Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2004) e é
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa
RECEBIDO EM: 11/05/21
Catarina (2006). Atualmente é professor do curso de Direito da Universidade do
ACEITO EM: 23/06/21 Vale do Itajaí (UNIVALI), Campus Kobrasol São José. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Filosofia e Teoria do Direito, Teoria e Direito
Constitucional, Processo e Direito Penal bem como Direitos Humanos, atuando
principalmente como os seguintes temas: argumentação jurídica, garantias
processuais penais constitucionais, teoria do delito, Direito Internacional dos
Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos. É, ainda, professor nos
cursos de pós-graduação lato sensu da Escola do Ministério Público de Santa
Catarina e em Direito Constitucional, Gestão Escolar e Psicopedagogia da
Universidade do Vale do Itajaí. Coordena, ademais, o Observatório do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos e o Projeto de Extensão Universitária
Educação em Direitos Humanos. https://orcid.org/0000-0002-7918-2796
2
Pós-Doutor pelo Centro de Direitos Humanos e Pluralismo Jurídico da
Universidade McGill (Montreal, Canadá). Doutor e Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Universidade do Vale do
Itajaí (UNIVALI), nas disciplinas de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e
Direitos Humanos no curso de Graduação em Direito. É advogado militante nas
áreas de direito eleitoral e direito administrativo (Sócio do Escritório Menezes
Niebhur Advogados Associados). Vice-Presidente da Comissão de Direito
Eleitoral da OAB/SC. É membro fundador da Academia Brasileira de Direito
Eleitoral e Político (ABRADEP) e Academia Catarinense de Direito Eleitoral
(ACADE). Coordenador do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos (UNIVALI). Editor-chefe da Revista Resenha Eleitoral (TRE/SC).
https://orcid.org/0000-0001-6054-960X
3
Doutor em Direito (UFPR), com estágio de pós-doutoramento em Direito
(Faculdade de Direito de Coimbra e UNISINOS). Mestre em Direito (UFSC).
Professor Associado de Processo Penal da UFSC. Professor do Programa de
Graduação, Mestrado e Doutorado da UNIVALI. Juiz de Direito do TJSC. Membro
Honorário da Associação Ibero Americana de Direito e Inteligência
Artificial/AID-IA. Pesquisa Novas Tecnologias, Big Data, Jurimetria, Decisão,
Automação e Inteligência Artificial aplicadas ao Direito Judiciário, com
perspectiva transdisciplinar. Coordena o Grupo de Pesquisa SpinLawLab (CNPq
UNIVALI). https://orcid.org/0000-0002-3468-3335
de preparar o aluno para o que ele irá, no futuro, realmente enfrentar, o artigo principia
com um resgate histórico da crise do ensino do Direito e de sua permanência na
contemporaneidade, seja do ponto de vista dos conteúdos ensinados, seja do ponto de
vista das metodologias preponderantemente utilizadas. O argumento central do artigo
é que sendo o Direito, em sua essência, uma tentativa de regular boa parte desse mundo
da vida hoje fortemente dominado pela inteligência artificial, ao mesmo tempo que ele
próprio, no seu modus operandi, é por ela atingido, não podem os cursos de Direito
furtarem-se à incumbência de fornecer formação acadêmica que prepare para o que hoje
se tem e para o que brevemente se terá. Nesse sentido, adotando uma lógica de
construção dedutiva, após discorrer sobre a constante e recorrente crise do ensino
jurídico, e de estabelecer a inteligência artificial como um dado do presente e do futuro,
este artigo apresenta algumas propostas, sejam no plano conteudístico, sejam no plano
metodológico, para uma tão urgente quanto necessária reforma do modo como o Direito
é compreendido e, por consequência, ensinado nos cursos jurídicos do País.
1 INTRODUÇÃO
A crise do ensino jurídico parece ter sempre existido. Como adiante será visto,
escritos sobre tal crise são persistentes e recorrentes. E nesse sentido, o passado se faz
presente, insistindo em fazer do ensino do Direito um campo muito fértil para a crítica.
E é aqui, no presente, e logo ali, no futuro, que este artigo se detém. É evidente que a
história não se fragmenta em blocos que são descartados à medida que o tempo avança,
razão pela qual o “Direito de hoje” não supera e ignora o “Direito de ontem”, muito pelo
contrário, pois dele segue bebendo e com ele ainda guarda importantes e originárias
conexões; daí ser tão significativa a alegoria de Ronald Dworkin de que o direito é um
“romance em cadeia”. Mas o fato é que sendo por excelência uma esfera de regulação da
vida, o Direito, assim como o ensino dele, precisam acompanhá-la. E esse, veremos, não
é o quadro atual. E isso, como já exposto, não é novidade.
O ensino sempre deve(ria) prestar contas à realidade. Isso não significa, por
óbvio, que apenas se deva trabalhar a vida como ela é, mas que o que acontece no mundo
da vida precisa fazer com que o ensino faça sentido. Isso para todos os âmbitos do ensino
e, inclusive e talvez especialmente para o superior, que tem como um de seus principais
objetivos a preparação do discente ao mundo do trabalho, pois daquele que deixa a
universidade, não apenas se espera uma especialidade em determinado ramo do saber,
mas especial e significativamente uma capacidade de criticamente pensar esse saber e a
realidade sobre a qual ele atua(rá).
O objetivo, pois, deste artigo, após uma rápida apresentação desta crise do
ensino do Direito e da carga de disrupção provocada pela revolução tecnológica, é
discutir, a título de proposta inicial de debate, quais caminhos podem seguir o ensino
do Direito. Afinal de contas, o diploma entregue ao egresso, após o percurso da
graduação, não pode mais se constituir em um documento que somente ateste que o
mesmo obteve o grau de Bacharel em Direito. A questão que se apresenta às instituições
(e ao ensino do Direito) é muito mais profunda: como a forma de reproduzir o ensino
do direito foi capaz de possibilitar ao seu egresso meios para lidar com o presente-futuro.
4
A discussão mais completa sobre a (im)possibilidade normativa de um juiz-robô em língua portuguesa
é feita por GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade: a impossibilidade jurídica do juiz-
robô. São Paulo, SP: Marcial Pons, 2020.
Em 1987, José Eduardo Faria publicava uma obra que se tornaria um clássico
na reflexão sobre o ensino do Direito no Brasil: A Reforma do Ensino Jurídico (FARIA,
1987a). Nela o autor – professor titular de Sociologia Jurídica da USP – fazia a crítica do
modelo de ensino vigente naquele efervescente período pré-1988. 5 O trabalho
condensava resultados de pesquisas iniciadas em 1980, e fora apresentado de forma
resumida em artigo publicado em 1986 6 (FARIA, 1986), ocasião em que o autor já
chamava a atenção para o fato de que a realidade exigia do estudante de Direito “um
saber crescentemente multidisciplinar e anti-formalista” (FARIA, 1986, p. 47). Naquela
ocasião, escreveu José Eduardo Faria:
Não se deve mais manter o ensino jurídico preso e confinado aos limites
estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a
autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite
ao aluno moldar-se ou adaptar-se acriticamente à linguagem da autoridade. Não se trata,
é óbvio, de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de
conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as condições de
aplicação do direito positivo. (FARIA, 1986, p. 48).
O que mais espanta é que hoje, em 2021, essa citação postada em uma rede
social seria seguida de curtidas, comentários de apoio e compartilhamentos, como se de
um diagnóstico atual se tratasse. E estamos, na verdade, falando de um período de quase
40 anos. Todo o texto apresentado por José Eduardo Faria, e que faz o diagnóstico no
contexto de um dos cursos mais tradicionais do Brasil (o da Universidade de São Paulo),
é repleto de críticas à “concepção da cultura jurídica como um simples repertório fixo e
imóvel de dogmas”, à transmissão de “informação de caráter meramente instrumental”,
ao “senso comum teórico dos juristas de ofício” (Warat), à “ilusão de um ensino neutro”,
ao risco de oferecimento aos estudantes somente de “informações a respeito de
institutos jurídicos vinculados a situações e contextos desaparecidos ou em fase de
desaparecimento”, etc., etc., etc. (FARIA, 1986, p. 48-55).
Essa crise que José Eduardo Faria apontava, em uma escola de Direito como
a da USP, nos anos 1980, não só permanece atual como hoje é ainda mais agravada.
Praticamente todas as críticas que se dirigiam ao ensino jurídico naquela época hoje
persistem: (1) grades curriculares burocráticas excessivamente voltadas para o ensino
(sem grandes pitadas de criticidade) da letra da lei (não por acaso ser o vademecum o
“livro sagrado” de parte expressiva dos estudantes); (2) disciplinas propedêuticas de
formação básica indispensáveis para uma real compreensão do fenômeno jurídico
cumprindo funções meramente protocolares na grade – ramos do saber como
antropologia, psicologia, economia, história do direito, ciência política, filosofia e
5
A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) reflete sobre o tema desde muito antes. É
significativo da persistente crise do ensino jurídico um texto de Cesarino Júnior, de 1954, intitulado “O Ensino
do Direito” e que versa, justamente, sobre a tão debatida crise do modelo. Cf. CESARINO JÚNIOR, 1954.
6
O artigo em questão, como explica o próprio autor, é a “Versão condensada do relatório sobre a reforma
do curso jurídico apresentado à Comissão de Ensino da FD-USP em março de 1986”.
sociologia por vezes amargam 30h de carga horária, por vezes amargam o status de
optativas, por vezes amargam o destino da disciplina EaD ou, ainda, por vezes amargam
um “destino combo”, que combina duas ou mais das citadas amarguras; (3) grades
estritamente fechadas sem grandes espaços para que estudantes construam seu
currículo de forma mais customizada e condizente com seus anseios formativos; (4)
ausência de pesquisa e extensão formadoras do tripé universitário ao lado do ensino; (5)
professoras e professores sem a devida formação pedagógica, muitas vezes profissionais
liberais ou funcionários públicos que entendem a docência como o lugar de “se passar o
que se sabe”; (6) prática jurídica quase estritamente ligada a ações individuais da área
cível, as quais, em que pese a importância social para quem pelo escritório modelo é
atendido, têm pouco impacto na formação do estudante; (7) professoras e professores
com remuneração restrita à hora-aula em sala de aula, o que inviabiliza qualquer avanço
real e efetivo em termos de metodologias ativas como sala de aula invertida e
aprendizagem baseada em projetos; (8) ausência de estudo aprofundado e crítico das
disciplinas jurídicas de formação (como teoria do direito e direito constitucional), que
abandonaram autores clássicos e densos em detrimento de slides, aulas no YouTube e,
quando muito, livros com propostas esquematizadas ou afins; (9) processos avaliativos
quase que exclusivamente restritos a provas de múltipla escolha com questões
praticamente alheias a qualquer criticidade e geralmente copiadas de sites que oferecem
questões de concursos públicos, e, por fim, (10) um número expressivo de alunas e
alunos com importantes déficits formativos de base e com o único interesse de, com o
diploma, obter aprovação em concurso público, independentemente de uma formação
que permita um exercício republicano daquela função que o cargo exigirá.
7
Segundo o Censo da Educação Superior de 2017, os cursos de Direito detinham 10,6% das 8,3 milhões de
matrículas do ensino superior brasileiro (879.800).
8
Dados números completos sobre o ensino do Direito e o Exame de Ordem no Brasil podem ser obtidos
no documento Exame de Ordem em Números (Volume 4, 2020), de autoria da OAB e da FGV e que pode
ser acessado aqui: https://www.conjur.com.br/dl/exame-ordem-numeros1.pdf
Bem, se essa afirmação está correta, o cenário que será exposto no item a
seguir exigirá “alguma” reflexão por parte de quem pensa o ensino do Direito no Brasil,
pois ninguém quer que o profissional do Direito perca relevância.
9
Tradução livre de: “[...] la posibilidad de que las máquinas, en alguna medida, «piensen», o más bien
imiten el pensamiento humano a base de aprender y utilizar las generalizaciones que las personas usamos
para tomar nuestras decisiones habituales.”
poderia objetar que ainda há 10% de erro. Tudo bem, esses 10% precisam de correção,
mas pelo menos o caminho de aperfeiçoamento do robô é percentualmente menor do
que o dos humanos, pois na mesma pesquisa o índice de êxito de médicos especializados
no diagnóstico foi de bem inferiores 50% (HARARI, 2016, p. 319).
10
Um exemplo ilustra a afirmação: “Carlos Fernando Siqueira Castro, CEO do Siqueira Castro Advogados,
escritório presente em 18 Estados e com 500 mil processos no país, diz que o número de advogados da banca
hoje é menor do que há dez anos. No entanto, o volume de processos é o dobro. Isso se deve, segundo ele,
aos investimentos em tecnologia. O Siqueira Castro possui 50 funcionários na área de tecnologia da
informação, dos quais cinco se dedicam à produção de novos programas. A banca conta com 200 robôs que
controlam atividades específicas. “Fazemos muito mais hoje com menos pessoas, afirma o advogado. ‘É um
caminho sem volta, uma nova fronteira que busca a eficiência pela automação.’” (BAETA, 2019a)
11
Parte importante da literatura que versa sobre IA e Direito é, por um lado, competente em fazer o
inventário do estado da arte sobre sua aplicação no mundo jurídico; mas, por outro, assustadoramente
omissa em problematizar – ainda que en passant – os impactos que o avanço da IA causará no mercado de
trabalho. O lugar-comum sobre as maravilhas do surgimento de novas funções e profissões, muito presente
no discurso daqueles que exploram o potencial econômico da IA, nunca é acompanhado do debate acerca
do número desses postos. Que os carros autônomos, por exemplo, exigirão novos conhecimentos e
profissionais destinados a com eles lidarem, é um consenso; mas ninguém problematiza que cada
profissional desse “substituirá” milhares de motoristas. Um estudo da consultoria McKinsey, divulgado em
2017, projetava que até 800 (oitocentos) milhões de empregos podem ser substituídos por robôs até o não
muito distante ano de 2030. Para uma honesta análise de alguns poucos otimistas prognóstico, conferir em
“Homo Deus” e “21 lições para o século 21” ambos de Harari (2016; 2018, respectivamente).
Giovani Ravagnani, ao fazer uma análise sobre “Legal analytics” 12, em textos
publicados na obra antes citada, destaca, ainda, como exemplos do “novo Direito”: (a) a
utilização da tecnologia (IA em especial) para prevenir e evitar conflitos propriamente
judiciais; (b) a questão da IA na prevenção de risco, basicamente demonstrando como
“robôs” conseguem fazer um importante trabalho de dar, ao advogado, diversas variáveis
sobre as possibilidades de êxito em determinado processo; e (c) por fim, a utilização do
Por “Legal Analytics” entende-se o conjunto de soluções tecnológicas que permite a operacionalização
12
O objetivo aqui foi demonstrar, dentro dos limites deste texto, o “estado da arte”
da IA no âmbito do Direito. 15 Como dito no início deste item, não se discute aqui se ela
avançará ou não fortemente também no âmbito do direito. Esse avanço é inevitável e já tem
provocado um impacto preocupante no mercado de trabalho (o Brasil tem 1,16 milhão de
inscritos na OAB, um advogado para cada 174 habitantes contra 1 para 246 nos EUA ou 1
para 354 no Reino Unido, por exemplo) (BAETA, 2019a; BAETA 2019b), e com os alunos de
Direito liderando o ranking de matrículas na educação superior16, ou se inicia uma reflexão
(apoiada rapidamente por ações concretas) de atribuição de sentido ao ensino jurídico no
contexto ora exposto, ou tudo indica que a formação desses mais de 1 milhão de alunos hoje
matriculados em cursos de Direito neste País terá sérias dificuldades de corresponder a uma
qualificada e bem-remunerada inserção no mercado de trabalho.
13
Para uma leitura ainda mais abrangente do cenário da IA no sistema de justiça vide PICCOLI, Ademir
Milton. Judiciário Exponencial: sete premissas para acelerar a inovação e o processo de transformação
do ecossistema da justiça. São Paulo: Vidaria Livros, 2018.
14
Em matéria penal, uma discussão que já conta com bom desenvolvimento é a referente à
responsabilidade em caso de acidentes com veículos autônomos, um exemplo muito bom aliás, de como
a falta de regulação pode, mesmo, impedir a chegada da tecnologia ao destinatário final. Sobre o tema:
ESTELLITA; Heloísa; LEITE, Alaor. Veículos autônomos e direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
15
Para uma análise mais detida e pormenorizada sobre os impactos da inteligência artificial no mundo do
Direito conferir: MORAIS DA ROSA, Alexandre. A questão digital: o impacto da inteligência artificial no
Direito. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 02, e259, jul./dez. 2019.
Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/259.
Acesso em: 10 abril 2021. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i02.259
16
Segundo o Censo da Educação Superior de 2017, de responsabilidade do INEP, o número de matrículas
em cursos de direito no Brasil era 1.154.751.
2018). Trata-se de normativa à qual todo e qualquer curso de Direito do país deve
obediência, não só formal – como se faz sem grandes preocupações –, mas também
material – em campo já um pouco mais pantanoso.
E se trata de tarefa bastante árdua, não apenas pelo quadro fático anteriormente
exposto (ao qual poderíamos acrescentar a complexidade social, econômica, política e
cultural de um país como o Brasil), mas sobretudo pelo perfil do egresso altamente exigente
que as diretrizes pedem. Com efeito, segundo o art. 3° do documento:
de suficiência – fica na casa de 40% 17), as Diretrizes são altamente exigentes no que se
refere às habilidades e competências que se esperam do egresso dos cursos. O art. 4° do
documento elenca nada menos que 14 (catorze) “competências cognitivas, instrumentais
e interpessoais” que os cursos devem oferecer a seus estudantes, dentre as quais ao que
nos interessa aqui destacamos quatro:
17
Dados números completos sobre o ensino do Direito e o Exame de Ordem no Brasil podem ser obtidos
no documento Exame de Ordem em Números (Volume 4, 2020), de autoria da OAB e da FGV e que pode
ser acessado aqui: https://www.conjur.com.br/dl/exame-ordem-numeros1.pdf
dificuldades para gerar impactos. Não seria de espantar que a inclusão de uma unidade
de aprendizagem com o nome “Direito Financeiro” dentro da disciplina de “Direito
Tributário” e um ou dois acessos ao PJe 18 no curso da prática jurídica servissem ao
preenchimento das inovações que as Diretrizes recentemente sofreram.
Iniciemos esta última seção com uma precisa síntese do Professor José Garcez
Ghirardi que fornece um valiosíssimo quadro metodológico dentro do qual os currículos
dos cursos de Direito deve(ria)m fazer as suas escolhas:
18
O PJe é o sistema de tramitação de processos judiciais capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça
(http://www.pje.jus.br/navegador/) que está presente em todos os Estados da Federação. Outros sistemas,
porém, ainda que presentes em menos Estados, também são utilizados, como por exemplo, o Projudi, e-
Proc, e-SAJ, Apolo, Creta e E-Jur.
este artigo e que desde os anos 1980 exigiam um ensino social e realisticamente com
sentido, o quadro exposto no segundo item deste artigo exige uma radical reformulação
da forma como os cursos de Direito do País se organizam.
2. O sistema ainda dará valor aos humanos coletivamente, mas não a indivíduos
únicos.
3. O sistema ainda dará valor a alguns indivíduos únicos, mas estes constituirão
uma nova elite de super-humanos avançados e não a massa da população.
(HARARI, 2016, p. 309)
19
O fenômeno da globalização, no plano político e econômico, e da transnacionalidade, no plano jurídico,
já vinham abalando os alicerces do clássico estado constitucional soberano desde a parte final do século
passado como se depreende da minuciosa análise de Bastos Junior (2014; 2019). Ocorre que a revolução
tecnológica ora em curso não apenas subtrair poder decisório do Estado-nação em um nível local, mas
também o retira quando da consideração dos Estados no plano internacional, à medida que radicaliza o
poder político e econômico de empresas e outros agentes não-estatais.
20
Nesse contexto, disciplinas minimamente introdutórias da área de tecnologia precisam ser oferecidas,
ainda que inicialmente na forma de optativas ou eletivas, pois mesmo que não se espere que todos os
bacharéis sejam engenheiros-jurídicos, é minimamente preciso saber como os robôs funcionam.
outras poderiam facilmente contemplar essas novas lentes pelas quais o mundo precisa
ser lido. Basta que quem tem responsabilidade sobre a gestão de tais cursos, conheça
o presente e o futuro do mundo em que vivemos.
Por fim, ainda que não haja uma relação exatamente direta entre o tema e os
objetivos deste artigo, cabe resgatar o “passado” para defender a indispensabilidade de
uma base teórica pautada nos clássicos com vistas a uma adequada compreensão do
presente e do futuro, pois como nos recorda Ronald Dworkin:
Por outro lado, por enquanto, a IA “não pensa” 21, razão pela qual não
consegue “ler” o Direito sob uma perspectiva mais aberta e principiológica, e é aqui onde
o Sapiens – por ora – está à frente. Não bastasse a própria primazia dos juristas de carne
e osso para com questões mais complexas lidar, há ainda um ponto central: as mais
delicadas questões éticas e jurídicas que a IA suscitará nos próximos anos, perpassarão
de forma significativa os direitos humanos e fundamentais.
E nesse ponto, um aspecto que tem sido apontado por vários analistas do
tema é o referente ao solipsismo do trabalho docente. Mesmo em instituições públicas
ou em privadas com ensino de maior qualidade, a tônica do modus operandi docente
tem se caracterizado por um trabalho individual, isolado e, portanto, absurdamente
fragmentado. Se determinado curso possui as disciplinas A, B e C referentes a
determinado ramo do Direito, não será raro (porque é regra) que os três professores das
disciplinas mal se conheçam e que, desenvolvam seus planos de ensino, o planejamento
e execução dessas disciplinas, à revelia do trabalho dos outros dois colegas. Esse quadro
é a pá de cal sobre uma matriz altamente fragmentada e desconexa 22.
21
Nessa seara, vale a observação de Boeing e Morais da Rosa (2020, p. 79), para os quais “[...] deve-se fazer
a ressalva de que tais tecnologias ainda estão aquém do nível de compreensão humano da linguagem.
Captar o contexto textual das palavras não necessariamente significa compreender a linguagem como uma
forma de vida, tampouco ser capaz de ‘jogar seus jogos’”.
22
O problema da cruzada solitária docente é um dos pontos mais destacados quando do Workshop sobre
ensino do Direito no Brasil realizado pela e na Fundação Getúlio Vargas. Cf. GHIRARDI, José Garcez
(coord.); DIAS DE LIMA, Ieda; SICA, Ligia Paula P. Pinto; RAMOS, Luciana Oliveira. Metodologia de
ensino jurídico no Brasil: estado da arte e perspectiva. Exposições, debates e relatos do Workshop Nacional
de Metodologia de Ensino. Cadernos DIREITO GV. São Paulo: DIREITO GV, v. 6, n. 5, set. 2009.
23
A prevalência das metodologias ativas nos cursos de graduação da área da Saúde pode ser constata em:
MITRE; et al, 2008, SOBRAL; CAMPOS, 2012 e COLARES; OLIVEIRA, 2019.
24
Várias outras metodologias também têm sido utilizadas, sendo que a “primazia” aqui defendida da
aprendizagem baseada em problemas e em projetos se deve, basicamente, pela preponderância história
no rompimento com metodologias tradicionais e pela consequente maior produção bibliográfica sobre os
métodos. Para uma mais completa visão das novas metodologias cf. HORN; STAKER, 2015 e BACICH;
MORAN, 2018.
25
Esse tensionamento entre passado e futuro no plano das metodologias, atinge não apenas os alunos,
que por questões culturais nem sempre assimilam bem a proposta, mas também os docentes, seja porque
as propostas os retiram de uma zona de conforto onde há muito se encontram, seja porque as condições
de trabalho para as metodologias ativas também exigem uma pequena revolução. O tema do tempo do
trabalho docente na perspectiva das metodologias ativas, cabe ressaltar, ainda carece de maior de debate.
aplicar avaliações (não raro somente com questões de múltipla escolha) e com um aluno
que, absolutamente passivo, assiste às aulas (não raro somente de corpo presente) e o
mais próximo da prova possível “estuda” o conteúdo com o único fim de memorizar o
essencial e obter uma nota minimamente razoável. Já a sala de aula invertida, em linhas
gerais, torna o professor um tutor do processo de aprendizagem dos alunos, levantando
as principais questões e indicando os textos fundamentais para o aprendizado
(BERGMANN; SAMS, 2019). No essencial, o aluno tem alguma carga de estudo antes da
aula, ficando o momento específico da aula reservado a atividades práticas, discussões
ou outras dinâmicas de caráter construtivo e participativo. Trata-se, pois, de um
privilegiado instrumento de transição entre a clássica concepção de sala de aula e
metodologias ainda mais inovadoras, o que em absoluto descaracteriza a sala de aula
invertida como dotada de méritos e autonomia próprios.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se Yuval Noah Harari entende alguma coisa sobre a passagem do Homo Sapiens
para o Homo Deus, como suas obras fazem parecer, é preciso reconhecer que o ensino – em
geral – e o ensino do Direito, em específico, precisam de uma urgente reformulação.
REFERÊNCIAS
100 MHz entram em promoção. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 fev. 1997. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/2/19/informatica/7.html. Acesso em: 4 jan. 2021.
BAETA, Zínia. Mercado saturado no ‘país dos bacharéis’. Valor Econômico, Rio de
Janeiro, 25 out. 2019b. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2019/
10/25/mercado-saturado-no-pais-dos-bachareis.ghtml. Acesso em: 09 jan. 2021.
BACICH, Lilian; MORAN, José. (orgs.) Metodologias ativas para uma educação
inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.
BERGMANN, Jonathan; SAMS, Aaron. Sala de aula invertida; uma metodologia ativa de
aprendizagem. Tradução Afonso Celso da Cunha Serra. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2019.
CAMPILONGO, Celso; FARIA, José Eduardo. Debate atual sobre reforma do ensino
jurídico não é estimulante. Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2014. Disponível
em: www.conjur.com.br/2014-jun-03/debate-atual-reforma-ensino-juridico-nao
-estimulante. Acesso em: 22 jan. 2021.
CHRISTIAN, Brian; GRIFFITHS, Tom. Algoritmos para viver: a ciência exata das
decisões humanas, Trad. Paulo Geiger, São Paulo: Cia das Letras, 2017.
DOWRKIN, Ronald. A justiça de toga. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
ESTELLITA; Heloísa; LEITE, Alaor. Veículos autônomos e direito penal. São Paulo:
Marcial Pons, 2019.
FARIA, José Eduardo. A Reforma do Ensino Jurídico. SAFE: Porto Alegre, 1987a.
FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA. Roda Viva com Yuval Harari. São Paulo: [s.n.], 11
nov. 2019. 1 vídeo (83min). Publicado pelo canal Roda Viva. Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=pBQM085IxOM. Acesso em: 12 dez. 2020.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína
Marcoantonio. 51. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2020.
HORN, Michael B.; STAKER, Heather. Blended: usando a inovação disruptiva para
aprimorar a educação. Tradução de Maria Cristina Gularte Monteiro. Revisão técnica de
Adolfo Tanzi Neto e Lilian Bacich. Porto Alegre: Penso, 2015.
RAMOS, Andrea. Scania terá caminhão autônomo sem cabine no Brasil em 2023.
Estadão, São Paulo, 11 set. 2020. Disponível em:
https://estradao.estadao.com.br/caminhoes/caminhao-autonomo-nivel-4-scania
Acesso em 03 fev. 2021.