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A CIDADANIA MODERNA, A PROTEÇÃO DAS MINORIAS E O

SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DE DIREITOS

Adriana Barros

Ser minoria não significa ser menor número.


Ser minoria significa a ausência de voz.

É possível obter caminhos mais curtos para chegar ao exercício da


cidadania?

Antes de qualquer reflexão a respeito desta pergunta, cabe rememorar o


que é a cidadania e os instrumentos disponíveis aos cidadãos para o seu
exercício e, como ideal, o seu exercício pleno.

Cidadania, na conceituação clássica, é a prática dos direitos e deveres


de um indivíduo em um Estado. É o direito de participar ativamente das
decisões políticas de um país, por intermédio de um processo eleitoral e
legislativo, interações com a mídia, redes sociais, protestos etc.

A eficiência da participação do cidadão em movimentos voltados a obter


determinado resultado político está condicionado a diversos fatores e variáveis
quase imprevisíveis.

Esta visão da cidadania em uma perspectiva tradicional. Hoje, tem-se


uma visão da cidadania moderna, abrangendo a proteção dos direitos civis,
políticos e sociais, caracterizando-se, no processo de sua formação, a
participação dos segmentos sociais na sua definição e implementação, na lição
de Vicente Barreto1.

Pautada em um sistema global de proteção de direitos, cada vez


caminhamos mais neste sentido, como explica Chris Thornhill, em seu texto “O
direito internacional e o futuro da democracia”2:
1
 BARRETO, Vicente. O conceito moderno de cidadania. Revista de direito administrativo: RDA
n. 192, p. 29–37, abr./jun., 1993.
2
THORNHILL, Chris. O direito internacional e o futuro da democracia. Tradução de Carina
Rodrigues de Araújo Calabria. Brasília: Revista da AGU, v. 17, n. 01, 19-44, jan./mar. 2018.

1
(...) na arquitetura mais ampla da democracia contemporânea,
interações entre órgãos localizados em diferentes pontos do sistema
legal global frequentemente substituem modos democráticos clássicos
de agência. Como um dos resultados disso, na democracia
contemporânea, normas – tanto estatutárias quanto constitucionais –
podem ser produzidas e legitimadas por meio de atores que guardam
uma relação de equivalência funcional com atores democráticos
clássicos. Acima de tudo, instituições dentro do sistema global se
tornam criadores primárias de direito, de maneira que o sistema legal
gera equivalentes funcionais para agir no lugar de agentes
tradicionalmente situados no sistema político. Essas transferências
funcionais são mais consolidadas em entes políticos que são parte de
sistemas regionais de proteção de direitos humanos.

Para que possamos compreender melhor esta ampliação do conceito da


cidadania moderna, temos que passar, brevemente, pela evolução dos Direitos
Humanos na história.

Em seu surgimento, apenas Estados e organismos internacionais


poderiam acionar a jurisdição internacional de proteção dos direitos humanos.
A tendência mundial é que, cada vez mais, pessoas, individualmente, possam
dar início a um procedimento junto a organismos internacionais que poderá
ensejar a recomendação a um Estado para adoção de diversas medidas,
inclusive na esfera de políticas públicas ou até mesmo uma condenação por
um Tribunal internacional.

Por exemplo, é possível acionar a Comissão Interamericana de Direitos


Humanos, principal órgão de fiscalização do sistema interamericano, por
intermédio do portal http://www.oas.org/pt/cidh/portal/, que poderá acarretar a
abertura de um procedimento e, dependendo da situação posta, um processo
perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Vejamos o caso da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da


Penha que, de forma expressa, em seu art. 6º, trata a violência doméstica e
familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos
humanos:

2
Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma
das formas de violação dos direitos humanos.

O Brasil, no ano de 2001, foi responsabilizado pela Comissão


Interamericana de Direitos Humanos por negligência, omissão e tolerância em
relação à violência doméstica contra as mulheres.

A denúncia apresentada pela Senhora Maria da Penha Maia Fernandes,


pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê
Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) (doravante
denominados “os peticionários”) resultaram no Relatório n° 54/01 da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, de 4 de abril de 2001. Além da própria
determinação de responsabilização cível e penal do agressor da Sra. Maria da
Penha, foram feitas recomendações ao Brasil, para “prosseguir e intensificar o
processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento
discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.” 3.

O Estado brasileiro não chegou a ser condenado por uma Corte


Internacional. No entanto, o Relatório n° 54/01 da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos serviu para a adoção de políticas públicas e para a mudança
na legislação interna do país em razão de um exercício da cidadania utilizando-
se um sistema global de normas, que, pela importância que tiveram em nossa
ordem interna, as transcrevo:

VIII. RECOMENDAÇÕES

61. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao


Estado Brasileiro as seguintes recomendações:

1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal


do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da
Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.

3
https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 6 de maio de 2021.

3
2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva
a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos
injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do
responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas
e judiciárias correspondentes.

3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser


instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas
necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação
simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas,
particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo;
por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e por
impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de
reparação e indenização civil.

4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite


a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à
violência doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda
particularmente o seguinte:

a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários


judiciais e policiais especializados para que compreendam a
importância de não tolerar a violência doméstica;

b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa


ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de
devido processo;

c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e


efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de
sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências
penais que gera;

d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a


defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais
necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias
de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público
na preparação de seus informes judiciais.

e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares


destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a
seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem
como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.

4
5. Apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
dentro do prazo de 60 dias a partir da transmissão deste relatório ao
Estado, um relatório sobre o cumprimento destas recomendações para
os efeitos previstos no artigo 51(1) da Convenção Americana.

O resultado obtido para uma maior proteção das mulheres em um


cenário de violência doméstica poderia ter surgido de um modelo clássico de
democracia? Sim, por intermédio de um processo eleitoral com a escolha de
parlamentares do Congresso Nacional ou através de iniciativa de leis,
manifestações e outras tantas foram de participação democrática clássica.

Entretanto, todo o processo de negligência, omissão e tolerância do


Estado brasileiro envolvendo a violência doméstica contra a mulher teve a
resposta dada pelo sistema legal global4.

Da análise proposta por Chris Thornhill em seu texto, as recomendações


apresentadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso
“Maria da Penha”, por intermédio do Relatório n° 54/01, demonstram a
importância do direito global para a reconfiguração da forma básica de
cidadania nacional em equivalentes funcionais.

Em síntese, os papeis que, em tese, deveriam ser exercidos pelos


Poderes Legislativo e Executivo brasileiros para coibir a violência de gênero
contra as mulheres, teve grande parte de seu processo iniciado a partir das
recomendações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E
como pondera Cançado Trindade:

Ainda falta muito para que a linguagem dos direitos humanos alcance
as bases das sociedades nacionais; nestas, há que superar
frequentemente a inércia e a indiferença do próprio meio social, que por
vezes parece não se aperceber de que o destino de cada um de seus
membros está inelutavelmente ligado à sorte de todos5.
4
Destaco que aqui não faço distinções entre o sistema global e o sistema regional de proteção
dos direitos humanos. Quando menciono normas globais, são aquelas normas que não foram
produzidas pelo país originário.
5
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo
como sujeito do direito internacional. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos,
Fortaleza, v. 3, n. 3, p.31-64, 2002.

5
A proteção das mulheres é apenas um dos exemplos de inúmeras
pautas que envolvem direitos das minorias que não são vistas pelos Poderes
Legislativos e Executivos. Ou por serem pautas que divergem da opinião
pública em sua maioria como, o direito dos presidiários, ou por serem
simplesmente invisíveis, por fazerem parte de uma estrutura tão colmatada na
sociedade, que sequer são vistas (como no caso na negligência, omissão e
tolerância do Estado brasileiro decorrente da violência doméstica contra a
mulher).

Curiosamente, a Convenção Interamericana para prevenir, punir e


erradicar a violência contra a mulher foi aprovada em nosso país, em Belém do
Pará, em 9 de junho de 1994, tendo o Brasil efetuado o depósito do
instrumento normativo no ano seguinte e internalizado na ordem jurídica
brasileira em 1º de agosto de 1996, pelo Decreto Presidencial nº 1.973/96.

Ao que parece, a “Convenção de Belém do Pará” não fora suficiente


para a adoção pelo Brasil de uma legislação mais protetiva dos direitos das
mulheres. A mudança mais efetiva e rápida no ordenamento jurídico e na
adoção de políticas púbicas, como a criação de delegacias de polícias
especializadas, somente ocorreu a atuação direta da Sra. Maria da Penha Maia
Fernandes junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que
emprestou sua trágica história de vida e seu nome a um dos diplomas legais
mais popularmente conhecidos em nosso país.

Da data em que a Sra. Maria da Penha sofreu a tentativa de homicídio,


em 29 de maio de 1993, da morosidade da Justiça brasileira em processar e
julgar o caso, se passaram mais de 15 (quinze) anos, acarretando a prescrição
da persecução penal. A atuação do sistema legal global, com as
recomendações dadas através do Relatório n° 54/01 de 4 de abril de 2001,
ainda assim foi o caminho mais curto para o exercício da cidadania moderno
para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

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