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Causos do Seu Zé
Lecy Pereira Sousa
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©Lecy Pereira Sousa
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S
obre Seu Zé, o homem, pouco se sabe. Sua própria Carteira de
Identidade lhe atribui uma idade incerta. Portanto, quando ele
nasceu, não se sabe.
O que sei sobre José Pereira Sousa foi por ouvir dizer o que a mim foi
contado por ele mesmo. Naturalmente, quem nos conta suas
próprias histórias costuma conduzi-las através do seu filtro moral,
ético e social. Inclino-me a pensar que o homem é de fato e de
ficção, o melhor ator de si mesmo. Acresço que precisei
desconsiderar a ligação sanguínea, na minha condição de filho do
Seu Zé, para escrevinhar esses textos.
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Seu Zé encontrou o seu durante um duelo de morte (no qual
ninguém morreu) com outros homens, num vilarejo, em Minas
Gerais. Segundo Seu Zé tal anjo era um jovem belíssimo bem como a
literatura exotérica costuma descrever o arcanjo Gabriel. Nos relatos
do Seu Zé também descobri que ficar invisível não é privilégio do Página | 4
Dom Juan apresentado por Carlos Castaneda. Afora isso, "Causos do
Seu Zé", relatos que beiram as raias do folclórico (no melhor sentido)
foram ouvidos por mim e começaram a ganhar forma há dez ou
quinze anos. Afinal, para que ter certeza absoluta? Várias das
histórias contadas não ganharam “corpo” escrito. Ficaram na
memória das várias pessoas que as ouviram e as interpretaram
como bem puderam.
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vida no campo, mais que nas grandes cidades, é
Corujas".
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Gente, quando alguém ousava se aproximar, o marruá partia de lá
Numa dessas pirraçadas quem pirou foi seu Zé. Ele puxou as rédeas
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Quando conseguiu se aprumar, seu Zé muniu-se de um facão e, com
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ele tinha bebido cachaça. O que todos fizeram foi deixar o touro
foi logo arremessando uma pedra num marruá que á estava bufando
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um lado e caiu rolando numa ribanceira, indo parar dentro de um
marruás. Sua salvação foi o galho de uma árvore frondosa que Página | 8
bom tempo, numa situação que seria cômica se não fosse trágica. O
assustadoramente.
caboclo e disse:
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e outra vez, seu Zé falou da pendenga entre Valdomiro e
do Januário a prazo.
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Para inteirar o terno, Valdomiro disse ao seu credor que não lhe
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ficaria de graça.
Valdomiro.
- Ele saiu, tem tempo e não sei a hora que volta – falou Rosária
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Um pouco frustrado, Januário tirou sua pistola da cintura com um
chão. Página | 11
boca no mundo.
ir embora.
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A meio caminho, eis que Januário, por acaso, avistou um camarada
o Valdomiro. Página | 12
Januário pegou a pistola e CLIC, CLIC. Quem diz que saiu algum tiro?
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açougueiro voou sobre Valdomiro que se desviou, enquanto o outro
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mesma estrada.
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Para Valdomiro, aquele foi o quarto de boi mais doloroso de que se
tem notícia.
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ulália e Mariana, irmãs de Chico Gorgulho, haviam Página | 15
estivesse embaixo.
mulheres para tomar sua faca, mas não aparecia um filho de Deus
Seu Zé, que tocava sua sanfona em paz, teve que parar e usar sua
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Eulália e Mariana começaram a tremer de medo, pois conheciam
Suas irmãs alertaram Seu Zé para não responder nada, caso ele
medo.
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Quando todos esperavam o pior, Chico Gorgulho disse:
- Eu não quero conversa com você, não. – E ferrou no sono, bem no Página | 17
meio da sala.
Dizem que depois deste fato, nunca mais Chico gorgulho subiu no
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o norte de Minas Gerais, entre Almenara, Pedra Azul, Página | 18
seguir.
necessária.
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inútil. O rapaz voltou rápido fazendo mira e atirando encima dos
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O tiro do Aurélio teve endereço certo. Dona Corina, que lavava roupa
Dona Corina sentiu o impacto do tiro, mas pôs a mão sobre o peito e
subia.
Dona Corina chegou gritando mais alto, dizendo que tinha sido
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lavadeira bonachona que cuidava da sua roupa, alegremente, pagou
o pato.
pagar até cem contos de Réis pela volta dos baderneiros. Seu Zé
podia fazer uma ponte para que todos sumissem sem deixar rastro.
Daí o Geraldo se irritou com seu Zé achando que ele tinha parte
lhe matar.
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Um baianinho malandro que ouvira toda a conversa afirmou ser
da mata, foi saindo de fininho e "virou taca" mata adentro. Até hoje
dos cem contos de Réis. O filho da Corina, indignado, cismou que Seu
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deixando claro seu receio de enfrentar aquele violeiro, sanfoneiro,
relaxou um pouco, eis que Seu Zé viu claramente, com uma riqueza
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avançando para cima dele. Instintivamente, Seu Zé apanhou uma
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orriam os anos dos mil Réis e as armas em voga eram a Página | 24
Mariquinha.
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Cortezano, homens e mulherada costumavam varar as madrugadas
no baile.
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Tudo estava dentro dos conformes, até que uma dama atrevida lhe
obrigou a deixar a viola com outro dedilhador para dançar com ela.
aguentou e disparou:
- Ó Mulher! Eu não disse que não te queria ver dançando com outro
homem?
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A Josefina agarrou-se ainda mais a Seu Zé, que já tinha um plano em
- Pois, então, bate – gritou a Josefina para que todo o salão ouvisse.
– Pode bater. Bata numa mulher que eu quero ver. Bata se você
for homem.
Uma vez que o Abelardo empacou e todos olhavam para ele, Seu Zé
deu um "chega pra lá" na Josefina. Ele disse ao violeiro que iria a
saiu de mansinho.
sensata.
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Enquanto seguia para casa, Seu Zé se lembrou de uma situação,
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local onde estava seu marido, pegou sua mão direita, colocou-a
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Quando punha a arma na cintura e fazia menção de sair, ele parou,
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desatino só.
agora.
- Mas, moço – insistiu Seu Zé. – Minha viola novinha está no meio
Seu Zé não quis discutir com o amigo. Foi se deitar. Mesmo na cama,
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Ao raiar o dia, não se aguentando de curiosidade, Seu Zé foi
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couro cabeludo pelo chão afora, dedos, orelhas e sangue para tudo
quanto era canto. Um horror. Até o inofensivo Bento Lelé que estava
justificasse.
mudar de ramo.
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Seu Zé ficou sabendo que atualmente funciona uma igreja onde
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oite alta, sem lua e, para variar, Seu Zé seguia rumo a Página | 31
daquele homem.
Zé.
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Ao dizer isso, Seu Zé fitou bem aquela cara bigoduda, sobrancelhas
bebericando descontraidamente.
Correndo os olhos pelo local, eis que, não muito longe, Seu Zé
avistou o dito cujo da estrada. Sim, era ele perfeitinho. Como chegou
não tinha. Então, a fera pediu qualquer coisa, bebeu, jogou o copo no
chão, disse que não ia pagar por aquela porcaria, virou-se de costas
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Parece mentira, mas o cara reconheceu o cavalo de Seu Zé, em meio
era bom negar garupa a alguém do seu tipo. Ele cortaria as rédeas
Assim que aquela peste levantou seu facão para completar o plano,
perguntou, encarando-lhe:
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Após aquela desculpa, esfarrapadíssima, daquele homem, Seu Zé
Dessa vez não houve surpresas pelo caminho, senão uma rosnadinha
que parecia gente, mas não era bem gente. Algo semelhante aos
Seu cavalo começou a andar num passo lentíssimo. Até parecia que
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Foi impossível calcular o tempo que homem e quadrúpede levaram
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á para os extremos de Minas Gerais com Bahia, o Quelezinho
os pés que a lambança toma conta. Não sei o que fazer para dar
que chamasse uma festa para aquela noite mesmo, só para ver o
que aconteceria.
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Pela madrugada, num canto do salão, insatisfeito com toda aquela
Isso é um desaforo. Tudo está calmo demais. Tem que ter ao menos
- Escuta aqui, cara, quem chamou essa festa pro Quelezinho fui eu
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Nisso, um rapazote afoito disse que aquilo não ia ficar assim,
desembainhou a faca e partiu para cima do Artuzinho para completar
a danação.
seu braço direito, quando este já baixava a fim de cravar a faca nas
emendando em seguida:
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Antes, quando Seu Zé havia puxado a faca, o rapaz jogou a sua para
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quis me matar!
E Seu Zé:
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ara o cidadão urbano comum, as festas têm sempre um Página | 40
e por aí vai.
acordam de bom humor, podem dar uma festa naquele dia. Vale
Gerais era Ouro Preto. Digamos que tudo aconteceu numa noite de
inverno.
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Decerto que Seu Zé, sabe-se lá por que transitava por aquelas
bandas, foi chamado a dedilhar a viola naquela festa, coisa que ele
fazia com muito gosto. Juntou-se ele mais o sanfoneiro Tião Página | 41
modinhas da época.
dava a entender que todo mundo não valia nada para ele.
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A covardia do forasteiro chamou a atenção de algumas pessoas e
Muito bem, o cara continuou lá, sentado, como quem diz: "Vem
tal maneira que o deixou quase em transe. Assim, ele avançou até à
qual um Buda.
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O Julinho disse:
- É você que gosta de sapecar cachorro, não é? Então, tome isso – Página | 43
figurado). Já que todos ali eram bons, tinha de haver alguém bom o
mundo.
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- Ele vai matar coisa nenhuma – bradou Seu Zé, pulando porta
negro. Página | 44
maneira. Ele disse que errado era quem jogava brasas nele que
mesmo:
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Seu Zé o deixou para lá. Daí a pouco, só se via gente saindo em fila
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ontam que nas Minas Gerais, num chapadão entre
calvário.
Pobres dos viajantes que deparavam com aquela casa atraente após
jegue ou cavalo.
corujas, vozes do além, lobos... Peraí, lobos? Ai, Jesus! Aí que o medo
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A vítima(é melhor não fazer rodeios), apeava da mula e gritava:
-Ô, de casa! Peço pousada até o raiar do dia. Fiz viagem puxada.
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-Pois, então, se aprochegue – dizia o Vitalino lambendo os beiços.
quilômetros de distância.
até a vala, cobria tudo bonitinho e voltava para casa. Nisso, todos os
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ouro, pedras preciosas e o que mais fosse alvo da cobiça alheia. Ao
Vitalino seguia bem de vida e fanfarrão, até que certa noite, passava
seu Zé.
abertos a facão, mas não, seu Zé tinha que cutucar a onça com vara
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seu punhal velho e enferrujado para seu Zé que assuntava a tudo de
orelha em pé.
Seu Zé foi dormir, sim, mas o Vitalino, sem querer, agarrou no sono
também.
trás.
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Como seu Zé, o tempo corria a galope, O Vitalino continuava
Diz também o ditado: quem com ferro fere... Foi assim que Vitalino,
morte.
fiado (o tipo que não paga nunca). Cobrar alguma coisa daquela peça
cobriram ele de cacete. Bem que o danado resistiu, mas foi paulada
porre na Terra.
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Após esse episódio, não se ouvia mais falar de homens de bem que
eles tinham virado comida de onça ou tinham ido fazer vida nova
Ocorre que nem tudo costuma ficar encoberto para sempre. As duas
acabaram se casando.
do rapazes.
- Seu Zé, o senhor não imagina o quanto meu sogro foi raça ruim. Eu
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casa no chapadão, roubava até dente de ouro que o morto tivesse e
tudo, mas ficava caladinha e com medo de ter um fim parecido. Diz- Página | 52
perguntas.
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ssa uma daquelas histórias-contos-crônicas antológicas Página | 53
verbalizadas pelo lendário Seu Zé.
A família pensou: e agora? Dia após dia ela seguia dando comida na
boca do Indalécio temendo um falecimento prematuro. Alguns diziam
que ele estava com o demônio (é bom conhecer melhor o significado
dessa palavra) da preguiça, enquanto outros afirmavam que tudo
não passava de safadeza premeditada. Uma boa sova de couro
curtido o resgataria ao frescor da vida campestre. Qual nada.
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O mais interessante foi que o caboclo sequer franziu a testa de
preocupação. Ele recebeu a sentença da família com uma serenidade
de fazer inveja a qualquer monge.
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ontinua Seu Zé com seu infindável arcabouço de histórias Página | 55
sobre a vida de um tempo que longe
vai, antes da existência de muitas gerações.
Daí ele dizia pro pai que com tantos amigos como aqueles ele estaria
sempre bem e ninguém jamais o deixaria na mão quando ele mais
precisasse. Seu pai, um homem vivido, e coloca vivido nisso, não
concordava com aquele ponto de vista típico de um jovem
deslumbrado e iludido ao ponto de achar que a vida era só noitadas
e “amigos” para ajudarem a queimar o dinheiro alheio.
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-Que nada pai, o senhor não sabe como eu sou querido nessa cidade.
Todo mundo aqui me ama e eu sempre estarei numa boa com
amigos assim.
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- Em todos esses anos eu só tenho um amigo de verdade nessa
cidade. Se você acredita tanto nisso eu proponho que faça um teste.
- Que teste?
O jovem rapaz fez exatamente como seu pai lhe ordenou. Ele
perambulou por quase toda a cidade e nem os amigos mais
chegados quiseram saber do seu drama. “Sinto muito” foram as duas
palavras que ele cansou de ouvir seguidas por “não posso fazer nada
por você.”
Pela manhã Quelezinho voltou pra casa, contou tudo ao pai sem
saber que quem o acolheu foi o amigo do seu pai.
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Vendo que seu filho caminhava a passos largos para o precipício,
aquele velho pai chamou um carpinteiro e pediu que ele fizesse um
trabalho curioso numa das traves de madeira que sustentava o
telhado colonial do casarão. O carpinteiro trabalhou por vários dias e Página | 57
deixou a trave oca de maneira que o pai do Quelezinho pode enfiar
ali dinheiro, joias em prata e ouro e pedras preciosas. O rapaz sequer
desconfiou do que aconteceu.
- Filho, vi que de nada adiantou a lição que lhe dei e sei que é muito
difícil um jovem levar a vida que você está levando e quando ficar
sem nada não desejar suicidar-se. Faço-lhe um último pedido: se em
algum momento você chegar a esse ponto peço-lhe que pendure a
corda naquela trave. Será menos vergonhoso para você (nesse ponto
eu me lembrei do código de honra do povo japonês). Ao dizer isso o
velho pai deu o último suspiro e morreu.
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que ficou esparramado no chão. Cismado, Quelezinho abriu os olhos,
juntou tudo e começou a refazer a vida.
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O
envolvimento do homem com Deus e o diabo ganhou um
caráter de almanaque a partir da Idade Média, época em que
qualquer um era suspeito de ter pacto com o demônio até que Página | 59
se provasse o contrário.
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“Prezado amigo, a validade do nosso contrato está chegando ao fim.
Se você quiser uma espécie de bônus terá que enviar alguém no seu
lugar com uma resposta escrita. Atenciosamente, Satã.”
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Rapidamente Coriolano mandou parar a música e perguntou:
- Quem aqui quer Dez Mil Réis para levar essa carta, agora, até à
fazenda do meu compadre?
-Quem quer Vinte Mil Réis para levar essa carta, agora, lá na
fazenda de um compadre meu?
E chegou a época de mais uma festa com convidados que vinham até
das cidades vizinhas. Coriolano se divertia com as mulheres-damas,
gargalhava, tomava vinho de boa safra, além de ser bajulado por
todos. O empregado trouxe mais um envelope, sem remetente,
entregue na varanda do casarão. O nervosismo tomou conta do dono
da festa. Aquelas cobranças estavam passando dos limites.
-Quem quer Trinta Mil Réis para levar uma carta numa fazenda a
duas horas daqui?
- Escuta, eu lhe dou mais 10 Mil Réis para você ficar calado sobre
esse meu segredo.
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ssa primeira década do Século Vinte Um tem se firmado como
a década da maxi-informação. No campo da filosofia sobressai
a teoria da desconstrução de tudo. A obsessão é fazer alguém
saber o que está “pegando” por mais irrelevante que isso seja.
Fosse outra época uma frota de aviões poderia cair mais ao leste do
mundo que nós, os latino-americanos saberíamos do ocorrido como
uma espécie de lenda por ouvir dizer.
Seu Zé, ou o senhor meu pai, conta que quando o dirigível Zeppelin
sobrevoou por Minas Gerais (eu realmente fiquei surpreso ao saber
disso, pois jamais imaginei que o Zeppelin passaria por Minas
Gerais), as pessoas que moravam na roça interpretaram aquela
visão como o fim do mundo. Conta ele – e isso não é lenda, mas fato
verídico não noticiado – que uma senhora que assava biscoitos num
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daqueles fornos artesanais pensando ser o Zeppelin uma espécie de
vingança de Deus enfiou a cabeça no forno e morreu ali mesmo.
Outro senhor pensando que o dia do Juízo Final chegara passou a
mão no facão e saiu cortando toda a sua plantação de bananas antes
da colheita. Outras pessoas perderam o juízo de vez, aliás, segundo Página | 63
Seu Zé o que mais se via era gente perdendo o juízo naqueles
tempos. Qualquer semelhança com o tempo atual não é mera
coincidência. Naturalmente quem estava dentro do dirigível sequer
imaginou ou foi informado que uma grande tragédia aconteceu
naquelas roças de Minas Gerais. Tudo que eles podiam ver do alto
era uma mata exuberante, boizinhos, vaquinhas e cavalinhos
pastando.
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Entre faca e facões
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egundo a Wikipédia, a enciclopédia livre da Internet, o rio da
Prata é o principal afluente do Rio Tijuco, na bacia do
Paranaíba, Minas Gerais. Tem sua nascente formada pelos Rios Página | 64
do Peixe e Piracanjuba, no município de Prata, e deságua no Tejuco
próximo à sua foz com a represa de São Simão (Rio Paranaíba).
Percorre seis municípios do triângulo mineiro: Prata, Campina
Verde, Ituiutaba, Gurinhatã, Santa Vitória e Ipiaçu.
Após essa sessão geográfica mineira passemos aos
fatos.
Que Seu Zé era festeiro, nós já sabemos. Que ele era
convidado para tocar em festas também sabemos. O mais espantoso
era a sua musicalidade de ouvido. Ele tocava instrumentos musicais
como gaita, sanfona, viola e violão sem tomar conhecimento de
qualquer uma das sete notas. Autodidata seria o adjetivo que melhor
lhe caberia. Mas o tempo, ah, o tempo pode transformar uma pessoa
radicalmente.
Pois foi nessas circunstâncias que os fatos aconteceram.
Estava Seu Zé a tocar viola tranquilamente, melhor dizendo,
animadamente quando quatro homens disposto a atrapalharem a
diversão surgiram na festa. Se bem que eles vinham marcando Seu
Zé havia algum tempo devido a sua fama no local. Eles estavam em
São José da Prata, cidade que mudou de nome, vindo a ser a famosa
Sacode.
Foi a conta de eles chegarem e Seu Zé parar de tocar,
agradecer a todos e dizer que precisava se retirar.
Para quê? Essa foi a desculpa que eles precisaram para
iniciarem uma batalha.
- Qual é baiano, tu tá de saída só por que chegamos? Que
covardia é essa?
Seu Zé passou a mão na parte de trás da cabeça e retrucou:
-Será que eu ouvi alguém falar em covardia?
Se bem que ele não estava armado. Quer dizer, ele tinha
uma faca peixeira, enquanto seus adversários estavam munidos de
facões meia espada.
Tomado sabe-se lá por que tipo de coragem, Seu Zé puxou
da sua faca e disse:
- Se é o que querem, então, vamos!
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E saltaram para a escuridão noturna.
O sujeito que lhe provocara na saída foi o primeiro a desferir
seus golpes, enquanto os parceiros ficaram de lado observando. Seu
Zé reagia defendendo-se com a faca virada sobre seu punho. O
barulho metálico era acompanhado por faíscas de fogo que saiam Página | 65
provocadas pelo impacto das lâminas.
O adversário de Seu Zé estava decidido a fatia-lo. E saltavam e
subiam em pedras e se desviavam de golpes. Eles imprimiram um
ritmo de ataque-defesa-ataque assombroso. Em alguns momentos
eles pareciam levantados do chão tal a dinâmica do duelo.
Numa fração de segundos, Seu Zé percebeu que sua faca teve a
ponta decepada devido à fúria dos golpes recebidos. Enquanto
aquele homem rodava o facão no alto, Seu Zé enfiou um pedaço de
faca no pescoço dele e pensou: “Esse está morto”. Surpreso com
aquele golpe, o homem do facão cessou os ataques, talvez achando
que tinha mesmo sido ferido de morte. Nisso, dois dos quatro
comparsas desistiram do combate achando que a morte tinha
entrado em ação por aquelas bandas.
Enquanto o primeiro homem dava uma trégua, o segundo partiu
para cima de Seu Zé disposto a acabar de vez com aquela história.
Só que dessa vez Seu Zé desferiu-lhe vários golpes de faca quebrada
fazendo-lhe desistir dos ataques.
Meio anestesiados, os dois caboclos foram se retirando daquele
cenário tomado pelo silêncio da madrugada.
Seu Zé encostou-se a uma pedra e esperou a manhã chegar.
Ao raiar o dia, sentindo seu braço direito dormente de tanto
sustentar golpes mortais, Seu Zé se dirigiu às margens do rio da
Prata e ali arremessou sua faca quebrada nas águas.
Diz a lenda que após aquele combate Seu Zé parou de usar
qualquer arma de fogo ou ferro frio.
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O autor por si mesmo Página | 67
obrigação de competir.
Contatos:
lecysousa@gmail.com
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