sobre o assunto, é
da Criança e na Conaq, são uma mostra da algo que não está em livro nenhum, daí ser
força da comunidade de Ivaporunduva. As tão importante essa troca. Com certeza, eles
representações também possibilitaram a par- também serão disseminadores dessas infor-
ticipação nas discussões durante o processo mações”, afirma Paulo.

34 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
REPORTAGEM IVAPORUNDUVA , TERRA DE LIDERANÇAS E CONQUISTAS

Críticas como essa culminaram em morar a produção e a comercialização e agre-


um projeto de construção de uma escola gar valor à banana produzida, visando inde-
coletiva para as comunidades quilombolas pendência e autonomia da comunidade com
do Vale do Ribeira. A escola, de ensino fun- relação ao mercado. O projeto possibilitou a
damental e médio, está sendo instalada na aquisição de um caminhão, o que tem possi-
comunidade de André Lopes – fundada por bilitado aos produtores alcançarem merca-
famílias que vieram de Ivaporunduva. A dos mais vantajosos, sem a interferência de
idéia é facilitar a ida das crianças, já que atravessadores – que ficavam com a maior
hoje as comunidades só dispõem de escola parte do lucro. “Os produtores orgânicos têm
até a quarta série e, a partir daí, elas têm que recebido até R$ 5 pela caixa de 20 quilos da
estudar fora. A intenção também é permitir fruta verde (não-climatizada). Se estivessem
um ensino diferenciado. comercializando com os atravessadores, es-
Quem explica é Maria da Guia: “Essa tariam recebendo em torno de R$ 1,50 a cai-
foi uma reivindicação das comunidades por- xa”, defende Nilto.
que nossos filhos têm que sair de casa muito Outro resultado importante foi a cer-
cedo, 3h30, 4h30 da manhã, para estudar tificação de 35 produtores pelo Instituto
em outros municípios. Percebemos que, com Biodinâmico (IBD). A certificação atesta que
essa dificuldade, eles não vão conseguir con- o produto foi feito dentro de padrões orgâ-
cluir os estudos, queremos que eles estudem nicos de produção, sem uso de adubos e de-
em uma escola com horários melhores, que fensivos agrícolas químicos. O padrão de cer-
descansem mais. Queremos também formar tificação orgânica IBD inclui critérios sociais e
as crianças dentro dos nossos costumes, uma ambientais, tais como não-utilização de tra-
educação voltada para o trabalho que faze- balho infantil, estímulo à preservação e à re-
mos para que, no futuro, eles possam admi- cuperação de áreas nativas. Trata-se de um
nistrar a comunidade”. selo de qualidade e pureza do produto, que
O projeto de intercâmbio com as es- acaba se tornando também um cartão de visi-
colas foi discutido por dez anos e colocado ta no momento da venda.
em prática há três. Isso porque abrir a comu- “Antes de conhecer o ISA, já estáva-
nidade para o público externo é algo trata- mos buscando projetos de geração de ren-
do com particular cuidado. “O estatuto da da, mas essa parceria ajudou a fortalecer os
associação reza o que pode o que não pode. projetos, eles têm um corpo técnico que nos
Aqui não entram drogas, não há problemas ajuda bastante. De seis anos para cá, nossa
de roubo. Nossos filhos estudam na cidade, situação começou
mas têm essa consciência, não trazem nada a mudar, a idéia é

ARQUIVO IBASE
disso para cá. Pessoas estranhas quase não buscar uma quali-
entram aqui, fica mais fácil controlar. Trata- dade de vida cada
se de um bairro rural de uma cidade no inte- vez melhor”, diz
rior e na nossa cultura não tem essas coi- Zé Rodrigues.
sas”, explica Zé Rodrigues. O próximo
Por esse motivo, a pousada, cons- desafio é comer-
truída em parceria com o governo do esta- cializar a fruta já
do ano passado para estimular o ecoturis- madura (climati-
mo na região, não começou a funcionar. A zada), cujo valor
idéia não é abrir o prédio para hospeda- chega a ser o do-
gem comum, mas incluir a estadia em um bro da fruta ver-
pacote no qual a história quilombola e a de. “Para isso, já
preservação da natureza sejam o prato prin- foi adquirida uma
cipal. E como o projeto ainda não foi acer- câmara de clima-
tado, as portas da pousada continuam fe- tização. No mo-
chadas ao público. mento, estamos
trabalhando na
capacitação téc-
Banana para dar e vender
nica da comuni-
Um dos projetos que mais têm movimenta- dade”, anima-se
do a comunidade de Ivaporunduva é o de Nilto. Também es- José Rodrigues, coordenador da associação, é uma
das principais lideranças da comunidade
manejo orgânico da banana. A idéia é apri- tá sendo instalada

JUN / JUL 2005 35


E S P E C I A L S QUILOMBOS

uma unidade de processamento de frutas “Essa devastação acontecia por fal-


para a produção de derivados orgânicos ta de informação da população e também
como banana-passa e doces. porque não estávamos preparados para
receber tanta restrição ambiental. A par-
tir da década de 80, nossa região passou
Da devastação à preservação
a sofrer uma repressão forte por parte dos
O terceiro projeto de desenvolvimento é de órgãos de fiscalização do estado por guar-
repovoamento do palmiteiro juçara. A inicia- dar uma porção rara de mata atlântica,
tiva, além de resolver um problema ambien- não podíamos desmatar para sobreviver.
tal grave, já que a espécie corria risco de ex- Por exemplo, se vinha o guarda florestal e
tinção, vem solucionando um aspecto social dizia que não podíamos fazer roça em de-
relevante – o retorno de boa parte da força terminada área, a população começava a
de trabalho masculina para a comunidade. ver aquele guarda como inimigo, não tí-
Durante muitos anos, era comum a retirada nhamos senso crítico para trabalhar de for-
clandestina do palmito, entregue por qual- ma cooperada com o meio ambiente, como
quer dinheiro a atravessadores. Para fazer esse acontece hoje. Assim, muitos partiram para
trabalho, alguns homens da comunidade se a clandestinidade, cortando palmito para
embrenhavam na mata por semanas, deixan- sobreviver”, esclarece Denildo Rodrigues,
do abandonadas suas famílias em atividade 23 anos, irmão de Oriel.
perigosa para eles, danosa ao meio ambiente Segundo informações do ISA, o Vale
e praticamente sem retorno financeiro. do Ribeira, onde fica a comunidade de Iva-
porunduva, abriga um valioso patrimônio
ambiental. São 2,1 milhões de hectares de
florestas, que representam 21% dos rema-
nescentes de mata atlântica do Brasil, 150
mil hectares de restingas e 17 mil hectares
de manguezais. Em 1999, a Reserva de Mata
Atlântica do Sudeste, formada por 17 muni-
cípios do Rio Ribeira do Iguape, entrou para
o time das seis áreas brasileiras tombadas
como Patrimônio Natural da Humanidade
CRÉDITO: FELIPE LEAL/ISA

pela Organização das Nações Unidas para a


Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
O projeto tem possibilitado a rein-
trodução da espécie em 200 hectares do
território quilombola de Ivaporunduva, por
meio da coleta e dispersão das sementes.
O projeto de replantio do palmiteiro juçara se estende por 200
Até o momento, a atividade viabilizou a
hectares do território quilombola
dispersão de cerca de 3 mil quilos de se-
mentes, coletadas na própria comunidade.
O trabalho é feito em mutirões, com o en-
volvimento e mobilização de grande parte
das famílias.
A iniciativa trabalha com a perspec-
tiva de manejo da espécie no futuro, seja o
palmito, a semente ou a polpa. Além de
ser mais uma fonte de renda para a comu-
nidade, é importante considerar o seu pa-
CRÉDITO: FELIPE LEAL/ISA

pel na manutenção da biodiversidade da


região. “O potencial ecológico da espécie
está na interação com a fauna local, pois
funciona como fonte de alimento de gran-
de parte dos animais. Isso indica que o
palmiteiro é uma espécie estratégica para a
Plantula do palmiteiro juçara: o projeto de repovoamento da espécie manutenção da dinâmica dos ecossiste-
envolve todas as famílias de Ivaporunduva e salvou-a do risco de extinção
mas”, esclarece Nilto.

36 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
REPORTAGEM IVAPORUNDUVA , TERRA DE LIDERANÇAS E CONQUISTAS

* AnaCris
Bittencourt
Interesses empresariais ameaçam o Vale Subeditora da revista
Democracia Viva.
Agradeço a colaboração
FOTOS: ARQUIVO IBASE

de Fábio Graf Pedroso,


engenheiro agrônomo,
e Fábio Zanirato,
engenheiro florestal,
pesquisadores do ISA,
que me acompanharam
na visita à Ivaporunduva
e forneceram
informações valiosas
incluídas neste texto

anacris@ibase.br

Há cerca de dez anos, as comunidades qui- empregos locais quando estiver funcionan-
lombolas do Vale do Ribeira têm se articula- do, a previsão é de ter uma equipe de ape-
do para tentar impedir a liberação do nas 123 pessoas.
licenciamento ambiental da Usina Hidrelétri- “Quando surgiu o boato com relação à
ca de Tijuco Alto – prevista para ser cons- construção das barragens, tentamos nos ar-
truída entre os municípios de Ribeira/SP e ticular com outras comunidades e, aos poucos,
Adrianópolis/PR, no Rio Ribeira do Iguape. criamos uma consciência crítica com relação
Se concretizada, sua instalação está pre- às barragens. De acordo com experiências
vista para acontecer no alto Vale do Ribeira, de outras comunidades, acontece tudo ao
mas, segundo os estudos já realizados pelo contrário do que as empresas falam. Diziam
ISA e publicados na cartilha Tijuco Alto Saiba que as barragens levariam desenvolvimento
porque ela não interessa ao Vale do Ribeira, para as regiões atingidas, quando na verda-
em 2002, a usina vai prejudicar, direta e indi- de elas ficaram muito mais pobres. As pes-
retamente, vários outros municípios situados soas que antes viviam da terra agora passam
no médio e baixo Vale. fome”, lamenta Denildo Rodrigues, lideran-
A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto faz ça jovem em Ivaporunduva, integrante do
parte de uma proposta de construção que Movimento de Atingidos por Barragens
engloba pelo menos mais três usinas a serem (MAB), em Brasília, e do Movimento dos
construídas ao longo do rio – é o que consta Ameaçados por Barragens (Moab), que se
no estudo de inventário do Rio Ribeira de organizou no Vale do Ribeira.
Iguape, aprovado em 1994 pelo Departa- Denildo se referiu à construção de bar-
mento Nacional de Águas e Energia Elétrica ragens para atender aos interesses do em-
(DNAEE) e pela Eletrobrás. Se essas barra- presariado fazendo uma comparação com o
gens forem construídas, uma área de 11 mil problema da terra, as barragens seriam lati-
hectares será inundada para sempre – a área, fúndios de água: “Hoje temos uma imensidão
equivalente a 11 mil campos de futebol, in- de água represada, são 2 mil barragens em
clui várias comunidades quilombolas, entre todo o Brasil, isso representa o território do
elas Ivaporunduva, dois parques estaduais e estado do Tocantins. Em geral, as popula-
áreas urbanas como o centro histórico da ções atingidas, que antes moravam às mar-
cidade de Iporanga. gens dos rios, perdem o acesso à água de
O projeto foi planejado pela Companhia qualidade e passam a ter que disputar uma
Brasileira de Aluminío (CBA), que pertence água barrenta com animais, como está acon-
ao Grupo Votorantim, com a intenção de tecendo na Paraíba. É muito doído perceber
aumentar a oferta de energia elétrica para que hoje o dinheiro está acima dos direitos
sua indústria de alumínio. Segundo dados humanos”, conclui.
do Ibama de 1997, essa energia extra seria Nilto Tatto, do ISA, tem uma visão mais
exclusivamente destinada ao aumento da otimista: “Acredito que a articulação das co-
produção da empresa. munidades quilombolas com outros seto-
Nem mesmo no período da construção res da sociedade conseguirá impedir a cons-
da barragem – um arco de concreto de 150 trução das barragens. A sociedade civil
metros de altura, comparável a um prédio organizada também pode contribuir com
de 15 andares –, as pessoas das comunida- essa luta, participando do processo de mo-
des do Vale do Ribeira seriam beneficiadas, bilização já em curso no Vale e exigindo
já que, do conjunto de 1.500 trabalhado- que sejam realizados estudos de impacto
res(as) necessários(as) à empreitada, apenas de toda a bacia antes de iniciar qualquer
10% seriam da região. Tampouco vai gerar obra”, incentiva.

JUN / JUL 2005 37


QUILO
Thais Zimbwe*
REPORTAGEM

Resistência
e cultura
em Valença
Preservar a memória é uma das maneiras de construir a história. Com esse objetivo, a

comunidade quilombola São José da Serra realiza todos os anos a Festa de Jongo, para

comemorar o Dia dos Pretos Velhos e a abolição da escravatura. No dia 14 de maio

deste ano, cerca de 600 pessoas puderam conhecer a cultura e as tradições africanas

preservadas numa comunidade quilombola.

O quilombo São José da Serra, localizado na cidade de Valença, no interior do

estado do Rio de Janeiro, existe há cerca de 150 anos e é composto por aproximada-

mente 200 negros e negras. A comunidade é referência pela preservação das tradi-

ções africanas mantidas por moradores(as) e pela divulgação de seus patrimônios

culturais, tais como a umbanda e o jongo. A comunidade recebeu, este ano, a meda-

lha estadual de direitos humanos Austregésilo de Athayde, pela importância do tra-

balho social e cultural local.

38 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
MBOS
“Foi muito importante para nós recebermos adobe (tijolo de barro) e cobertas de sapê, o
essa medalha. Nós aqui da comunidade pro- ferro à brasa e o fogão à lenha, que fazem
curamos manter nossas tradições vivas, po- parte do cotidiano dos(as) moradores(as) do
dendo mostrá-las e ensiná-las para quem quilombo desde a chegada de seus antepas-
vem nos conhecer. Em dias de festa, procu- sados, por volta de 1850.
ramos dançar melhor o nosso jongo, cantar Dona Joanna, uma das moradoras mais
melhor as nossas cantigas, para que todas antigas, nunca saiu da comunidade. “Não
as pessoas saiam daqui melhores do que preciso ir até a cidade, tudo que preciso te-
entraram”, comenta Toninho Canecão, pre- nho aqui e está tudo muito bom. Os jovens
sidente da Associação de Moradores do que sentem vontade de ir lá para fora a todo
Quilombo São José da Serra. tempo querem aprender outras coisas, estu-
“Eu vou tocar minha viola, eu sou ne- dar e trabalhar”, diz.
gro cantador. O negro canta, deita e rola lá
na senzala do senhor. Tem que acabar com
Protagonismo juvenil
essa história de negro ser inferior, o negro é
gente como o outro, quer dançar samba e No quilombo São José da Serra, a juventude
ser doutor. O negro mora em palafita, não é tem papel importante, pois é responsável por
culpa dele, não, senhor. A culpa é da Aboli- grande parte das tarefas dentro da comunida-
ção, que veio e não o libertou”, diz a letra da de. Como acontece na liturgia, a maioria dos(as)
cantiga cantada na missa afro que abriu a integrantes é composta de mulheres jovens.
Festa de Jongo. Elas organizam as celebrações religiosas, re-
Para festejar o Dia dos Pretos Velhos, gem as missas afros, entre outras atividades.
divindades cultuadas pelas religiões de ma- “Temos que nos preocupar com nosso
trizes africanas, moradores e moradoras re- futuro, e o futuro da comunidade será defini-
alizam anualmente a Festa de Jongo, quan- do pelo nosso comportamento. Amamos nos-
do são praticadas diversas manifestações sa cultura e temos a obrigação de preservá-la
culturais africanas, preservadas no quilom- para que não morra ou seja absorvida pela
bo desde a época da escravidão. Uma missa modernidade. É complicado para nós, jovens,
afro, na qual se mescla o catolicismo com a que temos acesso às informações do mundo
umbanda, abriu a festa, e todo o público lá fora, não nos influenciarmos pelas outras
pôde participar da celebração. “É muito bo- coisas, mas mesmo assim temos que trabalhar
nita toda essa festa, nunca pensei que a cul- na cultura, plantar e fazer nosso artesanato,
tura africana fosse tão forte e bem represen- cantar nossas músicas e tocar o atabaque.
tada, como estou vendo aqui no quilombo. Dessa maneira, a cultura do quilombo não aca-
Sou presença garantida ano que vem”, afir- bará”, explica Maria de Lourdes, de 24 anos,
ma Amélia Santtana, que foi para a festa uma das integrantes da liturgia do quilombo.
numa excursão de São Paulo. Uma das manifestações mais caracte-
A folia de reis, a marujada, o calango, rísticas do quilombo São José é o jongo, con-
a capoeira, o jongo, entre diversas outras siderado um dos mais tradicionais do Brasil.
manifestações culturais, puderam ser conferi- Ele permanece intacto desde os tempos do
das pelo público nos dois dias de festa no Brasil colonial, já teve suas cantigas gravadas
quilombo. As pessoas que lá compareceram em CD e sua história contada em livro. O CD-
conheceram também o trabalho de agricul- livro Jongo do Quilombo São José foi gravado
tura de subsistência, a crença religiosa, o ar- em outubro de 2004, registrando a música, a
tesanato tradicional, as casas construídas de história e a cultura do jongo local.

JUN / JUL 2005 39


E S P E C I A L S QUILOMBOS

FOTOS: ARQUIVO IBASE


* Thais Zimbwe Em todo o estado do Rio de
Formanda de Jornalismo Janeiro, existem 14 comunidades
pela Centro Universitário remanescentes de quilombos, nas
da Cidade, estagiária de quais vivem cerca de 770 famílias.
Comunicação do Ibase. No caso do quilombo São José da
Correspondente do Portal Serra, os(as) negros(as), após a li-
Mundo Negro e colunista
bertação, permaneceram na fazen-
dos sites Hip Hop BR,
da, constituindo sua comunidade.
Epidemia Urbana e do
O quilombo de Valença não
Afro Reggae
tem a característica de um sítio de
thaisd@ibase.br escravos(as) fugitivos(as). Ele ocupa
duas áreas demarcadas, num total de
25 hectares. A comunidade foi reco-
nhecida há seis anos como remanes-
Durante a missa, alimentos como aipim e fubá são
cente de quilombo, abrindo caminho
ofertados ao público e abençoados durante a celebração para a titulação de suas terras. Entre-
tanto, esse processo é bastante len-
to e ainda não está concluído, acar-
O jongo é uma dança trazida da África retando sérios problemas.
pelos escravos e escravas. Também conheci- “A demora das autoridades em resolver
do como caxambu, foi uma das poucas pos- a questão sobre a desapropriação das terras que
sibilidades de diversão e manifestação re- nos pertencem dificulta muito nossa sobrevi-
ligiosa dos(as) escravos(as), reunindo vência. As cercas espalhadas ao nosso redor
canto e dança em uma grande festividade. furam as bolas quando jogamos futebol e são
“Dançar e cantar o jongo é preservar a cul- um perigo para nossas crianças. Elas impedem
tura de nossos antepassados, posso tocar o plantio dos nossos alimentos, dificultando
uma noite inteira, sempre fico muito feliz muito nosso dia-a-dia”, desabafa Toninho.
e agradecido de ter herdado essa dança e Motivados pela forte identidade cultu-
poder passá-la para meus filhos e todos os ral, a comunidade do quilombo São José da
que querem aprender”, expressa Jorge, ao Serra consegue se manter como uma das mais
lado de seu atabaque, antes de iniciar uma belas do país, sendo um relato vivo da história
roda de jongo. de negros e negras no Brasil.

Pretos velhos
A comemoração em homenagem aos pretos velhos Apesar de tudo,
ocorre no dia 13 de maio, data em que foi assina- esses povos renega-
da a Lei Áurea, razão pela qual a umbanda come- dos pela sorte trouxe-
mora esse dia. Os pretos velhos são considerados ram em seus espíritos
guias ou protetores somente pelos(as) umbandis- a ciência e a sabedo-
tas, seguidores(as) da umbanda, religião de matriz ria de ancestrais, em-
africana cultuada no Brasil. Representam todos os pregando seus dotes
espíritos de humildade, de serenidade e de paciên- no uso das ervas, plan-
cia, que, como escravos, chegaram ao Brasil, para tas, raízes e tudo o
onde foram trazidos negros e negras de todas as mais que estava dispo-
nações africanas, reis, rainhas, príncipes, além de nível na natureza.
religiosos(as) de várias culturas. D e p o i s d e m o r-
Essas divindades são originárias dos(as) tos(as), passaram a sur-
escravos(as) no cativeiro, que eram submetidos(as) gir em lugares adequados, principalmente para se
a condições desumanas e implacáveis de trabalho manifestarem. Esses espíritos se comprometiam com
forçado e a torturas. A vida sofrida nas senzalas, a alta espiritualidade a ajudar todas as pessoas ne-
onde somente mais fortes sobreviviam, reservava- cessitadas, independentemente de cor ou credo.
lhes, entre tantas humilhações, comer os restos de No dia 13 de maio, os(as) adeptos(as) da um-
comida dos senhores. Esse fator originou a feijoa- banda comem feijoada com as mãos, como uma
da, um prato da culinária bastante apreciado hoje. forma de reverenciar os pretos velhos.

40 DEMOCRACIA VIVA Nº 27
RESISTÊNCIA E CULTURA EM VALENÇA

A Festa no Quilombo São José teve a apresentação da Folia de Reis, uma manifestação cultural de origem portuguesa que ainda sobrevive
em cidadezinhas brasileiras

A missa afro do Quilombo São José é liderada pela juventude. A celebração é animada com cantigas ao som de atabaques, violão e cavaquinho

JUN / JUL 2005 41

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