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Paradigma Indiciário:
abordagem narrativa de investigação no
contexto da formação docente
Evidential Paradigm:
narrative research methods in teacher’s
training context
RESUMO
Este estudo tem como objetivo tomar o Paradigma Indiciário como método
narrativo de investigação no âmbito da formação docente. Destacamos
sua dimensão autobiográfica, enfatizando as particularidades de fazer
uso da narrativa como fenômeno estudado, gênero textual e concepção
metodológica. Para tanto, realizamos leitura abrangente da obra de Carlo
Ginzburg e a partir de suas contribuições apontamos características da
escrita narrativa em pesquisa, entendendo-a como escolha consciente de
olhar para o passado e reconstruí-lo, tomando as opções feitas ao longo do
processo e as respostas encontradas ao final. Tomamos ainda, como eixo
reflexivo, narrativas produzidas por professoras, cujas análises evidenciam
que este modo de fazer pesquisa possibilita entendimento de aspectos das
práticas sociais que não dizem respeito apenas ao que foi vivido ou a quem
viveu, mas ao modo como a experiência se atualiza no instante em que se
decide narrar, em diálogo com questões de nossos tempos, espaços e cultura,
tornando-se potente instrumento de pesquisa e formação. Finalizamos
apresentando três temporalidades, presentes numa investigação com base
no Paradigma: o tempo da história de vida, considerando que ela atravessa
e é atravessada pela pesquisa; o tempo da própria pesquisa, entendendo que
o método se dá num movimento constante entre coletar, observar, decifrar;
*
Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, São Paulo, Brasil. E-mail: tbaguiar@
outlook.com.br - http://orcid.org/0000-0002-7294-1200 E-mail: haddad.nana@gmail.com -
http://orcid.org/0000-0002-8440-7347
ABSTRACT
This study aims to take the Evidential Paradigm as a narrative research method
of teacher training. We highlight its autobiographical dimension, emphasizing
the particularities of using narratives as a studied phenomenon, textual
genre, and methodological conception. We carried out a comprehensive
reading of Carlo Ginzburg’s work, and from his contributions we point
out characteristics of narrative writing in research, understanding it as a
conscious choice to look at the past and reconstruct it, considering the options
made throughout the process and the answers found at the end. We take, as
reflexive axis, narratives produced by teachers, whose analysis show that this
way of doing research enables understanding aspects of social practices that
are not related to what was lived or to whom lived, but to how the experience
is updated at the moment when it is decided to narrate, in dialogue with issues
of our times, spaces and culture, becoming a powerful research and training
instrument. We conclude by elucidating three temporalities, present in the
investigation based on that Paradigm: time of life history, considering that
it crosses and is crossed by research; time of research itself, understanding
that the method occurs in constant movement between collecting, observing,
deciphering; time of writing, understanding the linearity of a text that needs
to be definitive, but opens up to provisionality of the knowledge produced
and the estrangement of ourselves.
Keywords: Narrative research. Evidential Paradigm. Narrative method.
Evidential method. Teacher training.
Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam – Isso é natural. Diante
dos acontecimentos de cada dia. Numa época em que reina a confusão, Em
que corre o sangue, Em que se ordena a desordem, Em que o arbitrário tem
força de lei, Em que a humanidade se desumaniza… Não digam nunca:
Isso é natural. A fim de que nada passe por ser imutável. Sob o familiar,
descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo
que seja dito ser habitual, Cause inquietação. Na regra é preciso descobrir
o abuso. E sempre que o abuso for encontrado, É preciso encontrar o
remédio (BRECHT, 1929 apud PEIXOTO, 1981, p. 60).
Narrativas são textos orais, escritos e/ou visuais que há séculos circulam
nos diferentes espaços de convívio social. Tomada como prática humanizadora,
a narrativa comporta um conhecimento intergeracional ao mesmo tempo em
que possibilita o estranhamento e a ampliação acerca da consciência daquilo
que é vivido. Por isso, extrapola a dimensão do próprio indivíduo que narra ou
pesquisa, pois se conecta com aspectos da cultura e da sociedade, atualiza-se e
é ressignificada ao ser interpretada pelo interlocutor.
Uma narrativa é composta por uma sequência original de situações vividas,
permeada por emoções e ligações com outras memórias e imagens. Ao prazer de
contar uma/a sua história, acrescenta-se a seleção e organização pela pertinência
do que parece relevante ao interlocutor e ao contexto presente, bem como ao
tempo que se tem para narrar e o que se objetiva com ela.
Há um forte componente no ato de narrar que faz com que nos debrucemos
sobre esta prática no contexto de pesquisa. Muito diferente da ideia de reportar
ou dar ciência, a narrativa requer tomada de posição e implicação naquilo que
foi vivido e é contado: narramos o que julgamos relevante, colocamos nela
nossas representações e expectativas, damos certa tônica ao relato. Também
deixamos de lado a preocupação com explicações sobre os fatos. O entendimento
é aberto justamente porque o mais relevante não é a descrição em si, mas o que
é inexplicável e insólito (usando as palavras de Brecht, apud PEIXOTO, 1981),
aquilo que só se exprime sensivelmente, que mobiliza e conecta narrador e
leitores numa interlocução que possibilita a compreensão de si e da realidade.
Aquelas narrativas que fazem referência às práticas, costumes e saberes
específicos dos espaços escolares, contadas por professores, têm sido amplamente
investigadas na área de Educação. Os docentes constroem sentidos a partir de
suas experiências ao lhes dar a forma de narrativas, pois a partir de algo vivido
criam enredos, elencam prioridades, ordenam um fluxo de acontecimentos e
planejam ações (FERREIRA; ARAGÃO, 2020). Ao ler ou ouvir narrativas
docentes partilhamos da intimidade, vivenciamos os dilemas e experimentamos
as sensações comuns do cotidiano da escola.
Como metodologia de pesquisa, consideramos como abordagem narrativa
aquela que se utiliza amplamente deste tipo de relato, tomando-a como gênero
textual, modo de obtenção de informações e forma de registro do percurso
investigativo. Ainda, Connelly e Clandinin (1995) destacam a relevância da
narrativa como estratégia formativa para quem narra: “A pesquisa narrativa
figura como fonte de dados, método e o uso formativo (promover mudanças
na própria prática e formação através da narrativa do sujeito)” (CONNELLY;
CLANDININ, 1995, p. 62).
1 Parafraseando João Ricardo e Paulinho Mendonça em Sangue Latino (Secos e Molhados, 1973).
erudito com o entorno desses indícios. A decifração desses indícios é feita por
meio de perguntas narrativas que são construídas ao longo de nossa pesquisa
em exercícios de alternância entre o micro e o macro, consideração da distância
e do estranhamento, observação de recorrências e anomalias. Utilizando de um
rigor flexível, nós nos aproximamos do outro, preservando o indecifrável de
tudo o que é humano, inclusive em nós mesmos, implicando-nos na escrita de
uma narrativa que preserva o caráter de verdade e totalidade3.
Nestes termos, diferentes conceitos ampliam a noção de indício,
apontando que tão ou mais importante quanto o fato de, dentro deste paradigma,
trabalharmos com elementos normalmente negligenciáveis (e negligenciados),
os indícios, é a consideração de que eles são desenvolvidos de forma narrativa.
Para tanto, um conjunto de atitudes diante dos materiais da pesquisa é necessário,
especialmente o referido exercício de distância e estranhamento. Esta atitude em
especial é amplamente desenvolvida no livro “Olhos de Madeira” (GINZBURG,
2001), a partir do qual podemos compreender que:
3 As ideias presentes neste parágrafo são oriundas do debate com os pesquisadores Paula
Leonardi e Fernando Antonio Peres, com quem elaboramos um artigo para discutir os usos da obra
de Ginzburg na história da educação. Este artigo está em processo de avaliação em outro periódico.
que foi vivido ou a quem viveu, mas ao modo como a experiência se atualiza no
instante em que se decide narrar, em diálogo com as questões do nosso tempo,
dos nossos espaços e da nossa cultura. De acordo com Alves (2000),
Eu não sei se é isso que você espera que eu fale... A gente pode falar a
partir daquilo que sabe porque vê acontecer na escola, mas são as coisas
que eu vivo e que eu sei que são potentes porque fazem sentido quando
eu percebo o link que tem com todas as coisas que eu julgo importantes,
desde os conteúdos, que não posso abrir mão, até com a essência de ser
professora, ao menos para mim... mas talvez você precise que eu fale
assim, mais pensando naquilo que a gente estuda de desenvolvimento,
né? Não sei o que você precisa. Mas se eu puder contar um pouco do
que eu faço, acho que você vai encontrar as teorias também, viu...
pensando bem, é isso. Tenho certeza que as próprias histórias que eu
tenho, com as crianças aqui, elas vão te contar coisas que nem sempre
percebemos, mas estão cheias de sentido. Trecho de narrativa oral de
Marina (audiogravado).
que nossas certezas, quando lidas de forma indiciária, tragam links com
outras escalas de observação. Novos sentidos permitem novas questões num
movimento narrativo de olhar para a própria pesquisa.
Nesse movimento, a busca por coerência entre referencial teórico,
metodológico e de análise é ponto central. Quando nos referirmos à metodologia
narrativa há ainda maior cuidado a ser tomado por compreendemos que não
se trata de um modo de pesquisa dado a priori, ou seja, com referenciais
previamente definidos e hipóteses claras a serem conflitadas, o que exige a
elaboração de outros – novos – critérios metodológicos.
A pesquisa narrativa, neste sentido, se realiza num ir e vir entre teorias,
escolhas metodológicas e análises, pois compreendemos que todo o processo
deve ser revisitado e questionado a cada novo passo. Vale esclarecer que o
pesquisador certamente possui um conjunto de saberes e perguntas mais ou
menos estáveis que direcionam seu olhar, dos quais se mune para buscar
compreender seu objeto de pesquisa. Porém, na medida em que entra em contato
com as narrativas dos participantes, percebe quais escolhas parecem acertadas
e que outras devem ser abandonadas, realizando movimento de diálogo e
construção de uma nova narrativa – a de sua investigação. Assim, é fundamental
que o pesquisador se mostre aberto a conhecer profundamente o que é revelado
pelo próprio grupo de sujeitos/material analisado, em consonância com os
campos teóricos que fundamentam sua ação, pois como pesquisador assume o
lugar de quem recolhe, organiza e reconta tais experiências.
Neste mesmo sentido, sabemos que nem todo o conteúdo de uma narrativa
tem pertinência com o tema estudado. Dada a flexibilidade característica desta
maneira de fazer pesquisa, os materiais extraídos do processo de investigação
podem se revelar diversos em temas e significados. Ou seja, mesmo tomando as
narrativas em sua totalidade, é preciso selecionar criticamente as informações
das quais iremos nos munir para manter a atenção no que se mostra central e
potente no desenvolvimento da pesquisa, também com o intuito de preservar o
narrador da exposição de informações irrelevantes para o curso da investigação.
Tem uma parcela de tudo o que conversamos aqui que pode ser traduzida
em lições aprendidas, em conhecimento e práticas que certamente
modificam meu modo de ser professora. Tem muita coisa no que contamos,
e eu percebo como temos muito em comum. Tem neste espaço uma
dimensão de vivência que me ensina demais: é aquilo que me mostra o
prazer de viver, de estar na escola, a alegria de partilhar com o outro,
o olhar encantado para o mundo. As cores da sala de aula, os sons do
pátio, o movimento das folhas e areia no parque, a delicadeza do toque
de um abraço manhoso, o sabor do café... Tudo fica um pouco cinza se
não aprendemos a sentir com totalidade e inteireza. Trecho de narrativa
oral de Hellen (audiogravado).
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