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AnuáRio

N.º 4 •2012

Cerimónias Fúnebres, no Funchal,


pelo Falecimento de D. João V (1750)

Filipe dos Santos

Bay and Town of Funchal, Madeira, The Illustrated London News, Nov 15, 1879,

Anuário 2012
Centro de Estudos de
História do Atlântico
ISSN: 1647-3949,
Funchal, Madeira (2012)

Região AutónomA dA mAdeiRA


CentRo de estudos de HistóRiA do AtlântiCo pp. 150 - 168
Filipe dos Santos Técnico Superior de História – Secretaria Regional da Cultura, Turismo e
Transportes (Região Autónoma da Madeira) – Centro de Estudos de His-
CEHA tória do Atlânico; Mestre em Estudos Locais e Regionais pela Universida-
de do Porto, com a dissertação: SANTOS, 2010, O Sal na Ilha da Madeira
na Segunda Metade de Setecentos – Penúria, Poder e Abastecimento.
Endereço electrónico: fdvsantos@gmail.com; página pessoal na Internet:
htps://sites.google.com/site/ilipedossantoshomepage/.
ReSumo: Neste arigo pretendemos observar as cerimónias fúnebres públi-
cas que ocorreram no Funchal, pelo falecimento de D. João V, em 1750, atra-
vés de uma abordagem descriiva e comparaiva, escorada em documentação
produzida pela Câmara Municipal do Funchal, de vários assuntos e questões:
acção organizadora e regulamentadora da Câmara; luto e protocolo; datas de
realização; quebra dos escudos reais e respeciva procissão; exéquias na Sé;
intervenientes individuais e insitucionais; relações de poder; aparato funerá-
rio; arte efémera; despesas efectuadas.
Palavras-chave: Cerimónias Fúnebres; Luto; Quebra dos Escudos; Exéquias;
Funchal; D. João V.

AbStRAct: In this aricle we intend to observe the public funeral ceremonies


which occurred in Funchal, on the death of King John V, in 1750, through
a descripive and comparaive approach, supported by documentaion
produced by the Municipality of Funchal, to various subjects: organizing
and regulatory acion of the Municipality; bereavement and protocol; dates
of compleion; breaking of the royal shields and corresponding procession;
obsequies at the Cathedral; individual and insituional actors; relaions of
power; funerary apparatus; ephemeral art; costs.
Keywords: Funeral Ceremonies; Bereavement; Breaking of the Royal Shields;
Obsequies; Funchal; King John V.

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E
ste arigo vem na sequência de um estudo Assim, o nosso objecivo concreto será o de ob-
anterior, subordinado ao ítulo «Suspen- servar as aitudes e manifestações colecivas perante
sões do Quoidiano: Manifestações Públi- a morte de um monarca português – D. João V –, nor-
cas de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. maizadas, organizadas e conduzidas – ainal, enqua-
Luís (1889) e de D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe dradas –, por uma insituição de poder e administra-
(1908)», apresentado publicamente no seminário Re- ção periférica: a Câmara Municipal do Funchal4. Tais
pública e Republicanos na Madeira (1880-1926), que manifestações traduziram-se em cerimónias próprias
decorreu de 25 a 29 de Outubro de 2010, e publicado das fesividades reais do Barroco português5.
no volume de actas correspondente1. Neste ensejo,
Note-se que o espaço social onde nos vamos
procuraremos recuar no tempo e, com semelhantes
mover é citadino – em concreto, a cidade do Fun-
objecivos e pressupostos teóricos e metodológicos,
chal, capital e único aglomerado urbano da Ilha da
perscrutar as cerimónias ou manifestações públicas
Madeira em Setecentos –, o «cenário e palco» por
fúnebres que decorreram, no mesmo espaço, em
face do falecimento de uma outra pessoa real, neste
caso o rei D. João V. linguagem, um discurso sobre discursos.» (URBAIN, 1997, «Morte,
p. 386).
Em conformidade com o que anteriormente ha- 4 No seu amplo estudo sobre o exercício do poder municipal no
víamos empreendido, optaremos por uma perspec- arquipélago da Madeira, na segunda metade do século XVIII, Ana
Madalena Trigo de Sousa menciona explicitamente que «Além
iva «simbólica» da morte, de acordo com Hermínio da responsabilidade de promover e inanciar as principais festas
Marins2, e por uma «psicossociologia dos sobrevi- religiosas do burgo, o poder municipal, súbdito do rei de Portugal,
tinha a incumbência de assinalar um conjunto de eventos relacionados
ventes», nas palavras de Jean-Didier Urbain3. com a família real. Neste âmbito, incluímos a celebração das exéquias
de um monarca; os festejos pelo nascimento ou casamento de um
1 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas infante.» (SOUSA, 2004, O Exercício do Poder Municipal na Madeira
de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D. e Porto Santo na Época Pombalina e Post-Pombalina, p. 195).
Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», pp. 604-626.
5 «No debe extrañarnos el uso del término iesta aun cuando vamos
2 «Os estudos histórico-sociais sobre a morte têm, no presente a referirnos a un hecho que, en principio, puede denotar tristeza y
estado [1985] desta arte, mostrado tendência para uma de duas pesadumbre como es el de unas exequias. Sin embargo, […] cualquier
perspectivas que talvez possamos caracterizar como «simbólica» e acontecimiento relacionado con la monarquia tenía algo de iesta,
«estratégica». Numa perspectiva «simbólica», a morte é analisada incluidos los funerales, tanto por el ceremonial que se desplegaba
pelo prisma da cosmologia e comunidade, das representações en ellos, expresión de la grandeza de la monarquia, como por la
colectivas e individuais, dos ritos mortuários, da regulamentação oportunidad que ofrecía a la sociedad de manifestar su lealtad y
cultural das emoções, da tanatopraxis, dos costumes de luto, da idelidad al monarca, incluso después de muerto.» (MONTEAGUDO
iconologia da morte. Na perspectiva «estratégica» (e pelo menos ROBLEDO, 1996, «La Exaltacion de la Monarquia en Valencia:
no mundo ocidental) o objecto principal de estudo é constituído Poder, Sociedad e Ideologia en las Exequias de Carlos III», p. 171).
pelas disposições testamentárias relativas às propriedades, cargos «A Festa Joanina foi manifestamente Barroca. A sua governação foi
ou posições, que permitem analisar os cálculos dos testadores bem marcada pela ostentação e por um certo gosto pela pompa e
[…] bem como os problemas concretos da redistribuição dos bens magniicência. Todos os seus pressupostos estiveram representados
transmissíveis, tanto móveis como imóveis.» (MARTINS, 1985, nas atitudes, nas formas plásticas e, essencialmente, no sentido que
«Tristes Durées», pp. 25-26). foi dado a essas manifestações. O poder absoluto cultivou-as e serviu-
3 Escreve o autor que «devemos forçosamente constatar que a se delas. O espírito da Reforma Católica utilizou-as.» (TEDIM, 1999,
tanatologia, «ciência da morte», […] só pode ser, por um lado, uma Festa Régia no Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte Efémera,
psicossociologia dos sobreviventes, […] e, por outro uma meta- vol. I, pp. 506-507).

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excelência da festa barroca6. te uma feição descriiva e comparaiva; descriiva,
porque seguiremos a par e passo a fonte observada,
Perseguiremos as solenidades fúnebres tais
dando conta e sistemaizando muita da informação
quais foram planiicadas e organizadas, como air-
aí exarada; comparaiva, porquanto: faremos o con-
mámos, pela Câmara Municipal do Funchal. Daí que
fronto, com o ito de surpreender mutações ocorri-
a fonte basilar compulsada consista num códice que
das com a marcha dos tempos, entre as cerimónias
foi produzido por esta mesma insituição – integra,
de pesar de 1750 e as que sucederam aquando das
assim, o fundo documental deste município e está
defunções de D. Maria I, em 1816, de D. Luís, em
depositado no Arquivo Regional da Madeira –, o
1889, e de D. Carlos e de D. Luís Filipe, em 1908, as
qual, atendendo ao termo de abertura, «deve servir
quais ivemos precedentemente a oportunidade de
para nelle se assentar a despesa feita na occasiaõ do
abordar; compararemos ainda as condutas insitu-
Funeral do Sn.or Rey D. Joaõ o Quinto»7; no entanto,
cionais de meados do século XVIII com o que pode
apesar desta declaração, neste livro encontramos
ler-se num manuscrito de índole normaiva, denomi-
igualmente referências às exéquias de D. Maria II e às
nado «Os esillos que hâ nas exequias de hum Rey
aclamações e exéquias de D. José, D. Maria I e D. João
defunto, e na aclamação do vivo, em as Cidades, e
VI. Nada aí existe, porém, acerca das exéquias de D.
Povos, donde naõ hâ Cortes», exarado num códice
Pedro IV e da aclamação de D. Maria II8.
initulado Foral – Regimento da Cidade de Lisboa e
Esta fonte, no que toca ao assunto que nos pro- Foral da mesma (1505-1517)9.
pomos conhecer, é composta por um conjunto de do-
Reira-se obrigatoriamente que as exéquias ce-
cumentos manuscritos de variada ordem – registos
lebradas no Funchal, em honra de D. João V, foram
das disposições e medidas camarárias no senido de
já abordadas, ainda que sumariamente, por Alberto
organizar as formalidades; cópias de cartas oiciais
Artur Sarmento10.
remeidas ou recebidas pelo Senado funchalense;
editais; documentos de índole inanceira (nomeação Principiando a análise da fonte axial deste es-
de recebedor, arrolamentos e balanços de despesas tudo, diga-se que a 30-IX-1750, em reunião camará-
e receitas, exame de contas); auto da cerimónia de ria, foi aberta e lida uma missiva informando os ca-
quebra dos escudos; advertências – que, no cômputo maristas de uma infausta noícia: «se abrio e Leo a
geral, estabeleceram, regularam e relataram as ceri- carta que ao dito Senado escreveo, o Snr. Rey Dom
mónias fúnebres celebradas, no Funchal, em honra Jozeph o primeiro do nome partecipandolhe a noi-
de D. João V. Deste modo, ao nosso dispor existe cia da morte do Sñr Rey D. João o quinto, seu Pay»11.
uma fonte documental, produzida pela Câmara Mu-
nicipal do Funchal, que, por um lado, regulamentou 9 ARM, CMF, Foral – Regimento da Cidade de Lisboa e Foral da mesma
(1505-1517), lv.º 401, ls. 119-120. O contexto temporal de produção
uma determinada vivência ou realidade e, por outro, da informação veiculada nesta fonte é o de meados do século XVII,
representou essa mesma realidade – transmiindo, pois os preceitos relativos à aclamação real (cerimónia que se
seguiria imediatamente às exéquias) referem, no inal, a entronização
enim, como é óbvio, a perspeciva deste órgão de especíica de «El Rey Dom Afonço Sexto de Portugual» (ARM,
poder autárquico, o mais implicado no processo. CMF, Foral – Regimento da Cidade de Lisboa e Foral da mesma (1505-
1517), lv.º 401, l. 120). Chegámos ao conhecimento da existência
A nossa metodologia assumirá forçosamen- deste documento através do Elucidário Madeirense; veja-se SILVA,
MENESES, 1978, «Exéquias», p. 410. Neste códice podem ver-se,
ainda, o «Capitulo do falecimẽto dos Reis» e o «Capitulo do pranto»,
6 Frisa José Manuel Tedim que «O Barroco ao assumir-se como uma relativos às normas a cumprir na capital do Reino (ARM, CMF, Foral
cultura de massas escolheu a cidade como cenário e palco da festa. – Regimento da Cidade de Lisboa e Foral da mesma (1505-1517), lv.º
[...] Num regime social de privilégios, a cidade, ponto de encontro 401, ls. 39-43).
e contrastes, tornava-se espectáculo, pelo aparato dos seus palácios, 10 SARMENTO, 1947, Estudos Históricos da Minha Terra (Ilha da
pela ostentação das suas gentes, pela grandeza e majestade dos dias Madeira), 2.º vol., pp. 209-211.
de festa. [...] Assim, a festa da cidade aproxima os que obedecem
daqueles que mandam. A festa Barroca organiza o diálogo entre as 11 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
instituições e as populações urbanas e o Poder.» (TEDIM, 2003, «A lv.º 286, l. 2. Esta missiva foi copiada para um tomo do registo geral
festa e a cidade no Portugal barroco», pp. 317, 318). da Câmara Municipal: ARM, CMF, Registo Geral – Tomo 9.º (1735-
1754), lv.º 1220, ls. 173v.º-174.
7 Arquivo Regional da Madeira (ARM), Câmara Municipal do Funchal Era este o modo de notiicação, do poder central para os poderes
(CMF), Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), lv.º periféricos e locais, dos falecimentos de monarcas. Evidentes
286, l. 1. paralelismos entre o Funchal e Braga podem ser constatados na
8 No Elucidário Madeirense são feitas também referências a estes seguinte citação: «O Senado era avisado, por carta, da morte do
factos; leia-se SILVA, MENESES, 1978, «Exéquias», pp. 409-410. soberano ou dos membros da Família Real. [...] As cartas enviadas

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Em vereação estavam o Juiz de Fora e Corregedor Dr. conquistas fuy Servido detreminar se óbservase
Miguel de Arriaga Brum da Silveira, os três Vereado- a este efeito, o que se dispoem na Pragmaica
res Brás de Freitas da Silva, José Agosinho de Vas- ulimamente promulgada»14.
concelos Correia e Pedro de Betencourt Henriques
(por estar ausente Diogo de Betencourt e Sá), e os Não convirá entrarmos na descrição dos pro-
Procuradores dos Mesteres António da Silva, tanoei- cedimentos camarários e dos rituais fúnebres sem
ro, Domingos Nunes de Olival, alfaiate, e Gaspar dos antes fazermos alusão ao teor da Pragmáica aduzi-
Reis, marceneiro. A carta, datada de 01-VIII-1750, foi da pel’O Reformador, com certeza a de 1749. Para o
transcrita e nela se dá conta que D. João V falecera a caso em mãos, a Pragmáica de 24-V-1749 veicula o
31-VII-175012, facto que, segundo D. José, implicaria que se segue.
a celebração de solenidades fúnebres adequadas e «CAPITULO XVII.
costumeiras; assim, Sendo justo atalhar as despezas que se tem in-
«me pareçeo [a D. José I] parteciparvos [o fale- troduzido na morte dos Principes, e dos paren-
cimento], esperando da idelidade de Leais Vas- tes, ordeno que em nenhum caso se dê luto aos
salos me acompanhareis com aquellas demons- familiares, nem ainda de escada acima; e que
trasoins pracicadas em Semilhantes óccasioiñs, por Pessoas Reaes, pela propria mulher, por
e que vos conduzam, e façam merecedores da pais, avós, e bisavós, por ilhos, netos, e bisne-
minha clemencia, e do dezejo, que tenho do tos se traga luto sómente seis mezes: por ios,
bem commum»13. sobrinhos, e primos coirmãos, dous mezes: e
naõ se tome luto por outros parentes mais re-
O novo monarca seguiu dando instruções quan- motos, senaõ por quinze dias.
to ao luto que deveria ser observado – e fê-lo nestes As pessoas, que vestem de capa e volta, naõ po-
termos: raõ por causa de luto capa comprida.
«E o Luto que mandey se tomase em todo este [...]
Reyno hàde ser de dous annos, o primeiro regu- Estas disposiçoens se naõ entendem quanto aos
rozo de càpa comprida, e o segundo áleviado; funeraes das Dignidades Ecclesiasicas, que se
e as pessoas pobres, e miseraveis aó menos faraõ conforme o seu costume.»15
serão obrigadas a trazer hum signal de Luto,
como sempre se praicou: E nessa Ilha, e mais
De acordo com o que lemos, e embora o luto
para o Senado eram lidas em sessão da Câmara que logo determinava regulamentado para o Reino ivesse de durar dois
fosse lançado o Bando para apregoar a notícia pela cidade e dizer
qual o tempo de luto que devia ser cumprido sob pena de multa.»
anos, a Madeira e as «mais conquistas» icaram de-
(MILHEIRO, 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século XVIII, pp. 231, tendo um estatuto à parte, pois, se aqui ter-se-ia de
232). observar a Pragmáica de 1749, então, o luto duraria
Leiam-se ainda as palavras de síntese de Joaquim Ferreira-Alves,
acerca da «Comunicação e divulgação da razão da festa» real: «Todas apenas seis meses – o tempo esipulado para o óbito
as festividades relacionadas com a Família Real, principalmente as de pessoas reais, cônjuges e parentes em linha recta.
que estavam associadas com o ciclo humano da família reinante,
tinham como ponto de partida a comunicação do acontecimento Deste modo, os madeirenses acabariam, se fossem
que daria origem aos festejos. Assim uma Carta Régia anunciava às acatadas estas regras, por vivenciar esta dimensão
entidades mais representativas da cidade ou vila o facto que aquelas
iriam comemorar.» (FERREIRA-ALVES, 1993, «O «Magníico da eiqueta funerária durante o mesmo período que
Aparato»: Formas da Festa ao Serviço da Família Real no Século era norma cerca de século e meio depois, em inícios
XVIII», p. 179).
da centúria vinista16. Todavia, uma coisa é a norma
12 D. João V, na data do seu óbito, contava com 61 anos de vida e 44 de
reinado. Veríssimo Serrão airma que o rei, em 1742, foi acometido – a regulamentação da vivência; outra é a práica –
de uma «paralisia parcial que lhe afectava o lado esquerdo», maleita a vivência real. Terá o luto pela morte de D. João V
que «apesar de algumas fases de melhoria, não cessou de se agravar
nos anos seguintes»; além disto, sofria «ataques epilépticos de curta
duração e cuja frequência se foi acentuando nos anos de 1745 e
1749, diminuindo-lhe a resistência física.» (SERRÃO, s.d., História
de Portugal, vol. V, A Restauração e a Monarquia Absoluta (1640- 14 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
1750), p. 270). Ângelo Ribeiro escreveu que «Os contemporâneos lv.º 286, l. 2v.º.
classiicaram-na [à «doença que vitimou D. João V»] de «hidropesia 15 «Pragmatica do Anno de 1749», 1771, pp. 6, 7.
de peito»». (RIBEIRO, 1934, «Capítulo IX – D. João V», p. 191). 16 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas
13 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D.
lv.º 286, l. 2v.º. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 611.

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durado, efecivamente, apenas seis meses?17 Na ver- Luís Filipe, em 1908 – 59 dias21. Não poderá esquecer-
dade, não o sabemos com segurança – mas achamos -se que a morosidade na comunicação de noícias se-
duvidoso. Acresce que, se o luto preencheu apenas ria maior nos meados de Setecentos, o que consitui-
meio ano, tal conduta social não se observou, nestes rá factor relevante no intervalo de tempo apontado,
parâmetros, em 1816 – por ocasião das manifesta- para mais tratando-se de um espaço insular como a
ções públicas pela morte de D. Maria I. Efecivamen- Madeira22; com efeito, apesar da carta a noiciar o fa-
te, «não obstante o Capitulo 17. da Pragmaica de 24. lecimento de D. João V datar de 01-VIII-1750 (um dia
de Maio de 1749», D. João VI ordenou que o luto por após o passamento), apenas a 30-IX-1750 é aberta e
sua mãe fosse «tomado por tempo de hum anno, seis lida em vereação. Além disto, o processo de planii-
mezes rigorozo, e seis alliviado»18. cação e organização das fesividades, posterior a esta
úlima data, jusiicará ainda a diferença temporal.
Desde já anote-se que a Câmara do Funchal ins-
itui o dia 19-XII-1750 para as fesividades fúnebres A Câmara do Funchal, face então à notícia do
pelo falecimento d’O Magnânimo, as quais compre- funesto acontecimento, e principiando a sua tare-
enderam dois momentos: o cerimonial da quebra fa de planiicadora, organizadora e patrocinado-
dos escudos19; e as exéquias. O primeiro momento ra das cerimónias, tomou várias medidas, as quais
decorreu em espaços centrais e exteriores – princi- sistematizamos na tabela que se segue.
pais praças e arruamentos –, na cidade; o segundo
em espaço interior religioso, na Sé do Funchal20. Tabela I
Tendo o monarca falecido a 31-VII-1750, a dis- Medidas da Câmara Municipal do Funchal relaivas
tância temporal entre as datas de defunção e de ce- às Cerimónias Fúnebres pelo Falecimento de D. João
lebração fúnebre foi de 141 dias. Ora, este intervalo V (1750)
contrasta com os que ocorreram após os falecimen- Âmbito medidas
tos de D. Luís, em 1889 – 41 dias –, e D. Carlos e de D.
Regulamentação
Passar Edital para o luto da Cidade
/ Divulgação
Cobrir de baeta mesas e cadeiras do
17 Numa síntese sobre a primeira metade de Oitocentos, é ressalvada, Logísica /
na verdade, a distância entre a norma e a prática: «Segundo um Senado e mesas da Casa da Saúde e
Aparato
manual de civilidade de 1845, estavam ainda em vigor as normas da Almotaçaria
contidas na pragmática de 1749, que especiicava seis meses de luto
pelas pessoas reais […], sendo metade desse tempo luto rigoroso e Escrever ao Bispo – como
metade aliviado. […] Apesar destas normas escritas, a prática era Governador – para colaborar na
diferente, traduzindo-se, paradoxalmente, pelo exagero e não pela Organização escolha dos pregadores das Exéquias
morigeração. Assim, as pessoas reais […] mereciam, em regra, o
dobro do tempo prescrito na pragmática joanina, ou seja, um ano» e da Aclamação, «quanto ivesse
– o que veio a ocorrer com os lutos pelos falecimentos de D. Pedro impedimento para naõ Pregar»
III, D. Maria I e D. João VI (BRAGA, 2002, «Aspectos de Vida
Quotidiana. A Morte», pp. 538-539).
Noiicar as restantes Câmaras
Alberto Artur Sarmento, porventura fazendo uma leitura apressada Divulgação Municipais da Ilha da Madeira do
das fontes, escreveu que o luto, na cidade do Funchal, pela morte falecimento de D. João V
de D. João V, durou dois anos, metade dos quais rigoroso e metade
Providenciar luto (tecido para
aliviado (SARMENTO, 1947, Estudos Históricos da Minha Terra (Ilha Logísica /
da Madeira), 2.º vol., p. 210). indumentária) aos Ministros e Oiciais
Aparato
18 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), de Jusiça «na forma Costumada»
lv.º 286, ls. 62-62v.º; SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano:
Manifestações Públicas de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D.
Regulamentação Passar Edital proibindo a subida de
Luís (1889) e de D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 611. / Divulgação preço de fazendas
19 «As exéquias dos réis eram precedidas da cerimónia da quebra dos Fonte: ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal
escudos, realizada pelos vereadores em vários pontos da cidade, (1750-1854), lv.º 286, ls. 2v.º-3.
organizando-se para esse im um préstito em que se encorporavam
as autoridades, os funcionários e todas as demais pessoas de Quanto ao Edital ainente ao luto – datado de
representação da cidade.» (SILVA, MENESES, 1978, «Exéquias», p.
409). 21 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas
20 Uma historiadora que estudou as festividades em Braga, nos idos de de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D.
Setecentos, faz uma destrinça conceptual útil entre espaços interiores Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 608.
– catedral e igrejas – e exteriores – praça e ruas – onde decorriam 22 Em Braga, as exéquias em honra de D. João V tiveram lugar a 30-X-
esses eventos (MILHEIRO, 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século 1750, cerca de um mês e meio antes do que no Funchal (MILHEIRO,
XVIII). 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século XVIII, p. 243).

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30-IX-1750 –, este documento está, seguidamente, pitão-General. Assim, basicamente, convoca-se o
presente no códice analisado. O edital tem por reme- Bispo, que ocupa simultaneamente o cargo indica-
tentes o Juiz de Fora e Corregedor e os Vereadores e do, para uma reunião – para «vir Sollemnizar a dita
começa por dar noícia do falecimento d’O Fidelíssi- nomeação» – no dia seguinte, 04-X-1750, ou noutro
mo, remetendo para a fonte – a carta de D. José I, já que melhor lhe aprouvesse25.
citada – através da qual foi o Senado informado. Al-
Neste último dia, assim, a Câmara Municipal – o
guns trechos desta missiva são repeidos, no que diz
Juiz de Fora, os Vereadores e o Procurador do Conce-
respeito à necessidade de realizar os ritos funerários
lho – e o Bispo nomearam para proferir a oração fú-
do costume. Por conseguinte, o Senado ordena a to-
nebre, ou seja, «para Pregar nas exzequias do Senhor
dos os moradores da Cidade «e dos Lugares do seu
Rey Dom João o quinto», o Dr. António Monteiro de
termo» para que «se vistam logo de Luto na forma da
Miranda, Deão da Sé. (Do sermão de aclamação de
sobredita Pragmaica [...], em demonstraçaõ de Sen-
D. José I icou incumbido o Dr. Francisco de França e
imento pela morte do Sobredito Senhor». Os pobres
Andrada, Cónego da Sé.)26
e miseráveis, repetem os membros da Câmara, deve-
riam saisfazer «a dita obrigaçam ao menos com hú As celebrações de pesar levantaram e impli-
Signal de Luto como sempre foy Esillo». Perseguindo caram, em 1750, questões e medidas inanceiras
o desiderato de que a informação veiculada neste edi- relevantes no Funchal. A 07-X-1750, em vereação,
tal chegasse «á noicia de todos», mandou-se que o nomeou-se, para «Recebedor do dinheiro, que se
mesmo fosse publicado «nas partes costumadas» pelo aplicasse, para as despezas das Exzequias do Senhor
Porteiro da Câmara e «mais ofeciais de Jusiça»23. Rey Dom João o Quinto, e na áclamação do Seu ilho»,
Pedro Ferreira Henriques, cujas obrigações consisi-
Em seguida, temos o «Edital para naõ subirem
ram em dar conta à Câmara «de todas, e quaisquer
de preço as fazendaz», com a data de 03-X-1750. A
quanias, que recebeçe para hum, e outro efeito»27.
Câmara pretendeu cumprir uma determinação real,
O poder autárquico, na mesma sessão, com toda a
de 02-VIII-1750, e nesse senido esipulou
probabilidade prevendo um volume substancial de
«que nenhuma pessoa possa comprar, nem despesas, contrai vários emprésimos. Na verdade, aí
vender panos pretoz, Baetas da mesma Cór, esiveram presentes quatro indivíduos – o primeiro
forros de qualquer qualidade, fumos, itas, i-
denominado homem de negócio da praça do Funchal,
vellas, meyas, chapèos, e tudo o mais que per-
tençe á Lutos por mayores pressos do que se o que achamos extensível aos restantes – que empres-
comprava, e vendia athé ó dia vinte, e oyto do taram, ou prometeram emprestar, numerário; foram
mês passado»24. eles Dionísio dos Santos Silva, Francisco Teodoro, Pan-
taleão Fernandes e Domingos Nóbrega. Cada um em-
prestou – ou emprestaria posteriormente – 400$000,
Como se aigura óbvio, esta ordem surgiu para
o que totalizou 1.600$000. Na mesma circunstância,
prevenir a especulação de preços, que ocorreria com
determinou-se a redacção de cartas a estes credores,
a conjuntural e anormal procura de tecidos e adere-
«para que entregassem as quanias promeidas, ao
ços próprios de uma indumentária lutuosa.
Recebedor nomeado»; como segurança das quanias
Depois, conhecemos o teor da carta, também emprestadas foram dados os bens e rendas do muni-
de 03-X-1750, enviada pelo Senado «ao Bispo como cípio e as fazendas dos Vereadores e Procurador do
Governador da Ilha», à época D. Fr. João do Nasci- Concelho; a fonte di-lo desta maneira:
mento. O Senado refere que, em consonância com «lhe fossem epotecados [aos mutuantes], á
o «Seremonial, que se acha neste Sennado para ó Segurança de seus dinheiros os beñs, e Rendas
que hàde obrar na morte dos Reiz», a nomeação deste Concelho, quando El Rey N. Sñr., [...] os
do Pregador para as exéquias deveria ser feita pela
Câmara conjuntamente com o Governador e Ca- 25 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
lv.º 286, l. 5.
23 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), 26 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
lv.º 286, ls. 3v.º-4. lv.º 286, ls. 5-5v.º.
24 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), 27 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
lv.º 286, l. 4. lv.º 286, ls. 5v.º-6.

157
nam mandasse saisfazer; abonando os verea-

Quanidade
(côvados)
dorez actuais, e Procurador do Conceilho, pellas
suas fazendas, a certeza do referido pagamento, Finalidades/Desinatários
cada hum na parte que lhe tocasse»28.
No mesmo ensejo, foram nomeados, para a Cobrir a Mesa Grande do Senado 14
cerimónia de quebra dos escudos, ou, consoante o
Cobrir a Mesa dos Mesteres 3,5

Mobiliário
documento, «para quebrar os Escudos, na forma do
Cobrir a Mesa da Casa da Saúde 8
Esillo, no dia das Exzequias do Senhor Rey Dom Joaõ
o Quinto, e Levar na áclamação, os de Sua Mages- Cobrir a Mesa da Almotaçaria 4,5
tade Reinante», Francisco Aurélio da Câmara Leme, Cobrir as Cadeiras do Senado 10
António Correia Betencourt Henriques e António de Escrivão da Câmara 11
Brito de Oliveira Betencourt – «Vereadores que nes- Juiz do Povo e 4 Procuradores dos
55
te Sennado forão, e Mossos Fidalgos da Caza Real»29. Mesteres (11 côvados cada)
Síndico da Câmara (Dr. Manuel da Costa
Na documentação manejada foi exarado, pos- 11
Sá)
teriormente, o «Titullo da baeta30, que o Senado
Tesoureiro da Câmara (Pedro Fernandes
gastou, no Luto» de D. João V. A Câmara Munici- Pimenta)
11
pal entendeu, na verdade, assegurar materialmente
Porteiro da Câmara (Manuel da Trindade
uma parcela da logísica ou do aparato fúnebre que 11
e Vasconcelos)
compreendia os panos usados no adornamento de
2 Almotacés (11 côvados cada) 22
mobiliário e na indumentária de oiciais concelhios
Escrivão da Almotaçaria 11
e de jusiça (aliás, como se pôde constatar na Tabela
I). A compra deste tecido realizou-se «por conta do 2 Guardas Mores da Saúde (11 côvados
22
cada)
imposto do Sal»31; cada côvado32 custou 7 tostões (ou
Guarda da Bandeira da Saúde 4
$700); e a totalidade da baeta adquirida e da quania
despendida foram, respecivamente, 515 côvados e 10 Escrivães do Judicial do Juízo Geral de
110
Ministros e Oiciais

Fora (11 côvados cada)


360$500. O quadro com a relação destas despesas
– dando conta de quanidades e de inalidades e des- 4 Tabeliães das Notas da Cidade (11
44
côvados cada)
inatários – pode ser visionado de seguida.
2 Inquiridores do Juízo Geral (11 côvados
22
cada)
Tabela II Alcaide da Cidade 11
Despesas feitas com Baeta, pela Câmara Municipal Meirinho da Serra 11
do Funchal, nas Cerimónias Fúnebres pelo
Meirinho da Ouvidoria 11
Falecimento de D. João V (1750) – Finalidades/Desi-
natários e Quanidade (em Côvados) 3 Porteiros do Auditório (4 côvados cada) 12
Provedor do Juízo dos Resíduos e Capelas 11
Escrivão do Juízo dos Resíduos e Capelas 11
Juiz dos Órfãos 11
28 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), Meirinho e 2 Escrivães do Juízo dos
33
lv.º 286, ls. 7-7v.º. Órfãos (11 côvados cada um)
29 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
2 Paridores do Juízo dos Órfãos (4
lv.º 286, l. 7v.º. 8
30 «BAETA. Baêta. Panno de laã, a que com o uso, ou com instrumentos
côvados cada um)
se levanta o pelo. Hâ de muitas castas.» (BLUTEAU, 1712, Vocabulario Tesoureiro do dinheiro aplicado nas
Portuguez e Latino [...], [vol. II], p. 11).
despesas das exéquias (Pedro Ferreira 11
31 Sobre o imposto do sal – criado em 1693, no concelho do Funchal, Henriques)
e que incidia sobre a importação deste mineral – leia-se SANTOS,
2010, O Sal na Ilha da Madeira na Segunda Metade de Setecentos – Escrivão da Auditoria da Guerra 11
Penúria, Poder e Abastecimento, cap. «III.4 Fiscalidade», pp. 181-209.
total 515
32 «COVADO, Côvado. Medida de tres palmos, com a qual se mede
seda, & pãnos de côr.» (BLUTEAU, 1712, Vocabulario Portuguez e Fonte: ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal
Latino [...], [vol. II], p. 592). (1750-1854), lv.º 286, ls. 7v.º-8v.º.

158
O Senado funchalense, para além das medidas já convite endereçado34.
relatadas, emiiu várias cartas, semelhantes, dirigidas
Este incidente, em torno do protocolo a ser
ao Provedor da Fazenda Real do Funchal, ao Juiz dos
cumprido nas solenidades fúnebres, demonstra um
Resíduos e Capelas e ao Juiz dos Órfãos, solicitando
pouco o relacionamento entre diferentes poderes na
para que estes, na altura da procissão da quebra dos
Madeira. Uma mais fundada interpretação do epi-
escudos, se apresentassem nos paços da Câmara. A
sódio seria apenas possível através da análise, em
missiva começou por aduzir que D. José I solicitou que
média ou longa duração, das relações entre o Muni-
a Câmara, pela defunção de seu pai, izesse as «de-
cípio do Funchal e a Provedoria da Real Fazenda do
monstraçoiñs praicadas, em semilhantes occazioẽs».
Funchal e do conhecimento dos basidores do poder
E, continua o Senado, uma destas demonstrações é
insular, não consignado em fontes escritas. De qual-
precisamente «a de se quebrarem os Escudos, com
quer modo, repitamos que, segundo o argumentário
ácistencia dos [...] Menistros [reais], na forma do Se-
do Provedor, a sua inclusão no cerimonial seria facto
remonial que se acha neste Real Archivo, para o que
inédito e levantaria agora várias questões protocola-
se deve obrar na morte dos Reis». Por esta razão é so-
res. Ainda, considerando que os oiciais da Fazenda
licitada a comparência das dignidades nomeadas, nos
Real não foram contemplados na atribuição de trajes
Paços da Câmara, pelas 06:00 do dia 19-XII-175033.
de luto, o Provedor da Fazenda Real terá – pensamos
O Provedor da Fazenda Real replicou, «escuzan- nós – previsto de que o lugar que lhe seria atribuído
do-se» a participar. Quais as suas razões? Em primei- na cerimónia da quebra dos escudos não estaria em
ro lugar, mostrou-se honrado pelo convite; depois, harmonia com a dignidade inerente ao cargo.
porém, referiu que «não se lembra á memoria dos
O Senado esipulou, posteriormente, a «Dizpu-
homeñs, nem os assentos dèsse Sennado, nem os
zição [...] para a dmonstração[sic] publica de Seni-
desta Provedoria fazem mensão, de que algum dos
mento na fração dos Escudos pella morte do Sñr Rey
meus antecessores no Lugar que occupo (ou Menistro
Dom Joaõ o quinto e ordem de ácompanhamento
de Letras, ou Leygo) fosse convidado, ou izesse igura
funebre para a dita Seremonia.» Neste âmbito, a in-
em semilhante occaziam», porventura porque, como
formação a que temos acesso, respeitante à conigu-
aduziu, o Senado funchalense costuma «regularse
ração da procissão fúnebre, fornece indicadores para
pello da Cidade de Lisboa», e, na capital do reino, não
a percepção dos grupos e indivíduos considerados
costumam tomar parte em similares eventos minis-
como a elite da sociedade da época – na ópica do
tros ou oiciais da fazenda real; considerou ainda que,
poder autárquico35. A disposição pode ser visionada
presumivelmente de acordo com o cerimonial de Lis-
de seguida.
boa e os costumes na capital da Madeira, quando a Câ-
mara do Funchal ofereceu luto a «Menistros» e «seus
ofeciais», acabou por não incluir nessa «Distribuis-
são», precisamente, o Provedor e os oiciais da Fazen-
da Real; posteriormente, airmou que certas dúvidas
ainda se levantariam «a respeyto da preferencia do
Lugar» a ocupar por si, «supostas as prihimencias[sic],
que pello Esillo, e Provizoins Reaiz são concedidas ao
Provedor da Real Fazenda desta Ilha; as quais duvidas
se não poderião [de]treminar sem decizão superior»;
concluiu dizendo que, dado que o tempo não permiia
«o recursso sobre os pontoz mencionados», e não es-
tando nas suas capacidades «alterar, ou innovar couza
34 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
algũa a respeyto do Lugar, que occupo, sem ordem, lv.º 286, ls. 9-10.
ou insignuasam do Monarcha», declinava o honroso 35 Num estudo de fôlego é dito que «Os Cortejos obedeciam a uma
ordem rigorosamente estratiicada, previamente organizada, de
forma a que os representantes da autoridade civil e religiosa e as
33 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), pessoas de alta posição social ocupassem os lugares proeminentes»
lv.º 286, l. 9. (MILHEIRO, 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século XVIII, p. 378).

159
Tabela III mais premente nas exéquias.
Procissão Fúnebre da Quebra dos Escudos, no Fun- A Câmara Municipal tomou a incumbência de
chal, pelo Falecimento de D. João V (1750) – Ordem distribuir cera – quer dizer, tochas e velas – para as
e Elementos exéquias a várias personalidades. Se aventámos a hi-
pótese de a omissão do clero no cortejo da quebra
ordem elementos
dos escudos se dever à paricipação do mesmo nas
1.º Meirinho e Alcaide, com varas pretas
exéquias, aqui temos a conirmação, espelhada na ta-
Procurador do Concelho, a cavalo, com a bela seguinte. Na verdade, entre as individualidades
bandeira das Armas Reais, de um lado, e a
beneiciadas com cera estão o Prelado, os membros
bandeira das Armas da Cidade, do outro,
«cahida para á parte das costas por sima do do Cabido, os mais altos responsáveis da Ordem de
2.º S. Francisco e da Companhia de Jesus, e ainda outros
hombro Direito arastando pelo cham huma
grande parte della», e acompanhado, às clérigos que assisiram.
estribeiras, de dois criados a pé, trajados de
luto
Oiciais – Escrivães, Tabelião, Inquiridores, Tabela IV
Distribuidores e Paridores – de Jusiça, do Distribuição de Cera, pela Câmara Municipal do
3.º Juízo Geral de Fora, do Juízo dos Resíduos e Funchal, para as Exéquias Reais de D. João V (1750)
Capelas e do Juízo de Órfãos, em duas alas – Individualidades/Insituições e Quanidades
(«como em Porcisaõ»)
Individualidades/
Síndico do Senado e Advogados dos Auditórios, Cera – Quanidades
Insituições
4.º com bacharelato pela Universidade de
Coimbra Bispo Tocha – 1
5.º Almotacés, com varas pretas Cabido da Sé –
Dignidades, Cónegos,
Fidalgos, Cidadãos e restante Nobreza «que Vela – 1,5 arrátel de cera
6.º Meios Cónegos, Curas,
ainda naõ serviram na Camara» branca
Mestre da Capela e
7.º Anigos Vereadores Subchantre
8.º Guardas Mores da Saúde Custódio e Guardião da Vela – 1,5 arrátel de cera
À direita, Juiz dos Resíduos e Capelas; à Ordem de S. Francisco branca
esquerda, Juiz dos Órfãos; a meio (entre Visitador e Reitor da Vela – 1,5 arrátel de cera
as duas alas laterais), anigos Vereadores, Companhia de Jesus branca
Guardas Mores da Saúde, Oiciais já referidos, Vela – 1,5 arrátel de cera
9.º Portadores dos Escudos Reais (encarregados Ministros Régios
branca
de os fraccionar), acompanhados estes, à
direita, de «hua vara de Jusiça», e à esquerda Vela – 1,5 arrátel de cera
Guardas Mores da Saúde
de um escrivão, «comessando pello mais branca
mosso, e acabando pello maiz velho» Vela – 1,5 arrátel de cera
Almotacés
Juiz de Fora, Vereadores, Juiz do Povo e branca
10.º Indivíduos nomeados
Procuradores dos Mesteres, com varas pretas Vela – 1,5 arrátel de cera
Fonte: ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal
para a Quebra dos
branca
(1750-1854), lv.º 286, ls. 10v.º-11v.º, 14v.º-15. Escudos
Vela – 1,5 arrátel de cera
Anigos Vereadores
branca
Ao olhar o cortejo fúnebre é um cortejo social
de parte relevante da elite funchalense de meados Religiosos presentes nas Vela – 1 arrátel de cera
Exéquias branca
do século XVIII que vemos. E esse escol é uma elite
administraiva – representada por oiciais do poder Músicos, Tocadores de
Vela – 1 arrátel de cera
Instrumentos e Meninos
autárquico e das várias jusiças insulares – e uma eli- branca
do Coro
te social de privilegiados – idalgos, cidadãos e no-
Fonte: ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal
breza. Uma ausência assinalável é a de clérigos e dig- (1750-1854), lv.º 286, ls. 11v.º-12, 17.
nidades religiosas, talvez por terem uma intervenção
Uma nota apenas para dizer que, em 1816, no

160
âmbito das manifestações de dor pelo óbito de D. do cham, cobertas de baéta negra». A primeira foi
Maria I, a Câmara do Funchal solicitou a assistência ediicada no adro da Catedral, em frente da porta
e colaboração do clero regular existente no Funchal, principal desta igreja, a segunda foi erigida na praça
através de cartas enviadas ao Custódio do convento do Pelourinho e a terceira, inalmente, foi construída
masculino de S. Francisco e às Abadessas dos con- junto à porta da fortaleza de S. Lourenço38.
ventos de Clarissas de Santa Clara, Mercês e Encar-
De acordo com Maria Manuela Milheiro, em
nação36. Em 1750, deste conjunto apenas é referen-
Braga a quebra dos escudos era feita «perante os
ciado, enquanto parte integrante nas exéquias, o
três poderes: o poder civil junto do Senado, o poder
primeiro, não merecendo as franciscanas qualquer
eclesiásico no Terreiro do Paço, o poder da Nobre-
menção.
za defronte da porta do Castelo.»39 Ora, tomando a
No «Edital do Sennado para a Serimonia de que- moldura conceptual enunciada neste curto passo ci-
brar os Escudos», com a data de 18-XII-1750, são des- tado, somos convidados a analisar as localizações das
trinçados, na documentação, de forma explícita, os tarimas enquanto espaços simbólicos ou efecivos de
dois momentos principais que compuseram as cele- vários poderes na Ilha da Madeira. Assim, a primeira
brações de pesar em honra de D. João V. Conforme o tarima situou-se junto do poder eclesiástico; a
edital, as «demonstrasoiñs de Senimento praicadas seguinte localizou-se num espaço público que
em semilhantez occazioiñs» seriam, primeiramente, traduziria o poder autárquico (sem esquecer, no que
a quebra dos escudos, após a qual teriam lugar, na concerne à representação deste poder, o facto da
«Cathedral desta Cidade, as Reais Exzequias». Por procissão parir da Câmara Municipal); a úlima icou
conseguinte, a Câmara mandou que a 19-XII-1750, às próxima da residência do Governador e Capitão-Ge-
06:00 – tal como expressámos acima – neral, órgão de poder e administração verdadeira-
«se ach[ass]em na caza deste Sennado todos os mente regional, com intervenção num lato espectro
Cidadaõs, e mais nobreza desta Cidade vesidos de dimensões da vida madeirense do século XVIII,
de Luto na forma da Pragmaica ulimamente desde a defesa à economia, passando por questões
promulgada pella qual ó mesmo Sñr. foy Servido judiciais e tributárias. De algum modo, descontando
mandar regular o prezente para com a Solemni- a Provedoria da Real Fazenda do Funchal e o Donatá-
dade do Esillo se fazer a referida demonstraçaõ
rio da Capitania do Funchal, é a própria arquitectura
de Senimento como hé devido a memoria de
hú taõ bom Rey, e Senhor»37. dos poderes insulares que aqui surge representada.
O acompanhamento fúnebre pariu dos Paços
da Câmara e foi consituído pelos elementos expli-
Seguidamente, podemos ler uma narração do citados na Tabela III. A mais disso, foi mencionada
acto público solene que foi a quebra de escudos, a intervenção do corpo castrense na Ilha, pois que
bem como das exéquias decorridas na Sé. Acompa- estava «por huã, e outra parte para desviar a plebe,
nhemos a narração. bordadas de Infantaria todas as Ruas, por honde pas-
No dia estabelecido principiou a quebra dos es- sou o sobredito aparatouzo, e funesto acompanha-
cudos. É reairmado que, em vereação de 07-X-1750, mento»; no decorrer desta solenidade esiveram «os
foram nomeados Francisco Aurélio da Câmara Leme sinos da Sé, e daz mais Igrejas dobrando, dezde que
para a fracção do primeiro escudo, António Correia a bandeyra nos brassos dos Vereadores, entre a pri-
Betencourt Henriques para o segundo, e, por im, meira nobreza, deseu as Escadas do Sennado, para
António de Brito de Oliveira Betencourt para o ter- ser posta na maõ do dito Procurador do Conceylho»;
ceiro. Foram erigidos elementos de arte efémera é ainda mencionada a intervenção da Marinha e de
caracterísicos destas cerimónias – isto é, três tari- embarcações no porto do Funchal: «disparando a Ar-
mas, «á custa dos Sobreditos», «altas tres degràos thelharia da Marinha desta Cidade, e dos Navios sur-
tos, e ancorados no porto della, com os intrevallos,
36 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas
de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D.
Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», pp. 609-610. 38 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
37 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), lv.º 286, l. 14.
lv.º 286, ls. 12v.º-13. 39 MILHEIRO, 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século XVIII, p. 233.

161
que nos funerais se praicaõ»40. Rua dos Ferreiros e a Rua Direita, desembocando na
Praça do Pelourinho. Aqui teve lugar a quebra, na se-
O présito percorreu a rua «que ica, para a par-
gunda tarima, com «iguál exclamação», do segundo
te debayxo, da porta travessa da Sê» e, chegando à
escudo por António Correia Betencourt Henriques.
frente da porta principal da Catedral, subio à primei-
A «Marcha» prosseguiu pelas ruas dos Mercadores,
ra tarima Francisco Aurélio da Câmara Leme, munido
do Sabão, dos Murças e do Capitão «athé a porta da
de uma vara de jusiça e acompanhado de um escri-
sobredita Fortallèza» de São Lourenço, local onde
vão – «como hiam todos os mais Escudos, pello as-
António de Brito de Oliveira Bettencourt, também
sim dispor o Seremonial referido» – e, consoante a
«com semilhante Exclamação», fraccionou o úlimo
narração,
escudo44.
«Exclamou dizendo, em vós alta com grande
Sentimento // Fidalgos, Clero, Cidadaõs, e mais A quebra dos escudos em meados do século
pòvo, choray a morte do vosso Rey Dom Joaô XVIII, época ritmada pela sensibilidade e teatrali-
o quinto de Portugal, que hé morto – // E que- dade barrocas, na capital do arquipélago da Madei-
brando o escudo, deichou os pedassos delle, ra, segue em parte as normas relaivas às exéquias
em sima da dita tarima, tornando para o Lugar
reais esipuladas um século antes, em meados de
em que hia»41.
Seiscentos. O número, a diversidade e a ordem dos
intervenientes são, na verdade, algo dissemelhan-
Em Braga, na mesma cerimónia em honra do tes, relecindo aspectos estruturais e conjunturais
mesmo monarca, as palavras enunciadas foram, ape- dos poderes insulares em 1750, tal como a exclu-
nas com a omissão dos oratores, semelhantes: «Cho- são do Governador e do Provedor da Real Fazenda
rai nobres, chorai povo, que morreo o vosso Rey D. do Funchal e a inclusão de maior número de oiciais
Joao 5º de Portugal»42. (e ex-oiciais) concelhios e de insituições judiciais. É
patente, por outro lado, a centralidade e simbologia
Sendo esta uma sociedade de Anigo Regime, dos espaços públicos onde se procedeu à fracção dos
seria de esperar que os grupos sociais tradicionais emblemas reais. Observa-se, todavia, uma inversão:
fossem disintamente referidos nas enunciações fú- em meados do século XVII o primeiro local de para-
nebres, em moldes que espelhassem privilegiados gem seria a praça do Pelourinho; em 1750, tal lugar
e desprivilegiados – que mostrassem hierarquias e situou-se junto à Sé, e a praça nomeada foi palco da
diferenciações. Daí no Funchal, em 1750, serem no- fracção do segundo escudo real. A terceira paragem,
meados os idalgos, o clero, os cidadãos e o povo, ou em meados do século XVIII, foi consonante (fortaleza
seja, sem contabilizar os cidadãos – denominação e de S. Lourenço) com o que foi preceituado um século
grupo deveras complexos –, os belatores, os oratores antes («porta do Castello»). Leia-se o que se segue.
e os laboratores. Em outros tempos, em 1889 – em
«Primeiramente se ajuntarâ toda a nobreza, e
pleno Consitucionalismo Monárquico –, nas sole-
povo na Camara, e della sahiram em procissaõ:
nidades em honra de D. Luís, não é já a sociedade diante irâ o Alferes da Cidade, se o ouver, ou
de ordens a desinatária e depositária das palavras o, Procurador della, com a Bandeira da Cama-
fúnebres, mas sim a comunidade nacional: «“Portu- ra embrulhada em baeta arrastos; Seguillahaõ
guezes é morto o nosso Augusto Rei, o Senhor Dom tres Menistros Mayores, que naõ sejaõ da Ca-
Luiz Primeiro”»43. mara, ou tres idalgos, espacio hum do outro,
com cada hum seu escudo embaraçado; e atras
O présito percorreu, depois, a Rua do Aljube, a hirâ o Governador e Oiciais da Camara. O Go-
vernador sem bastaõ; E os [o]içiais com varas
40 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), pretas; hiraõ a praça do Pellourinho, e ahi o que
lv.º 286, ls. 15-15v.º. diante for, quebrarâ o escudo que levar, com
41 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), grande senimento que cauzara ao Povo, e iram
lv.º 286, l. 15v.º. a outra parte que se nomear, que mais publica
42 MILHEIRO, 2003, Braga. A cidade e a Festa no Século XVIII, pp. 233- for, e o segundo escudo se quebrarâ na forma
234.
43 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas
de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D. 44 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 613. lv.º 286, ls. 15v.º-16.

162
do primeiro, e dahi iram a porta do Castello, se Este monumento, apelidado de sumptuoso e manda-
o ouver, e quando naõ na parte que se nomear do construir pelo Senado, apresentou caracterísicas
para isso e se quebrarâ o terçeiro, e assim se hi- de que, sem mais demoras, damos nota, citando o
ram recolhendo a Igreja, que for nomeada pera
se fazer as exequias, as quais se faraõ nesse
passo documental alusivo:
mesmo dia e dahi cada hum irâ pera sua caza»45. «hum sumptuozo Mauzolèo de quatro facez,
pintado de toda a sorte de pedraria esimavel,
com grande quanidade de Emblemas Lainos,
Em 1889, no decorrer do acompanhamento fú- eregido em hum pleino quadràdo, no meio do
nebre pela fracção dos escudos de D. Luís I, o trajecto cruzeyro, com quatro Escadas, de sete degráos,
huma em cada face, com sinco Collumnas, em
percorreu um maior número do arruamentos do que cada hum dos quatro angullos do playno, e so-
em 175046; todavia, julgamos não fugir à verdade se bre estas, o entablamento de architrave, frizo, e
dissermos que houve uma preocupação – quer em cornejaõ, com quatro arcos nas quatro frentes
1750, quer em inais de Oitocentos – de trilhar as do Mauzolèo, e sobre cada hum, seu remate pi-
ruas mais importantes do Funchal, não havendo cor- ramidal, com iguras em acção de chòro, termi-
respondência em ambas as situações em face, como nado, em hum esquelèto, ichando a màquina
por sima, huã abobeda de pedraria, excellen-
é óbvio, da evolução (urbanísica, económica, insitu- temente ingida, adornado, assim o alto do en-
cional) da urbe ao longo de pouco menos de século tablamento, como o primeiro plaino, por entre
e meio. as collumnas, com grande numero de iguras,
bèllamente pintadas, aluzivas, ás superiores
O cortejo fúnebre da quebra dos escudos reais Vertudes, do Monarcha defunto, irmandose
de D. João V tomou, posteriormente, o caminho da debayxo desta abobeda, sobre o pavimento
Sé, templo onde se desenrolaram as exéquias e onde do primeyro plaino, huma Urna oytavada, com
inha sido erigido um certo aparato fúnebre, no qual muytos Simbolos emblemaicos, debaicho de
poniicava um outro elemento de arte efémera ca- huma cupula, susida sobre oyto collumnetaz,
racterísico das exéquias pela defunção de pessoas e entre estas o tumolo Real Coberto com hum
pano de Velludo negro, franjado, e guarnecido
reais (e não só): o mausoléu/cenotáio/catafalco47. com duas Ordeñs de Galloins de ouro, com al-
mofada do mesmo velludo, e guarnição, com
45 ARM, CMF, Foral – Regimento da Cidade de Lisboa e Foral da mesma Scetro, e coroa em sima»48.
(1505-1517), lv.º 401, l. 119.
46 Em 1889, o percurso da procissão fúnebre foi o que se segue: Largo do
Colégio; Rua de João Tavira; Rua do Aljube; Largo de São Sebastião;
Rua do Bettencourt; Rua do Phelps; Rua da Cadeia Velha; Rua Direita; De igual modo, por «dispozição, e ordem do
Largo do Pelourinho; Calçada do Cidrão; Rua da Margem da Ribeira;
Ponte e Rampa de D. Manuel; Rua dos Tanoeiros; Rua da Alfândega;
Sennado», a Catedral estava «toda armada de Luto,
Travessa dos Capelistas; Rua dos Murças; e Largo da Sé (SANTOS, com muytas decoraçois funebres, assim as trez Nàves
2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas de Pesar, de La, como o seu cruzeyro, Cappella, e altar mor»49.
no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D. Carlos e do
Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 610). Dadas estas informações, iniciou-se, mediante
47 «No Século XVIII a preparação para a morte e as cerimónias
que se lhe seguiam tinham um caracter público. Os Cortejos
o relato, «a Selebridade das ditaz Reais Exzequias»,
fúnebres eram solenes, mas foram as Exéquias que com a participação de quatro coros de música. São
constituiram as maiores demonstrações de geral apreço, aquelas
que consumiram maiores somas de dinheiro e proporcionaram
mencionados os lugares ocupados, no templo, pelos
construções construções efémeras de grande imaginação e oiciais concelhios e pelos ministros régios; a distri-
criatividade concebidas e executadas por um número elevado de buição processou-se deste modo: no cruzeiro, na
artistas e artíices.
«O interior das igrejas, renovado por estructuras revestidas de luto, parte do Evangelho (ou seja, à esquerda do altar, na
albergava o Cenotáio que simulava ser a urna onde tinha sido perspeciva de quem assiste), sentados em cadeiras
encerrado o verdadeiro cadáver, sendo por isso merecedor das
mesmas honras. [...] O Mausoléu era o centro das maiores atenções cobertas de baeta, icaram os membros do Senado;
pois era a peça principal da cena que se desenrolava e o símbolo no cruzeiro, no lado da Epístola (isto é, à direita), «os
máximo de quem se queria homenagear.» (MILHEIRO, 2003, Braga.
A cidade e a Festa no Século XVIII, pp. 437-438). Efémera, vol. I, p. 505).
«Se na festa pública, profano-religiosa, e religiosa imperou o Arco
de Triunfo como microcosmos de todo o programa efémero, na 48 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
festa fúnebre caberá essa função ao Catafalco, qual retábulo lv.º 286, ls. 16-16v.º.
da memória do ou dos poderes do mundo Barroco.» (TEDIM, 49 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
1999, Festa Régia no Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte lv.º 286, l. 16v.º.

163
Menistros asima» referidos, os Guardas Mores da lugar «em que haviam [de] hir ambas». A resposta foi
Saúde e os Almotacés; num banco «abayxo do Sena- que tal posição seria «entre as Allas da Cidade, diante
do», assisiram às exéquias os indivíduos que quebra- dos Escudos» – pois que «hindo o Governo no meio
ram os Escudos e os que inham no passado ocupado da Camara, que hera a Cabeça da Cidade», apro-
o cargo de Vereador50. priado seria que «as comeivas foussem no meio da
Cidade [...]; e diante dos Escudoz, por acompanha-
Na Sé, oiciou de poniical o Bispo, proferiu a
mento, e cortejo». Todavia, segundo o bispo, porque
oração fúnebre, como já sabemos, o Deão da Sé, Dr.
iria oiciar de poniical nas exéquias na Catedral, era
António Monteiro de Miranda, e foram feitas as cin-
próprio do «Serimonial entrar na Sé de capa magna,
co absolvições do túmulo: a primeira pelo orador; a
com a qual nam podia andar com a Camara na volta
segunda pelo Cónego da Penitenciária, António Fer-
da Cidade». Por esta razão resolveu «não hir como
reira Razendi; a terceira pelo Cónego e Comissário da
Governador, a fração dos Escudos.» A Câmara acei-
Bula da Santa Cruzada, Dr. António Mendes de Almei-
tou a escusa para evitar complexas questões de pro-
da; a quarta pelo Cónego Magistral Hugo Maguiere; e
tocolo quanto à entrada na Sé e, sobretudo, quanto
a última pelo Prelado do Funchal. Este, por intermé-
às posições ocupadas, nesta igreja, pela Câmara, pelo
dio de edital, «chamou para o dito acto, toda a cle-
Bispo e Governador e pelo Cabido. É deveras relevan-
rezia dos districtos obrigados â porsiçaõ de corpos,
te que, na sequência do exposto, a fonte veicule a
mandando dizer muytas Missas, de ávultada Esmolla,
comparação entre o disposto em 1750 e o que decor-
pella alma do dito Sñr.». Foram distribuídas, «por Or-
reu nas exéquias em honra de D. Pedro II. Para isso,
dem do Senado», velas de cera branca «á clerezia, e
consultou a memória de viventes que assisiram às
Rellegiozos» e a todas as individualidades apresen-
cerimónias mais remotas (a documentação expressa-
tadas na Tabela IV. As cerimónias indaram por volta
-o assim: «Segundo Constou por pessoas daquelle
das 16:00, tendo às 09:00 «principiado o invitatorio
tempo»). Assim, na ocasião das honras fúnebres d’O
do oicio»51.
Pacíico, «quando se quebrarão os escudos, fora sem
Nos fólios 26v.º a 27v.º do códice analisado po- bastam, entre a Camara o Governador Duarte Sodré
demos ler, com a data de 08-I-1751, uma advertên- Pereira e que da mesma sorte sem elle, acesira na
cia52 da Câmara quanto à posição do Governador e Sé, ao oicio dentro na cappela Mor della»53.
Capitão General – relembre-se, o Bispo D. Fr. João do
No códice analisado voltamos a encontrar docu-
Nascimento – nos actos cerimoniais da fracção dos
mentos tocantes à dimensão inanceira das fesivida-
escudos e da aclamação de D. José I. Tinha icado es-
des reais. Sabemos que à Câmara foram emprestados
tabelecido que o Governador iria, em ambos os ca-
1.600$000 – por quatro individualidades já por nós
sos, «entre a Camara», o que não suscitou, da parte
conhecidas. Antes de ser dada noícia das despesas
deste, «athé as antevesporas do dia da fração dos
realizadas, é explicado que houve a oportunidade de
Escudos», desaprovação – antes pelo contrário. Não
obter uma magra receita com a venda do veludo que
obstante, pediu, por ser D. Fr. João do Nascimento
serviu «de coberta do Tumolo Real, nas exzequias,
simultaneamente Prelado e Governador, que fos-
que se izeram na Sé desta Cidade [...]; ssendo o dito
se representado na Câmara pelo Juiz de Fora, pois,
velludo vendido por muyto menos, do que custou;
ocupando os dois cargos, haveria de ir «acompenha-
assim por estar emchuvalhado, como pellos muitos
do de duas comeivas, huma eccleziasica, e outra
pingos de Sèra que lhe cahirão dos Brandoiñs, que
secullar», e assim solicitava que fosse designado o
arderão no Mauzoléo, que na dita Se se fabricou». Tal
50 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), transacção rendeu 24$20054.
lv.º 286, l. 16v.º.
51 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), Ao nosso dispor existe, com efeito, um arrola-
lv.º 286, l. 17.
mento das despesas feitas com as exéquias e a que-
52 Advertência esta «Pello Repáro, que póde nasçer, de verem os auttoz
da fração dos Escudos, e da Aclamaçaõ, Copiadoz neste Livro; sem bra dos escudos reais. Tais despesas vão dispostas no
que nelles se faça mençam do Governador, achandose no Seremonial
de huã, e outra acção disposto, que vây entre a Camara; se fás 53 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
necessario declararse a rezam para que conste a verdade no futuro» lv.º 286, ls. 26v.º-27v.º.
(ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750- 54 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
1854), lv.º 286, l. 26v.º). lv.º 286, l. 28v.º.

164
quadro seguinte e somam, no total, com a inclusão Armadores e Armação «e o mais» – Sé –
dos custos havidos com a aclamação de D. José I, 322$645
Exéquias
1:651$390. Sendo que as despesas com a aclamação
Desarmação – Sé 14$350
orçaram os 169$800, as exéquias de D. João V totali-
zaram 1.481$590. Cera e Música «e o mais» – Exéquias 317$700
Quebra dos Escudos 10$510
Tabela V Aclamação 169$800
Despesas Realizadas, pela Câmara Municipal do total 1:651$390
Funchal, nas Cerimónias Fúnebres pelo Falecimento
Fonte: ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal
de D. João V (1750) (1750-1854), lv.º 286, ls. 29-39v.º, 41v.º-43v.º.

Designação Quania
Féria de Mestre e Oiciais de Carpintaria – No entanto, ressalve-se que a cifra das despe-
21$845
24-X-1750 – Mausoléu* sas realizadas com as honras fúnebres não se icou
Féria de Mestre e Oiciais de Carpintaria – pelo total mencionado. Em boa verdade, para além
19$065
31-X-1750 – Mausoléu de 1.481$590, foram despendidos 360$500 numa
Féria de Mestre e Oiciais de Carpintaria – despesa especíica já por nós conhecida: «em baetas,
24$600 pellos Lutos que deo o Senàdo, na forma costuma-
07-XI-1750 – Mausoléu
da, por maoñs de Nicoláo Francisco Borges, Recebe-
Féria de Mestre e Oiciais de Carpintaria –
25$690 dor do imposto no alqueire de Sal, que ao povo se
14-XI-1750 – Mausoléu
vende»55. A soma global chegou, assim, a 2:011$890.
Féria de Mestre e Oiciais de Carpintaria –
27$385 A 28-VIII-1751, o Juiz de Fora, os Vereadores e o
21-XI-1750 – Mausoléu
Escrivão da Câmara, nos Paços do Concelho, viram e
Féria do Mestre e Oiciais de Carpintaria –
27$010 examinaram
28-XI-1750 – Mausoléu **
«a conta da Receyta, e despeza, que deu Pe-
Féria do Mestre e Oiciais de Carpintaria –
27$530 dro Ferreira Henriques, como Recebedor do
05-XII-1750 – Mausoléu
dinheyro aplicado, á despeza da fração dos es-
Féria do Mestre e Oiciais de Carpintaria – cudos, e das exzequias do Senhor Rey Dom João
27$810
12-XII-1750 – Mausoléu o quinto, e da Aclamação do Senhor Rey D. Rey
Dom Jozeph»56.
Féria do Mestre e Oiciais de Carpintaria –
15$350
17-XII-1750 – Mausoléu
Pregaria – Mausoléu 32$410 O total, como se disse, com a exclusão da bae-
Madeiras – Mausoléu 222$895 ta, montou a 1.651$390. A Câmara inha disponíveis
para a celebração das cerimónias 1.624$200: como
Pano, Tintas, Grude, Gesso, Carvão, Lenha,
demos nota em linhas precedentes, 1.600$000 por
Ouro, Prata «e o maiz que se vé na conta» 116$045
– Mausoléu intermédio de emprésimos e 24$200 através da
venda de tecidos usados. Assim, houve um excesso
Pintores – Mausoléu 144$000 de despesa, de 27$190, o qual ordenou-se que fosse
Baeta, Tafetá, Veludo «e o maiz para o
84$750
Adorno» – Mausoléu 55 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-
1854), lv.º 286, l. 45. Todavia, não localizámos a realização desta
despesa num livro de Mandados do Sal, de 1744 a 1752 – cuja
* Nesta despesa está incluído um dia despendido, pelo mestre referência é ARM, CMF, Mandados do Sal (1744-1752), lv.º 124 –,
carpinteiro, na escolha de chaprões e tabuado na Alfândega e na o qual analisámos no âmbito da nossa dissertação de mestrado, e
«caza de Scotte» (ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de sistematizámos, numa tabela, a informação nele presente (SANTOS,
Portugal (1750-1854), lv.º 286, l. 29). 2010, O Sal na Ilha da Madeira na Segunda Metade de Setecentos –
** É indicado na fonte que, na féria desta data, assim como nas semanas Penúria, Poder e Abastecimento, pp. 325-332, Tabela LIII – Despesas
seguintes, «com Licença do Ordinario se trabalhou nos dias de Custeadas com o Imposto do Sal – VI-1744 a III-1752).
preceito», entenda-se, nos dias interditados pela Igreja (ARM, CMF, 56 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), lv.º 286, l. 31). lv.º 286, ls. 43-43v.º.

165
pago através do imposto do sal, pelo tesoureiro deste O conjunto de documentos e informações re-
tributo, Nicolau Borges. E, na verdade, disso temos gistados no códice que temos vindo a seguir, a par
conirmação num livro de Mandados do Sal, respei- e passo, termina, quanto à questão das fesividades
tante aos anos de 1744 a 175257. pelo falecimento de D. João V, com uma resposta à
peição anteriormente citada. Assim, D. José I, por in-
Tão sumptuosos ritos funerários implicaram,
termédio do Desembargo do Paço, solicita ao Juiz de
portanto, a realização de despesas substanciais. Des-
Fora do Funchal que «informe com o seu pareçer, ou-
ta circunstância decorreu que o município ivesse de
vindo aos ofeciais da Camara, Nobreza, e povo, de-
pedir a D. José I autorização para, das receitas da im-
clarando a verdadeyra emportancia desta impozição
posição do vinho58, saldar as dívidas contraídas. Isso
e da parte, que está aplicada aos Lazaros»61.
mesmo é percepível na «Copia da peição, que o Se-
nádo féz a Sua Magestade para mandar pagar pela Em carta de 23-XII-1750, a Câmara do Funchal
impoziçam do vinho o dinheiro, que icou devendo»59. paricipa ao monarca reinante a celebração das ceri-
Neste documento é dito que a totalidade das despe- mónias fúnebres analisadas e, por conseguinte, envia
sas feitas, quer na quebra de escudos, quer nas exé- um registo – consubstanciado num auto e num livro
quias, quer ainda na aclamação do novo monarca, – das mesmas. Lemos na dita missiva o seguinte.
importaram em 2:011$890 (como mencionado). No «pelo devido á memoria de hum tão bom Rey
entanto, «por não ter a dita Camara, nem poder dis- e Snõr., se procedeo nesta Cidade, á verdadei-
pender maiz, pelo lemitàdo do seu rendimento», do ra demonstração de Senimento da fração dos
que 411$890, icou assim devendo 1:600$000 – ou, Escudos, no dia dezanove do corrente, e no
consoante a fonte documental, quatro mil cruzados mesmo, á celeberidade das suas Reais Exze-
quias na Igreja Cathedral dela, com a Ordem,
–, a Francisco Teodoro, Pantalião Fernandes, Dionísio
Óstentação, e aparato, que consta do auto, e Li-
dos Santos Silva e Domingos da Nóbrega. vro62 junto: o que com o joelho em terra, e com
Na peição apontou-se, como sabido, que os a veneração maiz profunda, poem aos péz de V.
Magestade este Sennado, por ser tudo hua ver-
membros do Senado, no caso de o monarca não
dadeira coleção, do que com Lagrimas obrou o
entender auxiliar no saldar da dívida, obrigaram os Senimento publico desta cidade, pela morte do
bens e rendas do município (em jeito de iança), e, Monarcha, de quem os seus moradores recebe-
faltando estes, as suas próprias fazendas. Por isso rão muito avultados beneicios.»63.
– «como a [...] Camara, não tem com que pague»;
Supplicantes referem, pella occaziam dela, foy muito da honra,
tendo em consideração que as receitas da imposição e innobrecimento daquella Cidade» (ARM, CMF, Exéquias e
do vinho, como esipulado, eram usadas «na honra, e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), lv.º 286, l. 46v.º).

inobrecimento da dita Cidade»; por se entender que 61 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854),
lv.º 286, l. 47.
as honras fúnebres conduzidas, e correspondente 62 No livro dos Mandados do Sal (1744-1752), anteriormente citado,
invesimento, se inseriam neste âmbito (o de contri- vemos um registo, de 10-X-1750, do pagamento de 1$000 a um
mestre livreiro, relativo a um livro para as exéquias de D. João V
buir para a honra e o enobrecimento da urbe) – o (SANTOS, 2010, O Sal na Ilha da Madeira na Segunda Metade de
município solicitou que se pagasse «pela dita Renda Setecentos – Penúria, Poder e Abastecimento, p. 331), despesa esta
da impozição do vinho, sem prejuizo da parte aplicá- que nunca é mencionada no livro de exéquias e aclamações aqui
analisado.
da, ao Hospital dos Lazaros e á creação dos meninos Alberto Artur Sarmento relata, sem mencionar fonte documental,
expostos»60. que «Imponentíssimas foram as solenidades das exéquias celebradas
na Sé Catedral do Funchal, relatando as quais, mandou fazer a
57 Veja-se SANTOS, 2010, O Sal na Ilha da Madeira na Segunda Metade meritosa Camara um «livro de setenta meyas folhas, de letra a côres,
de Setecentos – Penúria, Poder e Abastecimento, p. 331, Tabela LIII – que foy a Sua Nova Mag.de com a pintura e descripção do mauzoléo,
Despesas Custeadas com o Imposto do Sal – VI-1744 a III-1752. e com as poesias e emblemas, assim latinos como vulgares, e com o
traslado do Sermão que pregou nas Exequias o Rd.º Deam da Sé desta
58 Sobre este imposto leia-se VIEIRA, 2003, A Vinha e o Vinho na Cidade, o D.or Antonio Montr.º de Mir.da (Monteiro de Miranda)».
História da Madeira. Séculos XV a XX, pp. 305-314 e SOUSA, 2004, «Este livro foi encerrado numa artística bôlsa de veludo, com um
O Exercício do Poder Municipal na Madeira e Porto Santo na Época letreiro de prata, para ser presente a Sua Majestade el-rei D. José I, seu
Pombalina e Post-Pombalina, pp. 205-215. ilho e herdeiro do trono, em piedosa homenagem da Cidade, pelo
59 ARM, CMF, Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), Magnânimo Pai.» (SARMENTO, 1947, Estudos Históricos da Minha
lv.º 286, ls. 46-46v.º. Terra (Ilha da Madeira), 2.º vol., p. 210; o itálico é do autor).
60 Pagamento que seria feito, de acordo com a argumentação camarária, 63 O documento continua, em tom reverencial: «Sirvasse V. Magestade,
«em remoneração dos Serviços feitos, pelloz Vezinhos, e moradores pela Sua grande clemencia, de admetir a quem tão cheio de veneração,
da parte, e jurisdição do Funchal da dita Ilha, e a despeza, que os e respeito, aos Seus Reaiz péz chega, nam medindo o que se obrou,

166
Aqui chegados, devemos deixar lavradas algu- paricipação decorreria na qualidade de espectado-
mas considerações inais. res passivos, depositários – pressupõe-se que emo-
cionados e impressionados – das manifestações de
As cerimónias fúnebres decorrentes do faleci-
poder e das mensagens simbólicas e ideológicas que
mento de D. João V, no Funchal, acabaram por cons-
viram desenrolar-se perante os seus olhos66. E, neste
ituir uma representação simbólica do poder real,
paricular, devemos deixar aqui uma pergunta, acaso
por um lado, e do poder municipal, por outro. Quer
irresolúvel: que manifestações populares espontâ-
a monarquia, quer o concelho, colheram, no im de
neas exisiram à margem do que foi planeado pela
contas, um relevante capital políico e de visibilidade
Câmara do Funchal?
perante os súbditos que pariciparam, ou de modo
passivo, ou de forma aciva, nos rituais, capital esse
que se transformaria em doutrinação, submissão e
unidade64. Tomando parte do que sugerimos relaiva-
mente às manifestações de pesar em inais do século
XIX e inícios da centúria seguinte65, airmamos que
em 1750 o poder local não terá desprezado a oportu-
nidade para airmar o seu poder enquanto tradutor
e representante, por um lado, dos senimentos dos
funchalenses e, por outro, da grandeza do poder real.
As cerimónias que pudemos observar apresen-
taram-se como planiicadas, rígidas, austeras e, em
certa medida, sumptuosas – ou seja, bem ao jeito da
época –, como deixam transparecer as despesas rea-
lizadas pela Câmara Municipal, de que são exemplo o
mausoléu e as decorações da Sé do Funchal.
Parte da nossa leitura das fontes foi direccio-
nada para a procura e recolha de indicadores que
suportassem, a par de uma história das mentalida-
des (no capítulo das aitudes perante a morte), uma
história dos poderes e uma história social. E, neste
úlimo caso, as fesividades reais observadas foram,
em nosso entender, um mostruário dos grupos hie-
rarquicamente posicionados no topo da sociedade –
um palco, se quisermos, para a encenação das elites
administraivas e sociais do Funchal – e da Madeira –
de meados da centúria setecenista. Ocorre, por este
facto, interrogar acerca do lugar que ocuparam os
grupos populares. Só podemos asseverar que a sua
pelo muyto, que se devia, por ser imcomparavelmente mayor a
óbrigação, do que o comprimento dela; mas sim, pela idelidade dos
coraçoiñs com que tudo se féz.» (ARM, CMF, Exéquias e Aclamações
dos Reis de Portugal (1750-1854), lv.º 286, ls. 40-40v.º).
64 Anota Jaime Ferreira-Alves que as festividades «ao serviço da Família
Real» «servem e são utilizadas como uma forma de as diversas
estruturas sociais mostrarem a sua idelidade ao Rei acompanhando, 66 Como aconteceu em Valência no inal da penúltima década de
como um só corpo, as alegrias e as tristezas que o afectam.» Setecentos: «Por su parte el nivel inferior, el pueblo valenciano en
(FERREIRA-ALVES, 1993, «O «Magníico Aparato»: Formas da su acepción de masa social desempeña la función de espectador,
Festa ao Serviço da Família Real no Século XVIII», p. 211). de receptor de mensajes ideológicos, los que le envía la monarquía
65 SANTOS, 2010, «Suspensões do Quotidiano: Manifestações Públicas y los que interiere el poder local.» (MONTEAGUDO ROBLEDO,
de Pesar, no Funchal, pelos Falecimentos de D. Luís (1889) e de D. 1996, «La Exaltacion de la Monarquia en Valencia: Poder, Sociedad e
Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe (1908)», p. 624. Ideologia en las Exequias de Carlos III», p. 191).

167
FoNteS mANuScRItAS e ImPReSSAS: ARM, CMF, primeiro, s.l., Secretaria Regional da Educação e Cultura.
Exéquias e Aclamações dos Reis de Portugal (1750-1854), SOUSA, Ana Madalena Trigo de, 2004, O Exercício do Poder
lv.º 286. ARM, CMF, Foral – Regimento da Cidade de Lisboa Municipal na Madeira e Porto Santo na Época Pombalina
e Foral da mesma (1505-1517), lv.º 401. ARM, CMF, Regis- e Post-Pombalina, Funchal, Centro de Estudos de História
to Geral – Tomo 9.º (1735-1754), lv.º 1220. BLUTEAU, Ra- do Atlânico. TEDIM, José Manuel, 1999, Festa Régia no
phael, 1712, Vocabulario Portuguez e Laino [...], [vol. II], Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte Efémera, vol.
Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus. «Prag- I, Dissertação de Doutoramento em História da Arte – Uni-
maica do Anno de 1749», 1771, in Collecçaõ das Leys, versidade Portucalense Infante D. Henrique, Porto. TEDIM,
Decretos, e Alvarás, que Comprehende o Feliz Reinado del José Manuel, 2003, «A festa e a cidade no Portugal bar-
Rey Fidelissimo D. Jozé o I. Nosso Senhor Desde o anno de roco», in Actas do II Congresso Internacional do Barroco,
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