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Georges Bataille

HISTÓRIA DO OLHO
seguido de MA DA ME EDWARDA e
O MORTO
I Novelas

Tradução de Glória Correia Ramos

ESCRITA
Coleção Mundo Erótico
1 - História do Olho - Georges Bataille
ÍNDICE

Prefácio .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Notas do Prefácio .............................. 14

História do Olho 15

M adame Edwarda 75

O Morto 97

Capa: Sônia Maria Fontanezi

Do origina/francês: Madame Edwarda / Le Mort / Histoire de rOei!


Copyright (c) 1977 by La Sociéte Nouvelle des Editions Pauvert. SARL

Direitos desta edição reservados à


Editora e Livraria Escrita Ltda.
Rua General Jardim. 570 - Fone:
0/223 - São Pau/o (SP)
1981
PREFÁCIO

Nada é mais terrível do que a


morte e nada exige mais/orça do
que a manute,nção de sua obra.

HEGEL

o próprio autor de Madame Edwarda destacou a seriedade


do seu livro., Todavia acho oportuno insistir na gravidade do
tema, devidQ.llQJP~do leviªno com que se consideram, geralmen-
te, as obras .que tratªm_da_vida sêxual. Não que eu tenha a
'
.. esperança - ou a intenção - de modificar esse estado de coisas.
~ Mas peço ao leitor do meu prefácio para refletir um breve instan-
te sobre a atitude tradicional relativa ao prazer (que, no jogo dos
sexos, atinge uma louca intensidade) e à dor (que a morte apazi-
gua, é certo, mas não sem antes conduzi-Ia a seu auge).Uma série
de condicionamentos leva-nos a ter uma imagem dO.homeni(da
humâõÍdade) afastãdãtarfto do extremo praier como da extrema
dor: os tabus mais comuns incidem quer sobre a vida sexual, quer
sobre a morte, de tal sorte. que uma e outra formam um domínio
sagrado, de cunho religioso. O problema começa no momento
em que s60s tabus referentes às circunstâncias do desapareci-
mento do ser adquiriram uma dimensão de seriedade, enquanto
aqueles que se relacionavam com seu aparecimento - toda a
atividade genética - foram considerados futilmente. Não estou
sequer cogitando de lutar contra a tendência profunda da maio-
ria: ela é a expressão do destino que quis o homem rindo de seus
órgãos reprodutores. Porém esse riso, que revela a oposição entre
o prazer e a dor (a dor e a morte são dignas de respeito, enquanto
o prazer é irrisório, destinado ao desprezo), traduz também seu
parentesco fundamental. O riso não é mais respeitoso: ele é o
signo do horror. O riso é a atitude de compromisso que o homem
adota diante de algo que o repugna, quando esse algo não lhe

mente, representa
parece grave. umao erotismo
Ass.im, completa encarado
inversão de valores.) tragica-
gravement~
Antes de mais nada, faço questão de salientar até que ponto
me parecem vãs as afirmações tolas, segundo as quais o tabu

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sexual é um preconceito do qual há nos deveríamos ter libertado. desta vez com um riso absoluto, que não se detém perante o
Assim, a vergonha, o pudor que acompanham o sentimento de desprezo do que pode ser repugnante, mas cuja repugnância nos
intenso prazer, não seriam senão provas de falta de inteligência. afunda.
Isso equivale a dizer que deveríamos fazer tábua rasa e regressar
a uma condição de animalidade, aos tempos do livre devorar e da
indiferença às imundices. Como se a humanidade inteira não
resultasse de grandes e violentos movimentos de horror seguidos Para chegar ao fundo do êxtase em cujo gozo nos perdemos,
de atração, aos quais estão ligadas a sensibilidde e a inteligência. devemos sempre identificar seu limite imediato: o horror. Não só
Mas, sem querer opor o que quer que seja ao riso motivado pela a dor dos outros ou a minha própria dor, se aproximando do
indecência, gostaríamos de retomar - parcialmente - um ponto momento em que o horror Il)e inundará, podem permitir-me alcan-
de vista que só o riso permitiu. çar um estado de felicidade beirando o delírio, como também não
Com efeito, é o riso que justifica uma forma de condenação
desonrosa. O riso nos engaja numa via onde o princípio de uma existe nenhuma forma de repugnânci~ em que eu não consiga
discernir uma afinidade com o desejoY~fica-que-O
inferdição, de decências necessárias, inevitáveis, se transforma horror se confunda sempre com a atração, mas, se não consegue
em hipocrisia fechada, em incompreensão do que está emjogo. A inibi-Io, destruí-Io, o horror fortalece, o desejo. O perigo paralisa,
extrema licenciosidade ligada ao gracejo é fruto de uma recusa mas, se não for excessivamente forte, põde exclta!"-<?'desejo. Só
em considerar seriamente - quer dizer, tragicamente - a verda- alcançamos o êxtase na perspectiva - mesmo que longínqua -
de do erotismo. da morte, daquilo que nos destrói.
O-prefácio deste pe ueno livro_o_nde o erotismo é apresenta- Um ser humano difere de um animal pelo fato de que
do sem subterfúgios e desemboca n11consciência de um dilacera-, algumas sensações o machucam - liquidam-no - no que ele
-mên o, oferece-me a o ortunidade de fazq um apelo que; desejo, possui de mais íntimo. Tais sensações variam segundo o indiví-
que seja patetico. não que eu ache surpreendente qüe o espíritos duo e os modos de vida. Mas o espetáculo do sangue, o odor do
se desvie de si próprio, e que, por assim dizer, dando as costas a si vômito, que provocam em nós o horror da morte, suscitam por
próprio, se transforme, em sua obstinação, na .caricatura da sua vezes um estado de.náusea que nos atinge mais cruelmente do que
verdade. Se o homem precisa de mentira, afinal de contas está a dor. Não suportamos essas sensações ligadas à_suprema verti-
no direito de usá-Ia. O indivíduo, que talvez tenha seu orgulho, é gem. Alguns Qreferem.a mo_rte ao contatojnofensivo. Existe uma
afogado na massa humana ... .Mas enfim: não esquec~rei jamais zôrul ündea morte não significa apenas o desaparecimento, mas
o que há de violento e maravilhoso noãesejOâeabrir os olhos, o movimento intolerável onde desaparecemos contra nossa von-
encarar de fren~o_que acontece, oque é. E eu nada saberei sobre tade, quando era necessário, a qualquer preço, que ficássemos. E
o que jl50nt~ce, se nada souber-Sôbre o prazer extremo e a
extrema dor-!- - - - é justamente esse a qualquer preço,. e.sse apesar. de nó.s, qu.e
distinguem o momento da extrema felICidade e do extase moml-
E~tendamo-nos. Pierre Angélique tem o cuidado de dizê-Io:
nável porém maravilhoso: Se nada nos transcende, se não existe
não sabemos nada e estamos no fundo da noite. "Ma~,_~<?- nada que nos ultrapasse contra nossa vontade e que deveria a
menosd~odemos yer o que nos engana,_aquilo que ~fasta do
qualquer preço não ser, não alcançamos o momento ins~nsato,
conhecimento da nossa angústia: IJ1ais extamente, aquilo que nos para o qual tendemos com todas as nossas forças e que simulta-
Lr!!pede oe, sal5er que a alegria é a mesma coisa_~e a dor, a neamente rejeitamos com todas as nossas forças.
mesma coisa que a morl~.
- • Aquilo de que o r~so nos afasta, e ue rovoca_o_gracejo
licencioso, é a identida<!e, entre o prazer extremo e a dor extrema:
a identidade entre o ser e a morte, entre o conhecimento que
desemboca nessa persp-ectiva luminosa e a obscuridade defini- O prazer seria desprezível se não fosse esse aterrador ultra-
tiva. Sem dúvida, poderemos finalmente rir dessa verdade, porém
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Por exemplo, casualmente, a descoberta da felicidade ...
passar-se que não caracteriza apenas o êxtase sexual: místicos de
diversas religiões, especialmente os místicos cristãos, vivencia- A alegria estaria, justamente, na perspectiva da morte (por
ram-no da mesma forma. O ser nos é dado num transbordamento isso mesmo ela usa a máscara do seu contrário, a tristeza)_
intolerável do ser, não menos intolerável do que a morte. E, visto Não estou de modo algum inclinado a crer que o essencial
que, na morte, ao mesmo tempo que ele nos é dado, nos é neste mundo seja a volúpia. O homem não é redutível ao órgão
roubado, devemos procurá-Io no sentimento da morte, nesses do gozo. Porém esse órgão inconfessável ensina-lhe o seu segre-
momentos insuportáveis em que temos a impressão de estar do . Visto que o gozo depende da perspectiva deletéria aberta
morrendo, porque o ser em nós só existe em excesso, na coin- ao espírito, é provável que tentemos iludi-Ia e nos esforçemos
cidência entre a plenitude do horror e a da alegria. por aceder à alegria aproximando-nos o menos possível do hor-
Até mesmo o pensamento (a reflexão) só se completa em nós ror. As imagens que excitam o desejo ou provocam o espasmo
no excesso. O que significa a verdade, fora da representação do final são extraordinariamente duvidosas, ambíguas: se é o hor-
excesso, se não enxergamos o que excede à possibilidade de ver, o ror, se é a morte o seu alvo, elas o atingem sempre de uma forma
que é intolerável ver, tal como, no êxtase, é intolerável gozar? O dissimulada. Mesmo na perspectiva de Sade, a morte é desviada
que significa a verdade se nós não pensamos aquilo que excede à para o outro, e o outro é, antes de mais nada, uma expressão
possibilidade de pensar. .. ? deliciosa da vida. O domínio do erotismo está condenado, sem
escapatória, ao fingimento. O objeto a que provoca o movimento
de Eros simula ser algo que não é. De tal sorte que, em matéria de
erotismo, são os ascetas que têm razão. Eles dizem que a beleza é
a armadilha do diabo: só a beleza, com efeito, torna tolerável a
N o término desta reflexão patética, que num grito se anula necessidade de desordem, de violência e de indignidade, que está
a si mesma, na medida em que se afunda em sua própria intole- na raiz do amor. Não posso examinar aqui, em pormenores, os
rância, reencontramos Deus. É c sentido, é a enormidade deste delírios cujas formas se multiplicam: é o amor puro que, obli-
livro insensato: esta narrativa põe em jogo Deus, na plenitude de quamente, nos permite conhecer o mais violento dos delírios,
seus atributos; e esse Deus, todavia, é uma mulher da vida, em aquele que leva até o limite da morte, o excesso cego da vida. A
tudo semelhante às outras. Porém o que o misticismo não pôde condenação ascética é, sem dúvida, grosseira, ela é covarde, é
dizer (no momento de dizê-Io, desfalecia), o erotismo afirma-o: cruel, mas vibra em uníssono com o tremor sem o qual nos
Deus não é nada se não for um ultrapassar de Deus em todos' os afastamos da verdade da noite. Não há razão alguma para que
sentidos; no sentido do ser vulgar, no sentido do horror e da seja atribuída ao amor sexual uma preeminência que só a vida
impureza e, finalmente, no sentido de nada ... Não podemos inteira merece. Porém, se não fizermos incidir um foco de luz no
acrescentar impunemente à linguagem a palavra que transcende ponto exato onde a noite cai, como poderemos saber que somos
às palavras, a palavra Deus: a partir do momento em que o feitos da projeção do ser no horror? Como, se o ser ~aufr~ga no
fazemos, eSS{l. palavra, transcendendo-se a si própria, destrói vazio nauseabundo do qual, a qualquer preço, devena fugu ... ?
vertiginosamente seus limites. O que ela é não récua perante
Seguramente, nada é mais temível. Como as imagens do
nada, ela está em toda a parte onde é impossível esperá-Ia: ela
inferno nos pórticos das igrejas deveriam parecer-nos irrisórias! O
própria é uma enormidade. Qualquer um que suspeite disso, por
inferno é a fraca idéia que Deus nos oferece, voluntariamente, de
menor que seja a suspeita, cala-se imediatamente. Ou, procuran-
do uma saída, e sabendo que está se afundando, procura nele si próprio! Porém, na escala da perda ilimitada, reencontraremos
o triunfo do ser - que nunca deixou de aderir ao movimento que
aquilo que, podendo aniquilá-Io, o torna semelhante a nada.
o quer perecível. O ser convida-se a si próprio para a terrível dança,
Neste inenarrável caminho, por onde nos conduz o mais
cuja síncope - que devemos aceitar como ela é - é o ritmo
incongruente de todos os livros, é possível, no entanto, que dançante, conhecendo apenas o horror a que corresponde. Se nos
façamos ainda algumas descobertas.
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faltar coragem, como ultrapassá-lo, se ele viesse a nos falar?
Todavia, o ser aberto à morte, ao suplício e à alegria sem reser-
vas, o ser aberto e moribundo, doloroso e feliz, já aparece em sua
luminosidade velada: essa luz é divina. E o grito, que esse ser de
boca torcida deforma talvez, mas profere, é uma imensa aleluia
perdida, num silêncio sem fim.
Georges Bataille

NOTAS DO PREFÁCIO

I - Peço desculpa por acrescentar aqui que esta definição do ser e do


excesso não se pode fundamentar filosoficamente, já que o excesso excede ao
fundamento: o excesso é aquilo que faz com que o ser seja, antes de qualquer
outra coisa, algo que escapa a todos os limites: esses limites permitem-nos falar
(eu também falo, mas falando não esqueço que a fala não só me escapará, como
está me escapando). Estas frases metodicamente alinhadas são possíveis (elas o
são, em larga medida, devido ao fato de que o excesso é a exceção, é o maravilhoso, .
o milagre ... ; o excesso designa a atração - a atração quando não o horror,
tudo aquilo que é mais aquilo que é), mas a sua impossiblidade é colocada.de
início. De tal forma que eu nunca fico preso; nunca me escravizo, pelo contrá-
rio, mantenho minha condição soberana e só minha morte - que provará a
HISTÓRIA DO OLHO
impossiblidade em que estava de me limitar ao ser sem excesso - a afasta de
mim. Não recuso o conhecimento, sem o qual não escreveria, mas esta mão que
escreve está moribunda e, através da morte que lhe está destinada, ela escapa
aos limites aceitos no ato de escrever (aceitos pela mão que escreve mas
recusados pela que está morrendo).

2 - Eis, portanto, a primeira teologia proposta por um homem que o riso


ilumina e que se propõe não limitar aquilo que não sabe o que é limite. Tome "
nota do dia em que você leu com um calhau de chama, você que empalideceu
sobre os textos dos filósofos! Como pode se exprimir aquele que os obriga a se
calarem, se não for de um modo para eles inconcebível?

3 - Poderia observar, além do mais, que o excesso é o próprio princípio


de reprodução sexual: com efeito, a divina providência quis que, em sua obra,
seu segredo permanecesse legível! Nada poderia ser poupado ao homem? No
próprio dia em que ele se apercebe de que o chão está faltando sob seus pés
explicam-lhe que essa falta é providencial! Mas, se bem que extraindo a criança
de sua blasfêmia, é sempre blasfemando, cuspindo sobre seu limite, que o mais
miserável goza; é blasfemando que ele é Deus. Tanto assim que a criação é
inextricável, irredutível a qualquer outro movimento de espírito, que não seja a
certeza de que, embora excedida, excede.

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I
I o OLHO DE GATO
hlj

t!
Criei-me sozinho e, tão longe quanto possa me lembrar,
vivia na ansiedade das coisas do sexo. Tinha quase dezesseis anos
quando encontrei uma garota da minha idade, Simone, na praia
de X. .. Havendo entre as nossas famílias um parentesco lon-
gínquo, as nossas relações precipitaram-se. Três dias depois de
nos termos conhecido, Simone e eu estávamos sós em sua man-
são. Ela estava vestida com uma bata preta e usava uma gola
engomada. Comecei a adivinhar que ela participava da minha
,I angústia, particularmente intensa, naquele dia, porque pare-
cia estar nua debaixo da bata.
Ela tinha meias de seda preta que subiam até acima do
joelho. Não tinha conseguido ainda vê-Ia até o cu (esta palavra,
que eu usava com Simone, parecia-me o mais bonito dos nomes do
sexo). Imaginava apenas que, levantando a bata, veria a sua
bunda pelada.
No corredor, havia um prato de leite para o gato.
- Os pratos são feitos para a gente se!ltar, disse Simone.
Quer apostar? Vou sentar no prato .
.
- Aposto que você não tem coragem, respondi, ofegante.
Estava calor. Simone colocou o prato sobre um banquinho,
instalou-se lia minha frente e, sem desviar os olhos dos meus,
sentou-se e mergulhou a bunda no leite. Fiquei algum tempo
imóvel, o sangue subiu-me à cabeça e estava tremendo enquanto
ela olhava o meu pau levantar a calça.'.Deitei-me a seus pés. Ela
não se mexia; pela primeira vez, vi sua "carne rosa e preta"
imersa no leite branco. Ficamos imóveis durante muito tempo, os
dois igualmente corados.
De repente, ela levantou-se: o leite escorreu pela coxa até as
meias. Ela limpou-se com o lenço, de pé, por cima da minha
cabeça, um dos pés apoiado no banquinho. Esfreguei o pau me
agitando no chão. Gozamos no mesmo instante, sem nos termos
tocado. Porém, quando a mãe dela voltou, sentando-me numa
poltrona baixa e aproveitando um momento em que a jovem se
aconchegava nos braços maternos, levantei a bata sem que nin-
guém visse e infiei a mão .entre as coxas quentes.

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Voltei para casa correndo, louco por bater uma punheta mal terminara, inundei-a novamente, desta vez de porra branca.
novamente. No dia seguinte, tinha olheiras fundas. Simone enca- No entanto o cheiro do mar misturava-se ao da roupa mo-
rou-me, escondeu a cabeça contra o meu ombro e disse-me: "Não lhada, de nossds ventres nus e da porra. A noite caía e nós
quero mais que você se masturbe sem mim". permanecemos naquela posição, imóveis, quando escutamos o
Assim começaram, entre nós, relações de amor tão estreitas ruído de passos na grama.
e tão necessárias que era raro ficarmos uma semana sem nos - Não se mexa, suplicou Simone.
vermos. Praticamente nunca falamos disso. Compreendo que ela
tenha na minha presença, sentimentos parecidos com os meus, Os passos tinham parado: não podíamos ~er quem se apro-
difíceis de descrever. Lembro-me de um dia em que íamos de ximava, suspendemos a respiração. O cu de SImone, .le~antado
daquele jeito, parecia, n~ verdad~, uma poderosa suplIca: e~a
carro, em grande velocidade. Derrubei uma ciclista jove~ e perfeito, as nádegas estreItas e delIcadas, a racha .profunda. ~ ao
bonita, e o pescoço dela quase foi arrancado pelas rodas. FIca-
duvidei de que o desconhecido ou a desconhecIda SUCumbIsse
mos olhando para a morta durante longo tempo. O horror e o sem demora e se visse forçado a se despir também. Os passos
d~sespero que emanavam daquelas carnes, em parte n.auseantes,
recomeçaram, quase uma corrida, e eu vi aparecer uma jo.vem
em parte delicadas, lembravam o sentimento queexpen~entamos encantadora, Marcela, a mais pura e tocante de nossas amIgas.
ao nos vermos. Normalmente, Simone é uma moça sImples. É
Estávamos contraídos em nossas posições, a ponto de não poder
grande e bonita; nada de desesperador no olhar, n.em na voz. M~s sequer mexer um dedo, e foi a nossa infeliz. amiga que subita-
tal é a sua avidez por tudo o que perturba os sentIdos, que o maIS
leve estímulo confere ao seu rosto uma expressão que evoca o mente desabou; já desgrudados um do outro, ~ogamo-nos sobre o
coroo abandonado. Simone arregaçou a sala, arrancou a cal-
sangue o terror súbito, o crime, tudo o que arruína sem fim a cinha e me mostrou, ébria, uma nova bunda tão linda quanto a
felicid;de e boa consciência. Vi pela primeira vez essa crispação
muda, absoluta - que eu partilhava - no dia em que ela colo- sua. Beijei-a com raiva, bolinando a de Simone, cujas pe~~as !e
tinham fechado sobre os rins da estranha Marcela, que Ja nao
cou a bunda no prato. Só olhamos atentamente um para o outro
escondia os seus soluços. .
nesses momentos. Só sossegamos e brincamos nos breves minu-
tos de relaxamento depois do orgasmo. - Marcela, gritei, por favor não chore mais. Quero que
você me beije na boca.
Devo dizer aqui que ficamos muito tempo sem fazer amor. Até mesmo Simone acariciava os seus belos cabelos lisos,
Aproveitávamos as ocasiões para nos dedicarmos às nossas brin- cobrindo-a de beijos pelo corpo todo.
cadeiras. Não éramos destituídos de pudor, muito pelo contrário,
Todavia o céu ameaçava tempestade e, com a noite, haviam
mas uma espécie de mal-estar obrigava-nos a superá-lo. Assim,
começado a cair grossos pingos de chuva, aliviando a pressão de
mal acabara de me pedir para não me masturbar sozinho (estáva-
um dia tórrido e sem ar. O mar já estava fazendo um barulho
mos no alto de um penhasco), ela me baixou as calças, fez-me
deitar no chão e, arregaçando as saias, sentou-se sobre o meu enorme, dominado pelos longos roncos ~os trovões, e os relâmpa-
ventre, abandonando-se sobre mim. Enfiei-lhe no cu um dedo gos deixavam-me ver, como em pleno d~a, as duas.bundas eXCIta-
que a porra tinha molhado. Ela deitou-se então com a cabeça das das garotas emudecidas. Um frenesI brutal agItava os nossos
debaixo do meu pau e, apoiando os joelhos sobre os meus três corpos. Duas bocas juvenis disputava.m o meu .cu~os meus ~o-
lhões e o meu pau, e eu não parava de abnr pernas umIdas de salIva
ombros, levantou o cu aproximando-o da minha cabeça, que eu
tinha ao nível dele. e de porra. Era como se eu estivesse desejando escapar ao enlace ~e
um monstro e esse monstro era a violência dos meus mOVI-
- Dá pra você mijar pro ar, até o meu cu?
mentos. A chuva quente caía a cântaros e escorria sobre nossos
- Dá, respondi, mas o mijo vai escorrer no seu vestido e no
seu rosto. corpos. A violência dos trovõe.s estremecia-nos e aume':ltava .a
nossa fúria, arrancando-nos gntos que redobravam de mten~I-
- E por que não? concluiu, e eu fiz como ela dissera; só que, dade a cada relâmpago, pela visão de nossos órgãos sexuaIS.

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Simone tinha encontrado uma poça de lama e se borrava com
o ARMÁRIO NORMANDO
ela: masturbava-se com a terra e gozava, chicoteada pela chuva,
minha cabeça espremida entre suas pernas sujas de terra, o rosto
jogado na poça de lama onde ela agitava o cu de Marcela, que
enlaçava com um braço em volta dos rins, a mão puxando a coxa
e abrindo-a com força. Desde essa época, Simone pegou a mania de quebrar ovos
com o cu. Para isso, ela colocava a cabeça no assento de uma
poltrona, as costas coladas ao espaldar, as pernas dobradas em
minha direção; eu batia punheta para lhe jogar a porra no rosto.
Colocava o ovo então junto ao buraco: ela tinha prazer em agitá-
10 na racha profunda. No momento em que a porra jorrava, as
nádegas quebravam o ovo e ela gozava, enquanto, mergulhando
o rosto no seu cu, eu me inundava daquela sujeira abundante.
Sua mãe surpreendeu a brincadeira, mas, sendo de extrema
doçura, se bem que levasse uma vida exemplar, na primeira vez
assistiu a tudo sem dizer palavra, de modo que nós nem perce-
bemos sua presença. Quando terminamos (consertávamos a de-
sordem às pressas), descobrimos que ela estava de pé no vão da
porta.
- Faça como se não tivesse visto nada, disse Simone, e
continou limpando a bunda.
Saímos sem nos apressarmos.
Alguns dias depois, Simone estava fazendo ginástica
comigo, na armação de uma garagem; a senhora parou debaixo
dela sem vê-Ia. Simone mijou-lhe em cima. A velhinha recompôs-
se, olhando-nos com seus olhos tristes, com um ar tão desam-
parado que provocou os nossos jogos. Simone, caindo na garga-
lhada, em posição de engatinhar, expôs o cu diante do meu rosto
e eu levantei a saia, ébrio por vê-Ia nua diante da mãe.
Já tínhamos passado um semana sem rever Marcela, quan-
do nos reencontramos na rua. Essa moça loira, tímida e
ingenuamente devota, ficou tão intensamente vermelha que Si-
mone a beijou com uma nova ternura.
- Por favor, me desculpe, disse-lhe em voz baixa. O que
aconteceu no outro dia foi errado. Mas isso não impede que
sejamos amigas agora. Eu lhe prometo: nós não tentaremos mais
tocá-Ia.
Marcela, que não tinha qualquer força de vontade, aceitou
acompanhar-nos e tomar lanche na casa de Simone, junto com

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alguns amigos. Mas, em vez de chá, bebemos champanhe em epilepsia; contorcia-se aos pés do rapaz que ela tinha despido,
abundância. balbuciando palavras sem nexo:
Ver Marcela corar nos perturbava. Simone e eu tínhamo-nos - Mije em cima de mim ... mije no meu cu ... repetia com
entendido e estávamos certos de que nada doravante nos faria sofreguidão.
recuar. Além de Marcela, estavam lá também três moças bonitas Marcela olhava fixamente: ficou vermelha que nem sangue.
e dois rapazes. A bebida produziu um efeito violento, porém, Disse-me, sem me ver, que queria tirar o vestido. Despi-lhe o
exceto Simone e eu, ninguém estava tão perturbado quanto nós vestido e tirei-lhe a roupa de baixo; ficou com o cinto e com as
desejávamos. Um fonógrafo resolveu o nosso problema. Simone, meias. Mal se deixou bolinar por mim e se beijar na boca,
dançanoo sozinha um "rag-time" endiabrado, mostrou as pernas atravessou a sala como uma sonâmbula, alcançou um armário
até o cu. As outras moças convidadas a imitá-Ia estavam altas normando onde se trancou (tinha murmurado algumas palavras
demais para se controlarem. Estavam de calças, mas estas não ao ouvido de Simone).
escondiam quase nada. Só Marcela, de porre e silenciosa, re- Ela queria masturbar-se dentro do armário e suplicava que a
cusou-se a dançar. deixássemos só.
Simone, que fingia estar completamente bêbada, arrancou É preciso dizer que estávamos todos bêbados, desnorteados
uma toalha de mesa., amassou-a e, levantando-a, propôs uma pela audácia uns dos outros. O rapaz nu estava sendo chupado
aposta: por uma mocinha. Simone, de pé e com as saias levantadas,
- Aposto, disse, que faço pipi na toalha em frente de todo esfregava as nádegas contra o armário onde se ouvia Marcela
o mundo. masturbar-se com um resfolegar violento.
Tratava-se, em princípio, de uma reunião de jovenzinhos Subitamente, aconteceu uma coisa louca: um ruído de água
ridículos e tolos. Um dos rapazes desafiou-a. O desafio foi aceito, seguido do surgimento de um fio de líquido que crescia vindo de
com o prêmio a ser escolhido pelo vencedor. Simone não hesitou debaixo da porta do móvel. A infeliz Marcela urinava no seu
nem um pouco e ensopou a tolha. Porém sua audácia dilacerou-a armário, gozando. A gargalhada bêbada que se seguiu degenerou
até o âmago. De forma que os jovens loucos começaram a ficar num deboche de quedas de corpos, de pernas e cus para o ar, de
desnorteados. saias molhadas e de porra. Os risos produziam-se como soluços
- Já que sou eu que escolho o meu prêmio,. disse Simone ao involuntários, atrasando por instantes a investida sobre os cus e
perdedor, com voz rouca, vou tirar sua calça diante de todo o os paus. Porém ouviu-se pouco depois a triste Marcela soluçar
mundo. sozinha e cada vez mais forte naquele urinol de acaso que lhe
servia agora de prisão.
O que foi feito sem dificuldade. Tiradas as calças, Simone
despiu-lhe a camisa (para evitar que ficasse ridículo). Todavia
.
........................................................ .
nada grave tinha acontecido: com sua mão ligeira, Simone tinha
apenas acariciado o pau do seu colega. Mas ela só pensava em Meia hora depois, já menos alto, tive a idéia de ajudar
Marcela, que me suplicava que a deixasse partir. Marcela a sair do armário. A infeliz moça estava desesperada,
- Nós não prometemos não tocar em você, Marcela? Por tremia e tiritava de febre. Vendo-me, ela demonstrou um horror
que quer ir embora? doentio. Eu estava pálido, manchado de sangue, vestido de trás
para diante. Corpos sujos e despidos cobriam o chão, atrás
- Porque sim, respondeu, obstinada (uma cólera pânica de mim, numa desordem desvairada. Cacos de vidro tinham
apoderava-se dela). cortado e feito sangrar dois de nós; uma moça vomitava; tínha-
De repente, Simone caiu no chão, para o terror dos outros. mos tido ataques de riso tão violentos que alguns de nós tinham
Agitava-a uma confusão cada vez mais louca; as roupas em molhado as roupas, outros as poltronas ou o chão; daí um cheiro
desordem, o cu para o ar, como que atingida por uma crise de de sangue, de esperma, de urina e de vômito, que faria qualquer

22 23
um recuar horrorizado; porém o grito que se despedaçou na o CHEIRO DE MARCELA
g~rganta de ~arcela ~e assustou ainda mais. Devo dizer que
Simone dormia de barnga para o ar, a mão nos pêlos e o rosto
sereno.

Meus pais não tinham dado sinal de vida. Todavia achei


. M~rcela, que se tinha precipitado estrebuchando com gru-
mais prudente desandar, prevendo a cólera de um velho pai, tipo
nhidos mfo.rmes, após me ter olhado pela segunda vez, recuou
acabado de general gagá e católico. Entrei na mansão pela porta
como. se estivesse diante da morte; desabou, emitindo um sem fim
de gntos desumanos. de trás, para poder roubar uma quantidade de dinheiro sufi-
ciente. Certo de que me procurariam em qualquer outro lugar,
, ~oisa estranha, esses gritos devolveram-me a presença de tomei banho no quarto de meu pai. Precipitei-me campo afora às
espmto. Cer~amente alguém iria aparecer, era inevitável. Nem dez horas da noite, tendo deixado um bilhete para minha mãe em
sequer pensei em fugir ou procurei diminuir o escândalo. Muito cima da mesa:
~el~ ~ontrá~io: fui abrir a porta: espetáculo e alegria indescri- "Façam-me a gentileza de não mandar a polícia atrás de
tIVelS. Imagl?em as exclamações, os gritos, as ameaças exage-
mim. Estou levando o revólver. A primeira bala será para o
radas dos paiS ao entrarem na sala: o tribunal, a penitenciária, a
policial e a segunda para mim."
forca, ~r~m evoc~dos com berros incendiários e imprecações
espasmodlcas: Ate mesmo os nossos amigos tinham começado a Nunca procurei tomar aquilo a que se chama "uma atitude".
gntar. produz.mdo u~a a~gazar~a delirante de berros e lágrimas: Procurava apenas fazer com que minha família hesitasse, ela que
p~recla que tmham sldo.mce~dlados que nem tochas. Que situa- sempre fora uma inimiga tão irredutível do escândalo. No entan-
to, tendo escrito o bilhete como gozação, e me divertindo com
ç.ao atroz, ,n~ verd~d~. ~Ive a Impressão de que nada poderia pôr
fim ~o dehno tr~glcomlco daqueles loucos. Marcela, ainda nua, ele, não achei má ideia colocar no bolso o .revólver de meu pai.
contmuava gesticulando, traduzindo em seus gritos um sofri- Andei quase toda a noite à beira-mar, sem me afastar muito de
mento moral e. um pavor impossíveis; vimo-Ia morder a mãe no X ... , devido aos recortes da costa. Procurei me tranqüilizar andan-
rosto e no meIO do braço que tentava em vão controlá-Ia. do: o meu delírio recompunha, involuntariamente, os fantasmas de
O _súbito .apare~imento dos pais destruiu o que lhe sobrava Simone, de Marcela. Aos poucos, foi nascendo em mim a idéia
de razao. FOI l?rec~so chamar a polícia. O quarteirão inteiro de me matar; segurando o revólver, fui progressivamente perden-
testemunhou o mcnvel escândalo. do o sentido de palavras como "esperança" e "desespero". Devido
ao cansaço, sentia a necessidade de poder dar, apesar de tudo,
algum sentido à minha vida. Ela o recuperaria na medida em que
eu pudesse admitir como desejável uma série de acontecimentos.
Aceitei a obsessão dos nomes: Simone, Marcela. Por mais que
tentasse rir, agitava-me em função de uma composição fantástica
onde as minhas iniciativas mais estranhas se misturavam infini-
tamente com as delas.
Dormi num bosque durante o dia. Cheguei à casa de Simone
ao cair da noite; entrei no jardim pulando o muro. O quarto da
minha amiga estava iluminado: joguei algumas pedras na janela.
Simone desceu. Partimos quase sem trocar uma palavra, em
direção do mar. Estávamos contentes por nos reencontrarmos.
Estava escuro e, de vez em quando, eu levantava o vestido dela

24 25
fazer amor. Mas nem sequer passava mais pelas nossas cabeças a
e segurava-lhe o cu na minha mão: não tinha o menor prazer. Ela idéia de não esperar Marcela, cujos ~ritos. não tinham cessado, de
sentou-se, deitei-me a seus pés: vi que ia soluçar. Com efeito
solucei longamente sobre a areia. provocar nossos ouvidos e permaneciam hgados a ,?ossos de~ejos
perturbadores. Nessas condições, o nosso sonho na? era maiS do
- O que é que há? disse Simone.
que um longo pesadelo. O sorriso de Marcela, a s~a juventude.' os
Chutou-me, de brincadeira. O pé bateu no revólver que seus soluços, a vergonha que a f~zia cor,ar e, aSSim enrubescida,
estava no meu bolso. Uma terrível detonação arrancou-nos um tirar o vestido, abandonar suas bndas nadegas redondas ~ ?oca~
grito. Eu não estava ferido e surpreendi-me de pé, como que num impuras, o delírio que a tinha levado a tr~nca!-se n~ arm~~lO e Ia
outro mundo. Simone também estava pálida e transtornada. se masturbar, com tanto abandono que nao pode eVitar.mija~, tu-
Nesse dia não pensamos em bolinação. do isso deformava, dilacerva infinitamente nossos d~s~jos. Simo-
Beijamo-nos longamente na boca, o que aindá não nos tinha ne, cujo comportamento durante o escândalo fo~a maiS mfern~l?o
acontecido.
que nunca (ela nem sequer se tinha coberto, mUlto pelo.contra~lO,
Vivi assim durante alguns dias: regressávamos tarde da noite. abrira as pernas), não podia esquecer que o orgasmo imprevisto
Dormíamos no quarto dela onde eu ficava escondido até escure- ( decorrente do seu próprio impudor, dos urros e da nudez de
cer. Simone trazia-me comida. A mãe dela, a quem faltava auto- Marcela tinha ultrapassado, em intensidade, tudo o 9ue el.a
ridade (no dia do escândalo, logo que começara a ouvir os gritos, imagina;a até então. O sexo da minha amiga não se abna maiS
tinha ido embora) aceitava a situação. Quanto aos criados, o diante de mim, sem que o espectro de Marce.la, o s~u furor,. o s.eu
dinheiro já os mantinha, há muito tempo, do lado de Simone. delírio ou a vermelhidão do seu rosto, confenssem .a~ ~referencias
Ficamos sabendo, por eles, as circunstâncias do internamen- de Simone um alcance aterrador, como se o sacnleglO transfor-
to de Marcela e em que casa de saúde a tinham enclausurado. masse qualquer coisa em terror e infâmia.
Desde o primeiro dia, nossas preocupações concentraram-se in- Aliás, as regiões pantanosas do sexo - às quais só se as~e-
teiramente nela, em sua loucura, na solidão de seu c,orpo, nas melham os dias de dilúvios e tempestades ou ~s emanaçoes
possibilidades de alcançá-Ia, de ajudá-Ia a fugir, talvez. sufocantes dos vulcões, numa atmosfera de calamidade -: essas
Um dia, tentei pegar Simone à força. regiões desesperadoras que Simone, num abandon~ que ~o anun-
- Você ficou louco, gritou, olha, meu amor, isso não me ciava violências, me deixava ob~ervar como. que, ~ipnotizad? -
interessa, na cama, como uma mãe de família! Com Marcela ... constituíam para mim nada maiS d~ ,!ue o ,i~peno subterraneo
de uma Marcela torturada em sua pnsao e VItima de seus pesade-
- Como? perguntei decepcionado, mas no fundo concor-
dando com ela. los. Eu só entendi~ mesmo uma coisa: até que ponto o orga~mo
Afetuosamente ela voltou e com uma voz de sonho disse desfigurava essa moça cujos soluços eram entrecortados por gnt~s.
Por seu lado, Simone já não olhava a porra que eu fazIa
ainda:
jorrar, sem imaginar simultaneamente a boca e a boceta de Mar-
. - quando ela nos vir fazer amor ... ela vai fazer pipi ... cela abundantemente lambuzadas com ela. .
aSSim .
_ Você poderia chicotear o rosto dela com" porra, f dIsse-me,
"
Senti um líquido encantador escorrer pelas minhas pernas. lambuzando-se a si própria, entre as pernas, para umegar .
Quando ela terminou, foi a minha vez de inundá-Ia. Levantei-me,
escarranchei-me sobre a cabeça dela e espalhei a porra sobre o
seu rosto. Suja, ela gozou com demência. Aspirava nosso odor
feliz.
- Você cheira a Marcela, disse, com o nariz levantado
debaixo do meu cu ainda molhado.
Com freqüência éramos tomados pelo desejo doloroso de
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26
UMA MANCHA DE SOL

As outras jTIulheres e os outros homens já não tinham inte-


resse para nós. Só pensávamos em Marcela: imaginávamos pue-
rilmente seu enforcamento voluntário, seu enterro clandestino,
suas aparições fúnebres. Uma noite, bem informados, partimos de
bicicleta para a casa de saúde onde nossa' amiga se encontrava
presa. Percorremos, em menos de uma hora, os vinte quilômetros
que nos separavam de um castelo rodeado por um parque, isola-
do sobre um penhasco que dominava o mar. Sabíamos que
Marcela ocupava o quarto n.O 8, mas, para encontrá-Ia, era
necessário chegar pelo interior. Só conseguiríamos entrar nesse
quarto pela janela, depois de ter serrado as grades. Nem sequer
imaginávamos como poderíamos vislumbrá-Ia, quando uma es-
tranha aparição atraiu nossa atenção. Tínhamos pulado o muro e
encontrávamo-nos no parque onde o vento forte agitava as árvo-
res, quando vimos uma janela do primeiro andar se abrir e uma
sombra amarrar solidamente um lençol às grades. O lençol esta-
lou imediatamente sob o vento e a janela fechou-se antes que
pudéssemos reconhecer a sombra.
É difícil imaginar o estrondo produzido por esse enorme
lençol branco, apanhado' pelo temporal: superava amplamente o
barulho do mar e do vento. Pela primeira vez, via Simone angus-
tiada por algo que não fosse o seu próprio impudor; ela encolheu-
se contra mim, o ((oração batendo, o olhar fixo nesse fantasma
que se agitava furiosamente na noite, como se a própria demência
tivesse alçado sua bandeira, nesse instante, sobre o lúgubre cas-
telo.
Permanecemos imóveis, Simone aninhada nos meus braços,
e eu meio aturdido, quando, subitamente, pareceu-nos que o
vento rasgara as nuvens; a lua iluminou com uma precisão revela-
dora um pormenor tão estranho e tão dilacerante que um soluço
foi estrangulado na garganta de Simone: o lençol, que se estendia
ao vento com um estalo ruidoso, estava sujo no centro, marcado
por uma larga mancha molhada que a luz da lua iluminava por
transparência ...
Poucos instantes depois, as nuvens encobriram novamente o
disco lunar: e tudo mergulhou no escuro.

29
Fiquei de pé, sufocado, com os cabelos ao vento, chorando sabia o que fazer com o revólver: já não tinha bolso. Persegui a
como um infeliz, enquanto Simone, caída na grama, deixava, mulher que vira passar como se quisesse abatê-Ia. O barulho dos
pela primeira vez, que grandes soluços de criança a sacudissem. elementos enfurecidos, o estrondo das árvores e do lençol, compl~-
tavam aquela confusão. Não havia nada concreto nem em ml-
nhas intenções nem em meus gestos.
Parei. Tinha alcançado a moita onde a sombra havia desa-
Assim era nossa infeliz amiga, era Marcela, não havia a parecido instantes antes. Exaltado, revólver na mã?, olhei em
menor dúvida, que acabara de abrir aquela janela sem luz, era ela volta: nesse momento, o meu corpo rasgou-se; uma mao molhada
que tinha amarrado às grades de sua prisão esse alucinante sinal de saliva tinha agarrado o meu cacete e me batia punheta, um
de desespero. Certamente tinha-se masturbado na cama, com beijo melado e ardente penetrava a minha intimidade ~té o .cú; o
uma perturbação dos sentidos tão grande que se tinha inundado; peito nu, as pernas nuas de uma mulher colav~m-se as mmhas
tínhamo-Ia visto em seguida amarrar o lençol nas grades para que pernas com um sobressalto de orgasm? Mal tlve temp~ de me
secasse.
virar para cuspir a porra no rosto de SlI~one; com o. re;ol~er na
Não sabia o que fazer nesse parque, diante dessa falsa casa mão, senti-me percorrido por um arreplO d~ uma vlOlencl~ que
de repouso com grades nas janelas. Afastei-me deixando Simone igualava a do temporal, os meus d~ntes batla~, os meus ~ablOs
estendida na grama. Queria apenas respirar um instante sozinho, espumavam, com os braço~ e as mao~ contorcld~as ~pertel con-
mas uma janela do térreo, sem grades, ficara entreaberta. Asse- vulsivamente o revólver e, mvoluntanamente, tres tiros cegos e
gurei-me da presença do revólver no meu bolso e entrei: era uma aterradores partiram em direção ao castelo.
sala semelhante a qualquer outra. Uma lanterna de bolso permitiu-
me passar para um hall e depois para uma escada. Não enxer-
gava nada, e minha iniciativa não levava a nada: os quartos não e Ébrios e relaxados, Simone e eu tínhamos escapado um
ram numerados. Aliás, eu estava como que enfeitiçado, incapaz ao outro e nos tínhamos lançado grama afora como cachorros.
de entender fosse o que fosse; nem sei por que tirei as calças e O tempo;al era violento demais para que as detonações pudessem
continuei, só de camisa, a minha angustiante exploração. Fui ter acordado algum habitante do castelo. Porém, quando olha-
tirando toda a minha roupa, uma peça após a outra, e coloquei
mos a janela onde estalava o lençol, consta.tamos, su~presos, que
tudo sobre uma cadeira, ficando apenas com os sapatos. A uma das balas tinha furado uma vidraça: Vlmos essa Janela estre-
lanterna na mão esquerda e na mão direita o revólver, caminhei mecida abrir-se e a sombra aparecer pela segunda vez.
ao acaso. Um ligeiro ruído fez-me apagar a lanterna. Fiquei Aterrorizados como se Marcela, ensangüentada, fosse des-
imóvel, escutando a minha respiração irregular. Passaram-se
longos minutos de angústia sem que eu conseguisse ouvir alguma pencar morta pelo' vão da janela, perma~ecíamos de pé sob essa
aparição imóvel, não podendo sequer fazer com que ela nos es-'
coisa e tornei a acender a lanterna: um pequeno grito fez-me fugir
cutasse, tal era o furor do vento.
tão depressa que esqueci as minhas roupas sobre a cadeira.
Sentia-me seguido; apressei-me em direção à saída; saltei - O que você fez com suas roupas? perguntei a Simone
após uns instantes.
pela janela e escondi-me numa alameda. Mal acabara de me
voltar quando uma mulher nua se ergueu no vão da porta; pulou Ela respondeu que me tinha procu~ado. e, não me encon-
com eu no parque e fugiu correndo em direção às moitas de trando tinha ido como eu, explorar o mtenor do castelo. Po-
espinhos. rém, a~tes de pas~ar pela janela, tinha tirado a roupa imaginan-
do ficar "mais livre". E, quando se assustou no momento da
Nada mais estranho, nesses minutos de angústia, do que a minha fuga, não conseguia achar o seu vestido. Certamente o
minha nudez ao vento numa alameda de um jardim desconheci-
vento levara-o. Entretanto, ela vigiava Marcela e nem sequer
do. Tudo acontecia como se eu tivesse deixado a Terra, tanto
pensou em perguntar-me por que eu próprio estava nu.
mais que o temporal, bastante morno, sugeria um convite. Não

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UM FIO DE SANGUE
A jovem que estava à janela desapareceu. Depois de um
instante, que nos pareceu infinito, ela acendeu a luz no quarto e,
em seguida, veio respirar o ar livre e olhou em direção ao mar. Os
seus cabelos pálidos e escorridos obedeciam aos caprichos do
vento e nós distinguíamos os traços do seu rosto: não tinha . Em meu espírito, a urina está ligada ao salitre, e o relâm-
mudado em nada, exceto na inquietação selvagem do olhar, que
pago, não sei por que razão, a um penico antigo de terra porosa,
expressava uma simplicidade ainda infantil. Parecia mais ter abandonado num dia de chuva de outono, sobre o telhado de
treze anos do que dezesseis. Seu corpo, debaixo de uma camisola zinco de uma lavanderia de província. Desde a primeira noite, na
leve, era esbelto mas cheio, duro e sem brilho, tão belo quanto o casa .de saúde, essas desoladas representações permaneceram uni-
seu olhar fixo.
. das, na parte obscura do meu espírito; ao sexo úm~doe .ao r~sto
Quando finalmente nos descobriu, a surpresa pareceu dey abatido de Marcela. Todavia essa paIsagem da mlnha Imagma-
volver-lhe a vida. Gritou, mas nós não escutávamos nada. FazÍa-
ção era subitamente inundada por um ~io de luz e ?esangue: com
mos sinais. Ela tinha corado até as orelhas. Simone que quase efeito, Marcela nunca gozava sem se mundar, nao com sangue
- chorava, e cuja testa eu acariciava afetuosamente, mandou-lhe mas com um jato de urina clara e até mesmo, a meus olhos,
beijos que ela devolveu sem sorrir. Finalmente, Simone deixou luminosa. Esse jato, de início violento, sacudido como um soluç?,
sua mão descer ao longo do ventre até o púbis. Marcela imitou-a e depois livre e solto, coincidia com uma e~altação e alegn.a
e, colocando um pé na beirada da janela, descobriu uma perna desumanas. Não espanta que os aspectos maIs desertos e maIs
que meias de seda branca cobriam até os pêlos louros. Coisa leprosos de um sonho não sejam mais do. que uma ~olicitação
estranha: ela tinha um cinto branco e meias brancàs enquanto a nesse sentidü;elas correspondem ao obstmado desejo de uma
negra Simone, cuja bunda se apoiava sobre minha mão, tinha um iluminação - semelhante, nesse aspecto, à visão do .~ur~co
cinto preto e meias pretas. iluminado da janela vazia, no momento em que Marcela, Ja calda
Entretanto, as duas moças masturbavam-se com gestos cur- no chão, o inundava· sem parar.
tose bruscos, frente a frente, nessa noite de tempestade. Estavam Nesse dia, Simone e eu fomos obrigados a nos afastar do
quase imóveis, tensas, o olhar endurecido por uma alegria imo- castelo, fugindo como animais na tempestade sem .chuva e a,tr~-
derada. Como se um monstro invisível arrancasse Marcela das vés da escuridão hostil, com a imaginação persegUida pelo tedlO
grades, que ela segurava firmemente com sua mão esquerda, nós que certamente tornaria a dominar :vtarcela. A in~eliz interna era
a vimos cair, derrubada por seu delírio. Diante de nós, ficou como que uma encarnação da tnsteza e da colera que, se~
apenas uma janela vazia, buraco retangular na noite negra, des- trégua, entregavam nossos corpos ao deboche. Pouco depoIs
vendando perante nossos olhos cansados um mundo composto (tendo achado nossas bicicletas) só podía~os oferecer um ao
de tempestade e aurora. outro o espetáculo irritante, teoricamente sUJo, ?e um corpo nu.e
calçado em cima da máquina. Pedaláv~mos rapIdamente, sem nr
nem falar, no isolamento comum do Impudor, do cansaço, do
absurdo.
Estávamos mortos de cansaço. No meio de uma en~osta
Simone parou, tomada de calafrios. Está~a~os suando, ~ SImo-
ne tiritava batendo os dentes. Então, tIreI-lhe uma meIa para
enxugar o' seu corpo: a meia tinha um cheiro quente, o mesmo
das camas de doentes e das camas de deboche. Pouco a pouco, o
estado de Simone foi ficando menos penoso e ela ofereceu-me os
seus lábios como gesto de gratidão.

33
32
Voltando à vida lentamente, Simone fez um movimento que
Eu continuava muito preocupado. Ainda estávamos a dez me acordou. Saí da sonolência em que minha depressão me.
quilômetros de X... e, no estado em que nos encontrávamos, ufundara, no momento em que pensei ter poluído o seu cadáver.
tínhamos que chegar a qualquer preço antes da aurora. Mal Nenhum ferimento, nenhuma contusão haviam marcado o corpo
conseguia ficar de pé e perdia as esperanças de ver o término apenas vestido com ligas e uma só meia. ~eguei-a em meus braços
dessa investida no impossível. A época em que nós tínhamos
. carreguei-a até a estrada sem pensar no meu c~nsaço; andava o
abandonado o mundo real, constituído por pessoas vestidas, mais depressa possível (o dia já começava a ralar). ~m es~orço
estava tão distante que nos parecia fora de alcance. Essa alucina- sobre-humano permitiJ}-me chegar até a mansão e, felIz, deItar a
ção pessoal desenvolvia-se desta vez com a mesma ausência de minha maravilhosa amiga em sua cama, viva.
limites que o pesadelo global da sociedade humana, por exemplo, Tinha o rosto melado de suor, os olhos injetados de sangue e
com terra, atmosfera e céu. inchados os meus ouvidos zumbiam e os meus dentes batiam,
O assento de couro colava-se ao cu pelado de Simone que, mas eu tinha salvo a mulher que amava; pensei que brevemente
fatalmente, se masturbava girando as pernas. O pneu de trás tornaríamos a ver Marcela; assim, ensopado em suor e manchado .
.desaparecia, diante dos meus olhos, na racha da bunda nua da de pó coagulado, estendi-me perto do corpo de Simone e entre-
ciclista. O rápido movimento de rotação da roda era equivalente guei-me sem gemer a longos pesadelos.
à minha sede, a essa ereção que já me conduzia para o abismo do
cu colado ao selim. O vento tinha diminuído um pouco, uma
parte do céu cobria-se de estrelas: pensei que, sendo a morte a
única saída para minha ereção, uma vez eu e Simone mortos, as
estrelas puras substituiriam o universo da nossa visão pessoal,
realizando assim, a frio, aquilo que me parecia ser o término de
meus deboches, uma incandescência geométrica (coincidência,
entre outras, da vida e da morte, do ser e do nada) e perfeita-
mente fulgurante.
Porém essas imagens permaneciam ligadas às contradições
de um estado de esgotamento prolongado e de um absurdo
endurecimento do membro viril. Esse retesamento só dificil-
mente poderia ser visto por Simone devido à obscuridade, tanto
mais que a minha perna esquerda o escondia cada vez que subia
no pedal. Parecia-me, no entanto, que os seus olhos procuravam,
na noite, esse ponto de ruptura do meu corpo. Ela masturbava-se
no selim com movimentos bruscos cada vez mais fortes. Tal como
eu, ela não tinha esgotado a tempestade evocada por sua nudez.
Eu ouvia os seus gemidos roucos; ela foi literalmente arrancada
do assento pela sua alegria e o seu corpo nu foi jogado sobre o
talude com um ruído de aço arrastado sobre cascalho.
Encontrei-a inerte, de cabeça caída: um estreito fio de san-
gue tinha escorrido por um cante da boca. Levantei-lhe um braço
que caiu novamente. Joguei-me sobre o corpo inanimado, tre-
mendo de horror, e, abraçandu-a, percorreu-me, involuntário,
um espasmo de borra e sangue com um esgar do lábio inferior,
afastado dos dentes como na expressão de certos idiotas.
35
34
SIMONE

O acidente de Simone, pouco grave, foi seguido por um


período tranqüilo. Ela tinha ficado doente. Quando a mãe dela
vinha, eu passava para o banheiro. Aproveitava para mijar ou
para tomar banho. A primeira vez que esta mulher quis entrar lá
dentro, a filha impediu-a:
- Não entre, disse, há ali um homem nu.
Simone não demorava para expulsá-Ia e eu retomava o meu
lugar na cadeira, do lado da cama. Fumava, lia os jornais. Por
vezes levantava em meus braços a jovem queimando de febre,
levava-a para fazer pipi comigo no banheiro. Em seguida lavava~
a cuidadosamente no bidê. Ela estava fraca e, evidentemente, eu
não a tocava durante muito tempo.
Pouco depois, ela já demonstrava prazer em me fazer jogar
ovos na privada, ovos duros que afundavam, e ovos mais ou
menos vazios, cujo cg.nteúdo já fora chupado. Ela ficava sentada·
olhando os ovos. Eu instalava-a na privada: ela olhava-os por
entre as pernas, sob o seu cu, e no fim eu puxava a descarga.
Outro jogo consistia em quebrar um ovo na bordado bidê e
esvaziá-Io debaixo dela; às vezes, ela mijava sobre o ovo, outras
vezes eu despia as calças e o engolia no fundo do bidê; ela
prometeu-me que, quando ficasse boa novamente, f,uia a mesma
coisa na minha frente e na frente de Marcela.
Simultaneamente, imaginávamos que deitávamos Marcela,
de saias levantadas e calçada, numa banheira meio cheia de ovos:-
esmagando-os ela faria pipi. Simone sonhava ainda que eu segu-
raria Marcela nua em meus braços, de cu para cima, as pernas
dobràdas mas de cabeça para baixo; então, ela mesma, vestida
com um penhoar ensopado de água quente e grudado no corpo,
mas, deixando o peito nu, subiria numa cadeira branca. Eu
excitaria os seios dela, colocando suas pontas no cano de um
revólver carregado mas recém-usado - o que, em primeiro lugar,
nos emocionaria e, em segundo lugar, daria ao cano um cheiro de
pólvora. Entretanto, ela jogaria do alto creme chantilIy sobre o
ânus cinza de Marcela, deixando-o escorrer; urinaria também no
seu penhoar ou, se o penhoar se abrisse, sobre as costas ou a

37
vezes furar um ovo, e desenvo.lvendo. racio.cínio.s insustentáveis.
cabeça de Marcela, na qual eu mesmo. também po.deria mijar. Acrescento.u que o. cheiro. de cu, de peido.s, era, no. seu
Marcela então. me inundaria, já que tinha o. meu pesco.ço. preso. entender, o. cheiro. da pólvo.ra, um jato. de urina "um tiro. visto.
entre as suas co.xas. Ela po.deria também intro.duzir o. meu cacete co.mo. uma luz". Cada uma de suas nádegas era um o.vo.duro sem
na sua bo.ca enquanto. eu mijasse. casca. Pedíamo.s para no.s trazerem o.vo.squentes, sem casca, para
Era após semelhantes so.nho.s que Simo.ne me pedia para a privada: ela pro.meteu-me que mais tarde se aliviaria inteira-
aco.mo.dá-la so.bre algumas co.bertas, perto. da privada, ·so.bre a mente so.bre esses o.vo.s. Seu cu enco.ntrava-se ainda em minha
qual ela debruçava o. ro.sto., apo.iando. o.s braço.s nas beiradas da mão., no. estado. em que ela me dissera que estava, e, depo.is. da
po.rcelana, de fo.rma a poder fixar seus o.lho.s esbugalhado.s so.bre pro.messa, uma tempestade co.meço.u a crescer dentro. de no.s.
o.s o.Vo.s.Eu próprio. me instalava a seu lado., e no.ssas faces, no.ssas É preciso. dizer que um quarto. de do.ente é um lugar ~pro.-
têmpo.ras, se to.cavam. Uma lo.nga co.ntemplação apaziguava-no.s. priado. para recuperar a lubricidade infantil. Chupei 0., S~lO de·
O ruído. da descarga, co.mo. que engo.lindo. o.s o.vo.s, divertia Simo.ne enquanto. esperava o.s o.vo.s quentes. Ela acanCiava a
Simo.ne: ela escapava então. à sua o.bsessão. e recuperava o. seu minha cabeça. Sua mãe tro.uxe-no.s o.s o.Vo.s.Não. virei a cabeça.
bóm humo.r.
To.mando.-a po.r uma criada, co.ntinuei. Quando. reco.nh,eci sua
Um dia, finalmente, na ho.ra em que o. so.l o.blíquo. das seis vo.z, permaneci co.mo. estava, não. po.dendo. renuncia.r ao. seio.,
ho.ras iluminava o. banheiro, um o.vo.já semivazio. fo.i invadido. nem po.r um instante; baixei as calças, tal co.mo. se tivesse q,!e
pela água e, tendo.-se enchido.co.m um ruído. estranho., naufrago.u satisfazer uma necessidade, sem o.stentação., mas co.m o. desejo.
so.b no.sso.s o.lho.s. Para Simo.ne, esse incidente estava repleto. de de que ela saísse e co.m o. prazer de ultrapassar o.s li~ites. Quan-
significado., ela crispo.u-se e go.zou lo.ngamente co.m o. meu o.lho. do. ela se retiro.u, co.meçava a escurecer. Acendi a luz do.
em seus lábio.s. Em seguida, sem perder de vista esse o.lho.chupa- banheiro.. Simo.ne sento.u-se na privada e cada um de nós co.meu
do. tão. o.bstinadamente quanto. um seio., ela sento.u-se, PUXo.upara um o.vo.· acariciei o. co.rpo. da minha amiga, fazendo. esco.rregar
ela a minha cabeça e mijo.u so.bre o.s o.vo.sque bo.iavam, co.m um so.bre eia o.s o.vo.s restantes, so.bretudo. na racha da bunda. Si-
vigo.r e uma satisfação. gritantes. - . mo.ne o.lho.u-no.s po.r algum tempo., imerso.~, branco.s e que~tes,
sem casca e co.mo. que nus so.b o. seu traseiro.; ela pro.sseguiU a
Desde então., po.dia co.nsiderá-la recuperada. Ela manifes- imersão co.m um barulho. de queda análo.go. ao. do.s o.vo.squentes.
tava sua satisfação. falando.-me lo.ngamente so.bre assunto.s ínti- É necessário. dizer que nada desse gênero. aco.nteceu po.ste-
mo.s, apesar de, habitualmente, nunca falar nem de si própria rio.rmente entre nós, co.m uma única exceção.. Não. falamo.s mais
nem de mim. Co.nfesso.u-me so.rrindo. que, no. instante anterio.r, ela de o.vo.s. Se víamo.s algum, não. co.nseguíamo.s no.s eo.ntemplar
tivera vo.ntade de se aliviar inteiramente: co.ntivera-se para pro.- sem co.rar, co.m uma interro.gação. dúbia no.s o.lho.s.
lo.ngar o. prazer. Tinha o. ventre dilatado de vo.ntade e sentia o.seu
O final desta história mo.strará que essa interro.gação. não.
cu inchar co.mo. uma flo.r prestes a desabro.char. A minha mão.
estava entre suas nádegas e ela disse-me que anterio.rmente esti- ficaria ~em respo.sta, e que a respo.sta tinha a medida do. vazio.
vera no. mesmo. estado. e que era infinitamente go.sto.so.. Co.mo. eu cavado. em nós pelas brincadeiras co.m o.s o.Vo.s.
lhe perguntasse o. que lhe lembrava a palavra urinar, ela respo.n-
deu-me burilar o.s o.lho.s co.m uma lâmina, algo. vermelho.. E o.
o.vo.? Um o.lho.de vaca, devido. à co.r da cabeça, e, aliás, o. branco.
do o.vo. era o. branco. do. o.lho., e o. amarelo., a pupila. Em sua
o.pinião., a fo.rma do. o.vo. co.rrespo.ndia à do. o.lho.. Ela pediu-me
para que, lo.go. que saíssemo.s, quebrássemo.s o.vo.s no. ar, so.b o.
so.l, co.m tiro.s de revólver. Pareceu-me impo.ssível, mas ela dis-
cutiu dando.-me argumento.s divertido.s. Brincava alegremente
co.m as palavras, dizendo. po.r vezes quebrar um olho, o.utras
39
38
MARCELA

Tanto Simone quanto eu evitávamos qualquer alusão a nos-


sas obsessões. A palavra ovo foi expulsa do nosso vocabulário.
Também não mencionávamos o desejo que tínhamos um do
outro. E menos ainda o que Marcela representava para nós.
Enquanto durou a doença de Simone, permanecemos no quarto,
esperando o dia em que poderíamos voltar para Marcela com a
excitação que, na escola, precedia a saída da classe. Acontecia,
no entanto, que sonhávamos vagamente com esse dia. Preparei
uma pequena corda, uma corda com nós, e uma serra de metais
que Simone examinou cuidadosamente. Trouxe de volta as bici-
cletas abandonadas numa moita,· lubrifiquei-as atentamente e
coloquei na minha um par de suportes para os pés, pensando em
trazer uma das moças comigo. Nada éra mais fácil do que acolher
Marcela no quarto de Simone, tal como eu mesmo o fora.
Passaram-se seis semanas antes que Simone estiv~se· em
condições de me seguir até a casa de saúde. Partimos de noite. Eu
continuava a não aparecer durante o dia e tinha todas as razões
para não chamar à atenção. Estava ansioso por chegar a esse
lugar que eu confusamente considerava como um castelo mal-as-.
sombradó: as palavras "casa de saúde" e "castelo" estavam as-
sociadas em minha memória à lembrança do lençol fantasma e
dessa mansão silenciosa habitada por loucos. Coisa estranha,
tinha a sensação de ir para casa, enquanto em qualquer outro
lugar me sentia sempre deslocado.
Correspondeu a essa sensação o que senti quando pulei o
muro e vi o edifício estender-se diante de nós. Apenas a janela de
Marcela estava iluminada e escancarada. As pedras de uma
,alameda jogadas no quarto atraíram a atenção da moça; ela reco-
nhece~-nos e obedeceu à indicação que lhe demos, o dedo na
boca. Mostramos-lhe imediatamente a corda com nós, para que
soubesse nossas intenções. Joguei a corda com um peso de chum-
bo na ponta. Ela passou-a por trás das grades e jogou-me de
volta. Não houve dificuldades: a corda foi pendurada, amarrada
e eu trepei até à janela.
N o início, Marcela recuou quando eu tentei beijá-Ia. Apenas

41
, (

me observou. com uma extrema atenção enquanto serrava uma perna, como a de um cachorro. No entanto, quando lhe falei do
das barras da grade com uma lima. Pedi-lhe baixinho que se "castelo mal-assombrado", ela não duvidou de que se tratava da
vestisse para nos seguir; da estava com um penhoar de banho. casa onde vivera enclausurada e, sempre que pensava nela, o
Virando-me as costas, enfiou umas meias de seda e prendeu-as terror a afastava de mim, como se algum fantasma tivesse surgido
num cinto formado por fitas vermelho-vivo, destacando um tra- da escuridão. Olhei-a inquieto e, como já nessa época a expressão
seiro de uma pureza e de uma delicadeza de pele surpreendentes. do meu rosto era dura, assustei-a. Quase que simultaneamente
Continuei a serrar, banhado em suor. Marcela cobr-iu com uma pediu-me que a protegesse quando o Cardeal voltasse.
camisa os seus rins chatos cujas linhas desembocavam agressiva- Estávamos estendidos ao luar, na orla de um bosque, para
mente no cu, realçado pela posição em que se encontrava, com descansarmos um pouco a meio do caminho e, sobretudo, porque
um pé sobre a cadeira. Não colocou calças. Vestiu uma saia queríamos olhar e beijar Marcela.
pregueada, de lã cinza, e uma malha xadrez, de quadrados pre-
Quem é o Cardeal? perguntou Simone.
tos, brancos e vermelhos. Assim vestida, e calçada com sapatos
Aquele que me~trancou no armário, disse Marcela.
s<?msalto, veio sentar-se perto de mim. Eu podia acariciar, com
uma das mãos, os seus belos cabelos lisos, tão loiros que pare- Por que Cardeal? gritei.
ciam pálidos. Ela me olhava com afeição e parecia tocada pela Porque ele é o padre da guilhotina.
minha alegria muda. Lembrei-me do medo que ela tivera quando eu abri o armá-
- Vamos nos casar, não é mesmo? disse por fim. Aqui é rio; eu tinha na cabeça um barrete frígio, feito com uma saia de
ruim, a gente sofre ... baixo vermelho-vivo. Estava, aléAl disso, coberto de sangue,
Nesse momento, não podia passar-me pela cabeça a idéia de vindo dos cortes de uma moça com quem trepara.
não consagrar o resto dos meus dias a essa apariçãoirreal. Beijei- Assim, o "Cardeal, padre da guilhotina" confundia-se, no
a longamente na testa e nos olhos. Tendo uma de suas mãos pavor de Marcela, com o carrasco sujO de sangue e portador de
escorregado, por acaso, sobre a minha perna, olhou-me com um barrete frígio. Uma estranha coincidência de devoção e de
espanto, porém, antes de retirá-Ia, acariciou-me por cima do horror aos padres explicava essa confusão que, para mim, per-
tecido, com um gesto ausente. manece ligada, por um lado, à minha inegável dureza de expres-
A imunda barra da grade cedeu depois de um longo esforço. são e, por outro, à angústia que sinto continuamente, gerada pela
necessidade dos meus atos.
Afastei-a com todas as minhas forças, abrindo' o espaço neces-
sário à passagem de Marcela. De fato, ela passou; ajudei-a a
descer enfiando a mão nua entre as suas pernas. Já no chão, ela
aninhou-se nos meus braços e me beijou na boca. Simone, a meus
pés e com olhos brilhantes de lágrimas, abraçou as pernas da
jovem, beijando-lhe as coxas onde inicialmente se contentara em
deitar o rosto; contudo, não podendo conter um estremecimento
de alegria, abriu-lhe o corpo e, colando os lábios à sua vulva,
beijou-a avidamente.
Simone e eu tínhamos consciência de que Marcela não en-
tendia o que lhe estava acontecendo. Ela sorria, imaginando a
surpresa do diretor do "castelo mal-assombrado", quando a visse
com seu marido. Mal reparava na existência de Simone, que,
rindo, ela tomava às vezes por um lobo, devido à cabeleira negra
,e ao mutismo, e por ter encontrado a cabeça dela deitada sobre a

42 43
OS OLHOS ABERTOS DA MORTA

No momento, fiquei desnorteado com aquela descoberta.


Até mesmo Simone se sentia desamparada. Marcela cochilava
nos meus braços. Não sabíamos o que fazer. A saia levantada
mostrava-nos seus pêlos entre fitas vermelhas, na convergência
das coxas esguias. Essa nudez silenciosa, inerte, comunicava-nos
uma espécie de êxtase: um sopro deveria ter-nos transformado
em luz. Não nos mexíamos, desejando que essa inércia se prolon-
gasse e que Simone adormecesse profundamente.
d' Um deslumbramento interior esgotava-me e não sei O que teria
acontecido se, de repente, Simone não se tivesse agitado suave-
mente; afastou as coxas, ~abrindo-as finalmente tanto quanto
possível, e disse-me, com uma voz branda, que não podia se
conter mais; estremecendo, inundou o vestido; no mesmo instan-
te, a porra jorrou nas minhas calças.
Estendi-me então sobre a grama, o crânio apoiado sobre
uma pedra chata e os olhos abertos sob a Via Láctea, estranho
túnel de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada
craniana das constelações: essa racha no topo do céu, aparente-
mente constituída por vapores de amoníaco agora brilhando na
imensidão -,-- no espaço vazio onde se dilaceram como um grito
de galo em pleno silêncio - um ovo, um olho furado ou o meu
crânio pasmado aderindo à pedra, refletiam infinitamente suas
imagens simétricas. ,Nauseante, o absurdo grito do galo coincidia
com a minha vida: ou seja, agora, o Cardeal, devido à racha, à
cor vermelha, aos gritos dissonantes q~e ele provocara no ar-
mário, e, também, porque se degolam os galos.

Para outros, o universo parece honesto. Parece honesto para


a gente de bem porque tem os ohos castrados. É por isso que
temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia quando
. '\
escutam o grito do galo ou quando descobrem o céu estrelado .
De um modo geral, as pessoas saboreiam os "prazeres da carne"
com a condição de que sejam insípidos.
Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava

45
daquilo a que se chama "os prazeres da carne", justamente por- na crispada. Inundou o rosto sereno e pareceu-nos surpr~end~nte
que são insípidos. Gostava de tudo o que era tido como "sujo"~ que os olhos não se fechassem. Estávamos cal~os, os t~e~,e ISS?
Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com o deboche habi- era o mais desesperador. Toda a representaçao do tedlO esta,
tual, porque ele apenas contamina o deboche e, de qualquer jeito, para mim, ligada a esse momento e ao cômico obstáculo que é ~
deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. O debo- morte. Isso não me impede de pensar nela sem revolta e a~e
mesmo com um sentimento de cumplicidade. No fundo, a ausênCia
che que· eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus
pensamentos, mas tudo o que eu imagino em sua presença e, de exaltação tornou as coisas absurdas. Marcela morta es~ava
sobretudo, o universo estrelado ... menos afastada de mim do que viva, na medida em que, na mmha
opinião, o ser absurdo tem todos os direitos.
Que Simone tenha mijado em cima dela por tédio, por
Associo a lua ao sangue das mães, às menstruações de odor irritação, mostra até que ponto estávamos fechados à compreen-
nauseante. são da morte. Simone estava furiosa, angustiada, mas com ne-
Amei Marcela sem chorar por ela. Se morreu, foi por minha nhuma tendência para o respeito. Marcela pertencia-nos a tal
culpa. Se bem que tenha pesadelos e que, por vezes, me tranque ponto, em nosso isolamento, que ?ão vimos nela um morto co~o
durante horas na adega pensando em Marcela, estaria, no entan- os outros. Os impulsos antagônIcos que se aposs~ram de nos
to, disposto a recomeçar: por exemplo, mantendo-a de cabeça naquele dia neutralizavam-se, deixando-no_s ce~os. Sltuavam-n.os
para baixo e afundando-Ihe os cabelos na água da privada. Mas num mundo longínquo onde os gestos nao tem alcance, assim
ela está morta e eu vivo reduzido aos acontecimentos que me como vozes num espaço que não é sonoro.
aproximam dela, nos momentos em que menos espero. Fora dis-
so, não me é possível perceber nenhuma relação entre nós dois -
a morta e eu - o que transforma a maioria dos meus dias num
tédio inevitável.
Limitar-me-ei agora ao relato do enforcamento de Marcela:
ela reconheceu o armário normando e o pavor fê-Ia bater os
dentes. Olhando-me, entendeu que eu era o Cardeal. Começou a
berrar e não houve outro jeito senão deixá-Ia sozinha. Quando
tornamos a entrar no quarto, ela tinha-se enforcado dentro do
armário.
Cortei a corda, ela estava realmente morta. Nós a colocamos
sobre o tapete. Simone viu que eu estava de pau duro e mastur- '.
bou-me; deitamo-nos no chão e fodia-a ao lado do cadáver. Si-
. mone era virgem e aquilo machucou-nos, mas nós estávamos
felizes por estarmos machucados. Quando Simone se levantou e
olhou para o corpo, Marcela já era uma estranha e até Simone
era uma estranha para mim. Não amava nem Simone nem Mar-
cela e, se me tivessem dito que eu próprio acabara de morrer, não
teria ficado surpreso. Estava fechado a esses acontecimentos.
O~hei para Simone e o que me agradou, lembro-me claramente,
fOI que ela começou a se comportar mal. O cadáver irritou-a. Ela
não podia suportaf'que esse corpo, que tinha a mesma forma que
o dela, não a sentisse mais. Sobretudo os olhos abertos deixavam-
47
46
ANIMAIS OBSCENOS

Para evitar o tédio de um inquérito, decidimos fugir para


a Espanha. Simone contava com o apoio de um inglês milionário
que lhe tinha proposto raptá-Ia· e sustentá-Ia.
Deixamos a mansão durante a noite. Era fácil roubar um
barco e atracar num ponto deserto da costa espanhola.
Simone deixou-me num bosque para ir a Saint-Sebastien.
Voltou ao cair da noite dirigindo um belo automóvel.
Contou-me que Sir Edmond lhe dissera que o reencontraría-
mos em Madrid. Contou-me também que, durante o dia inteiro,
ele fizera perguntas sobre a morte de Marcela, indagando até os
mínimos detalhes, obrigando-a, inclusive, a desenhar planos e
esboços. Para encerrar, mandou um criado comprar um mane-
quim com peruca loira e Simone teve de urinar sobre o rosto do
manequim, estendido no chão e de olhos abertos como Marcela.
Sir Edmond não tocara na moça.
Depois do suicídio de Marcela, Simone modificou-se pro-
fundamente. Com o olhar fixo e vago, era como se estivesse num
outro mundo. Tudo parecia aborrecê-Ia. Permanecia ligada a
esta vida apenas por alguns orgasmos, raros porém muito mais
violentos que antigamente. Estes últimos, no entanto, diferiam
dos prazeres habituais, tanto quanto o riso de selvagens, por
exemplo, difere do riso de gente civilizada.
Simone começava por lançar um olhar enfadado sobre qual-
quer cena obscena e triste. . . '.
Um dia, Sir Edmond mandou jogar e trancar num chiqueiro
baixo, estreito e sem janelas, uma pu tinha de Madri, pequena e
deliciosa, que caiu no charco de esterco em roupas de baixo, sob
o ventre das porcas. Simone quis que eu a amasse longa mente na
lama, diante da porta, enquanto Sir Edmond se masturbava.
A jovem escapou de mim, arfando, rouca, agarrou as próprias
nádegas com as duas mãos e jogou violentamente a cabeça contra
o chão. Permaneceu assim alguns segundos, tensa, sem respirar.
Abriu o cu com toda a força de suas unhas, rasgou-se de um só
golpe e esperneou por terra, desenfreada, como uma ave degola-
da, machucando-se, com um terrível estrondo, contra as ferra-

49
gens da porta. Sir Edmond ofereceu-lhe o pulso para que ela o pediu a Sir Edmond os colhões do primeiro touro. Porém, tinha
mordesse. O espasmo contorceu-a longamente, desfigurando-lhe uma exigência: queria-os crus.
o rosto sujo de saliva e de sangue. _ Mas, disse Sir Edmond, o que é que você vai fazer com
colhões crus? Você não vai comê-Ios crus, vai?
Depois destes acessos, Simone vinha sempre aninhar-se nos
meus braços: colocava a bunda nas minhas mãos grandes e ficava _ Quero-os, na minha frente, num prato, disse ela.
imóvel, sem falar, como uma criança, porém sombria.
Todavia, apesar da engenhos idade de Sir Edmond que nos
proporcionava essas intervenções obscenas, Simone continuava
preferindo as corridas de touros. Três momentos do espetáculo
conseguiam cativá-Ia: o primeiro, quando o animal se lança fora
do touril como um bólido, lembrando a corrida de um rato
gordo; o segundo, quando o touro afunda seus chifres, até o
. crânio, no flanco de uma égua; e o terceiro, quando a absurda
égua galopa pela arena, escoiceando fora de propósito e dei-
xando cair, por entre as pernas, um aglomerado de entranhas de
cores infames, branco, rosa e cinza-pérola. Quando a bexiga
estourava, soltando, de golpe, sobre a areia, um charco de urina
de égua, as narinas da moça tremiam.
Do começo ao fim da corrida, ela permanecia tensa de
angústia, manifestando o terror - que, no fundo, expressava um
incontornável desejo - de ver algum desses monstruosos golpes
de chifres, que o touro incessantemente enfurecido desfecha às
cegas no vazio dos tecidos coloridos, para projetar o toureiro
pelos ares. É preciso di'zer, aliás, que, quando o temível animal
passa e torna a passaf<pela capa, sem descanso e sem trégua, a um
dedo do corpo do toureiro, o espectador experimenta o senti-
mento de projeção total e repetida, característica do jogo físico do
amor. A proximidade da morte é sentida da mesma forma. Essa
sucessão de passes felizes é rara e desencadeia na multidão um
verdadeiro delírio. Nesses momentos patéticos, as mulheres go-
zam, de tal modo estão tensos os músculos das pernas e do baixo
ventre.
Falando sobre corridas de touros, Sir Edmond contou um
dia a Simone que, ainda recentemente, era costume que os espa-
nhóis viris, por vezes toureiros amadores, pedissem ao porteiro
da arena os colhões grelhados do primeiro touro. Eles eram
servidos em seu lugar na bancadâ, na primeira fila, e comiam-nos
enquanto assistiam à morte do animal seguinte. Simone demons-
trou o mais vivo interesse por essa história e como, no domingo
posterior, Íamos assistir à primeira grande corrida do ano, ela
51
50
o OLHO DE GRANERO

No dia 7 de maio de 1922, La Rosa, Lalanda e Granero


deviam tourear nas arenas de Madri. Tal como Belmonte no
México, Lalanda e Granero eram os grandes matadores de Espa-
nha. De um modo geral, Graneroera considerado o melhor.
Com vinte anos, belo, alto e com uma desenvoltura infantil, já
(;ra popular. Simone interessava-se por ele. Quando Sir Edmond
a informou de que o famoso matador jantaria conosco na noite
da corrida, ela ficou verdadeiramente feliz.
Granero distinguia-se dos outros· matadores pelo fato de
que, em vez de ter a aparência de um açougueiro, parecia mais
um príncipe encantado, acentuadamente viril e perfeitamente
esbelto. A roupa de matador, nesse aspecto, acentua uma linha
reta, erecta e rija como um jato, cada vez que um touro se lança e
passa ao longo do corpo (a roupa molda, exatamente, o cu). O
tecido vermelho-vivo, a espada brilhando ao sol, diante do touro
agonizante cujo pêlo continua fumegando, enquanto sobre ele
escorrem suor e sangue, completam a metamorfose e destacam o
aspecto fascinante do jogo. Tudo acontece sob o céu tórrido de
Espanha, que não é colorido e duro como se imagina, mas
ensolarado e de uma luminosidade ofuscante - mole e turva -
por vezes irreal, de tal modo a violência da luz e a intensidade do
calor evocam a liberdade dos sentidos, mais exatamente a umi-
dade mole da came.
Associo essa irrealidade úmida da luz solar à corrida do 7 de
maio. Os únicos objetos que conservei cuidadosamente foram
um leque amarelo e azul e uma edição popular consagrada à
morte de Granero. Durante um embarque, a mala que continha
essas lembranças caiu ao mar (um árabe retirou-a com uma
vara): estão em bastante mau estado, porém, sujas e deformadas,
como estão, ainda ligam ao chão, ao lugar e à data,
que para mim não é mais do que uma visão de deliqüescência.
O primeiro touro, cujos colhões Simone esperava, era um
monstro negro que irrompeu do touril de um modo tão devasta-
dor que desventrou três cavalos antes que fosse aunciado o início
da corrida. Numa das vezes, levantou o cavalo e o cavaleiro como

53
para oferecê-los ao sol, lançando-os por cima dos cornos: os dois - Idiota, respondeu, quero senta~-me nua em cima do prato.
caíram com estrondo. No momento certo, Granero avançou: en- - Impossível, disse-lhe, sente-se.
volvendo o touro na sua capa, brincou com o furor do animal Tirei o prato do lugar e obriguei-a a sentar-se. Encarei-a.
Num delírio de ovações, o jovem fez com que o monstro andass~ I )csejava que ela visse que eu tinha entendido (pensava no prato
às voltas dentro da capa; cada vez que a besta subia em sua de leite). Desde esse instante, não podíamos mais nos conter. O
direção, disparando como que numa carga, ele evitava por um mal-estar tornou-se tão intenso que Sir Edmond o partilhava
dedo o terríyel embate. A morte do monstro solar ocorreu-se sem também. A corrida estava ruim: os matadores inquietos enfrenta-
choq~e. A ovação infinita já começara enquanto a vítima, com vam animais sem fibra. Simone quisera lugares ao sol e nós
uma mcerteza de bêbado, caía sobre os joelhos e finalmente estávamos tolhidos, imersos num vapor de luz e de calor úmido
tombava de pernas para o ar, -expirando. 4ue nos ressecava os lábios.
. Simo~e, de pé entre Sir Edmond e eu - sua exaltação era Simone não podia de jeito nenhum levantar o vestido e
Igual à mmha - recusou sentar-se depois da ovação. Segurou colocar o cu sobre os colhões: ela continuava com o prato nas
minh~ mão sem dizer .palavra e conduziu-me para um pátio mãos. Quis fodê-la novamente, antes que Granero voltasse. Mas
extenor, fora da arena, I?1pregnado de cheiro de urina. Agarrei o ela recusou. Os desventramentos de cavalos, seguidos, como ela
cu dela enqu.anto ela tIrava pra fora o meu pau, com fúria. dizia, ele "perdas e danos", isto é, de uma cachoeira de entranhas,
Entramos aSSIm num banheiro fedido onde moscas minúsculas embriagavam-na (nessa época, não existia ainda a couraça que
poluíam um raio de sol. A jovem despiu-se e eu enfiei em sua carne protege o flanco dos cavalos).
gosmenta e cor de sangue o meu cacete rosado: ele penetrou nessa Com o passar do tempo, o brilho solar absorveu-nos numa
caverna de amor, enquanto eu bolinava o ânus de Simone com irrealidade conforme nosso mal-estar, nosso desejo impotente de
raiva: simultaneamente se misturavam as revoltas de nossas bocas. explodir, de nos despirmos. Com o rosto contorcido sob o efeito
O orgasmo do touro não é mais forte do que aquele que nos do sol, da sede e da· exasperação dos sentidos, partilhávamos
rasgou, quebrando-nos os rins, sem que o meu membro recuasse essa deliqüescência entediada onde os elementos já não se con-
na vulva esquartelada e afogada em porra. ciliam. Granero voltou mas não modificou nada. O touro estava
As batidas do coração em nossos peitos - ardentes e ávidos desconfiado e o jogo continuava a amolecer.
de nudez - não serenavam. Simone, de boceta ainda feliz, e eu, O que houve em seguida aconteceu sem transição e, aparen-
de pau duro, voltamos para a primeira fila. Mas no lugar onde temente, sem conexão - não que as coisas não estivessem ligadas -
mi?ha a~iga devia se~tar-se, e~contravam-se, s~bre um prato, mas eu acompanhei tudo como que ausente. Estarrecido, vi, em
dOlS colhoes nus; as glandulas tmham o tamanho e a forma de poucos instantes, Simone morder os colhões, Granero avançar e
um ovo e eram de uma brancura de pérola, que o sangue tornava apresentar ao touro o pano vermelho; em seguida Simone, rubo-
rosada, análoga à do globo ocular. . rizada, num momento de pesada obscénidade, desnudar a vulva
- Aí estão os colhões crus, disse Sir Edmond a Simone onde introduziu um dos colhões; Granero, derrubado, acuado
com um ligeiro sotaque inglês. contra a cerca; o touro investindo, golpeando-a com três chifra-
. Simone tinha-se ajoelhado diante do prato, que a estava das: um dos cornos penetrou no olho direito e na cabeça do
deIxan~o profundamente embaraçada. Sabendo o que queria, matador. O clamor aterrorizado da arena coincidiu com o espas-
mas nao s~bendo como fazer, parecia exasperada. Peguei no mo de Simone. Tendo-se erguido da laje de pedra, vacilou e
prato, desejando que ela se sentasse. Ela tirou-o de minhas mãos caiu, o sol cegava-a, seu nariz sangrava. Alguns homens preci-
e recolocou-o sobre a laje. pitaram-se e agarram Granero.
Sir .Edmond e eu temíamos atrair as atenções. A corrida Nas bancadas, a multidão estava, inteira, de pé. O olho
esmoreCIa. Debruçando-me sobre o ouvido de Simone pergun- direito do cadáver, dependurado.
tei-lhe o que ela queria: '

54 55
SOB O SOL DE SEVILHA

Dois globos do mesmo tamanho e consistência tinham-se


animado de movimentos contrários e simultâneos. Um testículo
branco de touro tinha penetrado na carne "rosa e preta" de
Simone; um olho tinha saído da cabeça do jovem toureiro. Esta
coincidência, ligada simultaneamente à morte e a uma espécie de
liqüefação urinária do céu, devolveu-me, por um instante, Mar-
cela. Pareceu-me tocá-Ia, nesse momento fugidio.
O tédio habitual renasceu. Simone, de mau humor, recusou-
se a permanecer mais um só dia em Madri. Fazia questão de ir
para Sevilha, conhecida como cidade do prazer.
Sir Edmond desejava satisfazer os caprichos de sua "angélica
amiga". No sul, encontramos um calor ainda mais deliqüescente
que em Madri. Um excesso de flores nas ruas completava o
enervamento dos sentidos.
Simone ia nua sob um vestido leve, branco, deixando entrever
a cintura sob a seda, e, até mesmo, em certas posições, os pêlos
do púbis. As coisas, nessa cidade, concorriam para transformá-Ia
numa ardente delícia. Com freqüência, aridando pelas ruas, vi um
pau esticar uma calça, à passagem da jovem.
I Praticamente, não parávamos de fazer amor. Evitávamos o
orgasmo e visitávamos a cidade. Deixávamos um lugar propício
à procura de outro: uma sala de museu, a alameda de um
jardim, a sombra ,de uma igreja ou, de noite, uma rua deserta. Eu
abria o corpo da minha amiga e jogava o meu cacete em sua
vulva, como um dardo. Arrancava rapidamente o membro para
fora de seu estábulo e continuávamos nossa caminhada sem
destino. Sir Edmond seguia-nos de longe e surpreendia-nos. Co-
rava então sem se aproximar. Se se masturbava, fazia-o discreta-
mente,a distância.
- Eis uma igreja interessante, disse-nos um dia, é a igreja
de Don Juan.
- E daí? perguntou Simone.
- Você não quer entrar sozinha na igreja? propôs
Sir Edmond.
- Que idéia!

57
Sendo a ideia absurda ou não, Simone entrou e nós a Sentou-se na minha frente, perto do confessionário.
esperamos diante da porta. Quis colocar o meu pau em sua mão, mas ela recusou
Quando ela voltou, ficamos assaz estupefactos: ela ria às ameçando me bater punheta até eu esporrar.
gargalhadas e não conseguia falar. O contágio e o sol ajudando, Tive de sentar-me: via-lhe os pêlos sob a seda molhada.
comecei a rir também, e, finalmente, até mesmo Sir Edmond. - Você vai -ver, disse-me.
- Bloody girl! exclamou o inglês, você não pode explicar- Depois de uma longa espera, uma senhora muito bonita saiu
se? Estamos rindo sobre o túmulo de Don luan? do confessionário, de mãos juntas, o rosto pálido e em êxtase: com
E, às gargalhadas, mostrou-nos, sob nossos pés, uma larga a cabeça inclinada pra trás e os olhos brancos, atravessou lenta-
placa de cobre: ela cobria o túmulo do fundador da igreja, que mente a sala como um espectro de ópera. Cerrei os dentes para
dizem ter sido Don luan. Arrependido, ele pediu para ser enter- não rir. Nesse instante, a porta do confessionário abriu-se.
rado sob a porta de entrada, para ser pisado pelos seres mais Saiu um padre loiro, ainda jovem e extremamente belo, com
baixos. as faces magras e os olhos pálidos de um santo. Permanecia com
Um novo ataque de riso sacudiu-nos, mais violento ainda. as mãos cruzadas sobre o parapeito do armário, o olhar fixando
De tanto rir, Simone mijou-se pelas pernas abaixo: um fio de um ponto do teto: como se alguma visão celeste fosse arrancá-Io
urina escorreu sobre a placa. O incidente teve um outro efeito: do solo.
molhado, o tecido do vestido, agora transparente, aderiu ao Certamente, teria também desaparecido, se Simone não o
corpo tornando visível a vulva negra. tivesse parado, deixando-me estupefacto. Ela saudou o visionário
Por fim, Simone acalmou-se. e pediu a confissão ...
- Vou entrar e me secar, disse. Impassível e deslizando em seu próprio êxtase, o padre indi-
Encontramo-nos numa sala onde não vimos nada que pu- cou o lugar da penitente: um genuflexório por trás de uma
desse justificar o riso de Simone; relativamente fresca, a sala cortina; em seguida, penetrando no armário sem dizer uma pala-
recebia alguma luz através de suas cortinas de cretone vermelho. vra, fechou a porta atrás de si.
O teto tinha uma armação trabalhada, as paredes eram brancas
mas ornamentadas com estátuas e imagens; um altar e sua parte
superior, inteiramente dourados, ocupavam a parede do fundo até
as vigas da armação. Essa presença feérica, repleta de ornamen-
tos, de volutas, de entrançados, como que carregada de tesouros
da Índia, evocava, com suas sombras e seu ouro resplandecente,
os segredos perfumados de um corpo. À direita e à esquerda da '.
porta, dois quadros célebres de Valdés Leal representavam cadá-
veres em decomposição: na órbita ocular de um bispo entrava um
enorme rato ...
O conjunto sensual e suntuoso, os jogos de sombra e luz,
com a luz vermelha das cortinas, o frescor e o cheiro do louro-
rosa e, simultaneamente, o impudor de Simone, me excitavam à
loucura.
Vi, saindo do confessionário e calçados de seda, os dois pés
de uma penitente.
- Quero vê-Ios passar, disse Simone.

58 59
A CONFISSÃO DE SIMONE

E A MISSA DE SIR EDMOND

É facil conceber o meu espanto. Simone, atrás da cortina,


ajoelhou-se. Enquanto ela cochichava, eu esperava, impaciente, os
efeitos dessa diabrura. Imaginei aquele ser sórdido pulando fora
de sua caixa e se precipitando sobre a sacrílega. Não aconteceu
nada parecido. Simone falava interminavelmente, em voz baixa,
contra a pequena janela de grades.
Troquei com Sir Édmond alguns olhares carregados de inter-
rogações, quando finalmente as coisas se esclareceram. Aos
poucos, Simone começava a acariciar a coxa, afastava as pernas.
Agitava-se, mantinha apenas um joelho sobre o estrado. Levan-
tou inteiramente o vestido enquanto prosseguia com suas con-
fissões. Pareceu-nos mesmo que ela se masturbava.
Avancei na ponta dos pés.
Com efeito, Simone masturbava-se, colada contra as grades,
o corpo tenso, as coxas afastadas, os dedos remexendo nos pêlos.
Eu podia tocá-Ia, a minha mão alcançou o buraco entre as
nádegas. Nesse instante, escutei-a claramente pronunciar:
- Padre, ainda não disse o pior.
Seguiu-se um silêncio.
- O pior, padre, é que eu estou me bolinando enquanto
falo com o senhor. Desta vez, alguns segundos de cochichos.
Finalmente, quase em voz alta:
- Se não acredita, posso lhe mostrar.
E Simone, levantando-se, abriu-se diante do olho da guarita,
masturbando-se, em êxtase, com uma mão segura e rápida.
- E então, cura, berrou Simone golpeando violentamente o
armário, o que é que você está fazendo no seu buraco? Batendo
punheta, também?
O confessionário permanecia mudo.
- Então, vou abrir!
Lá dentro, o visionário sentado, de cabeça baixa, passava
um lenço sobre a testa de onde gotejava o suor.
A moça mexeu-lhe na batina: ele não reagiu. Ela levantou-

6J
lhe a imunda saia preta e tirou para fora um pau longo, rosado e O inglês tinha barricado a porta de modo seguro. Remexen-
do nos armários, encontrou um cálice grande. Pediu-nos que
duro: . ele apenas jogou a cabeça para trás com um esgar e um
assobIO entre os dentes. Deixou agir Simone que lhe agarrou a abandonássemos o miserável por uns instantes.
bestialidade com a boca. - Você está vendo, disse a Simone, estas hóstias no cibório
Sir Edmond e eu tínhamos ficado imóveis de espanto. A e agora este cálice onde é colocado o vinho ...
admiração mantinha-nos como que grudados ao solo.· Eu hesi- _ Cheira a porra, disse ela, com o nariz nos pães ázimos.
tava, sem saber o que fazer, quando o enigmático inglês se _ Justamente, continuou o inglês, estas hóstias que você
aproximou. Afastou Simone com delicadeza. Em seguida, se- está vendo são o esperma de Cristo transformado em bolinhos. E
gurou o verme pelo pulso, arrancou-o para fora do buraco e fê-lo o vinho os eclesiáticos dizem que é o sangue. Mas estão nos
estender-se sobre as lajes, a nossos pés: o ignóbil indivíduo jazia enganando. Se fosse realmente o sangue, eles beberiam vinho
como morto no chão, já molhado pela baba que lhe escorria da tinto. Acontece que eles bebem vinho branco, porque sabem
boca. O inglês e eu transportamo-lo, nos braços, para a sacristia. perfeitamente que é a urina.
De braguilha aberta, pau murcho e rosto lívido, o homem
não ofereceu resistência, respirava penosamente. J ogamo-lo nu'"
ma poltrona de forma arquitetura!. . Tal demonstração era convincente. Simone agarrou o cáli-
- Senores, balbuciava o miserável, pensam que eu sou ce e eu apoderei-me do cibório: Don Aminado, na poltrona, foi
um hipócrita? percorrido por um ligeiro tremor.
- Não, disse Sir Edmond, num tom categórico. Para começar, Simone golpeou-o violentamente na cabeça,
Simone perguntou-lhe: com o cálice, o que o fez estremecer, mas o embruteceu mais
- Como é seu nome? ainda. Então, ela chupou-o novamente. Ele produziu gemidos
roucos e infames. Ela o fez atingir o auge da exasperação dos
- Don Aminado, respondeu.
sentidos e em seguida:
Simone esbofeteou o verme sacerdotal: instantaneamente, o
- Isso não é tudo, disse, é preciso mijar.
cacete enrijeceu. Nós o despimos e Simone, de cócoras, como
Bateu-lhe novamente no rosto.
uma cadela, mijou sobre as roupas jogadas no chão. Em seguida,
Simone bateu punheta no padre e chupou-o. Eu enrabei Simone. Despiu-se na frente dele e eu bolinei-a.
Sir Edmond contemplava a cena com a expressão caracte- O olhar do inglês estava tão duro e fixo nos olhos do jovem
rística do hard labour. Inspecionou a sala onde nos tínhamos embrutecido que a coisa aconteceu sem grande dificuldade. Don
refugiado. Viu uma pequena chave pendurada num prego. Aminado encheu ruidosamente com urina o cálice que Simone
mantinha sob o seu cacete. *,
- De que é essa chave? perguntou a Don Aminado.
A angústia que contraiu o rosto do padre denunciou a chave - E agora, bebe, disse Sir Edmond.
da custódia. . '0 miserável bebeu num êxtase imundo.
Mais uma vez Simone chupou-o: ele urrou, tragicamente, de
prazer. Com um gesto demente, jogou contra a parede o penico
Poucos instantes depois, o inglês voltou trazendo um cibório sagrado, que rachou. Quatro braços robustos seguraram-no e de
decorado com anjinhos nus, puros como amores. pernas abertas, corpo quebrado, berrando como um porco, cus-
piu a porra nas hóstias dentro do cibório que Simone, enquanto
Don Aminado olhava fixamente esse recipiente de Deus lhe batia punheta, mantinha sob ele.
colocado no chão; o seu belo rosto idiota, crispado pelas mordi-
das com que Simone lhe enervava o pau, expressou um desvario
total.

62 63
AS PATAS DA MOSCA Sir Edmond amarrou-lhe os braços atrás das costas. Eu
amordacei-o e atei-lhe as pernas com o meu cinto. Depois que ele
foi parar no chão, estendido, o inglês segurou-lhe os braços,
comprimindo-os em suas mãos. Imobilizou-lhe as pernas envol-
vendo-as com as suas. De joelhos, eu mantinha a cabeça entre as
Deixamo~ cair a ca~caça nojenta, que bateu nas lajes com coxas.
estrondo. Estavamos aOlmados de uma determinação evidente
acompan~ada de ~xaltação. O cacete do padre murchava. EI~ O inglês disse a Simone:
permanec.Ia estendIdo, dentes colados a.o chão, abatido pela ver- - Agora, trepa nesse rato de sacristia.
gonha. Tmha os colhões vazios, e seu crime decompunha-o. Simone tirou o vestido. Sentou-se sobre o ventre de mártir,
- Miseráveis sacrílegos ... com a bocetaperto do cacete mole. .
E outros queixumes balbuciados. O inglês continuou, falando sob o corpo da vítima:
. Sir Edmond empurrou-o com o pé; o monstro estremeceu e - Agora, aperta-lhe a garganta, um canal mesmo por trás
gntou de raiva. Estava ridículo e nós caímos na gargalhada. da maçã de Adão: uma forte pressão gradual.
Levante-se, ordenou Sir Edmond, você vai trepar com a Simone apertou: um tremor crispou o corpo imobilizado, e o
girl.
pau ergueu-se. Agarrei-o e introduzi-o na carne de Simone. Ela
. . - Miseráveis, ameaçou a voz estrangulada do padre, a continuava apertando a garganta.
Justiça espanhola. " a penitenciária. .. o garrote ... Violentamente, a moça, ébria até o sangue, remexia, num
- Está esquecendo que· a porra é dele, observou Sir Ed- movimento de vaivém, o pau retesado no interior de sua vulva.
mondo
Os músculos do padre ficaram tensos.
Uma careta, um tremor de animal, e em seguida: Por fim ela apertou tão decididamente que um violento
. -:- o garrote também para mim ... mas para vocês ... arrepio fez estremecer o moribundo: ela sentiu a porra inundá-Ia.
pnmelro . Então largou a garganta e caiu, derrubada por uma tempestade
de prazer.
- Idiota, disse o inglês com escárnio, você acha que vai
esperar? • Simone permanecia estendida sobre as lajes, de barriga para
o ar, com o esperma do morto escorrendo pelas coxas. Estendi-
O imbecil <,>lhoupara Sir Edmond. Seu belo rosto expres-
me para fodê-Ia também. Estava paralisado, Um excesso de amor
sava uma burnce extrema. Uma alegria estranha abriu-lhe a
e a morte do miserável tinham-me esgotado. Nunca me senti tão
boca. Ele cruzou as mãos, lançou para o céu um olhar de êxtase
Murmurou então com voz fraca, moribunda: . feliz. Limitei-me a beijar a boca de Simone.
- ... o mártir. .. A jovem teve vontade de ver a sua obra e afastou-me para se
levantar. Trepou novamente, de cu pelado sobre o cadáver pela-
l! ma ~sperança de salvação surgira no miserável: seus olhos do. Examinou o rosto, limpou o suor da testa. Uma mosca,
pareCIam Iluminados. .
zumbindo num raio de sol, voltava incessantemente para pousar
- Antes de mais nada vou contar-lhe uma história disse Sir sobre o morto. Ela enxotou-a porém e de repente aconteceu algo
Edmond. Você sab~ que os enforcados, ou aqueles que 'são colo- estranho: pousada sobre o olho do morto, a mosca deslocava-se
cados no garrote, fIcam com o pau tão retesado no momento do sobre o globo vítreo. Agarrando a própria cabeça com as mãos,
e.strangulamento que ejaculam. Portanto, você vai ser um már- Simone sacudiu-a, tremendo. Vi-a mergulhar num abismo de
tir, mas trepando.
pensamentos.
Apa:vorado, o padre levantou-se, mas o inglês torceu-lhe um Por mais estranho que possa parecer, nós não nos tínhamos
braço e Jogou-o novamente nas lajes.
preocupado com o modo como essa história pudesse acabar. Se
64
65
I

L
- Enfie ele no meu cu, gritou Simone.
algu?l intrometido .tiv~sse surgido, nós não teríamos deixado que
mamfestasse a sua IndIgnação durante muito tempo ... Mas não Sir Edmond introduziu o olho na fenda e empurrou.
importa. Simone, saindo de seu embrutecimento levantou-se e Finalmente, Simone deixou-me, tirou o olho das mãos de
aproximou-se de Sir Edmond que se encostara ~ uma parede. Sir Edmond e introduziu-.o em sua carne. Nesse momento, pu-
Ouvia-se a mosca voar. X()l\-me contra ela e beijou o interior da minha boca de um modo
- Sir Edmond, disse Simone, grudando seu rosto contra o 1< o ardente que o orgasmo me veio logo: minha porra espirrou
ombro do inglês, você vai fazer o que eu lhe pedir? IlOS seus pêlos.

- Vou... provavelmente, respondeu o inglês. . Levantando-me, afastei as coxas de Simone: ela jazia no
Ela me levou até ao lado do morto e, ajoelhando-se levan~' 'hão, estendida de lado. Encontrei-me então diante do que, ima-
tou a pálpebra e abriu inteiramente o olho sobre o qual; mosca gino, eu esperara desde sempre, assim como uma guilhotina
tinha pousado. 'spera a cabeça que vai decepar. Os meus olhos pareciam-me
Você está vendo o olho? 'récteis de tanto horror; eu vi, na vulva peluda de Simone. o olho
- E daí? azul pálido de Marcela me olhar, chorando lágrimas de urina.
Rastros de porra no pêlo fumt::gante conferiam a esse espetáculo
- É um ovo, disse ela, com toda a simplicidade. uma dimensão de dolorosa tristeza. Mantinha as coxas de Si-
Insisti, perturbado: mone afastadas: a urina ardente bcorria por baixo do olho,
- Aonde você quer chegar? sobre a coxa apoiada no chão ...
- Quero me divertir com ele.
- E mais o quê?
Levantando-se, ela parecia afogueada (estava, então, terri- Sir Edmond e eu, ornamentados com barbas pretas, e Simo-
velmente nua).
ne, usando um ridículo chapéu de seda preta com flores amarelas,
- Escute, Sir Edmond, disse ela, quero que você me dê o deixamos Sevilha num carro de aluguel. Cada vez que entráva-
olho já. Arranque-o.' . mos numa nova cidade, modificávamos nossos personagens. Atra-
vessamos Ronda vestidos de curas espanhóis, com chapéus de
. Sir Edmond não estremeceu; pegou uma tesoura numa bolsa,
feltro preto, envolvidos em nossas capas e fumando, virilmente,
aJoe~ho.u-se, r~cortou as carnes e, em seguida, enfiando os dedos
na orblta, retirou o olho, cortando os ligamentos estendidos. grossos charutos. Simone usava roupa de seminarista e estava
Colocou o pequeno globo branco na mão de sua amiga. mais angelica 1 dó que nunca.
Ela olhou a extravagância, visivelmente constrangida mas Desaparecemos assim interminavelmente em Andaluzia, lugar
não hesitou. Acariciando as pernas, fez escorregar o olho ~obre de terra e céu amarelos, imenso penico afogado em luz, onde, a
elas. A carícia do olho sobre a pele é de uma doçura excessiva ... cada dia e a cada novo personagem, eu possuía uma nova Simo-
e produz um horrível som, como um grito de galo. ne, sobretudo por volta do meio-dia, sobre a terra, sob o sol e sob
o olhar vermelho de Sir Edmond.
N o entanto, Simone divertia-se, fazia o olho escorregar na
N o quarto dia, o inglês comprou um iate em Gibraltar.
racha das n~dega~ .. Estendeu-se no chão, levantou as pernas e o
cu. Tentou ImobIlIzar o globo contraindo as nádegas, mas ele
pulou como um caroço entre 0<:: dedos - e caiu sobre a barriga
do morto.
O inglês tinha-me despido .
.J0gue~-meAsobre a moça e a sua vulva engoliu o meu pau.
FodI-a: o Ingles fez rebolar o olho entre nossos corpos.
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66
Reminiscências

Folheando, um dia, uma revista americana, minha atenção


deteve-se em duas fotografias. A primeira era de uma rua de uma
lIdeia perdida, de onde saiu minha família. A segunda era das
minas de uma fortaleza vizinha. Um episódio da minha vida está
ligado a essas ruínas, situadas na montanha, no alto de um
penhasco. Aos vinte e um anos, passei o verão em casa da minha
família. Um dia, resolvi visitar as ruínas de noite. Algumas moças
astas e minha mãe foram comigo (eu amava uma das jovens, ela
partilhava o meu amor, mas nós jamais falávamos a respeito: ela
'ra extremamente devota e, temendo que Deus a chamasse,
t{ueriameditar um pouco mais). A noite estava escura. Andamos
mais de uma hora até chegar. Subíamos as encostas íngremes
dominadas pelas muralhas da fortaleza, quando um fantasma,
branco e luminoso, saiu de uma cavidade dos rochedos e nos
barrou a passagem. Uma das moças e minha mãe caíram de
susto. As outras berraram. Eu estava certo, desde o início, de que
se tratava de uma brincadeira, porém fiquei, inegavelmente, ater-
rorizado. Avancei em direção ao fantasma e, gritando, pedi que
acabasse com a encenação: estava tenso de medo. A aparição disi-
pou-se: vi meu irmão mais velho fugir; ele tinha combinado tudo
com um amigo, fora de bicicleta e, tendo chegado antes de nós,
envolvera-se num lençol para nos assustar, sob a luz bruscamente
descoberta de uma lâmpada de acetileno: o cenário era propício e
a encenação perfeita.
No dia em que folheei a revista, acabara de escrever o
episódio do lençol. Via o lençol à esquerda e, do mesmo modo, o
fantasma apareceu à esquerda do castelo. As duas imagens po-
diam sobrepor-se .
. Uma surpresa maior me estavél reservada.
\ Comecei a imaginar, então, em todos os seus pormenores, a
cena da igreja, em particular o episódio em que o olho é arranca-
do. Percebendo uma relação entre esse episódio e a minha vida
real, associei-o ao relato de uma célebre corrida de touros à qual
efetivamenteassisti-a data e os nomes são verdadeiros. Hemingway
menciona-os várias vezes em sua obra. De início não esta-
beleci nenhuma ligação direta. Porém, relatando a morte de

69
Quando atingi a puberdade,. o cari~ho que ti~ha pelo meu
Granero, acabei por ficar confuso. A idéia de arrancar um olho pai transformou-se numa repul~a mc~nsclente. Sofna menos coI?
não fora uma invenção livre, mas a transposição, para um perso- os gritos que lhe arrancavam, mtermmavelmente, as dores alucl-
nagem inventado, de um ferimento preciso recebido por um nantes da tabe (que os médicos consideram uma das d?enças
homem real, sob meus olhos (durante o único acidente mortal a mais cruéis). O estado de sujeira fedida a~ qual o redu~lam ~s
que eu assisti). Assim, as duas imagens mais fortes que marcaram suas enfermidades (por vezes se cagava) nao era, para mIm, tao
minha memória, ressurgiram, irreconhecíveis, no momento em penoso, nessa época. Qualquer que fosse o assunto, eu adotava
que eu procurara a maior das obscenidades. atitudes ou opiniões contrárias às suas.
Tinha feito esta segunda ligação; acabara de escrever o Uma noite, minha mãe e eu fomos acordados por um discur-
relato da corrida de touros: li um pedaço do texto a um médico so que o doente desenvolvia aos urros, no seu quarto: tinha
amigo meu, numa versão diferente da que aparece neste livro. enlouquecido subitamente. O médico que eu fui chamar veio
Nunca tinha visto testículos de touro sem pele. Imaginava que imediatamente. Em sua eloqüência, meu pai imaginava aconteci-
fossem vermelhos-vivos. Esses testículos pareciam-me, naquele mentos felizes. O médico retirou-se com minha mãe para o
momento, estar fora de qualquer possibilidade de associação com quarto ao lado e o demente berrou com uma voz de estentor: .
o olho ou o ovo. Meu amigo mostrou-me que estava errado.
Abrimos um tratado de anatomia e eu vi que os testículos dos _ COMO É, DOUTOR, JÁ ACABOU DE FODER MI-
animais e dos homens são de forma ovóide e que têm a aparência NHA MULHER?
e a cor do globo ocular. Ele ria. Essa frase, arruinando os efeitos de uma educação
Lembranças de outra natureza associam-se às imagens de severa, lançou-me numa terrível hilariedade ecriou-~e a obriga-
minhas obsessões. ção constante, à qual inconscientemente me subme.tl, de encon-
trar em minha vida e meus pensamentos algo eqmvalente. Isto
Sou filho de um sifilítico (tabético). Ele ficou cego (já era
cego quando me concebeu) e, quando eu tinha uns dois ou três talvez esclareça a "história do olho".
anos, a mesma doença tornou-o paralítico. Eu era pequeno e Termino a enumeração dos meus mais agudos tormentos
adorava meu pai. A para~isia e a cegueira tinham várias conse- pessoais. •
qüências, tais como: ele não podia ir urinar no banheiro, como .Não podia identificar Marcela a minha ~ãe. Marcela é a
todo o mundo, urinava em sua poltrona, tinha um recipiente para desconhecida de ~atorze a1).os, sentada um dia, num bar, na
esse fim. Mijava na minha frente debaixo de um cobertor que, minha frente. Contudo ...
cego, colocava mal. O mais constrangedor, aliás, era o modo Algumas semanas após o acesso de loucura de meu pai,
como ele olhava. Não vendo nada, sua pupila perdia-se na noite minha mãe acabou perdendo também a razão, depois de uma
lá em cima, sob a pálpebra: esse movimento produzia-se geral- cena odiosa que vovó lhe fez, em minha presença. Passou por uI?
mente no momento de urinar. Ele tinha uns olhos grandes, muito longo período de melancolia. As idéias de danação que a ~oml-
abertos, num rosto macilento com forma de bico de águia. naram nessa altura me irritavam tanto mais que eu era obngado
Normalmente, quando urinava, seus .olhos ficavam quase bran- a vigiá-Ia continuamente. Seu delírio assustava-me tanto que,
cos e pareciam perdidos: tinham por único objeto um mundo que uma noite, escondi os dois candelabros com suporte de mármore:
só ele podia ver e cuja visão gerava um riso ausente. Assim, é a estava com medo de que ela me agredisse com eles enquanto eu
imagem desses olhos brancos que eu associo à dos ovos; quando, estivesse dormindo. -Cheguei até a bater-lhe, perdendo a paciên-
no decurso de minha narrativa, eu falo do olho ou dos ovos, cia, e, desesperado, torci-lhe as mãos, tentando obrigá..:la a racio-
geralmente a urina também aparece. cinar corretamente.
Percebendo essas relações, penso ter descoberto algo que Um dia minha mãe desapareceu, aproveitando um instante
liga o essencial da estória (considerada globalmente) ao aconte- em que eu estava de costas. Nós a procuramos durante muito
cimento mais carregado de toda a minha infância.
71
70
tempo: meu irmão encontrou-a enforcada no celeiro. Porém, PLANO PARA UMA CONTINUAÇÃO DA
chegou a tempo e ela recuperou-se.
Desapareceu uma outra vez: tive de procurá-Ia interminavel- HIST6RIA DO OLHO
mente ao longo de um riacho onde poderia ter-se afogado. Atravessei
correndo terrenos pantanosos. Encontrei-a, finalmente, no cami-
nho: estava molhada até a cintura, a saia escorrendo água. Ela Após quinze anos de deboches cada vez mais graves, Simone
mesma tinha saído da água gelada do rio (estávamos em pleno acabou num campo de tortura; mas, por equívoco. Narrativas de
inverno), sem profundidade suficiente, naquele lugar, para poder suplícios, lágrimas, imbecilidade do sofrimento, Simone à beira
afogá-Ia. de uma conversão, induzida por uma mulher lívida e aumen-
De um modo geral, não me detenho muito nestas lembran- tando os devotos da igreja de Sevilha. Ela tem nesta altura 35
ças. Depois de tantos anos, já perderam o poder de me afetar: o anos. Bonita ainda ao entrar no campo, a velhice atinge-a pro-
tempo neutralizou-as. Só puderam ganhar vida deformadas, irre- gressivamente, deixando marcas irremediáveis. Bela cena entre
conhecíveis e assumindo, no decorrer de sua transformação, um um carrasco-fêmea e a mulher devota: a devota e Simone sur-
sentido obsceno. radas até à morte. Simone escapa à tentação. Morre como quem
faz amor, porém na pureza (casta) e imbecilidade da morte: a
febre e a agonia transfiguram-na. O carrasco bate-lhe, ela perma-
nece indiferente às pancadas, indiferente às palavras da devota,
perdida no trabalho da agonia. Não se trata de um prazer erótico,
é muito mais do que isso. Mas não existe saída. Não se trata
também de masoquismo. Em porfundidade, essa exaltação é
muito maior do que aquilo que a imaginação pode representar:
ultrapassar tudo. Porém, ela se fundamenta na solidão e na
ausência de sentido.

"

72 73
MADAME EDWARDA·

"

75
Se tens medo de tudo, lê este livro mas, primeiro, escuta-me:
se rires, é porque estás com medo. Um livro, no teu entender, é
uma coisa· inerte. É possível. E no entanto, se, como acontece,
não souberes ler? deverias temer ... ? Estás só? Tens frio? Sabes
até que ponto "tu mesmo" és o homem. Imbecil? E nu?

77
MINHA ANGÚSTIA, FINALMENTE, É SOBERANA
ABSOLUTA. MINHA SOBERANIA MORTA ESTÁ NA RUA.
NÃO-APREENSfvEL - A SEU REDOR UM SILE:NCIO DE
TÚMULO - ESCONDIDA À ESPERA DO TERROR - E
NO ENTANTO SUA TRISTEZA ZOMBA DE TUDO.

79
Numa esquina, a angústia me descompôs, uma angústia suja
e embriagante (talvez por ter visto duas mulheres se agitarem
furtivamente na escada dos lavabos). Nesses momentos, fico com
ânsia de vômito. Precisaria despir-me ou despir as mulheres que
desejo: o calor morno de carnes insípidas me aliviaria. Porém,
recorri à estratégia mais pobre: pedi, no balcão, uma aguardente,
que engoli; prossegui assim de bar em bar, até ...
A noite acabava de cair.

Comecei a perambular por essas ruas propícias que vão da


Poissonniere à Saint-Denis. A solidão e a obscuridade com-
pletaram a minha embriaguez. A noite estava nua nas ruas deser-
tas e eu quis desnudar-me como ela: tirei as calças, que coloquei
no braço; desejei poder fixar o frescor da noite em minhas
pernas; estava sendo levado por uma estonteante liberdade. Sen-
tia-me maior. Segurava em minha mão meu sexo reto.
(Entrei no assunto com dureza. Poderia tê-Ia evitado e per-
manecer "verossímil". Tinha todo o interesse em utilizar rodeios.
Mas é assim mesmo, o começo não tem rodeios. Continuo ...
mais duro ... )

Inquieto devido a algum barulho, tornei a pôr as calças e


dirigi-me para as Glaces, onde reencontrei luz. No meio de um
enxame de mulheres, Madame Edwarda, nua, mostrava a língua.
Achei-a encantadora. Escolhi-a e ela sentou-se perto de mim. Mal
tinha acabado de responder ao garçom, agarrei Edwarda que se
abandonou: as nossas duas bocas misturaram-se num beijo doen-
tio. A sala estava lotada de homens e mulheres, e foi esse o
deserto onde o jogo se prolongou. Um instante, a mão dela
escorregou e, de repente, quebrei-me como um vidro e tremi
dentro das calças; senti que Madame Edwarda, cujas nádegas
estavam em minha mãos, também tinha ficado dilaêerada: em
seus olhos agora maiores, revirados, o terror; em sua garganta,
um longo estrangulamento.
Lembrei-me que desejara ser infame, ou melhor, que era
necessário, a qualquer preço, que eu o fosse. Adivinhei alguns
risos através do tumulto das vozes, das luzes e da fumaça. Mas

81
nada mais importava. Apertei Edwarda em meus braços, ela Mas ela tinha mantido a sua posição provocante. Ordenou:
sorriu-me: imediatamente, transido, senti em mim um novo cho- Beija!
que, uma espécie de silêncio que, vindo do alto, caiu sobre mim e - Mas... protestei, em frente de todo o mundo?
gelou-me. Eu me vi suspenso num vôo de anjos que não tinham - É claro!
nem corpo, nem cabeça, num revoar de asas, mas era simples:
senti-me infeliz e abandonado, tal como nos sentimos na pre- Eu temia: olhei-a imóvel, ela sorriu-me com tanta doçura
sença de DEUS. Era algo pior e mais louco do que a embriaguez. que es.tremeci. Finalmente me ajoelhei, vacilante, e pousei meus
E, no começo, entristeci com a idéia de que essa grandeza que lábios sobre a chaga em carne viva. A sua coxa acariciou a minha
caía sobre mim estava me roubando os prazeres que pretendia orelha: pareceu-me ouvir um ruído de mar - pode-se escutar o
desfrutar com Edwarda. mesmo barulho colocando uma concha grande contra o ouvido.
No absurdo do bordeI e na confusão gueme envolvia (acho.
que me sentia sufocado, estava vermelho, suava), permanecia
estranhamente suspenso, como se Edwarda e eu estivéssemos
Estava numa situação absurda: Edwarda não tinha trocado perdidos numa noite de vento, frente ao mar.
duas palavras comigo. Passei alguns instantes de grande mal-
estar. Não poderia explicar nada sobre o meu estado: no seio do
tumulto e das luzes, a noite caía sobre mim! Tive vontade de Escutei uma outra voz, vinda de uma mulher forte e bonita
derrubar a mesa, de derrubar tudo: ela estava fixa, presa ao chão. vestida. decentemente: '
Um homem poderia suportar nada mais cômico. Tudo tinha - Meus filhos, declarou a voz viril, está na hora de subir.
desaparecido, a sala e Madame Edwarda. Apenas a noite ... A subgerente pegou· o meu dinheiro, levantei-me e segui
Madame Edwarda, cuja tranqüila nudez atravessou a sala. Po-
rém a simples passagem pelas mesas lotadas de mulheres com
seus clientes, esse riso vulgar da "mulher que sobe", seguida pelo
Uma voz, mais que humana, arrancou-me do meu embrute- homem que vai fazer amor com ela, tudo isso pareceu-me, naquele
cimento. A voz de Ma~ame Edwarda, tal como seu corpo, era momento, de uma solenidade alucinante: os calcanhares de
obscena: . Madame Edwarda sobre o piso de ladrilhos, esse longo corpo
- Você quer ver os meus trapos? dizia. obsceno se desancando, o cheiro acre de mulher que goza, sorvi-
Com as duas mãos crispadas na beirada da mesa, virei-me do por: mim, o cheiro desse corpo branco. .. Madame Edwarda
para ela. Estava sentada, uma das pernas levantada, coxas afas- avançava na minha frente - nas nuvens. A tumultuosa indife-
tadas: para abrir a fenda mais aindaj ela puxava a pele dos dois rença da sala, diante de sua felicidade e da gravidade comedida
lados, com as· mãos .. Assim, os "trapos" de Edwarda olhavam de seus passos, era uma consagração real e uma festa florida: até
para mim, peludos e rosados, cheios de vida como um polvo a própria morte participava da festa, pelo fato de que a nudez do
repugnante. Balbuciei docemente: bordeI atrai a faca do açougueiro.
"

Por que está fazendo isso? ••••••••••••••••••••••• 10 ••••• IO ••••••••••••••••••••••••••

• ••••••••••••••••••••••• IO •••••••••••••••••••••••••••••••

- Veja, disse ela, eu sou DEUS ... ••••••••• IO.,. ••• IO •••••••••••••••••••••••.•••• IO ••••••••••••

- Eu sou louco ... • •••••••••••• IO ••••••••• IO ••••• IO ••••••••••••••••••••••••••

- Não, você tem de olhar: olhe! ••••••••••••••• IO ••••• IO ••••••••••••• IO •••••••. e •••••• " ••••••

. Sua voz rouca ficou macia, tornou-se quase infantil para me


dizer com languidez, com o sorrllo infinito do abandono: "Como
eu gozei!"
82 83

I
l
· '.' os espelhos
que cobriam as paredes, e até mesmo o teto, multiplicavam a
imagem animal de um acasalamento: ao mais leve movimento,
nossos corações exaustos abriam-se para o vazio onde nos per-
díamos na infinitude de nossos reflexos.

. ,o'
::
Finalmente, o prazer derrubou-nos. Levantamo-nos e olha~
mos um para o outro, gravemente. Madame Edwarda fascinava-
"

me, nunca tinha visto puta mais bonita - nem mais nua. Sem
desviar os olhos de mim, ela pegou numa gaveta um par de meias
de seda brancas: sentou-se na cama e enfiou-as. O delírio de estar
nua possuía-a: mais uma vez ela afastou as pernas e abriu~se; a
nudez acre dos nossos dois corpos causava-nos o mesmo esgota-
mento do coração. Ela vestiu uma jaqueta branca, dissimulou sua
nudez sob uma capa longa: o capuz da capa cobria-lhe a cabeça,
uma máscara preta com rendas tapava-lhe o rosto. Assim vestida,
escapou de mim e disse:
Vamos logo!

- Mas... Você pode sair? perguntei-lhe.


- Rápido, filhote, respondeu alegremente, você não pode
sair pelado!
Estendeu-me as roupas, ajudou-me a colocá-Ias, porém, en-
I quanto o fazia, seu capricho estabelecia por vezes entre sua carne
1 e a minha uma comunicação
, dissimulada." Descemos uma escada
I, estreita. Subitamente, na escuridão da rua, espantei-me por ver
Edwarda fugidia, envolta em sua capa preta. Ela apressava-se,
escapando-me: a máscara que lhe cobria o rosto tornava-a ani-
mal. Não estava frio e no entanto eu tremi. Edwarda, uma
estranha, um céu estrelado, vazio e louco, sobre as nossas ca-
beças: pensei que ia vacilar, mas avancei.
'.
~

85
I,

I
Àquela hora da noite, a rua estava deserta. De repente,
maldosa e calada, Edwarda correu, sozinha. A porta Saint-Denis'
estava diante dela: ela parou. Eu não me mexera: imóvel como
eu, Edwarda esperava sob a porta, no meio do arco. Estava intei-
ramente negra, simples, angustiante como um buraco: compreen-
di que não estava rindo e até, mais exatamente, que, sob as vestes
que a escondiam, estava agora ausente. Soube então - a minha
embriaguez já se dissipara - que Ela não tinha mentido, Ela era
DEUS. A sua presença tinha a simplicidade ininteligível de uma
pedra: em plena cidade eu tinha a sensação de ser a noite na
montanha, no meio de solidões sem vida.
Senti que me tinha libertado dEla - estava só perante essa
pedra negra. Tremia, adivinhando diante de mim o que o mundo
possui de mais deserto. O horror cômico da minha situação não
me escapava de forma alguma: aquela, cujo aspecto agora me
gelava, instantes antes. .. A transformação tinha se processado
como que deslizando. Em Madame Edwarda, o luto - um luto
sem dor e sem lágrimas - tinha instalado um silêncio vazio. E,
no entanto, desejei saber: essa mulher, há poucos instantes tão
nua, que me chamara alegremente de "filhote". .. Atravessei;
minha angústia dizia-me para parar, mas prossegui.
Ela deslizou, muda, recuando até o pilar da esquerda. Eu
estava a dois passos da porta monumental: quando penetrei sob o
arco de pedra, a capa preta sumiu sem ruído. Escutei, segurando
a respiração. Fiquei surpreso por entender tão bem: tinha perce-
bido, quando ela correu, que a qualquer preço deveria correr e
precipitar-se sob a porta; quando parou, sabia que estava sus-
pensa numa espécie de ausência, muito além dos risos possíveis.
Já não conseguia vê-Ia: uma escuridão mortal caía das abóbadas.
Sem ter pensado nisso um instante sequ!r, eu "sabia" que estava
começando um tempo de agonia. Eu aceitava, desejava sofrer, ir
mais long~, avançar até a essência do "vazio", mesmo correndo o
risco de ser abatido. Eu conhecia, queria conhecer o seu segredo
e, na minha avidez, não duvidei um único instante de que a morte
a possuía.
Gemendo sob a abóbada, estava aterrorizado e ria:
- O único, entre todos os homens, a ultrapassar o nada
deste arco!
Tremia pensando que ela podia fugir, desaparecer para todo
o sempre. Tremia aceitando essa idéia, mas só de imaginar essa

87
I~S' --='"""'"""""~~~'""'--
possibilidade enlouqueci: corri, contornei o pilar. Contornei Como uma minhoca decepada, agitou-se no chão com espas-
igualmente o pilar da direita: ela tinha desaparecido, mas eu não mos respiratórios. Debrucei-me sobre ela e tive de retirar as
podia acreditar. Permaneci arrasado, diante da porta, e já estava rendas da máscara que ela engolia e rasgava com os dentes. Seus
começando a me desesperar quando vislumbrei, do outro lado da movimentos desordenados tinham-na despido até o púbis: sua
avenida, imóvel, a capa negra que se perdia no escuro: Edwarda nudez, agora, tinha a ausência de sentido e ao mesmo tempo o
estava de pé, ainda sensivelmente ausente, diante de uma esplana- excesso de sentido das roupas de uma morta. O mais estranho -
da com mesas alinhadas. Avancei em sua direção: ela parecia e o mais angustiante - era o silêncio em que Madame Edwarda
louca, obviamente vinda de um outro mundo, e, nas ruas, parecia se trancara: seu sofrimento não era passível de ser comunidado e
menos do que um fantasma, apenas um nevoeiro tardio. Recuou eu deixei-me absorver por essa ausência de saída - nessa noite
devagar, na minha frente,' até que esbarrou contra a mesa de do coração que não era nem menos deserta nem menos hostil que
esplanada vazia. Como se estivesse acordando, perguntou com o céu vazio. Os saltos de peixe do corpo de Edwarda, a expressão
uma voz sem vida: de raiva abjecta em seu rosto mau, calcinavam a vida dentro de
_ Onde estou? mim e rasgavam-na até o nojo.

(Explico-me: seria vão apelar para a ironia quando digo que


Desesperado, mostrei-lhe o céu vazio sobre nós. Ela olhou: Madame Edwarda é DEUS. Mas que DEUS seja uma prostituta
durante um instante permaneceu imóvel, sob a máscara, com os
de bordeI, demente, não parece ter muito sentido, sob o ponto de
olhos perdidos nos campos de estrelas. Eu segurava-a: com as vista da razão. Bem vistas as coisas, alegra-me que se possa rir de
duas mãos, nem gesto doentio, ela mantinha a capa fechada na minha tristeza: só me compreenderá aquele cujo coração machu-
fre~te. Começou a torcer-se convulsivamente. Sofria, pensei que cado por uma ferida incurável, uma dessas de que ninguém nunca
estIvesse chorando, mas era como se o mundo e a angútia a
quis sarar ... ; e que homem ferido aceitaria "morrer" de uma
sufocassem sem que pudesse soltar um soluço. Afastou-se de mim outra ferida?)
e empurrou-me, movida por uma. obscura repulsa: subitamente
enlouquecida, precipitou-se, parou bruscamente, fez esvoaçar a
c~pa, mostro~ as nádegas. e num golpe de bunda ajeitou a posi-
çao; em segUIda voltou e Jogou-se sobre mim. Parecia arrastada
por um vendaval de selvageria: bateu-me no rosto furiosamente
bateu de punhos cerrados, num insensato movimento de briga:
Vacilei e caí, ela fugiu correndo.

Ainda não tinha conseguido me erguer novamente estava de


joelhos, quando ela se virou. Vociferou com uma voz e~ganiçada.
impossível, bradava para os céus e esbracejava de horror:
- Estou sufocando, mas você, seu veado, vai tomar no
cu ...
A voz decompôs-se num estertor, ela estendeu as mãos para
estrangular e desabou.

89
88
Ajoelhado perto de Edwarda, naquela noite, minha cons-
ciência do irremediável não era nem menos clara nem menos
aterrorizante do que neste momento em que escrevo. Seu sofri-
mento entrara em mim como a verdade de uma flecha: é sabido
que ela penetra no coração, porém, junto com a morte: na espera
do nada, o que subsiste tem o sentido da escória, na qual minha
vida em vão se detém. Perante um silêncio tão negro, houve um
sobressalto em meu desespero; as contorções de Edwarda expul-
saram-me para fora de mim mesmo, jogando-me impiedosa-
mente num além sombrio, tal como se entrega um condenado ao
carrasco.

Aquele que foi condenado ao suplício, quando, após uma


espera interminável, tem finalmente acesso à luz do dia, ao
próprio local onde se realizará o horror, observa os preparativos;
seu coração bate forte, a ponto de explodir: seu estreito hori-
zonte, cada objeto, 'cada rosto, assumem uma expressão carrega-
da e contribuem para esmagá-lo mais ainda, nessa ratoeira de
onde não é mais possível escapar. Quando vi Madame Edwarda
se contorcer no chão fiquei num estado de absorção semelhante,
porém a tranformação que se deu em mim não me enclausurava:
a infelicidade de Edwarda me colocava diante de um horizonte
fugidio, como o objeto de uma angústia; dilacerado e descom-
. posto, experimentava um sentimento de poder, com a condição
de me tornar mau e de me odiar a mim mesmo. A vertigem
escorregadia que me perdia tinha-me aberto um espaço de indi-
ferença; não se tratava mais de preocupação, de desejo: o êxtase
febril que me ressecava nascia da total impossibilidade de parar.

(Se é necessário que eu me desnude aqui, decepciona-me ter


de recorrer a malabarismos verbais, apelar para a lentidão das
frases. Se ninguém reduzir à nudez o que eu digo, retirando a
roupa e 'a forma, então estarei escrevendo em vão. Assim, já sei
que o meu esforço é desesperado: o relâmpago que me ilumina -
e me destrói - provavelmente só cegou os meus próprios olhos.
No entanto Madame Edwarda não é o fantasma de um sonho,
seu suor ensopou o meu lenço: gostaria de poder conduzir o leitor até
o ponto aonde eu mesmo cheguei, conduzido por ela. Este livro

91
contém o seu segredo: devo reduzi-Io ao silêncio pois ele está Ele veio sentar-se do meu lado. Seguindo-o, ela trepou sobre
além de todas as palavras.) ele e, com volúpia, fez o chofer deslizar para dentro dela. Perma-
neci inerte, olhando; ela mexeu-se com movimentos lentos e dissi-
. A crise acalmou-se, finalmente. As convulsões prolongaram-
se amda durante algum tempo, mas não tinham mais tanta raiva: mulados, que, visivelmente lhe davam um prazer extremo. O
Edwarda recuperou a respiração, seus traços distenderam-se, já outro respondia-lhe, entregando-se brutalmente, de corpo intei-
não estava hedionda. Exausto, estendi-me na calçada, perto dela, ro: nascido da intimidade desnudada desses dois seres, seu enlace
por uns instantes. Cobri-a com o meu casaco. Como ela não era atingia progressivamente o ponto de excesso onde o fôlego falta.
pesada, decidi carregá-Ia: o ponto de táxis, na avenida, não O chofer, derrubado, arfava. Acendi a lâmpada interior do carro.
estava longe. Ela permaneceu inerte em meus braços. A corrida Edwarda estava erecta, a cavalo no trabalhador, a cabeçajogada
demorou um pouco, tive de parar três vezes; mas ela voltou a si e para trás e os cabelos balançando. Segurando-lhe a nuca, vi seus
quando chegamos, quis ficar de pé: deu um passo e vacilou: olhos brancos. Ela estendeu-se sobre a mão que lhe servia de
Segurei-a, ajudando-a a entrar no carro. apoio e a tensão aumentou seus estertores. O olhar normalizou-
Disse com voz fraca: se e, por um breve instante, pareceu acalmar-se. Viu-me: nesse
momento preciso, soube que o seu olhar estava regressando do
- ... ainda não... peça para ele esperar ... impossível e vi, no fundo dela, uma vertiginosa firmeza. Vinda
Pedi ao chofer para não andar e, morto de canseira subi e das raízes, a inundação que a submergiu jorrou-lhe pelos olhos:
deixei-me cair perto de Edwarda. ' lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. O amor, em seus olhos, estava
morto, e deles emanava um frio de aurora, uma transparência
onde eu podia ler a morte. E tudo estava amarrado nesse olhar de
sonho: os corpos nus, os dedos que abriam a carne, a minha
Ficamos um longo tempo em silêncio, Madame Edwarda o angústia e a lembrança de baba na bôca; tudo contribuía para
ch?fer e eu, imóveis, cada um em seu lugar, como se o ca;ro esse movimento cego que deslizava para a morte.
estlvesse andando.
Edwarda disse-me por 'fim:.
- Diga-lhe para I ir aos Halles!
Falei com o chofer que pôs o carro em movimento. Condu- O gozo de Edwarda - fonte de águas vivas - que continua-
ziu-nos por ruas sombrias. Calma e lenta, Edwarda desfez os va escorrendo nela a 'ponto de cortar o coração - prolongava-se
laços de sua capa, deixando-a escorregar; já não tinha máscara' de modo insólito: ai onda de volúpia não parava de glorificá-Ia,
tirou a jaqueta e disse para si mesma em voz baixa: ' tornando sua nudez mais nua e seu impudor mais vergonhoso.
- Nua como um animal. Com o corpo e o rosto em êxtase, largados num arrulho inefável,
ela sorriu em sua doçura, com um sorriso quebrado: viu-me no
Batendo no vidro, mandou o carro parar e desceu. Aproxi- fundo da minha aridez; e, do fundo da minha tristeza, senti que a
mou-se do chofer até poder tocá-Io e disse-lhe:
torrente de sua alegria se libertava. Minha angústia opunha-se ao
- Você está vendo. .. estou pelada... vem ... prazer que deveria ter desejado: o prazer doloroso de Edwarda
Imóvel, o chofer olhou o animal: afastando-se, ela tinha gerou em mim um exaustivo sentimento de milagre. O meu
levantado uma perna, bem alto, para ele ver a fenda. Sem dizer desamparo e a minha febre pareciam-me pouca coisa, mas era
uma palavra e sem se apressar, o homem desceu do banco. Era tudo que tinha, as únicas grandezas que poderiam responder ao
sólido e tosco. Edwarda abraçou-o, beijou-lhe a boca e, com , êxtase daquela que, no fundo de um silêncio frio, eu chamava de
uma mão, vasculhou-lhe as cuecas. Fez-lhe cair as calças ao "coração" .
longo das pernas e disse-lhe: Os últimos arrepios percorreram-na lentamente e, em se-
- Vem pra dentro do carro. guida, o seu corpo, ainda espumante, distendeu-se: no fundo do
92 93
táxi, o chofer permanecia largado, depois do amor. Eu continua-
va amparando a, nuca de Edwarda: o nó desfeito, ajudei-a a
estender-se, limpei-lhe o suor. Com o olhar morto, ela não reagia.
Apaguei a luz: ela cochilava como uma criança. Acho que afun-
damos todos num mesmo sono, Edwarda, o chofer e eu.

(Continuar? Gostaria'"màs não me interessa. Não é isso que


interessa. Digo o que me "oprime no momento em que escrevo:
será que tudo é absurdo,ou,~;x:iste algum sentido? Fico doente de
tanto pensar nisso. Acord(tde manhã - assim como milhões de
outros, moças e rapazes, bebês, velhos - sonos arruinados para
todo o sempre ... eu e eSSf;Smilhões de outros, será que o nosso
acordar tem um sentido, um sentido escondido, escondido evi-
dentemente? Mas, se nada tem sentido, não adianta: eu acabarei
recuando, 'me apoiando em subterfúgios. Deveria desistir e ven- Nota
der-me ao absurdo: no que me diz respeito, é ele o carrasco que
me tortura e me mata: não existe sombra de esperança. Porém, se
existe algum sentido? Hoje, eu ignoro-o. Mas amanhã? Quem (*) Disse que "Deus, se "soubesse"seria um por~o': Aquele ~~
sabe? Não posso conceber um sentido que não seja o "meu" (suponho que estaria, no momento, mal lavad~, despenteado J
suplício, isso eu sei. E, por ora: o absurdo (nonsense)!O Senhor compreendesse até o fundo o que eu quer~ dizer, que ~ose de
Absurdo escreve, compreende que está louco: é terrível. No entan- humanidade teria? além, e de tudo... mOlS longe, mOlS longe
to a sua loucura, esse sentid,o aUl!ente - vejam como ele ficou ainda ... ELE PRÓPR[(!, em êxtase sobre o vazio ...
"sério" de repente - poderia ser justamente "o sentido" (não, E agora? ESTOU TREMENDO.
Hegel nada tem a ver com a "apotêose" de uma louca ... ). Minha
vida só tem sentido se eu não o tiver, se eu for louco: entenda
quem puder, entenda quem estiver morre'ndo ; assim, o ser
está aqui, não sabendo por quê, tremendo de frio ; está imerso
na imensidão e na noite, e existe, expressamente para. .. "não
saber". E DEUS? que podemos dizer a respeito, senhores Cren-
tes? - Será que pelo menos Ele sabe? DEUS, se soubesse, seria
um porco*. Senhor (estou apelando, em desespero, para "meu
coração") libertai-me, cegai-os! E a narrativa, devo continuá-Ia?

Terminei.
Fui o primeiro a acordar, doente, do sono que nos derrubou,
durante algum tempo, no fundo do táxi... O resto é ironia,
longa espera da morte ...

94 95
o MORTO

97
Quando Eduardo caiu morto, um vazio instalou-se nela, um
longo arrepio percorreu-a, elevando-a com um anjo. Os seus
seios nus erguiam-se numa igreja de sonho onde o sentimento do
irremediável acabava de esgotá-Ia. De pé, ao lado do morto,
ausente, além de si mesma, num êxtase lento, estupefacta. Soube
que estava desesperada, mas não ligava para seu desespero. Mo-
ribundo, Eduardo suplicara-lhe que ficasse nua.
Não tivera tempo de se despir. Estava ali, desgrenhada,
apenas os seios pularam fora do vestido arrancado.

MARIA FICA SÓ
COM EDUARDO MORTO

99
o tempo acabara de negar as leis às quais o medo nos Aturdi~a, p.ermaneceu diante da porta, sem coragem de
entrar. OuvIa, vmdos de dentro, gritos e cantos de prostitutas
escraviza. Ela tirou o vestido e pendurou o casaco num braço.
bêbadas. Sentia-se trêmula, mas gozava com seu tremor.
Estava louca e nua. Lançou-se adiante e correu na noite sob o
aguaceiro. Seus sapatos estalaram na lama e a chuva escorreu Pensou: "vou entrar e eles vão me ver nua". Teve que apoiar-
sobre ela. Sentiu uma necessidade intensa, que conteve. Na do- se na parede. Abriu o casaco e enfiou os seus longos dedos na
çura do bosque, Maria estendeu-se sobre a terra. Mijou longa- fenda. Escutou, petrificada de angústia; cheirou nos dedos o odor
mente, a urina inundou-lhe as pernas. Estendida no chão, canta- de sex? mal lavado. Vinham urros da estalagem e, no entanto,
rolou com uma voz impossível, demente: ~ud? sIlenciou. Chovia: num escuro de porão, um vento morno
... é a nudez I~clmava a ~h~va. Um~ voz de puta cantou uma canção melancó-
lIca do suburblO. OuvIda pela noite, lá fora, a voz grave e velada
e a atrocidade ...
pelos muros era dilacerante. Calou-se. Seguiram-se aplausos e
Em seguida levantou-se, recolocou o impermeável e correu por bater de pés, e depois um "bam!"
Quilly até a porta da estalagem. Maria soluçava na sombra. Chorava em sua impotência as
costas da mão contra os dentes. '

MARIA DETÉM-SE
DIANTE DA ESTALAGEM
MARIA SAI NUA DE CASA
101
100
Ela perguntou, em voz baixa:
Sabendo que entraria. Maria tremeu.
- Pode-se beber?
Abriu a porta, cjeu três passos na sala: uma corrente de ar
fechou a porta atrás dela. A patroa respondeu do balcão:
Lembrou-se de ter sonhado aquela porta cerrada para todo - Uma pinga?
o ·sempre sobre ela. Serviu um copo pequeno, no balcão.
Os criados, a patroa e as mulheres encararam-na. Maria não quis.
Ficou imóvel na entrada; suja de lama, os cabelos escorren- - Quero uma garrafa e copos grandes, disse.
do e o olhar mau. Parecia ter surgido da ventania da noite (es- Sua voz, sempre baixa, estava firme.
cutava-se o vento, fora). O casaco cobria-a, mas ela abriu a gola. Acrescentou:
- Vou beber com eles.
Pagou.
Um criado com botas enlameadas perguntou timidamente:
- Você veio fazer uma farra?
- É isso aí, disse ,Maria.
Tentou sorrir: o sorriso cortou-a.
Acomodou-se junto ao garçom, colou sua perna à dele· e,
agarrando-lhe a mão, colocou-a entre suas coxas.
Quando o garçom tocou na fenda, gemeu:
- Nossa, mãe!
Atentos, os outros calavam-se.
Uma das mulheres levantou-se e afastou um dos lados do
casaco.
- Olha aí, ela está pelada! disse.
Maria deixou que a outra lhe abrisse o casaco e engoliu
rapidamente mais um copo de álcool.
- Ela gosta de leite, disse a patroa.
Maria teve um arroto amargo.
MARIA ENTRA
NA SALA DA ESTALAGEM MARIA BEBE COM OS CRIADOS

102 103
Maria diz tristemente: Um dos criados mantinha-se afastado, com uma expressão
- Pronto. de ódio. Era um homem belo demais, calçava longas botas com
sola de borracha, bem novas.
Seus cabelos negros molhados grudavam-se ao rosto, em
Maria aproximou-se dele, a garrafa na mão. Estava grande e
mechas. Sacudiu a bonita cabeça, levantou-se, tirou o casaco.
congestionada. Suas pernas vacilavam dentro das meias frouxas.
- - Um gavião que bebia na sala avançou em sua direção. O criado pegou a garrafa e engoliu num trago.
Titubeava, agitando os braços no ar. Urrou:
Gritou com uma voz forte, inadmissível:
- Venham a nós as mulheres peladas!
- Chega!
A patroa caiu-lhe em cima:
Num gesto brusco e seco pôs a garrafa vazia sobre a mesa.
- Eu agarro essa penca ...
Maria perguntou:
Agarrou-lhe o nariz e torceu-o.
- Você quer outra?
Ele berrou.
Respondeu com um sorriso: tratava-a como a uma conquista.
- Não, melhor agarrá-lo aqui, disse Maria.
Deu corda no piano mecânico. De volta, esboçou um leve
Aproximou-se do bêbado e desabotoou-o: sacou um pau passo de dança, os braços como que segurando uma parceira.
meio mole.
Pegou na mão de Maria e dançaram um dança obscena.
O pau provocou uma gargalhada.
Maria entregou-se inteira, nauseada, a cabeça atirada pra
De um só golpe, ousada que nem um animal, Maria engoliu trás.
um segundo copo.
Languidamente, os olhos brilhando como faróis, a patroa
mexeu-lhe na racha da bunda: '.
- Dá pra comer, disse.
Maria encheu mais uma vez o seu copo. O álcool desceu,
gorgolejante. Ela enchia a cara como se morre. O copo caiu-lhe
das mãos. O seu traseiro era insípido, a fenda grande. A sua
,doçura iluminava a sala.

MARIA AGARRA O PAU MARIA DANÇA


DE UM BbBADO COM PIERROT

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De repente, a patroa levantou-se, gritando: Os criados, as mulheres e a patroa, em volta de Maria,
- Pierrot! esperavam o que ela diria.
Maria tombava: escapou do braço do belo criado, que per- Maria murmurou apenas uma palavra:
dia o equilíbio. - ... a aurora, disse.
. O corpo fino, escorregadio, caiu no chão com um barulho de Em seguida sua cabeça baixou, pesada. Doente, doente ...
animal. A patrou perguntou:
- Filha da puta! disse Pierrot. - O que foi que ela falou?
Limpou a boca na manga, brusco. Ninguém soube responder.
A patroa precipitou-se. Ajoelhou-se e levantou cuidadosa-
mente a cabeça: e do canto dos lábios escorria saliva, ou melhor,
baba.
Uma rapariga trouxe uma toalha molhada.
Maria voltou a si em pouco tempo. Pediu com voz fraca:
- Álcool!
- Passa um copo, disse a patroa a uma das moças.
Deram-lhe um copo. Ela bebeu e disse:
- Mais!
A mulher tornou a encher o copo. Maria arrancou-o de suas
mãos. Bebeu como se lhe faltasse tempo. '.
Descansando nos braços de uma das mulheres e da patroa,
levantou a cabeça e disse:
- Mais!

MARIA CAI
MORTA DE Bf:BADA MARIA QUER FALAR

106 107
Então, a patroa disse ao belo Pierrot:
Ela sentiu-se iluminada, gelada, mas deixando sua vida es-
- Dê-lhe uma chupada. vair-se no esgoto.
- Vamos colocá-Ia numa cadeira, disse uma das mulheres. Um desejo impotente mantinha-a tensa: gostaria de poder
Várias mãos' seguraram-lhe o corpo colocando seu cu fir- relaxar o seu ventre. Imaginou o terror dos outros. Já não estava
me na cadeira. separada de Eduardo.
Pierrot ajoelhou-se, passou as pernas dela sobre seus ombros. A boceta e o cu à vista, o cheiro de cu e de boceta, molhados,
- O belo garoto fez um sorriso de conquista e jogou a liberavam seu coração, e a língua de Pierrot, que a molhava,
lingua direto nos pêlos. ,parecia-lhe o frio do morto.
Doente, iluminada, Maria parecia feliz; sorriu sem abrir os Bêbada de álcool e de lágrimas, e não chorando, ela sorvia
olhos. esse frio de boca aberta: atraiu a si a cabeça da patroa, abrindo à
cárie o abismo voluptuoso de seus lábios.

MARIA É
MARIA BEIJA
CHUPADA POR PIERROT
A BOCA DA PATROA
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109
Maria empurrou a patroa, afastando-a, e viu-lhe a cabeça ... Empurrões, um berro de terror, um escarcéu de garrafas
desgrenhada exorbitando de alegria. O rosto da machona brilha- quebradas, as coxas de Maria se agitaram com movimentos de
va de suavidade bêbada. Ela estava de porre também, com um rã. Os garçons que gritavam se atropelaram. A patroa acudiu
porre que lhe dava vontade de cantar: vieram-lhe aos olhos lágri- , Maria, estendeu-a de comprido sobre o banco.
mas de devoção. Seus olhos permaneciam vazios, em' êxtase.
Olhando essas lágrimas e não notando nada, Maria vivia Lá fora, o vendaval em desatino. Na noite, os estrondos das
banhada na luz do morto. Disse: portas batendo.
- Tenho sede. - Escutem, disse a patroa.
Pierrot chupava até perder o fôlego. Ouviu-se um uivar de vento nas árvores, longo gemido como
Diligente, a patroa deu-lhe uma garrafa. um chamado de louca.
Maria bebeu em longos tragos, esvaziando-a. Nesse instante, a porta abriu-se de golpe, um furacão entrou
na sala.
No mesmo instante, Maria estava de pé, nua.
Gritou:
- Eduardo!
E a angústia transformou sua voz num prolongamento do
vento.

MARIA BEBE NO GARGALO MARIA GOZA

110 tIl
Dessa noite ruim, saiu um homem, fechando penosamente Maria permanecia imóvel olhando o conde e sentia vertigens.
um guarda-chuva: sua silhueta de rato recortou-se contra o vão - Encha, disse.
da porta. E o conde encheu os copos.
- Rápido, senhor conde! entre, disse a patroa. Titubeou. Disse ainda, comportada:
O anão avançou sem dar resposta. - Morrerei ao nascer da aurora ...
- O senhor está encharcado, continou a patroa, fechando a O olhar azul de aço do conde encarou-a. As sobrancelhas
porta. loiras subiram, acentuando as rugas da testa largas demais.
O pequeno homem tinha uma gravidade surpreendente, era Maria levantou o copo e disse:
largo e corcunda, a cabeça grande afundada entre os ombros. - Beba!
Saudou Maria e voltou-se para os criados. Oconde também levantou o copo e bebeu: engoliram juntos,
- Oi, Pierrot, tira-me o casaco, por favor. de um só trago.
Pierrot ajudou o conde a despir o casaco. O conde beliscou- A patroa veio sentar-se ao lado de Maria.
lhe uma perna.
- Tenho medo, disse-lhe Maria.
Pierrot sorriu. O 'conde apertou as mãos, amavelmente. Não tirava os olhos· do conde.
- Dá licenca? perguntou inclinando-se. Teve uma espécie de soluço: murmurou com voz de louca ao
Instalou-se na mesa de Maria, à sua frente. ouvido da velha:
Passem as garrafas, disse o conde. É o fantasma de Eduardo.
- Já bebi para mijar na cadeira, disse uma das mulheres. - Que Eduardo? perguntou a patroa, com voz baixa.
- Beba pra cagar, minha filha ... - Morreu, disse Maria com a mesma voz.
Calou-se subitamente, esfregando as mãos. Agarrou a mão da outra e mordeu-a.
Não sem desenvoltura. - Filha de uma puta, gritou a mulher mordida. Mas, sol-
tando a mão, acariciou Maria e, beijando-lhe o ombro, disse ao
conde:
- É meiga, apesar de tudo.

MARIA ENCONTRA
UM ANÃO MARIA vf. O FANTASMA DE EDUARDO

112 113
Por sua vez, o conde perguntou: - Tenho medo, disse Maria. Você parece uma estaca.
- Quem é Eduardo? Ele não respondeu. Pierrot agarrou-lhe o pau.
- Não sabe mais quem é, disse Maria. Ele estava impassível, com efeito, como um poste.
Desta vez sua voz quebrara: - Fora, disse Maria, ou mijo em você ...
- Dê-lhe bebida, pedia à patroa. Trepou na mesa e agachou-se.
Parecia esgotada. _ -: Ficarei encantado, respondeu o monstro. O seu pescoço
O conde esvaziou o copo mas confessou: nao .tmha nenhuma desenvoltura: quando falava, só o queixo
mexia.
- O álcool tem pouco efeito sobre mim.
Maria mijou.
O pequeno homem largo, de cabeça grande demais, encarou
Maria com um olhar sombrio, como se tivesse a intenção de . ~ig~rosamente, ~ierrot batia punheta no conde, cujo rosto·
incomodar. fOI atmgldo por um Jato de urina.
O conde ficou vermelho e a urina inundou-o. Pierrot batia
Encarava todas as coisas do mesmo modo, a cabeça rígida
entre os ombros. punheta como quem traga e o pau cuspiu a porra no colete. O
Chamou: anão emitia sons roucos, de moribundo, percorrido da cabeça
aos pés por pequenos espasmos.
- Pierrot!
O criado aproximou-se
- Esta menina está me deixando de pau duro. Você se
importa de sentar aqu~?
O criado sentou-se e o conde acrescentou alegremente:
- Seja bonzinho, Pierrot, bata punheta pra mim. Não ouso
pedir a esta criança ...
Sorriu.
- Ela não está, como você, habituada a monstros.
Nesse instante, Maria subiu no banco.

MARIA MIJA
MARIA SOBE NO BANCO NO CONDE

114 115
Maria continuava mijando. Maria fez um sorriso de fel.
Agachada sobre a mesa, no meio das garrafas e dos copos, Uma visão de horror ruim ...
ela regava-se de urina com as mãos. Um de seus pés escorregou: a boceta bateu na cabeça do
_ Inundava as pernas, o cu e o rosto. conde.
- Olha, disse, eu sou bela. Ele perdeu o equilíbrio e caiu.
De cócoras, a boceta ao nível da cabeça do monstro, escan- Os dois caíram berrando como ammalS, num incrível .
carou-a horrivelmente, afastando-lhe os lábios. estrondo.

MARIA BANHA-SE MARIA CAI


DE URINA SOBRE O MONSTRO

116 117
N o chão, um mexe-mexe horrível. - Vá, foda, Pierrot, disse á patroa.
Maria perdeu as estribeiras e mordeu o pau do conde, que Todos se agitaram ao redor da vítima.
urrou. Maria tornou a deixar cair a cabeça, incomodada pelos
.Pierrot dominou-a. Estendeu-a com os braços em cruz: os preparativos .
outros seguravam-lhe as pernas. Os outros estenderam-na, abriram-lhe as pernas. Ela respi-
Maria gemeu: . rava ofegante, arfava ruidosamente.
- Deixa-me. Em sua lentidão, a cena lembrava o esgoelar de um porco ou
Depois calou-se. o sepultamento de um deus.
Resfolegava enfim, de olhos fechados. Pierrot tirou as calças, o conde exigiu que ficasse pela-
do.
A briu os olhos. Pierrot, vermelho, suando, estava em cima
dela. O efebo teve um arranque de touro: o conde facilitou a
entrada do membro.
- Foda-me, disse ela.
A vítima estremeceu e debateu-se: corpo a corpo, num ódio
incrível.
Os outros olhavam, lábios secos, ultrapassados pelo frenesi.
Os corpos amarrados pelo pau de Pierrot rolavam no chão, deba-
tendo-se. Finalmente, vergando-se até quebrar, o criado urrou, a
baba escorrendo. Maria respondeu-lhe com um espasmo
. de morte.

MARIA MORDE O PAU MARIA É FODIDA


DO ANÃO POR PIERROT

118 119
· .. Maria voltou a si. O que Maria leu no olhos do anão foi a insistência da morte;
Ela escutava cantos de pássaros nas ramagens de um bosque. esse rosto expressava apenas um infinito desencanto, e uma
obsessão atroz tornava-o cínico. Ela teve um sobressalto de ódio,
Os cantos, de uma delicadeza infinita, fugiam assobiando de
árvore em árvore. Estendida sobre a erva molhada, viu que o céu e .com a morte aproximando-se, teve muito medo.
estava claro: amanhecia nesse momento. Ergueu-se cerrando os dentes diante do monstro ajoelhado.
Teve frio, estava cheia de uma felicidade gelada, suspensa De pé, tremeu.
num vazio ininteligível. No entanto, como teria gostado de levan- Recuou, olhou para o conde e vomitou.
tar suavemente a cabeça, e, se bem que tornasse a cair de exaus- - Está vendo, disse.
tão, permanecia fiel à luz, à folhagem, aos pássaros que povoa- - Aliviada? perguntou o conde.
vam o arvoredo. Um instante, a lembrança de pudores infantis. - Não, disse ela.
Percebeu, debruçada sobre ela, a larga e sólida cabeça do conde.
Viu o vômito à sua frente. O casaco rasgado cobria-a mal.
Aonde vamos? perguntou.
Para sua casa, respondeu o conde.

MARIA ESCUTA
OS PÁSSAROS DOS BOSQUES MARIA VOMITA

120 121
(I

- Para minha casa, gemeu Maria. Navamente, sua cabeça Maria, que a escutava, alhava simplesmente o conde. Ele
girava. Você é o diabo., para querer ir para minha casa? perguntou. levantou-se:
- Sim, retrucau o anão, disseram-me várias vezes que sou o - Ninguém, murmurou, ninguém me fala desse jeito.
diabo..
- Você pade ir embora, disse ela. Mas se vier ...
, - O diabo, disse Maria, eu cago para o diaba! O cande interrampeu-a secamente:
Agora mesmo você vamitou. - Estau indo. Você vai se entregar a mim.
- Vou cagar. Ela tarnau-se violenta:
Agachou-se e cagau sabre a vamitado. - Já não. era sem tempo, disse. Vem.
O monstro ainda estava de joelhos.
Maria encostau-se cantra um carvalho. Estava suando, em
transe.
Disse:
- Tudo isso não. é nada. Mas, em minha casa, vacê vai ter
medo.... Tarde demais.. .' . "

Sacudiu a cabeça e, selvage'm, avançau bruscamente sobre o


anão, puxau-a pela calannho e gritou:
- Vamos?
- Clara, respondeu o conde.
E acrescentou em voz baixa:
- Empatamos.

MARIA CAGA
SOBRE O VÔMITO MARIA LEVA O CONDE

122 123
Caminharam rapidamente. o conde ficou de pau duro.
Amanhecia quando chegaram. Maria empurrou o portão. Era comprido e avermelhado.
T ornaram uma trilha entre velhas árvores: o sol já dourava seus Seu corpo nu e aquele caralho tinham uma deformidade
cumes. diabólica. A cabeça, entre os ombros angulosos e altos demais,
Maria, com toda a sua raiva, sabia estar de acordo com o estava lívida e sarcástica.
sol. Introduziu o conde em seu quarto. Ele desejava Maria e limitava os pensamentos a esse desejo.
Terminou, disse consigo mesma. Estava ao mesmo tempo Empurrou a porta. Tristemente nua, ela esperava-o em fren-
exausta, cheia de ódio, indiferente. te da cama, provocante e feia: a bebedeira e o cansaço tinham-na
- Dispa-se, disse; estou esperando no quarto ao lado. deixado abatida.
O conde despiu-se sem pressa. - O que é que você tem? disse Maria.
O sol, através da folhagem, fazia manchas que dançavam na O morto, em desordem, enchia o quarto ...
parede. O conde balbuciou baixinho:
- ... eu não sabia ....
Teve de encostar-se contra um móvel: estava broxando.
I Maria teve um sorriso atroz.
- Está acabado, disse.
Tinha um ar estúpido, mostrando em sua mão direita uma
ampola quebrada.
Finalmente, caiu.

MARIA E O CONDE
ENTRAM NA CASA MARIA MORRE

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]25
o conde vislumbrou por fim os dois carros, um atrás do
outro, puxados a passo, levando os caixões para o cemitério.
- O anão assobiou entre dentes:
- Ela me pegou ...
Não viu o canal e deixou-se escorregar.
Um ruído surdo perturbou, por um instante, o silêncio da
água.
Só restava o sol.

MARIA SEGUE
O MORTO SOB A TERRA

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