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LABAREDAS

Sentado sobre o seu ombro o verme da solidão pergunta coisas tolas e inofensivas: por que às
margens dos rios a poesia floresce mais?

Ao lado de todo artista há um afogado que sussurra. Um enforcado, talvez – uma menina triste
que se enforcou quando perdeu as dúvidas.

Quem pode tolerar tantas certezas?

No lugar da minha virgindade ganhei uma marca de mijo de aranha, uma cicatriz de lagarta-de-
fogo, um calo de barra de ônibus, um choque de fio desencapado.

No lugar onde eu moro, as pedras convivem com o asfalto, com os buracos, com os policiais à
paisana, com os professores fardados, com os meninos carentes que não sabem por que, mas
têm que amar seus pais, com os cães sedentos, os velhos roucos que jogam dominó à sombra
das figueiras, cos postos d moto-taxi.

Velhos que já perderam a fé vociferam doutrinas – sabem que Deus está morto, mas arrastam
seu cadáver pelas avenidas, como loucos, num espetáculo horrendo para festejar o nada.

Mas Deus vive: – o deles não.

Existe alguma coisa de profundamente espiritual na pedra, no chão, na fibra de uma folha de
couve, no latido amigo de um cão. Gatos sobre os muros, pássaros nas calçadas, formigas
inumeráveis ladeando o lixo – homens e mulheres condenados à pobreza, sendo corroídos
pelo tempo na velocidade da fome, da doença e da ausência.

O vestido florido e roto da velhinha do mercado. O cheiro azedo do bêbado que ainda não
tomou café – a vista de baixo, a baixa da égua, as empáfias da semântica, as inúteis e
diletantes elucubrações de um poeta – ácido de bateria, ratos nos esgotos, nas valas abertas
na cidade, nas lixeiras dos hospitais, nos discursos do prefeito.

Fragmentos de realidade que se colam e descolam, que se chocam e confrontam – tudo que é
humano, demasiadamente humano, tudo que é estranho – até os ensaios de Montaigne.

A realidade se desmancha em pó e se materializa em neon: uma ponta de sentido que o valha,


que sirva de travesseiro e que abra a porta de um sonho... de um sono, ao menos.

Dormir – dormir para acordar. Trabalhar para viver, viver para girar as engrenagens do
sistema.

A música, a prostituição, os corpos magros e os gordos, os olhos escuros e os coloridos – os


olhos cinzentos que só existem na literatura, os livros de Charles Bukowski, o mito de Jack
Kerouac, as viroses, a tosse e os anti-inflamatórios naturais – tudo peça programada
removível, substituível, num sistema em que tudo é coisa, as pessoas e as coisas, até o próprio
sistema é coisa.

Nossa maior esperança é o Apocalipse Zumbi – é a distopia da moda, é o fim do fetiche de um


reality show: nossa esperança é também o nosso pavor: quem somos nós se nos despirmos
das ilusões?
Eu quero me embriagar de tristeza. Quero me embriagar de silêncio. De pausa. De pão. De
suor e vaidade. Quero me embriagar de espelho. Quero amar as mulheres, quero também
esquecê-las. Quero me embriagar de Lacan. Quero caminhar pelas cidades pequenas e cantar
canções que ninguém sabe e quero perder a minha voz depois de fazer amor com a garçonete
sorridente para quem dediquei um verso de Raul. Quero dançar tango, dançar fandango –
quero me trancar em minha casa por duas semanas e esquecer de pagar a conta de luz. Quero
ter areia nas minhas costas, quero sentir as dores da força, saltar muros, roubar poesia e me
casar com uma mulher da Abissínia. Quero rir no funeral do meu amigo, porque morremos
tantas vezes que já nem lembramos. Todas as suas alegrias tolas de burguês de Moliére. Você,
sua esposa, sua mãe. Você, seu emprego, sua fé. Você, sua roupa neutra, sua fala neutra, seu
espírito neutro, seu orgulho mal fingido, sua covardia de mediador. A boemia é uma roupa
velha que não serve mais – os poetas estão ocupados vendo o mundo agonizar. Os poetas
foram ao cinema. Os poetas se casaram, constituíram família, criaram filhos e filhas que
colocam na aula de inglês e natação, eles pagam TV a cabo e se deliciam com os
documentários independentes no streming. Temos blogs. Temos timelines. Temos sites oficiais
e publicamos livros com ISBN próprio. E pensamos que somos contra o sistema, quando somos
a periferia do sistema, o sobrecu do sistema, o rabo abanado do sistema, que é fundamental
para que o sistema respire e para que haja equilíbrio no sistema.
No entanto, eu canto, porque o instante insiste.

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