Você está na página 1de 24

www.alexandrepilati.

com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO


EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 1

“MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO EM


“CLÓ” DE LIMA BARRETO

O pequeno conto “Cló”, de Lima Barreto, é uma das


peças literárias mais bem acabadas do início do século XX
brasileiro, que já exalava, esparsamente, manifestações de
antecipação de tendências modernistas. O pano de fundo da
narrativa é o carnaval carioca dessa época e sua essência
de lascívia, desordem e sensualidade. Lima Barreto
apresenta o relato de uma relação perversa, na qual um
deputado federal da República Brasileira, o Dr. André,
compra o direito de deliciar-se com a visão de Cló, a
sensual filha do Sr. Maximiliano, professor de música
erudita com dificuldades financeiras. O narrador do conto
vale-se de uma onisciência representativa da escolha de um
posicionamento de classe para falar. A ambigüidade da
posição do narrador é tanta que, muitas vezes, confunde-se
a voz do narrador com a voz do personagem Maximiliano. Esse
recurso literário, a um só tempo, realça o caráter cínico e
calculista do personagem e evidencia a dissimulação dos
parasitas e arrivistas da elite brasileira do início do
século XX.
O objetivo deste trabalho é reconstruir o conto com
uma leitura de viés histórico, a fim de demonstrar,
seguindo a pista deixada por Arnoni Prado (1989, p.3) como
“a vida, e nesta a opressão e o fracasso, se converte em
literatura”. Para isso, parto do pressuposto de que Lima
Barreto cria, em “Cló” uma narrativa que tem um ritmo
crescente, que culmina na representação de uma cena
perversa de sedução e objetificação do ser humano. Essa
cena final traz violentamente à tona as contradições da
modernização brasileira.

1
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 2

O desfecho do conto apresenta a dança que Cló realiza


para o Deputado André, o qual lhe compra os favores
seviciosos. Percebem-se, na apresentação da moça fantasiada
de preta-mina, os contrastes entre a forma republicana
liberal e a cultura aristocrático-escravista do Brasil
Colônia. Ambos os tempos convivem na sala de visitas do
pequeno-burguês Maximiliano.
Essa convivência, literariamente simbolizada pela
sensual apresentação de Cló, aponta, pois, para uma
coexistência do que há de pior em um e outro sistema, e
também para a demonstração de que as promessas de
modernização da República emergente não se concretizaram ao
ponto de superar os dilemas do modo de produção escravista.
Na sala de Maximiliano, os leitores conhecem a lógica da
modernização periférica: avanço sem superação.
Esta leitura do conto parece especialmente relevante,
tendo em vista o caráter empenhado da escrita de Lima
Barreto. Segundo ele mesmo, a atividade de intelectual ou
escritor tinha como principal preocupação elucidar o que
havia de oculto na sociedade e que só o pensamento rigoroso
pode revelar.Em O crítico e a crise, Arnoni Prado acentua
um aspecto desse empenho característico da literatura de
Lima Barreto, com a preocupação em evidenciar a trajetória
irremediável para o fracasso em que se vêem inseridos os
protagonistas de suas narrativas. Essa trajetória de queda
está sempre inserida dentro de um plano histórico e social
bem delineado pelo narrador. Defendo que, em “Cló”, o
protagonista do fracasso não são os personagens do conto,
mas a estrutura sócio-histórica que engendra a perversão
encenada no desfecho do texto. Portanto, sob essa
perspectiva, o protagonista do conto pode ser considerado o
progresso nacional, representado por sua etapa de avanço
então mais recente: a República brasileira.

2
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 3

A esse respeito, são elucidadoras as palavras de


Arnoni Prado (1989, p.14) que evidenciam um quadro
ideológico que sustentava:

“velhas estruturas nos diferentes setores da


sociedade que mudava. As transformações vitais que
o país experimentou no plano econômico-social
(abolição da escravatura, transformação do regime
de trabalho, desenvolvimento de um novo espírito de
negócios, surtos de imigração) só se tornam
possíveis porque patrocinadas pelo mesmo espírito
conservador que após a derrocada do Império,
harmoniza interesses das classes dominantes e
assume a direção das reformas sob a tutela dos
intelectuais comprometidos com o projeto reformista
voltado para a supervalorização das elites e seus
modelos de linguagem”

Em “Cló” percebe-se tudo isso. Na posição do narrador


e nos fatos narrados, vê-se a convivência patológica do
pior do novo (República) com o pior do velho (escravidão)
para gerar um texto em que a negatividade social é sutil,
mas inexorável.
Para perceber essa sutileza, proponho uma leitura que
acompanhará a seqüência narrativa do conto, a fim de que
fique realçada a característica crescente de tensão e de
exposição das fraturas históricas do projeto modernizador
republicano.

O carnaval e a (des)ordem social

A apresentação da narrativa estabelece o centro de


tensões que lhe servirá de espinha dorsal: as contradições
entre a ordem (oficial) e a desordem (carnaval). O conto se
inicia com o personagem Maximiliano sentado à mesa do bar a
que costumava ir. Não obstante a quebra do cotidiano
promovida pela festa popular, o velho Maximiliano mantém a
rotina de ali se sentar e observar o movimento. Como afirma

3
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 4

o narrador o personagem mantém-se “obediente ao seu velho


hábito” (p.50)1. Ainda que estivessem dissolvidas as
“cerimônias de outros dias”(idem), o personagem Maximiliano
“não se sentia deslocado” (idem). Estabelece-se então,
desde o início, um lugar socialmente estranho para o
personagem central, uma vez que ele se encontra entre a
ordem do ritual cotidiano e a desordem da festa
carnavalesca. Sutilmente, entretanto, o narrador revela que
há algo de adaptação à desordem no personagem, uma vez que
ele não está incomodado com o carnaval e seu “frêmito de
vida e luxúria”.
A ligação sutil de Maximiliano com a desordem revela-
se logo a seguir quando o narrador apresenta a fé do
personagem no “jacaré”. A forma como Maximiliano mantém a
família é, portanto, no mínimo, pouco convencional. As
aulas de música (trabalho liberal legal) já não dão ao
personagem o ganho que a ostentação de que a família
necessita demanda. O personagem precisa entregar-se ao
“jogo do bicho”, uma forma de aquisição do capital pela
especulação e não pelo trabalho.
Sérgio Buarque de Holanda já havia notado certo pendor
de Lima Barreto para a denúncia dessa impossibilidade de
prosperar pelo talento justo quando anotou:

“Assim como a penúria resulta quase sempre de um


acidente da sorte, a riqueza e o poder também têm
e, ainda com mais freqüência, causas da mesma
natureza(...) O dinheiro e o prestígio andam sempre
associados a alguma insondável burla, de modo que
são os mais desprezíveis, os menos dominados por
escrúpulos de ordem moral, aqueles que de fato
sobrevivem e vencem.” (1978, p.140-141)

1
Foi utilizada como base para esta análise a edição de Histórias e
sonhos elaborada pela editora Ática, em 1998. Doravante, todas as
indicações de página referem-se a essa edição.

4
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 5

Diante disso, propõe-se, entre outras, a seguinte


questão: o trabalho liberal em tais condições históricas é
possível? Mas, se é possível, é possível da mesma forma
para todos? Entre a ordem e a desordem, resta ao pequeno
burguês brasileiro que tipo de ocupação2?
Esse parece ser um questionamento explorado à farta
nos contos Lima Barreto, como afirma Sérgio Buarque de
Holanda. Segundo o estudioso, Lima teria aproveitado muito
bem a natureza de economia e condensação dos contos para
trabalhar isso. No caso de “Cló”, a especulação, ou, como
se verá, a exploração sexual do corpo da própria filha
representa esse desvio de conduta, tanto quanto a aposta no
bicho.
Percebe-se essa intenção de negociata quando o
narrador expõe, desde logo, o caráter espetacular da beleza
da filha, em relação direta com a necessidade do pai de
arrebanhar dinheiro:

“...como havia de pagar o vestido de que a filha


andava precisada, para se mostrar sábado próximo,
na rua do Ouvidor, em toda plenitude de sua beleza,
feita (e ele não sabia como) da rija carnadura de
Itália e de uma forte e exótica exalação
sexual...Como havia de dar-lhe o vestido?” (p.51)

O trecho, estruturado em discurso indireto livre,


apresenta o círculo vicioso que Maximiliano estabeleceu em
sua família. Ele precisa do dinheiro para enfeitar a filha
para exibi-la e, quem sabe, adquirir mais dinheiro.
Protagonista desse ciclo é a sedutora Cló, que, em si

2
Fica clara aqui a intenção de retomar noutros termos a interpretação
de A. Candido das Memórias de um sargento de milícias. Sobre o livro
de M. Antonio de Almeida, Candido afirma que “o sistema de relações
dos personagens, que mostra: (1) a construção, na sociedade descrita
pelo livro, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca
de todos os lados; (2) a sua correspondência profunda, muito mais que
documentária, a certos aspectos assumidos pela relação entre a ordem e
a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX.”
(p. 70)

5
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 6

mesma, carrega a contradição e a marca da perversão, fruto


de uma fusão entre a beleza européia e a sensualidade
tropical.
O recurso do discurso indireto livre contribui,
também, muitas vezes, para estabelecer a ambigüidade e a
contradição no nível estrutural mais evidente do texto.
Várias vezes o leitor confunde-se entre vozes que assomam a
superfície textual. Quem estaria julgando, por exemplo, a
multidão que se apresenta no carnaval, como no trecho a
seguir?

“...homens e mulheres cheios de vícios e aleijões


morais (...) nossa vida total, geral, seria
possível sem os vícios que a estimulavam, embora
degradem também” (p.51)

Seja o que for, o emissor de tal enunciado tem


consciência de que se vive, no Rio de Janeiro, sob uma
atmosfera contaminada pela contradição. O elemento sensual
é, a um tempo, câncer e motor da sociedade. No mesmo
travejamento contraditório, podemos perceber o discurso
enunciado. Quem condena os aleijões dos outros é o mesmo
que vive e gera riqueza com seus próprios aleijões: o jogo
e o aliciamento da filha. Esse é o discurso típico da elite
ou da pequena burguesia brasileira, em que se detecta uma
crítica social bastante bem elaborada e aguçada, mas que se
coloca de normalmente de fora dos problemas analisados.
Mas o narrador passará, como parte de seu projeto de
posicionamento ambíguo ou volúvel3, a revelar o avesso dos
aleijões morais. Passará a mostrar, assim, que a luxúria, a
perversão e a desordem não se encontram apenas no carnaval
e nas multidões que descem dos subúrbios, mas também nas
3
Sobre o narrador volúvel consultar Schwarz, Roberto. Um mestre na
periferia do capitalismo. Conforme o autor a volubilidade “é um pendor
permanente de todos; designaria, neste caso, uma insuficiência
metafísica do ser humano (...) a volubilidade é Brás Cubas? é todo o
mundo? é o Brasil?” (p.59)

6
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 7

camadas mais “respeitáveis” da população. Uma das


personagens que encarna esse projeto desmascarador do
narrador é a Eponina “a mais linda mulher pública da
cidade” cujo olhar era “cheio de atrações, de promessas e
de volúpia” (p.51). Assim também a Mme. Rego da Silva, seu
marido e Dulce, a amante do casal, aparecem na narrativa
como a demonstrar, sutilmente, a revelação de um
comportamento sexual não convencional (desordem) sob as
aparências da boa conduta social (ordem).
Lima Barreto conduz tão bem a narrativa que nela se
estabelece uma lógica especial de referências. Frases,
acontecimentos, cenas e pessoas, levam o pensamento do
personagem para a lembrança de algo importante para o seu
projeto de sobrevivência. Dentro dessa lógica, o azar de
não ter acertado o “jacaré” cria a imagem da filha em sua
mente, luxuriosa no carnaval, a exibir-se para possíveis
compradores de sua beleza. Da mesma maneira, a visão da
Eponina, prostituta de luxo, lembra Maximiliano da filha
Cló:

“Pensou, então, em sua filha, Clódia – a Cló, em


família (...) Lembrou-se com casta admiração de sua
carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças
lúbricas, do seu culto à toilette e ao perfume, do
seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores
fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu
coroada de hera, cobrindo mal a sua magnífica
nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso
erguido, dançando, religiosamente bêbada, cheia de
fúria sagrada de bacante: ‘Evoé, Baco’”. (p.52)

Tadeu Chiarelli, na apresentação de Histórias e


sonhos4, sustenta que Cló é desejada pelo pai. Proponho
aqui uma leitura diferente. O pai não deseja Cló como

4
O apresentador afirma que “Maximiliano deseja a filha que deseja
André que a deseja (...) em Cló percebe apenas a fêmea cheia de
volúpia – fato que o surpreende e atrai.” (Lima Barreto: 1998, p.7-8)

7
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 8

mulher. Deseja-a como mulher objetificada, fetiche


apresentado para os outros, que lhe sustentarão a
existência e os luxos. Não se trata imaginação incestuosa,
mas, creio, trata-se de uma imaginação “empresarial”. Por
meio dela, o professor de música faz o possível para tornar
a filha uma mercadoria.
Se isso for verdadeiro, o leitor está diante de uma
perversão maior do que a insinuada por Chiarelli, porque
não está individualizada e proposta em termos de
representação do contexto social e histórico brasileiro da
época. A perversão está na lógica capitalista estabelecida
num país marcado pela escravidão e pela impossibilidade da
consolidação completa de uma classe burguesa liberal. No
desvio promovido por essa inadequação histórica, está a
perversão não apenas de um homem individual, mas de um
projeto de país excludente. A pergunta, pois, ecoa: onde
está a verdadeira desordem? No carnaval das multidões do
subúrbio, ou no modo de sobrevivência da pequena burguesia,
em suas relações espúrias com a elite dirigente.

Máscara e negociata

A observação do carnaval e as elocubrações do Sr.


Maximiliano (as quais apenas reforçam o caráter de cálculo
do procedimento do protagonista no conto) são interrompidas
pela chegada do ilustre deputado Doutor André. O narrador
descreve-o, pelos olhos do personagem principal, assim:

“Aproximava-se o Doutor André, com seu rosto de


ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na
fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-
nez reluzia fortemente” (p.52)

O leitor tem a impressão de estar diante da descrição


de uma máscara e não de uma face humana. Desde a cor até a

8
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 9

estrutura do rosto tudo parece ser artificial. O deputado,


não bastasse a artificialidade da fisionomia, também é
descrito como alguém estulto, incapaz de “associar idéias”,
mas, não obstante isso, merecedor do título de bacharel e
ocupante de uma vaga na Câmara Federal. É ácido o
comentário do narrador sobre isso. E, mais uma vez, ele se
confunde com a voz de Maximiliano:

“Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não


na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos
grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de
íris que despejam frechas ervadas com curaro”
(p.52)

A inadequação do deputado ao cargo é realçada pela


sugestão de que sua fisionomia é a de um selvagem. Essa
característica é o ponto nevrálgico que será explorado pelo
Sr. Maximiliano, que saberá muito bem tirar proveito da
parca habilidade do deputado com o jogo urbano calculista.
Dr. André é um deputado rico, vindo de uma “mansa feitoria
do Norte”, a qual defendia, segundo o narrador, nas “salas
burguesas”. O deputado é, pois, um aristocrata rural, que
defende os interesses dessa classe na urbanizada, liberal e
moderna capital da República. Apesar de casado, o Dr. André
deseja ardentemente a filha de Maximiliano, o qual sabe
dosar, com incrível talento de negociante, as aparições da
filha. Assumindo a dissimulação do personagem, o narrador
afirma a respeito da entrega da filha ao Dr. André:

“...não os aprovava nem os reprovava. Limitava-se a


pequenas reprimendas sem convicção, para que o
casamento não fosse efetuado sem a bênção do
sacerdote do Sol ou de outro qualquer.
E se isto fazia era para não precipitar as
cousas; ele gostava dos desdobramentos naturais e
encadeados, das passagens suaves, das inflexões
doces, e detestava os saltos bruscos de um estado
para outro.” (p.53)

9
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 10

O que desejava, verdadeiramente, o Sr. Maximiliano era


que a filha não fosse entregue senão sob um contrato
seguro, fosse o da fajuta religião do Sol, ou qualquer
outra. Por outro lado, era bom não fazer o desejo do Dr.
André se concretizar antes do tempo, pois a fonte de
rendimentos poderia perder o encanto, consumado o ato
carnal entre ele e Cló. Não precipitar as coisas, portanto,
é cálculo de comerciante, que deseja atingir o maior preço
pela mercadoria que põe a leilão. Carnal ou matrimonial, a
união não se consuma, ao menos temporariamente, para que
não se perca a chance de arrebanhar bons lances dados pelo
Deputado, como o que se verá proposto ao fim da conversa
entre os dois.
O leitor atento descobrirá que toda essa negociação
entre Maximiliano e André se dá sob o efeito do álcool.
Maximiliano toma, ao longo de sua permanência no bar, sete
garrafas de cerveja. Chegando em casa, a bebida é servida
com fartura durante o jantar. Também o Dr. André toma três
doses de vinho madeira, junto com o professor. Mais uma vez
se percebe que a desordem não se encontra necessariamente
na fantasia do carnaval. Como prova o exagerado consumo de
bebida no conto, a desordem está nas frinchas da negociata
da elite que decide o destino das pessoas, e,
especificamente nesta narrativa, de Cló. A bebida aqui não
é festa; é vício, destruidor da conduta ordenada.
Assim, já sob o efeito da quinta cerveja e do primeiro
madeira, os dois senhores respeitáveis começam a negociação
da mercadoria Cló. A primeira atitude do pai é provocar o
desejo e a fantasia do deputado, falando sobre o disfarce
da filha numa festa de carnaval que aconteceria no mesmo
dia. Afirma ele que Cló irá ao baile de preta-mina. A isso
o deputado meio desconcertado retruca:

10
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 11

“ - Deve-lhe ficar muito bem...Não posso ir;


entretanto, irei à sua casa para ver a sua senhora
e a sua filha fantasiadas.” (p.53)

A partir desse ponto, o diálogo entre os dois vai


tomar a forma do discurso da negociata, em que ambos sabem
que estão praticando uma ação escusa, mas ambos fingem que
não sabem de que estão falando. A negociação atingirá seu
ápice no momento em que o deputado dará ao Sr. Maximiliano
algum dinheiro para que este “esqueça” a sua desilusão no
bicho. Ambos, apesar de fingirem que isso nem passa pelas
sua intenções, estão, na verdade, negociando o ingresso do
Dr. André na casa de Maximiliano para ver-lhe a tão
desejada filha vestida de “preta-mina”. A frase que dá
início a essa negociata, a qual aparece como se fosse uma
senha para o início do negócio é dita por Maximiliano: “-
Ora, Doutor, eu ando sempre com a máscara no rosto.” (p.
54)
Ainda que o chiste seja feito, o deputado não alcança
toda a compreensão dele e logo desconversa. Entretanto, o
leitor tem a seus olhos a retirada da máscara do professor
e a revelação de que seu discurso e sua conduta social são
pautados pelo cinismo. Mas esse não é um caso individual. A
atitude do professor faz lembrar novamente o estudo já
citado de Arnoni Prado. Falando sobre o Diário afirma
Arnoni (1989, p.4): “montagens e retratos-flagrantes como
que anunciam um logos tragicômico de uma imensa farsa pré-
macunaímica em cujos labirintos os homens vão-se enredando,
à proporção que as saídas escasseiam.” Não é o lente
Maximiliano que está doente, é a ordem social farsante que
se encontra infectada pela perversão e pela dissimulação.
A isso se segue uma espécie de ritual do comércio.
Maximiliano passa a elogiar o Deputado: “não imagina como

11
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 12

todos [lá em casa] falam do senhor.”, “eu nunca bebi um


Chambertin como esse que o doutor André nos mandou”, “o meu
filho o Fred sabe até um de seus discursos de cor”, “o
senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma
magnífica”. Tanto é elogiado que o doutor começa abrir a
guarda, aparentemente de forma não inocentemente, mas
calculada. O narrador alerta que, nesse momento, o rosto do
ídolo “abriu-se um pouco”. E logo a seguir André alerta a
Maximiliano:

“- O senhor sabe perfeitamente que espécie de força


me prende aos seus...Um sentimento acima de mim,
uma solicitação, alguma cousa a mais que os
senhores puseram em minha vida” (p.55)

Esse algo mais que o Deputado não consegue controlar é


seu desejo pela lasciva Cló, o objeto da negociata. A deixa
dada pelo deputado, o sentimento acima de suas forças, leva
Maximiliano a falar da dificuldade financeira, não sem
fazer propaganda da mercadoria que provoca o desejo de
André:

“Ganha-se uma miséria...Um professor com oitocentos


mil-réis o que é? (...) uma miséria. Ainda agora,
com tantas dificuldades, é que Cló deu em tomar
banhos de leite.” (p.55)

Os banhos de leite desconcertam e provocam ainda mais


o deputado, que, comovido ademais pelo insucesso de
Maximiliano “nos bichos” vai tirando lentamente a nota da
carteira, que lhe pagará o ingresso de logo mais para ver a
preta-mina banhada em leite. A esse gesto segue-se uma
recusa fingida de Maximiliano. André, por sua vez, também
finge: não entende a recusa, retira a nota e deixa-a sobre
a mesa. O valor era tão alto que, segundo o narrador, “fez-
lhe esquecer em muito a desdita no jacaré” (idem). Logo

12
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 13

após isso André vai embora. Estava feito o negócio. Cló


estava vendida. Desfaz-se a cena e Maximiliano inicia o
percurso de volta para casa.

Entre o popular e o requinte: a elaboração do produto Cló

A terceira parte do conto inicia-se com o fim da


negociata entre André e Maximiliano. Este sairá pelas ruas,
a caminho de casa, observando os festejos de carnaval. Mais
uma vez, o narrador adentrará a consciência do personagem e
fará sua voz confundir-se com a dele, gerando um discurso
ambíguo sobre a luxuriosa festa popular. Esse discurso
caracteriza-se pela condenação à festa e o elogio
nostálgico à cultura erudita européia ou europeizada.
Observando os festejos, afirma o narrador:

“Homens e mulheres de todas as cores – os alicerces


do país – vestidos de meia, canitares e enduapes de
penas multicores, fingindo índios, dançavam na
frente, ao som de uma zabumbada africana, tangida
com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos,
uns, estridentes, outros.” (p.56)

Maximiliano condena a cultura popular carnavalesca


descrevendo-a como selvagem. O lócus de enunciação do
narrador é o da classe média baixa ou da pequena burguesia
arrivista. A desordem que ele percebe tão facilmente na
sociedade é dissimulada no seu próprio lar. Para desprezar
a manifestação, ironicamente, ele chama a atenção para o
fato de aqueles que brincam o carnaval são os que fazem o
país. Mas o carnaval não é o país, é um momento dele; um
momento de inversão da lógica cotidiana.
Poder-se-ia lembrar, diante da citação do carnaval, do
conceito bakhtiniano de carnavalização. Segundo
BAKHTIN(1987), era nos carnavais medievais que se exprimia

13
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 14

toda visão oposta à idéia de perfeição ligada à cosmovisão


religiosa medieval. A seriedade na Idade Média era
associada ao oficial, ao autoritário, às proibições, ou
seja, havia nessa seriedade um elemento de intimidação.
Como o riso, ao contrário, não impõe nenhuma interdição,
era através do riso carnavalesco que o homem medieval
sentia a vitória sobre o medo moral que oprimia a sua
consciência.
Ao analisar a obra de Rabelais (Gargantua e
Pantagruel), observava Bakhtin que a licença sexual
verbalizada "destrói a hierarquia dos valores estabelecidos
por intermédio da criação de novas vizinhanças entre as
palavras, as coisas e os fenômenos. Ela reestrutura a
perspectiva de mundo [...]" (BAKHTIN,1987, p.305).
Não há, pois, por que os “homens vestidos de meia”
pela lógica cotidiana. Mas o argumento cínico é inserido
sutilmente pelo narrador, e, assim, expõe-se, pelo avesso,
a lógica falaciosa do discurso da manutenção de poder pela
elite.
O professor de piano demonstra, nesse momento, sua
vontade em “corrigir”, “completar” as cantigas
carnavalescas, segundo os preceitos da arte clássica da
elite. Lima Barreto usa então o confronto entre a arte
clássica européia, erudita, e a cultura popular como forma
de desmascarar a podridão que se encontra sob a aparente
ordem encontrada nas formas clássicas.
A desordem do carnaval, com suas “bizarras e bárbaras
cantorias” aparece ao leitor, na estrutura geral do conto,
como positiva, porque é fruto de uma expressão espontânea
dos sentimentos íntimos da gente do povo. Segundo o
narrador, os populares “encontravam naquele vozerio bárbaro
e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de
raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de

14
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 15

felicidade” (p.56). Nessa expressão da cultura genuinamente


popular não há cálculo, cinismo ou máscara. De modo bem
diferente, a cultura erudita defendida pelo professor está
associada a tudo isso. Pois “ele queria que aquela gente
entoasse um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome,
mas que tivesse regra e beleza” (p.56). O discurso do
professor, nesse momento, é o discurso da expansão da
colonização, eivado de eurocentrismo. O que tem regra e
beleza é o que é feito segundo o padrão de arte europeu. No
desejo do professor está o desejo de subsumir a expressão
popular em favor de um modelo de beleza metropolitano.
Ficasse aí a crítica, Lima Barreto já teria feito o
bastante, mas essa exposição e defesa da cultura popular é
feita para alertar algo que julgo mais importante e
profundo ainda. A partir dessa leitura, podemos inferir uma
torção de grau mais deteriorado, uma vez que, nas condições
histórico-sociais da periferia do capitalismo, além de o
progresso coexistir com o arcaico e dele tirar proveito
perverso, e, portanto, não se realizar como horizonte
histórico na progressão rural-urbano, o próprio escritor
não se pode desfazer dos meios (literários e
socioistóricos).

A própria esfera de autonomia do escritor vê-se,


assim, particularmente mutilada, por ser intrinsecamente
afetada pelo atraso diferenciado. Adorno/Horkeimer dirão
que:

“A arte leve acompanhou a arte autônoma como uma


sombra. Ela é a má consciência social da arte
séria. O que esta – em virtude de seus pressupostos
sociais – perdeu em termos de verdade confere
àquela a aparência de um direito objetivo. Essa
divisão é ela própria a verdade: ela exprime pelo
menos a negatividade da cultura formada pela adição
das duas esferas. A pior maneira de reconciliar

15
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 16

essa antítese é absorver a arte leve na arte séria,


ou vice-versa.” (Adorno-Horkheimer, 1985, p. 127)

Esse fato é, basicamente, referente à lógica fulcral


da indústria cultural. A indústria cultural, que surgiria,
e seria teorizada, na verdade, pelo menos, 40 anos depois
do conto, vale-se da apreensão, pela elite mercantil, dos
valores culturais populares a fim de torná-los bens
culturais de consumo massivo. Adorno dirá que o produto da
indústria cultural é fruto de uma calculada fusão entre o
popular e o erudito, o que cria um produto híbrido de larga
aceitação. Quem pode produzir algo assim é alguém como
Maximiliano, que analisa o carnaval, conhece a música
erudita e utiliza uma bem combinada fusão de ambos para
vender a filha ao doutor André.
Acompanhando o personagem, o leitor chega à casa de
Maximiliano. E, ainda no jardim, este ouve a mulher
cantando, num híbrido que lembra muito a definição de
produto híbrido da indústria cultural:

“Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo


seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito
docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que
os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que
paixão punha naquela música inferior!” (p. 56)

A música popular, o tango, é, portanto, tornada


iguaria na sala pequeno-burguesa, pelo toque de erudição
que a mulher lhe dá com o toque das notas aveludado
(velouté) e com sotaque francês. A música é inferior, mas o
toque de requinte que lhe dá a mulher, ao mesmo tempo,
torna-a palatável ao gosto clássico e neutraliza a força de
resistência e combate que ela possuiria como expressão
popular. Assim como a possui o carnaval, que Maximiliano
observara a pouco.

16
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 17

Com boa dose de cálculo e satisfação de comerciante,


Maximiliano conclui que aquele ritmo especial “também
perturbava sua mulher e abrasava sua filha” (p.57). Não
sabia ao certo como aquele ritmo teria invadido a alma das
mulheres, mas percebia ser esse um fenômeno social: “...viu
em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e
influências – trocas de idéias e sentimentos, de
influências e paixões, de gostos e inclinações.” (idem)
Essa matéria híbrida da sociedade brasileira é tomada por
Maximiliano para tornar a filha um objeto de sedução, um
fetiche, que será utilizado para provocar os desejos de
André e dele extorquir algum dinheiro.

Cló: mercadoria e fetiche

A quarta parte do conto é a etapa final de


desvelamento das verdadeiras intenções de Maximiliano com
Cló e também o desmascaramento de um desacerto histórico no
que se refere ao modo como as pessoas se relacionam entre
si e geram riquezas. Cló torna-se mercadoria, desumaniza-se
para virar um objeto sedutor e quase irreal.
Aqui será necessário apresentar conceitos da teoria
marxista do fetiche para melhor compreender o que a
exibição de Cló representa no contexto das relações sociais
documentadas por Lima Barreto. Marx (1980) recupera os
conceitos de alienação e objetivação de Hegel, na
Fenomenologia do Espírito. Para Hegel, o destino do sujeito
é o espírito absoluto, que é a natureza, ou seja, o objeto.
O sujeito, pois, segundo ele, no caminho para a
objetificação aliena-se. Assim, para Hegel, a História é a
história da desalienação, é a luta do sujeito contra a
objetificação.

17
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 18

O conceito filosófico de alienação é tomado por Marx,


que lhe aproveita o potencial, numa perspectiva social.
Nessa transposição para o plano histórico-materialista,
alienação e objetificação passam a ser conceitos distintos.
Alienação, em Marx, passa a ser a submissão do homem pelo
homem. O homem aliena-se de tudo em favor do lucro de outro
homem. Assim, o sujeito está alienado daquilo que ele
produz, que são os objetos materiais. A reificação do
objeto na cultura capitalista é, portanto, a forma mais
brutal de alienação. Dentro dessa lógica, tudo, inclusive o
trabalhador, se transforma em mercadoria.
Lima Barreto, em “Cló”, apresenta, portanto, por meio
da venda da personagem que dá título ao conto, essa lógica
da objetificação. Cló está alienada de sua humanidade para
se tornar um objeto reificado que provoca a perversão tanto
do pai quanto do Dr. André. Cló, no momento da dança para o
doutor André, é pura mercadoria. Todavia, deve-se atentar
para o fato de que Marx trabalhou tais conceitos num
ambiente em que os meios produtivos eram possíveis. Ainda
que o operário estivesse alienado do produto que seu
trabalho gerou, havia o lastro da classe proletária. O que
percebemos na objetificação apresentada em Cló é que, no
bojo da modernização perversa e periférica, não há a classe
do proletariado: há o povo e os arrivistas pequeno-
burgueses, como Maximiliano e sua família. Essa brecha cria
um descompasso que aumenta o poder desumanizador da lógica
da mercadoria.
Voltemos ao conto para acompanhar cena tão
significativa: Maximiliano chega em casa e encontra os
filhos finalizando a dança cuja música foi escutada pelo
professor no jardim. O leitor atento perceberá que o
tratamento conferido pelo autor ao professor de música
modificou-se. Ele que era “o professor”, “o lente”, na

18
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 19

primeira parte do conto, nesse momento é tratado apenas por


“o velho”. Como a denunciar a premeditação do
acontecimento, a primeira pergunta feita por Cló ao pai que
adentra a sala é: “André não vem?” (p.57). Ainda
dissimulando uma atitude de pai zeloso Maximiliano afirma
que ele virá e em seguida repreende-a ressaltando que a
moça precisa ter compostura, pois o Dr. André é casado.
Todos entram com explicações dizendo que nada havia de mais
na relação entre Cló e André. Usando justificativas falsas
e cínicas, na verdade o que fazem é justificar o sustendo
do luxo da casa pela exploração do desejo de Dr. André.
Dali passam a considerações sobre o carnaval e sobre o
quanto os blocos pretendiam investir em seus festejos. Fred
afirma que um dos blocos gastaria mais de sessenta contos
para por na rua uma coisa “nunca vista”. A colocação expõe
sutilmente a lógica do comércio que está por trás da festa,
que neste caso não é mais popular e sim feita para os
“burgueses e burguesas da cidade” (57). Estabelece-se a
evidenciação da lógica do espetáculo mercantil, por trás da
festa popular. Mais uma vez, o elemento popular cumpre seu
destino de tornar-se palatável pela interferência do gosto
burguês.
Pensando na maravilha do espetáculo descrita pelo
irmão, Cló imagina-se no meio da festa, tornada totalmente
objeto, fetiche para o consumo espetacular burguês. Assim
nos apresenta seu delírio o narrador:

“...viu-se também, no alto de um dos carros,


iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com
palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças,
pelas burguesas e burgueses da cidade. Era seu
triunfo, sua meta de vida; era a proliferação
imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios,
em idéias, em violentos desejos naquelas almas
pequenas, sujeitas ao império da convenção, da
regra e da moral” (p.58)

19
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 20

No trecho, belissimamente construído por Lima Barreto,


tem-se a revelação não do caráter de objetificação por que
passa Cló. Em seu sonho, ela aparece quase imaterial,
iluminada e sedutora, como uma mercadoria na vitrine. Seu
maior objetivo é explorar as perversões da ordem social.
Perversões de pessoas que vivem sob o império da máscara
das aparências. Esse delírio é finalizado por um copo de
cerveja, que Cló bebe de uma vez. Sutilmente, outra vez, o
narrador sublinha o caráter a normal que assume a conduta
das personagens.
Chama a atenção do leitor o fato de que André chega à
casa de Maximiliano logo após o jantar. Tudo, portanto,
está bem calculado. À entrada do Deputado, todos estão
sentados. Para culminar a tensão objetificante que rege a
seqüência narrativa do conto, Dr. André traz jóias de
presente para a mãe (ironicamente nomeada D. Isabel) e para
a Cló. Aos agradecimentos das senhoras, André responde que
elas são falsas, que nada valem. Mas, muito provavelmente,
as jóias são verdadeiras, o que são falsas são as intenções
de André com elas. Não se trata apenas de um mimo gentil
para as senhoras. Trata-se, isso sim, de uma outra parcela
da compra de Cló, e também de objeto final para compor a
fantasia que Cló vestirá para provocar o desejo do
Deputado. A entrega do enfeite é a senha para que a
senhorita saia da sala e vá aprontar-se. Nesse momento, o
desejo de André chega ao limite e quase não consegue conter
sua inquietação. Como revela o narrador, André estava
“impaciente e desatento”.
Quando a conversa já não mais fluía, pois todos sabiam
o verdadeiro motivo daquela reunião, o velho professor vai
para o piano tocar uma música que se poderia chamar jazz,
um ritmo negro, proveniente de Nova Orleáns, que Gottschalk
havia “filtrado e civilizado”. Mais uma vez retoma-se a

20
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 21

lógica do produto cultural, com raízes populares, filtrado


por eruditismo. Sob essa trilha sonora entra a filha, que
também é uma mercadoria que encarna tal dubiedade do
produto cultural. A descrição de Cló merece ser transcrita:

“A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de pano


da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente
nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço
modelado, por um colar de falsas turquesas. Os
braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos
braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos
de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos
seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão
onde estavam retidos.” (p.59)

Cló dança ao som de modinhas populares, muito próxima


ao Dr. André, que está no limiar de perder as estribeiras:
“dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre
daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele
vestuário de escrava desprezada.” (idem). Para completar a
sedução, Cló canta o refrão da modinha dirigindo-se
diretamente ao Deputado: “Mi compra ioiô.” (idem)
A filha do doutor Maximiliano transforma-se, assim, em
puro valor de troca, pura mercadoria: fantasmagórica,
irreal. Ela personifica, no conto, a característica
“metafisicamente física” que assume o objeto quando tornado
mercadoria. Cló, com a ajuda de adereços (materiais) que
compõem a fantasia de preta-mina, torna-se sublime diante
do olhar patológico do latifundiário André, que talvez
sinta atavicamente o desejo de possuir a escrava que lhe
pertence. O escravo, que era, na realidade histórica, puro
valor de uso, transforma-se, na narrativa, em puro valor de
troca, em mercadoria pura com a dança e os adereços da
lasciva Cló. E vira pura mercadoria, pois o processo de
transição entre a escravidão e o liberalismo não se
completou. A dança de Cló, é, sob esse prisma, um resíduo

21
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 22

que denuncia que a transição entre o caciquismo e o modo


capitalista liberal de produção não terminou.
A cena, portanto, é a representação fantasmagórica de
uma perversão cujas raízes remontam à escravidão. O que se
dá na sala de Maximiliano é o aparecimento dos fantasmas
perversos da escravidão. O Deputado André, um aristocrata
rural, que representa o interesse de latifundiários na
“moderna” República, assiste à dança de sua preta, que a
ele está subjugada pelo poder. Agora não mais apenas o
poder da propriedade, mas o poder do dinheiro. Sem o
aparato da classe burguesa, a República continua se
sustentando, perversamente, por uma lógica de poder
arcaica. Lembre-se, aliás, que o narrador descreveu o
Deputado como um índio.
O descompasso histórico, portanto, está em que a
relação típica do escravismo não se resolve, nem se
dissolve, na lógica liberal da República, antes,
metamorfoseia-se, ganha contornos e mais perversão ainda,
pois liga-se a outra lógica ainda mais perversa que é a do
espetáculo e a da mercadoria.
Ao término da leitura de “Cló”, o leitor sente a
fantasmagoria que ronda protagonistas de uma série de
contos de Lima Barreto, tais como “A nova Califórnia” ou
“Dentes negros e cabelos azuis”. Promover a releitura desse
aspecto fantasmático, sob um prisma histórico e
materialista, parece ser uma tarefa ainda por fazer e que,
quiçá, trará novo lume à ainda hoje esquecida contística de
Lima Barreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

22
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 23

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do


esclarecimento: fragmentos filosóficos. (Trad. Guido
Antônio de Almeida) Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1985.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular da idade média. O
contexto de François Rabelais. São Paulo : Hucitec, 1987
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1994.
_______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
Ática, 2000.
_______."Dialética da Malandragem (caracterização das
Memórias de um sargento de milícias)" in: Revista do
Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP,
1970, pp. 67-89.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
Hegel, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro:
Vozes, 1992.
Marx, Karl. O capital. São Paulo: Civilização Brasileira,
1980. 5ª ed.
MACHEREY, Pierre e BALIBAR, Etienne. Sobre la literatura
como forma ideológica. In: ALMARGO, Juan M. Azpitarte
(selección e introducción). Para una crítica del fetichismo
literario. Madrid: Akal Editor, 1975.
SALLUM JR., Brasílio. A condição periférica: o Brasil nos
quadros do capitalismo mundial (1945-2000). In: MOTA,
Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência
brasileira (1500-2000). São Paulo: Senac, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo.
São Paulo: Duas Cidades, 1990.
WALLERSTEIN, Immanuel. O capitalismo histórico. (Trad.
Denise Bottmann). São Paulo: Brasiliense, 1985.

23
www.alexandrepilati.com - “MI COMPRA, IOIÔ” DESCOMPASSO HISTÓRICO E FETICHISMO
EM “CLÓ” DE LIMA BARRETO 24

24

Você também pode gostar