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Dança e Corpo Humano – disciplinas biomédicas em dialogo com a arte

Profª. Drª. Marta Simões Peres


Professora Adjunta do Departamento de Arte Corporal
Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ
Doutora em Sociologia (UnB) com pós-doutorado em Antropologia (IFCS/UFRJ)

Resumo: As disciplinas da área biomédica são indiscutivelmente relevantes na grade


curricular de uma graduação em Dança. Entretanto, faz-se necessário ter em mente os
principais objetivos desse aprendizado, dentre os quais, podemos elencar: não se
machucar, máxima de Hipócrates; não machucar os outros - parceiros e alunos; ampliar o
leque de possibilidades expressivas do corpo; utilizar a dança como abordagem terapêutica.
A estrutura de disciplina “Dança e Corpo Humano” foi construída a partir do diálogo de
conteúdos da fisiologia com o Sistema Laban-Bartenieff de Análise do Movimento.
Finalmente, além das aulas expositivas, o tempo dedicado à prática não é mero
entretenimento, mas o coroamento que dá real sentido ao ensino das disciplinas em
questão.

Palavras-chave: Graduação em Dança; disciplinas biomédicas; arte e ciência;


transdisciplinaridade.

Embora tenha sido aprovada e integrada, como professora, o setor “Técnica de


Dança” do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos,
devido a uma inusitada conjugação entre demandas internas do departamento e minha
formação acadêmica[1], fui convidada para ministrar, em 2007, a disciplina “Cinesiologia”,
em 2008, Fisiologia do Exercício e, finalmente, em 2009, “Dança e Corpo Humano”, que
veio a substituir e sintetizar, direcionada para profissionais da área de Dança, no novo
currículo dos cursos oferecidos[2], as anteriores “Fisiologia Geral”, “Fisiologia do Exercício”
e Bioquímica.
A Fisiologia consiste no ramo da biologia que estuda as múltiplas funções dos
seres vivos, mecânicas, físicas, bioquímicas, dela nos interessando em especial a Fisiologia
Humana. O radical grego “physis” quer dizer natureza, e é o mesmo de “física”, ciência que
estuda as propriedades dos corpos e leis que tendem a modificar seu estado e movimento.
Antes da criação de “Dança e Corpo Humano”, já vínhamos chamando, no curso de dança,
a disciplina “Fisiologia do Exercício” de “Fisiologia do Movimento”, considerando a palavra
exercício proveniente de uma determinada concepção de corpo baseada no militarismo,
afinada com a idéia de “exército”, enquanto para o bailarino a ênfase deveria ser sobre as
qualidades expressivas do movimento.
Recordamos que, na UFRJ, o processo histórico de implantação da dança
enquanto curso de graduação está intrinsecamente ligado à educação física, campo de
conhecimento, por sua vez, fortemente influenciado pelas práticas militares. O
Departamento de Arte Corporal integra a Escola de Educação Física de Desportos, onde se
formou e ensinou durante décadas a Professora Emérita Helenita Sá Earp, cujo trabalho
consiste na principal referência teórica ao longo da existência da dança na UFRJ.
Desse modo, é uma consequência esperada que a nossa grade curricular tenha
recebido grande influência daquela da graduação em Educação Física, em especial no que
diz respeito à inclusão de disciplinas comuns a ambos da área biomédica. Vale ressaltar que
algumas destas disciplinas estão presentes em inúmeros outras graduações em dança do
Brasil e de outros países.
Entretanto, ao longo do amadurecimento da dança enquanto campo de
conhecimento, atuação profissional e experimentação artística, vem se fazendo necessária
uma reflexão a respeito da metodologia utilizada para o ensino das disciplinas biomédicas,
já que, na dança, seu objetivo possui peculiaridades que a diferem em seus objetivos das
ministradas nos demais cursos da área de educação e saúde, tais como a própria educação
física, a fisioterapia, a psicologia e a medicina.
Assim como o conhecimento de anatomia, de grande relevância para um artista
plástico, exige um enfoque próprio para o mesmo, tal como nas aulas práticas de “modelo
vivo”, os conteúdos das disciplinas biomédicas são de grande valia para um estudante de
dança, desde que, na prática docente, sejam esclarecidos e se tenha em mente seus
principais objetivos. Podemos elencar, que o artista de dança deve conhecer o corpo
humano, sua anatomia e funcionamento para:
1 – não se machucar – ou não se lesionar, não se ferir. Trata-se da máxima de
Hipócrates, pai da medicina, que viveu na Grécia Antiga;
2 – não machucar os outros – englobando desde os parceiros de aula, pesquisa
e cena, até alunos, para os que vierem a se tornar professores de dança;
3 – ampliar o leque de possibilidades expressivas – no sentido de explorar o
máximo o instrumento, fonte e obra, que é o próprio corpo do bailarino;
4 – utilizar a dança como abordagem terapêutica – a literatura científica relata
inúmeros benefícios em diferentes campos da saúde, desde a prevenção ao tratamento de
afecções variadas.
Ressalvados nossos objetivos, tendo como eixo central os conteúdos anátomo-
fisiológicos, podemos citar como importantes referências para a fundamentação teórica e
prática deste campo, as seguintes linhas de pensamento:
- Sistema Universal da Dança, de autoria da Professora Helenita Sá Earp;
- Técnicas Corporais situadas no campo da Educação Somática – Eutonia de
Gerda Alexander, Técnica de Alexander, Método Mézières, Consciência do Movimento de
Feldenkrais, Abordagem Corporal de Angel Vianna, dentre os principais deles;
- Conhecimentos oriundos da Medicina Chinesa;
- Pontos de vista da filosofia acerca do corpo, saúde, prazer, doença;
- Sistema Laban-Bartenieff de Análise do Movimento.
Dentre essas referências, elegemos como ponto de partida para a geração de
pontes entre diferentes campos de conhecimento e arte, o Sistema Laban-Bartenieff de
Análise do Movimento.
Inicialmente, é exposta uma síntese histórica da constituição deste campo, desde
os pensadores pré-socráticos gregos - não por acaso, chamados de fisiólogos, physiologói -
passando por Claude Bernard, até os dias de hoje, na intenção de situar o advento da
ciência moderna baseada na racionalidade ocidental enquanto uma entre demais formas de
conhecimento humano, considerando que o interesse principal de nossos estudantes é a
arte.
Em seguida, os diferentes sistemas corporais são estudados em relação com os
fatores de qualidade de movimento, na seguinte ordem: fluxo, peso, espaço e tempo.
Recordamos que cada um destes, por sua vez, para Laban, relacionava-se a determinado
elemento da natureza e a um sólido geométrico regular[3]. Os sistemas fluidos, portanto,
são relacionados ao fator “fluxo”; o sistema muscular, ao fator “peso”, o sistema ósseo, ao
fator “espaço” e, finalmente, o sistema nervoso, ligado ao fator “tempo”.
O fluxo refere-se à progressão do movimento, questionando-se qual o tipo de
sensação presente ao se iniciar, continuar ou interromper um movimento, de maneira livre
ou cautelosa, contida. Qual é a atitude de quem se move em relação ao seguimento, ao fluir,
com continuidade ou retração do movimento? Conectamos estas idéias aos sistemas fluidos
do corpo - sejam eles, os fluidos celulares, intersticiais, o sangue (sistema circulatório), a
linfa, o líquido sinovial que lubrifica as articulações e o líquor, ou líquido cefalorraquidiano,
correspondente a uma espécie particular de linfa do sistema nervoso central – e suas
respectivas localizações corpóreas.
O fator peso está ligado à intenção que ser imprime ao realizar determinado
movimento. Que tipo de impacto se cria ao se movimentar, leve, ou forte, assertivo? Essas
qualidades diretamente relacionadas à maneira como se percebe o peso, ou ao uso que se
faz dos próprios músculos. A proposta é que o estudo com ênfase na musculatura estriada
esquelética, a que mais nos interessa para a dança, os mecanismos de regulação do tônus,
de geração da contração muscular e transmissão de força aos ossos, barras rígidas do
sistema articular elementar, por meio dos tecidos conjuntivos, bainhas, tendões,
aponeuroses e fáscias, seja compreendido do ponto de vista da intenção expressiva.
O fator seguinte fala de como nos relacionamos com o espaço, como nele nos
colocamos, trazendo à tona a qualidade da atenção, daí a relação com os sistemas visual e
o ósseo. Enquanto o sentido da visão, um dos cinco responsáveis pela transmissão de
informações “exteroceptivas”, ou seja, acerca do meio ambiente, também contribui com o
controle da postura, os sentidos da propriocepção - percepção da posição dos segmentos
no espaço – e do equilíbrio, ao trazerem informações “de dentro” do corpo, são hoje
considerados pelos pesquisadores nossos sexto e sétimo sentido.
Finalmente, o último fator refere-se a quanto tempo disponho para realizar uma
ação, o que torna o movimento urgente, apressado, ou ralentado, ou seja, passível de
adiamento. No corpo, o sistema nervoso é o principal responsável por esta qualidade, de
modo que os conteúdos ligados à transmissão de sinal eletroquímico ao longo dos
neurônios, os potenciais elétricos da membrana celular, o princípio do “tudo ou nada”,
estímulos excitatórios e inibitórios, são relacionados ao caráter de “decisão” constitutivo do
fator tempo.
Além disso, uma proposta inovadora se perderia se não houvesse a possibilidade
de experimentar no próprio corpo os conteúdos apreendidos. O tempo dedicado à prática,
em salas de aula de dança, parte indissociável e integrada às aulas expositivas, não é mero
entretenimento, mas o coroamento que dá real sentido ao ensino de disciplinas biomédicas
numa graduação em dança. Desse modo, utilizamos propostas oriundas de técnicas
corporais para trazer ao corpo a compreensão desses conteúdos, tais como relaxamento
ativo e pesquisa de movimento, mobilizações, em duplas e em grupo, criação de frases
coreográficas.
Relacionar a teoria da cinesiologia e da fisiologia à criação artística em dança
tem sido um desafio que vem rendendo frutos a partir das questões levantadas por essa
reflexão, concretizados na realização de trabalhos escritos, coreográficos e videográficos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AIRES, Margarida de Mello. Fisiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007.

FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: O Corpo em Movimento: o Sistema


Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.

HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O cérebro nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Vieira e


Lent, 2007.

[1] Parte de minha formação foi no campo das ciências da saúde, já que possuo graduação em Fisioterapia e
Mestrado em Ciências da Saúde, na linha de pesquisa em Biomecânica.
[2] Bacharelado em Dança, Licenciatura em Dança e Bacharelado em Teoria da Dança.
[3] Os ‘sólidos regulares’ ou ‘perfeitos’ são também chamados de ‘platônicos’ ou ‘pitagóricos’ - em referência a
Platão (428-347 a.C.) e a Pitágoras de Samos, filósofo pré-socrático (século VI a.C.), célebre pelo teorema a
respeito dos catetos e hipotenusa do triângulo retângulo. Esses sólidos são formados por faces idênticas: o
tetraedro, uma pirâmide regular, é constituído por quatro triângulos equiláteros; o cubo, por seis quadrados; o
octaedro, por oito triângulos equiláteros; o dodecaedro, por doze pentágonos; finalmente, o icosaedro, por vinte
triângulos equiláteros. Somente estes cinco sólidos podem ser construídos com todas as faces iguais.
Perfeitamente simétricos, podem ser inscritos numa esfera de modo que seus vértices toquem internamente sua
superfície, ao mesmo tempo em que, circunscritos à outra esfera, esta toca o centro de cada uma de suas faces.

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