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PAULO DE Barros CARVALHO Professor Emérito e Titular da PUCISP e da Usp DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO 2? EDICAo LIVRO II editora e livrario 2017 Tema XIV PRECOS DE TRANSFERENCIA NO DIREITO TRIBUTARIO BRASILEIRO Sumério: 1. Anotagées introdutérias sobre pregos de transferéncia e arm’s length. 2. A Convengao- -Modelo da OCDE e sua influéncia na legislagao brasileira. 3. Principio arm’s length e precos de transferéncia. 4. Métodos para apuracao de tran- sag6es arm’s length. 5. Método do custo de produ- cdo mais lucro - CPL. 6. Método do preco de re- venda menos lucro ~ PRL. 7. Método dos pregos independentes comparados - PIC. 7.1. Similarida- de dos bens negociados. 8. Impossibilidade do uso de dados e informacées privilegiadas do Fisco na fixagao dos precos e custos médios. 9. Aplicagao do método segundo anilise produto-a-produto e 0 basket approach. 10. Conclusoes. 1 ANOTACOES INTRODUTORIAS SOBRE PRECOS DE TRANSFERENCIA E ARM’S LENGTH O imposto sobre a renda alcanga a disponibilidade eco- némica ou juridica de renda, entendida esta como o resultado do trabalho, do capital ou da combinagao de ambos. Essa é a hipétese de incidéncia do tributo, a qual deve ser confirmada emensurada pela base de calculo, representada pelo montan- te da renda auferida. 35 PAULO DE BARROS CARVALHO Esse esquema de tributagaéo, aparentemente sim i tem sofrido as influéncias dos avangos tecnolégicos dos mej em S ede transporte, associado ao continu —_ Os de comunicagao : : “ = cimento das grandes corporagoes. Diante de tao Significatiya, mudangas no contexto econdmico mundial, em que empresas instaladas em determinado pais atuam fora de seus limites territoriais, mediante controladas, coligadas, ou filiais, Surgiy a possibilidade fatica de intervengao nos Pregos dos demais participes da operagao, visualizando-se, no Ambito do im. posto sobre a renda das pessoas juridicas, a figura da distri. buigdo disfargada de lucros, ocorrida quando a Pessoa jurj. dica aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa a ela vinculada, ou adquire, dessa pessoa relacionada, bem por valor notoriamente superior ao de mercado (Regulamento do Imposto de Renda ~ Decreto n. 3,000/99 - art. 464). O prego de transferéncia é exatamente a forma encon- trada para, verificando ter-se ocorrido a transagao entre partes vinculadas, mediante a fixagao de preco diverso do efetivamen- te praticado no mercado, substituir o valor maculado pela in- fluéncia das partes por aquele independente do vinculo, impe- dindo, com isso, a distribuigao disfargada de lucros e, assim, permitindo aferir-se o real montante da renda auferida, sujei- ta tributagao em consonancia com o prinefpio “arm’s length”. A expressao “arm’s length” pode ser traduzida, literal- mente, como “a distancia de um brago”. Contextualizando-a, significa que o prego pactuado em determinado negocio juri- dico deve corresponder a um valor independente de interfe- réncia de qualquer das partes sobre o processo de sua fixacdo € correspectiva aceitagao pela outra parte. Esse princfpio propée que as empresas vinculadas, ao realizarem exportacoes e importagées, sejam tratadas como se fossem entidades nao-relacionadas, exigindo que lhe sejam atribuidos os lucros que aufeririam se praticassem aquelas 36 = = i - anne pERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO esmas operagoes com empresa nao-ligada. Em outras pala- ats prego “arm s length” €0 valor que teria sido convencio- io entre partes nao relacionadas, integrantes de operacgées gimilares, em condigoes semelhantes. Significa que, para de- terminar-se & verdadeira renda tributavel de um contribuinte yinculado a outra empresa, devem ser aplicados os mesmos adroes de contribuintes que transacionam “4 distancia de um braco” com empresa a eles nao relacionadas. Essa é a definigao adotada pela Organizagao para a Cooperagao e o Desenvolvi- mento Econémico - OCDE: prego que teria sido acordado entre as partes nao relacionadas, envolvidas em transacgées iguais ou similares, sob idénticas ou similares condigées”. nad Para que se possa falar em pregos de transferéncia, vi- sando & tributacgao de transferéncias indiretas de lucros, é necessario ter-se verificado a transgressao ao parametro “arm’s length”, mediante a fixagdo de prego “viciado” pelo vinculo entre as partes do negécio juridico. Para tanto, devem estar presentes 0S seguintes caracteres: (i) pessoas vinculadas; (ii) com domicilio em paises distintos; (iii) fixagao de prego diver- so daquele que seria estabelecido naquela operagao caso as partes nao fossem vinculadas; e (iv) vantagem fiscal para as partes contratantes. Ausente qualquer desses elementos, nao ha que se falar em desrespeito ao “arm’s length”, sendo incabi- velaeleigao de prego diverso do pactuado. Isso equivale a dizer que inexistindo distorgao da renda, desnecessério efetuar ajustes. No intuito de conferir consisténcia ao estudo, formulo sete quesitos para, apds realizadas consideragées que julgo indispensdveis ao bom desenvolvimento do raciocinio juridico, respondé-los objetivamente. Sao eles: 1. Que séo precos de transferéncia e em quais situagoes devem ser empregados? 11. Relatério de 1979 da OCDE. 37 PAULO DE BARROS CARVALHO ¥ 2, Qual o papel dos pronunciamentos o ¢ ao dos precos de transferéncia? na definiga? 3, Os métodos para cdleulo dos Precos ei 9.430/96 sao taxativos? leCisieg 6 Cp, e tra, Ha Shor © Preferg, Phe, > Mei «Sa eles? nt 4. Quando da operacéo chamada céleulo do : 6 Deas. Loot, re, 0 acrés 0 venda menos lucro, € licito Scimo de valores i 80 dp x sem alterar a esséncia do Produto Diaby tte » Piabili, Moy arrolados na Li operacdes Tue, facilitam sua revenda? 5. Que é preco “praticado no mercado”? oes similares para fins de cdleulo de pregos inci aes = oy TAdo99 6. Elicita a utilizagéo de dados do SISCOMrx privativos da autoridade fiscal para o céleulo dos transferéncia? Ou Outros Preeos dp 7. Em se tratando de transagées que estejam rrelacion, entre si, é posstvel a coleta conjunta de precos, consi ns totalidade das transagées e ndo o prego de cada wma (“cesta 4 produtos”)? 2, ACONVENCAO-MODELO DA OCDEE SUA INFLUEN. CIA NA LEGISLACAO BRASILEIRA A Organizagao para a Cooperagao e Desenvolvimento Econémico - OCDE tem, dentre seus objetivos, a expansio do comércio e dos investimentos internacionais entre seus membros. Nao obstante essa organizacdo carega de poder normativo, suas decisées e pronunciamentos gozam de ele- vado prestigio na comunidade internacional, influenciando as legislagdes internas nao sé dos paises-membros, ms também daqueles que pretendem manter escorreitas rela" Goes internacionais. 38 DERIVACAO E POSITIVAGAO NO DIREITO TRIBUTARIO Q Brasil, conquanto nao seja membro da OCDE, adota as diretrizes firmadas por essa Organizagao. O legislador bra- sileiro, 20 disciplinar os pregos de transferéncias, editou a Lei n. 9.430/96, consignando, em sua exposigao de motivos, a ma- nifesta pretensao de seguir os parametros firmados pela OCDE, nos seguintes termos: 12. As normas contidas nos arts. 18 a 24 representam signi- ficativo avanco da legislagao nacional face ao ingente pro- cesso de globalizagao experimentado pelas economias contemporaneas. No caso especifico, em conformidade com regras adotadas nos paises integrantes da OCDE, sao pro- postas normas que possibilitam o controle dos denominados “Pregos de Transferéncia”, de forma a evitar a pratica, le- siva aos interesses nacionais, de transferéncia de recursos para o Exterior, mediante a manipulagdo dos pregos pac- tuados nas importacées ou exportagdes de bens, servicos ou direitos, em operagées com pessoas vinculadas, residen- tes ou domiciliadas no Exterior. Nao se pode negar, portanto, a influéncia da Convengao- -Modelo da OCDE na legislacao patria, fazendo-se necessaria a observancia das diretrizes ali tragadas. 3, PRINCIPIO ARM’S LENGTH E PRECOS DE TRANSFE- RENCIA A principal recomendagao da OCDE é para que seja aplicado o principio “arm’s length”, segundo o qual o prego praticado entre empresas vinculadas, situadas em paises dife- rentes, deve corresponder ao valor que seria fixado por pessoas nao relacionadas, pactuados de forma independente, sem in- terferéncia de uma das partes sobre 0 processo decisério de aceitagao do prego pela outra. Nesse sentido, o prego “arm’s length” seria aquele acordado entre partes nao relacionadas, envolvidas em transac6es iguais ou similares, sob idénticas ou similares condig6es. 39 PAULO DE BARROS CARVALHO Ocorre que, em virtude do relacionamento existente en- tre os participantes da operagao, 0 prego convencionado pode no corresponder aqueles praticados no mercado entre par. inculados. Essa cobranga a maior oy ceiros comerciais des menor, porém, 6 repudiada pelo ordenamento juridico, por implicar desvios de lucros, distorcendo os resultados da em. presa e, com isso, influindo na sua tributagao, seja na esfera dos tributos aduaneiros, seja nos incidentes sobre a renda. Paulo Ayres Barreto é preciso ao explicar que a sistema- tica dos pregos de transferéncia™*: [...] visa & identificagao de eventual transferéncia indireta de lucro nas operagoes entre partes vinculadas. Presente tal situagdo, procede-se a um ajuste na base calculada do imposto sobre a renda, incidindo, assim, o referido imposto sobre a parcela de lucro transferida indiretamente por in- termédio de precos manipulados por forga das relagées existentes entre as partes vinculadas. Centra-se a questao na apuragéo da base calculada do imposto sobre a renda. Assim, é possivel afirmar que 0 denominado “prego de transferéncia”, consistente no valor cobrado por determinada empresa na venda ou transferéncia de bens, servigos ou pro- priedade intangivel para outra empresa a ela vinculada, é tema de grande relevancia, que tem merecido a atengao do legislador brasileiro, apresentando dois enfoques: (i) no 4mbito da valo- ragéo aduaneira, visando a fixagao do prego normal do produ- to importado; e (ii) no campo da tributagao sobre a renda, objetivando verificar a existéncia ou nao de desvio de lucros. Em razao dessa dualidade, o prego fixado para fins de valoragaéo aduaneira nao coincide, necessariamente, com o prego de transferéncia. Pode ocorrer que, em determinada 18. Imposto sobre a renda e precos de transferéncia, Sao Paulo: Dialética, 2001. p. 152. 40 > perIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO sacl © valor praticado seja inferior ao valor do bem tr edo} necessitando, portanto, de ajuste, Mas inoco; ie. ere 7608 resultados das empresas comerciais pi nan ae examinar os pregos de quaisquer opera, y el ter em conta 0 prinefpio “arm’s length” da pela OCDE e adotada pela legislagio de Pregos de neia, sob pena de, mediante inapropriados tte ( r-se o comando legislativo, tributando-se valores terizam renda. me articipantes, GGes, é impres- cindiv ’, diretriz reco- mendace transfere! desvirtual nao carac 1, METODOS PARA APURACAO DE TRANSACOES ARM's LENGTH No sentido de apurar o prego utilizado em operagées independentes, para obter os ajustes dos valores fixados nos negocios realizados por partes vinculadas, a OCDE indica mé- todos para verificagao de tais montantes. Esses métodos sao meros instrumentos para concretizar-se o principio “arm’s length”, nao configurando um fim em si mesmos. A comparagao entre o preco de transferéncia acordado em certo negécio ju- ridico e aquele realizado segundo um dos métodos previstos objetiva exatamente verificar se o prego fixado corresponde ao valor de mercado, estabelecido independentemente e, portan- to, livre de distribuig6es indiretas de lucros. Os principais métodos eleitos pela OCDE e acolhidos pela legislacdo brasileira sao: (i) método do custo de produgao mais lucro; (ii) método do prego de revenda menos lucro; e (iii) mé- todo dos pregos independentes comparados. A doutrina espe- cializada acrescenta, ainda, uma série de outras formulas, desde que satisfagam ao princfpio “arm’s length”. Nessa linha de pensamento, registra Luis Eduardo Schoueri que a OCDE, ao sugerir o emprego de seus métodos de apuragao de precos de transferéncia, apresenta-os como formas de aplicacao do principio arm’s length. Mais do que isso, a 41 PAULO DE BARROS CARVALHO OCDE néo hesita em afirmar que os métodos apresentadog nao sao cogentes, tendo as empresas a liberdade de adotay outros métodos, desde que os pregos assim obtidos satista. cam o principio arm’s length." No que diz respeito as operagoes de importagao, a legis}; cdo brasileira alude aos trés métodos tradicionais acima refer. dos, sem demonstrar preferéncia por qualquer deles. Assim como recomendado pela OCDE, deixou a cargo do contribuinte optar por aquele que entender mais conveniente, podendo, também, utilizar mais de um deles (art. 18, § 4°, da Lein. 9.430/96), Examinemos, brevemente, os principais métodos de apuragao dos pregos de transferéncia: (i) Método do custo de producdo mais luero: adiciona-se uma margem de lucro apropriada ao custo da producéo, consi- derando-se, para sua fixacao, as transacées similares, pra- ticadas entre partes nao relacionadas. (ii) Método dos precos independentes comparados: compara-se o preco pactuado em operagao realizada entre partes vincula- das com pregos estabelecidos, para os mesmos bens ou servicos, em idénticas condi¢des negociais, por pessoas nao relacionadas. Método do prego de revenda menos luero: deduz-se, do preco de revenda do bem ou servico adquirido de parte vinculada, uma margem bruta relativa as despesas opera- cionais do revendedor. Vejamos como cada um desses métodos foi incorporado a ordem juridica nacional. 5. METODO DO CUSTO DE PRODUCAO MAIS LUCRO - CPL O método do custo de produgao mais lucro consiste, nos 19. Preeos de transferéncia no direito tributdrio brasileiro, Sdo Paulo: Dialé- tica, 1999, p. 19. 42 pentvacA0 E posITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO 1,18, IL, da Lein. 9.430/96, no célculo d term 40 com base no: arc custo médio de producto de bens, servigos ou direit efenticos ou similares, no pafs onde tiverem sido ere! = igente produzidos, acrescido de impostos etaxas Beads iio reerido pais na exportagio ede margem de Histofde Pete por cento calculada sobre o custo apurado, 4 do implica uma comparagao meramente hipo- Esse méto' independentes, pois presume a margem terceiros tia co™ bs ser adotada. de lucro a licagao do método CPL encontra dificuldades em yirtude da necessidade de determinagao dos custos. Chega até mesmo @ tornar-se invidvel em alguns casos, como quando a arte yinculada nao é produtora do bem, pois obter o montan- tedos custos de produgao de terceiros, localizados no exterior lagéo com a empresa importadora, é tarefa penosa Aap! esem vincw! ede éxito duvidoso. §, METODO DO PRECO DE REVENDA MENOS LUCRO -PRL A operacionalizagao do denominado “método do prego de revenda menos lucro” da-se mediante a dedugao, do prego de revenda (assim considerado 0 valor pelo qual o bem ou direito cor a empresas independentes), de uma margem de ae correspondente ao montante das despesas opera- aa te venda, acrescido de lucro considerado “apropria- aoe ae modo, o preco de transferéncia é determi- (os ieee ace do prego de revenda, subtrafdos inc} eer on consi ii) os impostos econtribuigées Pagas;e (iv) a ns vena (iii) as comissoes e corretagens uma forma de aces le lucro. Ainda mais, sofrendo ° bem anipulacao antes da revenda, que implica 43 ~~ PAULO DE BARROS CARVALHO yaloracao do produto, devem ser efetuados os ajustes cabiveg sendo também nessa hipdtese perfeitamente aplicavel o « todo do prego de revenda men 9.430/96). 0 fato de o revendedor agregar algum valor ao pro ditty -0 para 0 consumo, nao é empecilho ao empreg, desse método, especialmente quando o valor agregado 6 quan. tificavel e configure a razao preponderante da aquisigao ely consumidor. Nesse sentido, manifesta-se Fortunato Bassanj Campos, em obra coordenada pela Delegacia da Receita Fede. ral de Julgamento de Sao Paulo, exemplificando: os lucro”. (art. 18, II, da i aprimorando: Se eu importar um barril de azeitonas em salmoura e re. vender essas azeitonas em vidro, depois de devidamente beneficiadas e limpas, ninguém vai negar que as azeitonas importadas no barril de salmoura sao as mesmas azeitonas que eu pus no vidrinho e estou revendendo.” Econtinua esse autor, agora se referindo aos medicamen- tos e A necessidade de serem eles fisicamente transformados para possibilitar seu consumo, sem que isso interfira na apli- cacao do método do prego de revenda: Outro exemplo: se eu importar um pozinho para alergia na pele, que dependa, para sua fixacdo na pele, da agre- gacdo de outro produto, que no altera em nada a esséncia do pozinho, destinando-se apenas a torné-lo um creme ou uma pomada, de maneira que o medicamento atinja seus objetivos? Eu posso também importar cApsulas, importar 0 pozinho e depois encapsular e vender: Isso é prego de revenda? E se eu solidificar o pé numa pilula? Também seré prego de revenda? Seria outro produto e, para efeito do IPI, até é 20. Preco de transferéneia na Lei n. 9.430/96, in Temas de Legislagdo Tribu- téria, Séo Paulo: Delegacia da Receita Federal de Julgamento de Sao Paulo, 1998, p. 28-29. 44 -

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