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B
lúcio costa
Texto apresentado no seminário
“Repensando o Brasil com Sérgio
Buarque de Holanda”, 4o seminá-
rio do ciclo “O Brasil e seus Intér-
pretes”, promovido pela Fundação
Biblioteca Nacional, em 6 e 7 de
maio de 2002, sob a coordena-

S
ção de Eduardo Portella e Beatriz
sérgio buarque Resende.

drummond juscelino

Sérgio Buarque
de Holanda:
Visão do Paraíso
LUIZ COSTA LIMA

B
* Esta informação toma por guia
a “Pequena Biografia” de Ma-
ria Odila L. Silva Dias, publi-
cada no número especial, de-
dicado ao autor, da Revista do
Brasil (ano 3, no 6, 1987). O
1. INFORMAÇÃO BIOBIBLIOGRÁFICA (*) interessado em desenvolvê-la
consultará com êxito, além do
número citado, Sérgio Buarque
de Holanda. Vida e Obra (São

P
Paulo, Secretaria de Estado da
Cultura e Universidade de São
Paulo, 1988), Raízes de Sér-
gio Buarque de Holanda (F.
aulista, nascido em 1902, ainda estudante colabora de Assis Barbosa (org.), Rio de
Janeiro, Rocco, 1988, reed.:
1989) e o 3o Colóquio UERJ.
com matérias jornalísticas e literárias no Correio Pau- Sérgio Buarque de Holanda,
com A. Arnoni Prado, Antonio
listano, A Cigarra e Revista do Brasil. Muda-se para o Cândido et alii (Rio de Janeiro,
Imago, 1992).
Rio em 1921, matriculando-se na Faculdade de Direito. Permane-

cendo ligado aos modernistas de São Paulo, é representante da

Na página revista Klaxon e participa da Semana de Arte Moderna de 1922.

anterior, Sérgio Como modo de sobrevivência, continua ligado à imprensa, inte-


LUIZ COSTA LIMA
Buarque de ressando-se, então, sobretudo, pela literatura. Em 1927, foi dire- é professor de Literatura
Comparada da
Holanda na tor de jornal em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Em Universidade do Rio de
redação do junho de 1929, viaja para a Alemanha, sustentando-se, em Berlim, Janeiro e da PUC-Rio e
autor de, entre outros,
Diário Carioca, com colaborações para jornais brasileiros e trabalhando em agên- Ignota. A Construção de
Os Sertões (Civilização
anos 50 cias de notícias, primeiro a brasileira Havas, depois a Associated Brasileira).

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Press. Período capital em sua formação, italiana”. De volta a São Paulo, retomou a
tendo tido a oportunidade de assistir, irre- direção do Museu, só o deixando para as-
gularmente, a aulas de Friedrich Meinecke, sumir a cadeira de História da Civilização
Werner Sombart, Ferdinand Tönnies, Brasileira, na Faculdade de Filosofia de São
Alfred e Max Weber; datam de então suas Paulo. Publica logo a seguir Caminhos e
primeiras leituras sistemáticas sobre o mé- Fronteiras (1957). Referindo-se a seus dois
todo das ciências sociais. Sua importância primeiros livros como historiador estrito,
se mostraria na internalização de catego- Antonio Candido escreveria: “Nunca se
rias do pensamento de Max Weber. Está de tinha visto no Brasil uma corrente herme-
retorno ao Rio em dezembro de 1930. Pu- nêutica de tanta intensidade ligar o esclare-
blica então, na revista Espelho, em 1935, o cimento das relações sociais à aparente
ensaio “Corpo e Alma do Brasil”, primeira insignificância do gesto, do instrumento,
versão do modificado (e a modificar nas do artefato” (A. Candido, 1982, p. 123). É
duas primeiras edições) Raízes do Brasil de 1958 a primeira edição do Visão do Pa-
(1936). Casa-se ainda nesse ano e participa raíso. Os Motivos Edênicos no Descobri-
do projeto da Universidade do Distrito mento e Colonização do Brasil, apresenta-
Federal como assistente de Henri Hauser, do originalmente como tese para a cátedra
em História Econômica Contemporânea, e de História da Civilização Brasileira. Em
de Henri Tronchon, em Literatura Compa- 1972, já como responsável pela “História
rada. Permanece nessa situação até 1939, Geral da Civilização Brasileira”, da qual se
quando o projeto é extinto. Nesse entretem- encarregou entre 1960 e 1972, escreveu Do
po, teve em Hauser o introdutor na apren- Império à República (1972), que formava
dizagem sistemática dos métodos de pes- o vol. V daquela coleção. (Foi então subs-
quisa em história. Trabalhou então no Ins- tituído na organização da História Geral
tituto Nacional do Livro, colaborou, como por Boris Fausto, que se encarregaria dos
crítico literário, no Diário de Notícias e foi volumes finais.) Em 1980, inscreveu-se
redator-chefe da Associated Press. Em como membro fundador do Partido dos
1944, começou a trabalhar na Biblioteca Trabalhadores. Morreu em São Paulo, em
Nacional e publicou Cobra de Vidro, o 4 de abril de 1982.
primeiro de seus livros que chamaremos de Em suma, tomando-se o Raízes do Bra-
crítica cultural – literatura, americanismo, sil como ponto de partida da obra do autor,
sociologia se superpõem a reflexões mes- de evidente caráter de ensaísmo historio-
mo sobre gramática e história. À mesma gráfico-social, é válido dizer-se de Sérgio
direção pertencerá o Tentativas de Mitolo- Buarque de Holanda que, tendo sido antes
gia, embora só reunido em livro em 1979. de tudo um escritor, apresenta duas nítidas
Em 1945, primeiro efeito de seu contato vertentes. A primeira, que chamamos de
profissional com H. Hauser, publica livro crítica cultural, traz dentro de si a forte
de pura pesquisa em história, Monções. No marca do crítico literário que o autor foi
mesmo ano de 1945, assinou a Carta de por muitos anos. A essa deriva ainda per-
Declaração de Princípios, contra a ditadu- tencem a Antologia dos Poetas da Fase
ra Vargas. Em 1946, mudou-se definitiva- Colonial (1952-53, dois volumes), o ina-
mente para São Paulo. Embora continuas- cabado Capítulos de Literatura Colonial,
se a colaborar na Folha Carioca e em A que deveria ter sido o sétimo volume da
Folha de S. Paulo, dedica-se, a partir de “História da Literatura Brasileira”, dirigida
então, sobretudo à pesquisa histórica. En- por Álvaro Lins, organizada e prefaciada
tre 1946 e 1956, foi direitor do Museu Pau- por Antonio Candido, em 1991, e a coletâ-
lista. Entre 1952 e 1954, como professor na nea de suas críticas de jornal, publicadas
Itália, teve oportunidade semelhante àque- entre 1948 e 1959, criteriosamente reuni-
la que se lhe abrira no começo de sua vida das por Antonio Arnoni Prado, sob o título
intelectual, em Berlim. Daí Candido haver de O Espírito e a Letra (dois volumes,
oportunamente falado em uma sua “fase 1996). À segunda vertente, constituída por

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seus livros de escritos da história, ainda se nascimento […]” (M. Y. Linhares, 1977, p.
acrescentariam a extensa introdução à co- 79). Sim, a expressão “história das menta-
letânea de textos de Leopold von Ranke, lidades” é correta embora demasiado vaga,
“O Atual e o Inatual em L. von Ranke” sem que isso prejudique a reconstituição
(1979), e o Extremo Oeste, publicado pos- que pretendo. Já encaminhando para essa
tumamente (1986). reconstituição, isto é, para a verificação do
método subjacente à Visão do Paraíso, é
de se considerar que, insurgindo-se contra
a distinção absoluta entre Idade Média e
2. VISÃO DO PARAÍSO: OS TOPOI Renascimento, Sérgio Buarque escrevera:
“A noção de que existiria uma fratura radi-
COMO CIMENTO DO MÉTODO cal entre a Idade Média e o Renascimento
[…] tende a ser superada em grande parte
Digo sem que me perguntem: tendo ao da moderna historiografia pela imagem de
centro o Raízes do Brasil (1936), Do Impé- uma continuidade ininterrupta” (S. B.
rio à República (1972) e Visão do Paraíso Holanda, 1958, p. 182). A afirmação de
(1958) formam o tripé das obras magistrais “uma continuidade ininterrupta” chega a
de Sérgio Buarque de Holanda. Se do pri- ser surpreendente. Não foi o próprio autor
meiro e do segundo ainda se pode afirmar que, falando das atitudes de espanhóis e
que, basicamente, só interessam aos que se portugueses nos primeiros séculos da colo-
preocupam com o Brasil, a ausência da Vi- nização americana, disse que vicejava “fa-
são do Paraíso na bibliografia internacional cilmente, entre eles, um modo aparente de
se faz em detrimento desta. Independente, ver a natureza que consiste antes em ver
porém, de sua expansão temática, singulari- através e apesar da natureza” (idem, p. 223)?
za-o a questão do método que o funda. Ora, relacionando o modo de ver ibérico à
Ao enunciar a questão, corremos atual- maneira analógica e não descritiva, não
mente o risco de provocar um ataque de estava ele implicitamente apontando para
alergia. Seriam dele responsáveis a buro- dois modos de lidar com a natureza, de que
cracia universitária e os assim chamados o segundo, patrocinado pela ciência, fora
órgãos de fomento à pesquisa. Ante a som- cerceado na Idade Média? Duas conclu-
bra – e como ela é extensa! – das duas, sões provisórias então se impõem: a) os
falar-se, entre nós, em método antes parece colonizadores ibéricos mantinham o modo
uma provocação ao estado de nervos dos analógico, que dominara quase de forma
participantes. Esquecemos a dignidade do absoluta durante o Medievo e que, de fato,
nome método, as polêmicas que tem ense- se prolongava em muitos dos pensadores
jado desde Descartes, a importância capi- reconhecidos do Renascimento. Portanto,
tal de suas repercussões para tão-só nos lem- um absoluto divisor de águas não poderia
brarmos dos apavorantes relatórios e suas ser mantido entre aqueles dois períodos; b)
ridículas perguntas, a serem semestralmente no entanto, a legitimação do analógico es-
preenchidos. Sou, entretanto, obrigado a tava com seus dias contados e o ver expe-
recordar esse pesadelo porque é bem no rimental, isto é, por cálculos e instrumen-
método que subjaz a Visão do Paraíso que tos, ganhará cada vez mais terreno, fosse
quero pensar. com a propagação do racionalismo carte-
Consultando o que se escreveu sobre o siano, fosse com a mais circunscrita das
livro, destaco passagem de Maria Yedda experiências científicas (cf. P. Rossi, 1997).
Linhares. Em pequena nota publicada em Que tem isso a ver com a referida “história
1977, afirmava a historiadora: “[…] Diría- das mentalidades”? Sua excessiva genera-
mos que se situa como história das menta- lidade a torna imprópria para compreen-
lidades, ao procurar reconstituir o universo dermos o que o autor da afirmação discuti-
intelectual do fim da Idade Média ociden- da estaria fazendo. Imprópria porque im-
tal em contato com o novo mundo do Re- precisa para entendermos o que teria moti-

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vado o autor ao uso da expressão surpreen- mente discrepara. Mas quem nos assegura
dente, “continuidade ininterrupta”. Se não que o autor, no caso qualquer autor, reco-
tivermos algum acesso ao método, teremos nhecesse exatamente seus passos? A exem-
de baixar a cabeça e, simplesmente, manter plo do semeador de Vieira, o autor, qual-
nosso intrigado espanto. quer autor, assemelha-se ao semeador que
Há, entretanto, um outro caminho. No planta, sem saber de antemão o que irá fru-
longo prefácio que o autor acrescentaria à tificar. É ao leitor interessado que cabe
segunda edição do livro, há uma observa- verificá-lo.
ção que merece nosso reparo: Que temos portanto aqui senão um pri-
meiro leitor que notou a possível fecundi-
“O tema deste livro é a biografia de uma dade de uma semente – a tópica acentuada
dessas idéias migratórias, tal como se de- por Curtius –, que se apresta a partilhar com
senvolveu a partir das origens religiosas ou outros leitores a tarefa de comprovar se
míticas (capítulos VII e VIII), até vir im- aquele grão de fato frutificou e como? Para
plantar-se no espaço latino-americano, mor- tanto, contudo, uma tarefa prévia se impõe.
mente no Brasil. Para isso foi de grande Como Ernst Robert Curtius não é o pão
serventia o recurso à Tópica, no sentido que nosso de cada dia, precisamos antes ter dele
adquiriu esse conceito, tomado à velha retó- uma informação razoável, que, a seguir,
rica, desde as modernas e fecundas pesqui- nos permita restabelecer seu hipotético diá-
sas filológicas de E. R. Curtius, onde, con- logo com Sérgio Buarque. Dividiremos, por
servando-se como princípio heurístico, pôde isso, o que se segue em duas partes. Na
transcender aos poucos o cunho sistemático primeira, apenas informativa, ofereceremos
e puramente normativo que outrora a distin- uma exposição mínima da obra do roma-
guia, para fertilizar, por sua vez, os estudos nista alemão. Na segunda, já então tratan-
propriamente históricos” (idem, XX). do da mão do semeador, pensaremos sobre
a prática diversa que ensejou.
Como os pesquisadores nacionais não Vindo pois à primeira parte, destaque-
têm a desculpa de que o livro de Curtius, mos algumas passagens do Literatura Eu-
Europäische Literatur und Lateinisches ropéia e Idade Média Latina. A primeira
Mittelalter, lhes fosse inacessível, pois, não tem o historiador como objeto de elei-
graças à iniciativa de Augusto Meyer, ção:
estava traduzido desde 1957, não terá sido
por uma questão material que não têm “[…] Entre o livro e a imagem ressalta […]
prestado atenção ao que se transcreve. Em diferença essencial. (O livro) mostra a pos-
vez, contudo, de brigar com fantasmas, é sibilidade de ter-se, em qualquer tempo,
preferível que enuncie como pretendo in- Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare ou
tegrar a observação de Sérgio Buarque a Goethe ‘por inteiro’. Além disso, […] sig-
seu próprio trabalho. nifica o ‘presente eterno’, essencialmente
Minha hipótese assim se formula: foi o peculiar às Letras, que a literatura do pas-
estudo da tópica por Curtius que serviu de sado pode continuar cooperando no pre-
principal ferramenta para que Sérgio sente. Tal é o caso de Homero em Virgílio
Buarque pusesse em movimento e conse- […] Ésquilo, Petrônio, Dante, Tristran
guisse um modo de articular sua imensa Corbière e a mística espanhola em T. S.
erudição, convertendo-a em um precioso Eliot” (E. R. Curtius, p. 16).
instrumento interpretativo sobre a forma
mentis dos colonizadores ibéricos. Aparentemente ociosa, a passagem terá
Poder-se-á lamentar, como de fato la- um papel capital para Curtius: sua indaga-
mento, que o autor não houvesse voltado à ção parte da procura de descoberta do se-
importância da tópica na construção de seu gredo da vitalidade permanente das letras.
objeto ou que nada tenha acrescentado Vitalidade, por certo, dentro de um certo
como a trabalhara ou mesmo dela parcial- espaço, o espaço do Ocidente. Pois a men-

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talidade de Curtius permanecia a do pré- “Só com Carlos Magno ficou completamen-
guerra, quando o mundo se reduzia à Euro- te constituída a criação histórica que deno-
pa. Era este o mundo que, em seu livro, ele mino ‘Idade Média latina’. Na literatura
gostaria de ressuscitar. Como fazê-lo? histórica este conceito não é usual. Com
Dentro dele, a Idade Média funcionaria ele, designo a contribuição de Roma, de
como uma ponte de duas mãos; uma reme- sua idéia de estado, de sua Igreja, de sua
teria dos séculos medievais para o tempo cultura na formação de toda a Idade Média,
de depois; a segunda remeteria para trás, e portanto de um fenômeno muito mais
para o seio da Antigüidade: amplo do que a sobrevivência da língua e

Sérgio
Buarque,
em retrato de
Flávio de
Carvalho,
1970

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da literatura latinas. No decurso de muitos se, com o correr dos tempos, uma ciência,
séculos, compreendera Roma a sua exis- uma arte, um ideal de vida, uma educação
tência estatal como empreendimento uni- básica da cultura antiga. De formas diver-
versal. Já Virgílio o expressa em célebres sas, durante nove séculos, a retórica vincou
versos da Eneida. Desde Ovídio (Arte de a vida espiritual dos gregos e romanos. A
Amar, I, 174) forma-se a equação orbis sua origem ressalta aos olhos. Lugar: a
(mundo) e urbs (Roma), que depois, no Ática: tempo: depois da guerra persa”
tempo de Constantino, passa a inscrição de (idem, pp. 65-6).
moeda; isto é, publicismo oficial; e ainda
sobrevive na fórmula da cúria papel urbi et Duas catástrofes então sucedem: a pas-
orbi. Com a elevação do cristianismo a sagem da Ática para Roma; depois, de Roma
para a Idade Média. Com a primeira, suce-
dida no século II, a retórica passa a ter um
caráter meramente pragmático. Adaptada
a três fins, a que correspondiam três gêne-
ros – o forense, o deliberativo, o laudatório
– com o ocaso da liberdade na Grécia e em
Roma, “o discurso forense perdeu quase
sua significação” (idem, p. 71). A eloqüên-
cia deliberativa, de sua parte, deixa de ser
um instrumento político para se converter
em recurso didático. (No tempo do Impé-
rio), “o estudante coloca-se na situação de
qualquer personalidade conhecida do pas-
sado e reflete como deve proceder” (idem,
p. 71). Nada estranho, pois, o que sucede
com o segundo colapso: “A Idade Média
não sabia como aproveitar sua eloqüência
política e forense” (idem, p. 68). Resta, pois,
no fim da Antigüidade e durante a Idade
Média, o discurso laudatário, adaptado às
circunstâncias da morte, das núpcias, do
nascimento, da saudação, etc. Em suma, do
sistema da retórica antiga, a Idade Média é
capaz de herdar apenas restos e migalhas.
São, contudo, esses restos que importarão
O sociólogo religião do Estado, assume o universalis- ao romanista.
mo de Roma duplo aspecto: ao lado do É fácil entendê-lo. Como todo discurso
Sérgio Buarque estado, surgiu a pretensão do domínio da “deve tornar aceitável uma proposição ou
de Holanda Igreja. Como continuação de Roma, a Ida- causa”, precisará valer-se “de argumentos
de Média tomou conhecimento da filosofia dirigidos à razão ou ao coração do ouvinte”
da história agostiniana” (idem, 29). (idem, 72). Tais argumentos são então sepa-
ráveis do conjunto do discurso; funcionam
A terceira passagem há de ser resumida. como peças soltas, passíveis de ser
É no passado longínquo que Curtius identi- recombinadas. Em latim, tais peças se cha-
fica o corpo então pulsante da retórica: mavam loci communes. Como a expressão
se desgastou, bem como seus corresponden-
“Retórica quer dizer ‘arte da oração’; de- tes nas línguas modernas, emprega-se o
signa, pois, segundo a sua significação fun- correspondente grego, topos. E, paciente,
damental, o método de construir a oração Curtius exemplificava:“ […] Um topos mui-
artisticamente. Desse gênero desenvolvem- to difundido é a ‘incapacidade de satisfazer

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as exigências do assunto’; um topos do dis- homens continuavam a precisar ativa ou
curso laudatório: ‘louvor dos antepassados passivamente da persuasão e do deleite da
e seus feitos’. Na Antigüidade coleciona- palavra. Era a tópica que respondia a essa
ram-se esses topoi” (idem). necessidade. Uma pequena amostra é dada
Em síntese, a retórica tanto se expandi- pela relação dos impossibilia, pelo topos
ra – não esqueçamos a observação do jo- do mundo às avessas, pelo ubi sunt, popu-
vem Nietzsche, ainda professor de retóri- larizado tanto por Villon como por compo-
ca: o texto antigo é tão bem construído que sitores da música popular brasileira, pelo
nos custa crer que fosse oral – que, embora locus amoenus, que se industrializaria tan-
reduzida a um gênero secundário, o discur- to pelo cinema de Hollywood quanto pela
so laudatório, era capaz de converter suas telenovela, etc.
peças móveis, os topoi, em elementos que Passemos ao segundo esclarecimento.
se expandiam para fora do edifício primiti- Nele, nos perguntamos como Curtius siste-
vo. E as ruínas da retórica se ressoldavam matizou a tópica e como sua máquina ope-
em poesia, penetrando “em todos os gêne- racional funcionou.
ros literários” (idem, p. 73). Mas isso não Publicado em 1948, a Europäische
se dera por acaso. “No antigo sistema da Literatur encontrou naquela Alemanha ar-
retórica, é a tópica o celeiro das provisões. rasada um campo particularmente propí-
Contém os mais variados pensamentos: os cio. E isso por duas razões. Primeiro, por-
que podem empregar-se em quaisquer dis- que, com o nazismo, a história literária ale-
cursos e escritos em geral” (idem, p. 82). E, mã se convertera em manual nacionalista.
talvez, porque soubesse que escrevia para Embora tenha havido o estímulo do pró-
um público que acabara de sofrer a mais prio regime, para essa meta já encaminha-
terrível tragédia da vida nacional – a derro- va a historiografia do século XIX ao afir-
ta na guerra, seguida de ocupação –, Curtius mar que “a idéia de individualidade nacio-
procurava a formulação mais simples. É nal é a parte invisível de cada fato” […] (H.
assim que exemplifica com o verso de R. Jauss, 1970, p. 152; a parte grifada é
Horácio: “Prolongada velhice consumiu citação de W. von Humboldt). Embora a
Titono” (Longa Tithonum Minuit Senectus). crítica a essa concepção de história e de seu
O topos, no caso, concentra-se em ramo literário fosse anterior à ascensão do
Titono: “Ele foi outrora um dos mais belos nazismo, à derrocada do regime corres-
jovens dos tempos heróicos (irmão de pondia a sensação de alívio por scholars e
Príamo) e por isso Eos o rapta (la concubina estudantes ao se depararem com uma abor-
de Titone antico, Purgatorio, 9, 1). Ela dagem, como a de Curtius, que descon-
pediu a Zeus que lhe concedesse a imorta- siderava qualquer coordenação da literatu-
lidade, mas, como deixara de pleitear ao ra com a história. Daí que seu livro de 1948
mesmo tempo a eterna juventude para o serviu de guia, como dirá Jauss, a “uma
seu protegido, ele veio a ficar decrépito com legião de pesquisadores epigônicos de
a idade. A esposa fugiu-lhe e, a seu pedido, topoi” (idem, p. 154). Em segundo lugar,
o transformou numa cigarra” (idem, p. 84). porque um método que afastava a obra li-
Pois tanto nomes próprios, designações de terária da história oferecia ao pesquisa-
situações ou estados anímicos podiam en- dor, particularmente naquele instante, a
gendrar topoi – “O Elísio (com primavera oportunidade de desfazer a mancha negra
eterna, sem perturbações meteorológicas), da Alemanha e, sobretudo, de reintegrá-la
o Paraíso terrestre, a Idade de Ouro; bem no espírito do Ocidente, desde suas origens
como potências vitais: o amor, a amizade, gregas e romanas. Como ainda diria Jauss,
a inconstância” (idem, p. 85) – e sua abun- que, em 1967, ao assumir a cátedra na
dância não diminuía porque se havia que- Universität Konstanz, se convertera no
brado o vaso da retórica. Se os tribunais já porta-voz contra a Toposforschung, o mé-
não funcionavam, se a vida política já não todo proposto por Curtius “neutraliza a
freqüentava as praças públicas, em troca os práxis da vida na história, pois busca o

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centro de gravidade do saber na origem ou aventureiros, o que muitas vezes vêm bus-
na continuidade supratemporal da tradição car e não raro acabam encontrando nas ilhas
e não no caráter atual e único dos fenôme- e terra firme do Mar Oceano, é uma espécie
nos literários” (idem, p. 153). de cenário ideal, feito de suas experiên-
Em suma, por quase dez anos, a obra de cias, mitologias ou nostalgias ancestrais
Ernst Robert Curtius, de inegável qualida- (S. B. Holanda, 1958, p. 304, grifo meu).
de, conheceu o prestígio extra concedido
pelo serviço ideológico que a conjuntura Tal cenário ideal havia criado raízes nas
histórica lhe ajudou a prestar. populações cristianizadas da Europa pela
leitura ou divulgação da exegese, pelos
••• primeiros pensadores da Igreja, das descri-
ções do Velho Testamento, sobretudo do
Feita com o propósito apenas de facili- livro do Gênese. Assim, “a tendência para
tar o entendimento do receptor, a apresen- situar o Dourado às cabeceiras do São Fran-
tação acima corre o risco de aumentar sua cisco” (idem, p. 64) já derivava da geogra-
confusão. Estaríamos por acaso dizendo que fia do Éden, cuja transposição para o Novo
Sérgio Buarque se confundira e lançara mão Mundo era facilitada pelo livre trânsito da
de uma metodologia que, conscientemen- linguagem analógica, hoje desterrada, como
te, afastava o papel da história? Ou, tendo o autor bem notava, “pela preeminência que
em conta o vezo dos últimos anos, que o alcançaram as ciências exatas” (idem, ibi-
aproveitamento por Sérgio Buarque de uma dem). Daí a manutenção do mito das mu-
forma de pesquisa que apartava a obra lite- lheres guerreiras, as amazonas, sobre o qual
rária da história estaria antecipando a ten- já discutiam os primeiros doutores da Igre-
tativa de certos contemporâneos de romper ja; do rio de quatro bocas que sairia do
as fronteiras distintivas entre história e li- Paraíso Terrestre, a suposição de que aí
teratura? vigorava um clima nem quente, nem frio
Formulamos essas questões de início (non ibis frigus, non aestius, com que, em
para mais rapidamente negá-las. Para de- suas Etimologias, Isidoro de Sevilha des-
monstrar a sua improcedência, temos, no crevia o horto de delícias do Paraíso). Sér-
entanto, algumas tarefas a cumprir. A sa- gio Buarque, extremamente minucioso do
ber: a) de que modo as pesquisas filológicas exame da migração destes e muitos outros
de Curtius podem ter-lhe parecido fecun- motivos edênicos, não esquece de trans-
das no desenvolvimento de um tema que, crever passagem da “Relación del Tercer
embora noutra formulação, já aparecia no Viaje” de Colombo:
capítulo “O Semeador e o Ladrilhador”, do
Raízes do Brasil?; b) como, dez anos antes “Grandes indiçios son estos del Paraíso
da aula inaugural de Hans Robert Jauss, terrenal, porqu’el sitio es conforme a la
teria Sérgio Buarque se descartado do an- opinión d’estos sanctos e sacros theólogos.
teparo ideológico a que a obra de Curtius se Y asimismo las señales son muy confor-
amoldara? Ambas as questões são de fácil mes, que yo jamás leí ni oí que tanta cantidad
resolução. E tornarão ainda mais fácil a de agua dulçe fuese así adentro e vezina
referente à dissolução da diferença entre con la salada; y en ello ayuda asimismo la
abordagens histórica e literária. Venhamos suavíssima temperançia” (C. Colón, 1498,
então por partes. p. 216).
a) O que para Curtius eram os topoi,
são para Sérgio Buarque os motivos Está tão convencido o descobridor de
edênicos. Lançando mão de sua própria ser terra conhecida aquela a que chegara
síntese: que o repete em carta de 1502 ao papa Ale-
xandre VI: “Creí y creo aquello que
“Tentou-se mostrar, ao longo destas pági- creyeron y creen tantos sanctos y sacros
nas, como os descobridores, povoadores, theologos, que allí en la comarca es el Pa-

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raíso Terrenal” (C. Colón, 1502, p. 311). tar para a permanência do papel decisivo
Em vez de multiplicarmos os exemplos de uma forma mentis educada dentro dos
– que só teria sentido se o Visão do Paraíso princípios da analogia. Assim, diz Sérgio
fosse uma obra rara – importa-nos reiterar Buarque: “O que procurava Frei Antônio
a correspondência: assim como para Curtius do Rosário nas frutas do Brasil […] não
os topoi eram fagulhas que ou se despren- eram, em verdade, as frutas, era o que a
diam do antigo sistema retórico, de suas simples aparência delas pudesse dissimu-
partes e gêneros, ou derivavam da própria lar: seus secretos significados e seu hie-
poesia para de novo se incorporarem ao róglifo misterioso” (idem, p. 236).
antigo habitat retórico, assim também, Supondo que os exemplos discutidos,
embora em extensão sensivelmente menor, embora poucos, sejam bastantes para com-
os motivos edênicos derivavam da preendermos a sensibilidade que o padrão
hermenêutica autorizada sobretudo do dos topoi fora capaz de despertar na visão
Gênese e se incorporavam ao imaginário recuperadora daquele Novo Mundo, pas-
dos povos cristianizados. (O prefácio à semos ao segundo ponto. Sua formulação é
segunda edição mostraria, ademais, que os elementar: como o historiador teria, ao
povoadores ingleses do Norte da América mesmo tempo que apreendia a riqueza da
não eram a seu respeito menos isentos que frente que a tópica lhe apresentava, evitado
espanhóis e portugueses.) A terra nova, em que ela fosse um elemento perturbador da
suma, não era vista como uma página em desejada compreensão histórica? Basta ler-
branco, mas, ao contrário, passível de ser mos a Visão do Paraíso com a atenção de-
decifrada a partir da cena edênica, que seus vida para que a dúvida perca sua razão.
intérpretes tomavam como fisicamente real. Desde o capítulo “O Semeador e o
Mas, ainda quando não tenha sentido Ladrilhador”, o autor ressaltara a diferença
detalhá-lo, cabe acentuar que, na Visão do entre as colonizações espanhola e portu-
Paraíso, tal cena não constitui uma carto- guesa. De posse agora de uma bibliografia
grafia grosseira ou demasiado genérica. de que não dispusera em 1936 e havendo
Mostra-se, ao contrário, como o próprio amadurecido sensivelmente o tema, trata-
motivo das aves palradoras, a exemplo do va-se então de mostrar como os dois colo-
papagaio, de tanto prestígio entre os euro- nizadores não elaboraram do mesmo modo
peus nos séculos da descoberta, era deriva- a matéria contudo comum dos motivos
do da mesma cena originária. “Não admi- edênicos. Transcrevo apenas passagem de
ra, diz o historiador, uma tal associação seu capítulo final:
quando se conhece a crença de que todos os
bichos falavam no começo do mundo e só “(Aos portugueses) não os inquieta viva-
perderam a fala em conseqüência do Peca- mente, ao menos no Brasil, a insopitável
do” (idem, p. 208). Do mesmo modo, a ave esperança de impossíveis, que tão freqüen-
fênix, sobre cuja capacidade de retorno à temente acompanha, entre outros povos, as
vida discordavam os santos padres, encon- empresas de descobrimento e conquista
trava seu correspondente no rouxinol. “O para além das raias do mundo conhecido.
Padre Simão de Vasconcelos, que pretende São razões menos especulativas, em geral,
ter visto com seus mesmos olhos o beija- ou fantásticas, do que propriamente prag-
flor em vias de ter completada a metamor- máticas […]” (idem, p. 304).
fose, ainda meio borboleta e meio ave, é
um dos arautos dessa mais notável maravi- Ou, como dirá com certa freqüência, em
lha” (idem, p. 213). Por outro lado, nada há vez da explicação maravilhosa ou fantásti-
de estranho que tais motivos fossem refor- ca, preferida pelos espanhóis, recorrem os
çados por crenças indígenas semelhantes portugueses à sua “atenuação plausível”.
(para o caso do rouxinol, cf. op. cit., p. 214). Ora, seria indigno de um historiador da
Não abordamos o capítulo sobre a me- estirpe de Sérgio Buarque – embora ou-
tamorfose das frutas, limitando-nos a apon- tros, brasileiros e hispano-americanos, o

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tenham feito – justificar a discrepância entre nhol, mantém-se a iniciativa privada –, ou-
os dois colonizadores por elementos de tro da ordem do imaginário: entre os espa-
ordem étnica ou mesmo de uma dita essên- nhóis, estabelece-se o prestígio do maravi-
cia nacional. Não se contentando em lhoso e fantástico, enquanto, entre os por-
descrevê-la, sua razão só poderia ser de tugueses, “esse elemento fantástico, se
cunho histórico-social. É o que declara existiu no lado do Dourado brasileiro, ne-
passagem em que enriquece sua interpreta- nhum texto quinhentista o certifica” (idem,
ção com o suporte de Federico Chabod: p. 34). Não é acidental que a última passa-
gem esteja formulada quando o Visão do
“Aquela visão relativamente plácida das Paraíso apenas se iniciava. Com efeito, o
terras descobertas, que se espelha nas des- contraste entre o êxito de Potosí, acompa-
crições de seus viajantes, já se ressente, por nhado da visão imperial castelhana, cons-
menos que o pareça, de um conservantismo trutora de cidades, colégios e praças, que
fundamental. […] O seu é um ‘verismo pareciam, como já dizia no Raízes, querer
naturalístico, puramente descritivo, cons- repetir a experiência da metrópole, e a ex-
tante de fragmentos e falho, por assim di- periência portuguesa, rasteira, agarrada à
zer, de perspectiva: característico do cro- costa, presa ao princípio de entreposto co-
nista e, em verdade, do escritor medieval é mercial, será reiterado em diversos pla-
precisamente o acúmulo de minúcias jus- nos. Mas o que mais nos importa é acentuar
tapostas’” (idem, pp. 304-5). a linha direta entre o ânimo castelhano e o
motivo do fantástico, entre eles, versus a
Esse “conservantismo fundamental”, centralização administrativa e a “atenua-
que os alheava da linguagem experimental ção possível” dos motivos edênicos. Por
porque “o acúmulo de minúcias” não visa- que isso nos importa? Em primeiro lugar,
va a captar a estrutura material do objeto, porque, embora Sérgio Buarque não tenha
contara, para se preservar, com um aciden- desenvolvido o argumento por esse aspec-
te capital. Enquanto, em janeiro de 1531, a to, ambos os colonizadores se mantinham
frota de Martim Afonso arribava à costa do igualmente afastados da linguagem expe-
Brasil, em busca da ambicionada “costa do rimental; porque, então, independente de
ouro e da prata”, esperável de acordo com seu êxito ou fracasso, mantinham-se pre-
os motivos edênicos, Pizarro, um pobre sos à forma mentis do analógico. Daí, se,
aventureiro espanhol, atravessava a Cordi- entre os espanhóis, o ostentoso vinha a ser
lheira e, contra as orientações geográficas explorado mesmo no caso de uma flor cor-
vigentes, descobria o império inca. O fra- riqueira como a granadilla (o nosso mara-
casso de uns, contraposto ao êxito dos ou- cujá), entre os portugueses ou passava em
tros colonizadores, terá conseqüências qua- silêncio ou arrastava o peso do pedestre
se imediatas: realismo medieval (cf. S. B. Holanda, op.
cit., p. 229). Através, pois, de uma expres-
“Não é por acaso se, com breve intervalo, são exuberante ou prosaica, os dois con-
ao descobrimento das riquezas do Peru se quistadores legaram a suas colônias o mes-
segue uma participação mais imediata do mo desinteresse pelo experimental que será,
Estado português nos negócios do Brasil, de fato, a sua herança. Contudo, como o
através do governo-geral: intervalo de ape- livro examinado não caminha nesse senti-
nas quatro anos, mas o suficiente para ga- do, devemos dar realce a um segundo ele-
nharem corpo e melhor se publicarem as mento. Ao tratarmos da tópica de Curtius,
notícias daquele achado” (idem, p. 89). chamamos a atenção para seu desinteresse
quanto aos fatores históricos de diferencia-
Duplo efeito, um de ordem político-ad- ção. Ora, que significa a ênfase de Sérgio
ministrativa – ao passo que, do lado portu- Buarque no contraste entre as duas coloni-
guês, estimula-se a participação da coroa no zações senão sua explícita discrepância
governo central da colônia e, do lado espa- quanto ao romanista alemão? Pois, na Vi-

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são do Paraíso, em vez de neutralizada, a ca foi explicitamente assumida por Hayden
história é o que, ao ser indagada, mostra a White, no Metahistory.) A questão, na ver-
formação de conjuntos divergentes. Se, por dade, sequer aparece em Sérgio Buarque.
conseguinte, a postulação por Sérgio Mas, sendo aqui posta, pode-se-lhe respon-
Buarque de uma “continuidade ininter- der com os elementos da indagação anteri-
rupta” entre a Idade Média e o Renasci- or: a partir de um arsenal semelhante ou
mento se dera por influência ou em sinto- mesmo idêntico de motivos, a história es-
nia com o modo como Curtius concebera a cava conjuntos diferenciados. Não se che-
tópica, isso teria engendrado apenas uma garia a resultado diferente se se insistisse
designação infeliz, extremamente minori- na função persuasiva da retórica e, então,
tária quanto aos ganhos alcançados pela se dissesse, que, embora por caminhos di-
comparação entre atuação da tópica e mi- versos, história e literatura visam a persu-
gração dos motivos edênicos. adir. A resposta continuaria estéril. Como
Resta-nos a última questão que nos pro- todo enunciado visa a algum fim, busca
pusemos. É sua formulação básica: pela algum modo de persuadir. Por conseguin-
aclimatação à pesquisa histórica da tópica, te, a levar a sério tal argumento, não só a
tal como elaborada por Curtius, estaria história estaria próxima da literatura como
Sérgio Buarque antecipando os que hoje toda fala, desde que suficientemente orga-
consideram história e literatura gêneros de nizada, seria persuasiva. O que não passa
uma mesma formação discursiva? (Diga- de uma banalidade. Em suma, podemos
se de passagem: ao contrário do que pensa- esquecer a última questão. O peso do livro
rá uma leitura apressada, essa posição nun- de que tratamos não admite tal leveza.

BIBLIOGRAFIA

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