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Gustavo Martins
Por vales sem fim busquei algo que não conhecia,
—Eu gostava daquela cidade. – a jovem disse, distraída – Ela era realmente bonita na
primavera.
O homem ao seu lado a fitava piedoso. Recolhera aquela garota das ruínas de uma
cidade há poucos dias e pela primeira vez ela parecia disposta a falar do ocorrido.
—Nos dias muito quentes as pessoas iam à praça central e ficavam conversando por
horas sem parar. Bem, ao menos os adultos eram assim. As crianças só pensavam em
brincar, não importava o clima. – ela então silenciou-se por um instante e olhou para
seus pés feridos pela longa caminhada que tivera de fazer para chegar na casa onde se
encontrava – Sempre quis poder fazer aquilo também. Quero dizer, sair por aí correndo
e brincando sem ter com o que me preocupar. Deve ser bem divertido, não acha?
—Tem razão, esse é o tipo de coisa divertida que apenas se pode fazer quando se é
uma criança. No meu tempo de garoto tínhamos o costume de nos reunir para tentar
apanhar insetos.
—Devia ser maravilhoso. Gostaria de ter podido fazer esse tipo de coisa.
—Não, hoje em dia não. Há dois séculos esse tipo de coisa era comum, mas é o tipo
de coisa que se abandona com o tempo.
—Foi o que pensei.
Uma rajada leve de vento fez trepidar a chamas da lareira e logo a chaleira apitava na
cozinha. O homem levantou-se lentamente e desapareceu por trás da porta de madeira.
A garota então percebeu o quão grande e vazia era a sala onde estavam. Apenas alguns
poucos móveis a decoravam e a única lâmpada brilhava no teto dava ao todo um aspecto
triste. Ela tentou imaginar que tipo de homem era aquele com quem conversava, mas
não chegou a conclusão alguma. Era difícil para ela, que poucas vezes via alguém que
não fosse ligado ao comando daquela cidade, decifrar alguém era uma tarefa ingrata.
O tempo começava a esfriar e seu vestido de tecido fino mais a enfeitava que
aquecia. Colocou os pés sobre o sofá e abraçou os joelhos, tentando manter o calor
dentro de si. Por diversas razões já estivera nessa posição várias vezes. Em sua memória
correram imagens das longas noites escuras as quais passou sozinha em seu quarto. Tão
dolorosas eram as lembranças que se permitiu chorar tão desesperadamente quanto
permitiam seus pulmões. O cansaço da longa viagem somado ao choro havia tomado de
seu corpo mais energia do que alguém poderia possuir. A jovem então caiu em sono
profundo.
Em seu sonho viu-se caminhando livremente por aquela cidade. Todos ao seu redor
alegremente faziam suas atividades diárias. Sentiu uma alegria terna tomá-la e desejou
fazer parte daquilo. Um brinquedo de criança veio voando em sua direção, caindo a seus
pés com leveza. Seus donos, um grupo de meninos, pediram-na que jogassem o objeto
para eles. A jovem abaixou-se para fazer como lhe fora pedido, mas não conseguiu
completar a tarefa. Quando deu por si estava presa outra vez no escuro cômodo onde
por anos residiu. Viu aqueles a que amava se distanciarem, continuando suas v idas sem
sequer lembrá-la. Tentou agarrar suas imagens, mas era impossível. Ao seu redor a
escura sombra a fechava em seu cerco. Por mais que resistisse, os tentáculos pérfidos
dos imundos seres que habitavam aquele mundo eram mais fortes. Desejavam sua
clausura e nada os podia impedir. Após uma longa luta tombou, exausta e sem
esperanças, num poço profundo. Fechou os olhos, abandonando-se no desespero que a
tomara. Tudo se perdera, sabia disso.
Quando decidiu novamente ver o que acontecia ao seu redor, qual não foi sua
surpresa ao deparar-se com aquela mesma cidade, agora ardendo em chamas e
perecendo enegrecida sob o ataque furiosa de bestas colossais, aberrações indescritíveis
cuja própria existência negava todas as leis físicas conhecidas. A jovem fitava
desesperada as criaturas, pois no fundo de tais monstros via algo que a aterrorizava
ainda mais: sua própria mente deformada.
A jovem desceu até eles o mais rápido que pôde, mas quando chegou a menina já
partira.
O homem foi em direção a casa, seguido de perto pela jovem. A explicação fora boa,
mas ainda sentia que algo de errado se escondia atrás daquela visita. Pelo resto do dia
tentou descobrir do que se tratava, mas não obteve sucesso. Quando a noite chegou os
dois jantaram juntos e enquanto o homem tratava dos pratos, a garota foi para o lado de
fora.
Na sua quarta noite de sua estadia naquela casa o tempo havia esfriado mais que o
normal. O vento forte penetrava por entre as frestas com um silvo agudo. O clima
depressivo fez todos ficarem dentro de suas casas, protegendo-se do frio. O homem já
fora dormir e a jovem lia deitada no sofá. Subitamente ouviu-se um farfalhar de folhas
do lado de fora, como se alguém tentasse se mover furtivamente. A garota sentiu seu
coração disparar, pois sabia que o que quer que fosse aquilo, não era bom. Caminhou
lentamente em direção à janela, tentando desde o início enxergar o que quer que
estivesse lá. Tudo que via, porém eram as sombras imóveis das árvores. Não havia vida
alguma do lado de fora, nenhum movimento, nem mesmo o vento parecia soprar aquela
noite. Apenas a escuridão e o som baixo das folhas sendo empurradas por algo.
Aproximando a face do vidro da janela, a garota tentou ver o que causava aquele
barulho. Porém, nada viu. Olhou para o pequeno parque à distância, onde apenas o
balanço se movia de trás para frente e então retornava. Era como um pêndulo a
eternamente contar os segundos restantes para o a meia-noite. Foi então que o viu.
A criatura era de uma monstruosidade indescritível. Todo seu corpo era formado por
uma massa negra homogênea na qual se viam centenas, talvez milhares, de pontos
vermelhos brilhantes. Seus braços, mais longos que todo o resto do corpo, terminavam
em aberturas que pareciam ser bocas. De suas costas brotavam apêndices disformes
cujas pontas guardavam algo que para qualquer um eram rostos humanos, pois de fato,
era o que eram. Centenas de rostos humanos diferentes entre si.
A garota tentou correr, porém já não tinha mais para onde fugir. Estava no segundo
andar, se pulasse pela janela dificilmente poderia continuar se movendo e dentro
daquele quarto não havia um lugar onde se esconder ou para onde fugir. Estava
encurralada. A criatura ergueu-se sobre as pernas elevando-se até o teto e, com um som
aterrador, abriu seu tronco, revelando dentro dele uma região negra. Não se tratava de
um negro como a noite ou como o breu, era mais escuro que ambos. Era como se aquele
objeto absorvesse toda luminosidade atirada contra ele. Um disco sombrio do qual nada
podia escapar.
De dentro do disco brotaram longos tentáculos negros cujas pontas abriam-se como
bocas de répteis ansiosos para devorar algo. Quando eles se precipitaram sobre o corpo
frágil da garota ela nada pôde fazer. Num instante estava coberta por aquelas coisas a
mordê-la vorazmente. E naquele momento ela temeu. Temeu morrer naquele lugar,
temeu nunca mais poder ver as estrelas a brilhar no céu noturno. Temeu nunca mais
sentir a brisa do vento sobre si. Temeu nunca mais ver aquele homem que lhe mostrara
que nem tudo era dor.
A garota não sentiu dor alguma quando seu braço foi arrancado pela criatura e sequer
notou quando teve o abdômen perfurado pelos tentáculos. Por alguma razão nada
daquilo lhe parecia real. Foi então que percebeu algo que a fez se perder. Aquela
criatura, aquela disforme manifestação das sombras, era o mesmo que aqueles monstros
que vira na cidade. Tratava-se da mesma espécie de criatura que ela usara para destruir
aquele maldito lugar e aquelas malditas pessoas. Lembrou-se então de como fora tirada
dos pais quando descobriram que ela atraía tais criaturas. Decidiram usá-la como arma
independentemente de sua vontade. Lembrou-se dos dias frios sob a chuva e o granizo,
nos quais tinha de matar pessoas que não conhecia. Aqueles dias em que seu corpo era
ferramenta de homens imundos. Achavam que podiam usá-la como quisessem.
Acreditavam que enquanto mantivessem-na trancada ela não poderia chamar pela ajuda
das aberrações que a obedeciam. Mas estavam errados, pois aqueles seres das não eram
seus vassalos, eles eram parte dela. Eram filhos de seu sangue e de sua carne.
Personificações de sua mente e de seus sentimentos. O quão não gritaram aqueles
homens ao descobrirem isso no dia em que foram esmagados pelas bestas saídas de seu
corpo.
Com o braço que lhe restava a garota facilmente decepou o tentáculo que lhe
perfurara o abdome, fazendo a criatura soltar um urro de dor. Era um grito desesperado,
grave, amedrontador, mas para aquela garota era uma sinfonia agridoce, o coro de um
filho de seu ventre. Livrou-se de todas as bocas que lhe mordiam e mesmo brutalmente
mutilada caminhou em direção à besta agonizante. Rasgou-lhe o disco negro, decepando
as extensões que dele saíam. A besta então caiu de joelhos perante sua criadora. Seus
milhares de olhos estavam opacos, sinal da eminência de sua morte. A jovem acariciou
a cabeça da besta. Um gesto final de compaixão de uma mãe para com seu filho rebelde.
Então, com um esforço ínfimo, rasgou a aberração da cabeça ao abdômen, fazendo-a
desfazer-se numa poça d’um líquido negro e viscoso.
Em seu profundo sono viu-se correndo por vastos campos verdes. Buscava algo que
não sabia o que era. Quanto mais avançava mais se sentia perdida e mais o desespero
crescia em seu peito. Quando por sobre o tapete verde caiu a noite escura tudo se desfez
em mágoa. Olhou para suas mãos manchadas pelo sangue de tantos e viu delas surgirem
terrores indescritíveis. Viu-se então sentada num trono de carne perante o qual se
prostravam todas bestas de planos anormais.
—Desculpe ter permitido isso. – sussurrou ele – Queria ter estado com você, mas era
algo que tinha de fazer sozinha. Entendo como foi difícil e por isso me desculpo.
E segurando na mão daquele que lhe recolhera a jovem ergueu-se, orgulhosa. Não
importava quem ou que tivesse de enfrentar daí em diante, não iria se esconder ou
recuar. Não mais temeria aquilo que havia dentro de si e não mais permitiria que a
usassem, pois sob uma lua de primavera uma Rosa Mosqueta floresceu.