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Sentado sobre o seu ombro o verme da solidão pergunta coisas tolas e inofensivas: por que às
margens dos rios a poesia floresce mais?
Ao lado de todo artista há um afogado que sussurra. Um enforcado, talvez – uma menina triste
que se enforcou quando perdeu as dúvidas.
No lugar da minha virgindade ganhei uma marca de mijo de aranha, uma cicatriz de lagarta-de-
fogo, um calo de barra de ônibus, um choque de fio desencapado.
No lugar onde eu moro, as pedras convivem com o asfalto, com os buracos, com os policiais à
paisana, com os professores fardados, com os meninos carentes que não sabem por que, mas
têm que amar seus pais, com os cães sedentos, os velhos roucos que jogam dominó à sombra
das figueiras, cos postos d moto-taxi.
Velhos que já perderam a fé vociferam doutrinas – sabem que Deus está morto, mas arrastam
seu cadáver pelas avenidas, como loucos, num espetáculo horrendo para festejar o nada.
Existe alguma coisa de profundamente espiritual na pedra, no chão, na fibra de uma folha de
couve, no latido amigo de um cão. Gatos sobre os muros, pássaros nas calçadas, formigas
inumeráveis ladeando o lixo – homens e mulheres condenados à pobreza, sendo corroídos
pelo tempo na velocidade da fome, da doença e da ausência.
O vestido florido e roto da velhinha do mercado. O cheiro azedo do bêbado que ainda não
tomou café – a vista de baixo, a baixa da égua, as empáfias da semântica, as inúteis e
diletantes elucubrações de um poeta – ácido de bateria, ratos nos esgotos, nas valas abertas
na cidade, nas lixeiras dos hospitais, nos discursos do prefeito.
Fragmentos de realidade que se colam e descolam, que se chocam e confrontam – tudo que é
humano, demasiadamente humano, tudo que é estranho – até os ensaios de Montaigne.
Dormir – dormir para acordar. Trabalhar para viver, viver para girar as engrenagens do
sistema.