Você está na página 1de 252
Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR LA COHEE DU LAMENTIN Tradugao: Enilce Albergaria Rocha Lucy Magalhaes GALLIMARD EDITORA Or. F Edouard Glissant nasceu em 1928 na Martinica, situada nas Antilhas francesas — Caribe. Aos 18 anos, em 1946, 0 governo francés concedeu-lhe uma bolsa de estudos para cursar a universidade na Franga, onde residiu até 1965. Em Paris, licenciou-se em filosofia e defendeu o Doutorado em Letras na Universidade de Sorbonne. Obteve também 0 Diplame d'Etudes Supérieures em Etnologia no Musée de I'Homme com a seguinte dissertagéo: Découverte et conception du monde dans Ia poésie contemporaine (Descoberta e concepcio do mundo na poesia contemporinea). Durante sua permanéncia na Metrépole, integrou ativamente © grupo de estudantes africanos e antilhanos residentes em Paris — entre os quais se encontrava o também martinicano Frantz Fanon — que questionava a colonizagao na Africa e nas Antilhas e postulava a libertagao e emancipagio de seus povos. Participou intensamente da vida intelectual parisiense. Durante os anos 1950, fez parte dos circulos literdrios marxistas ao lado de poetas como Yves Bonnefoy ¢ 0 argelino Katebe Yacine. Em 1956, apés a invaséo de Budapeste, participou juntamente com André Breton, André Memmi, Benjamin Pérec, Aimé Césaire, Jean Duvignaud, Michel Leiris, Maurice Nadeau e outros, do Circulo Internacional dos Intelectuais Revoluciondrios, cujo objetivo centrava-se na andlise critica do marxismo eno estudo das questées ligadas ao colonialismo. Foi membro do Comité Diretor da revista Les Lettres Nouvelles, ao lado de Roland Barthes e Maurice Nadeau. Nesta revista publicou artigos de andlise e critica literdria, ¢ de estética da pintura. Participou de debates literdrios e culturais na Fédération des Etudiants Africains Noirs e na Société Africaine de Culture, fazendo parte do seu comité executivo. Foi também colaborador da revista Présence Afvicaine ¢ membro do grupo semiético que se reunia em torno de Roland Barthes. De 1982.a 1988 foi Diretor do Courrier de I'Unesco. Em 1989 foi nomeado Distinguished University Professor da Universidade do Estado da Louisiana (LSU) onde dirigiu 0 Centre d études francaises et francophones. Durante muitos anos, a partir de 1965, dividiu sua existéncia entre o seu pais natal, a Martinica - onde fundou o Institut Martiniquais d'Etudes - a Franca, ¢ os Estados-Unidos, onde leciona na City University of New York (CUNY). Em Paris, em 2006, com o apoio do Conselho Regional d’fle de France e do Ministére de V Outre-Mer fundou o Institut du Tout-Monde. Edouard Glissant faleceu em Paris, em fevereiro de 2011. Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR La Cougs pu LAMENTIN Prefacio de Lilian Pestre de Almeida 2014 Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR La CoHEE DU LAMENTIN Traducao: Enilce Albergaria Rocha Lucy Magalhaes GALLIMARD EDITORA UFRJ EF © Eedicons Gallimard, 2005 © Editora UFJR, 2014 Este livro ou parte dele ndo pode ser reproduzido por qualquer meio sem aurorizacéo expressa da editora contetido desta obra, am de autorizagées relacionadas & permissio de uso de imagens e/ou textos de outzo(s) auror(s), é de inteira responsabilidade do(s) autor(es) e/ou organizador(es). EDITORA Ur F Direror pa Eorrora UEJF / PRESIDENTE DO Coxsetio EDrroriat AnENor SALzER RODRIGUES UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Conse Eprroniat Rerror AFONSO CELSO CARVALHO RODRIGUES Fanricto Avia CARVALHO Freperico Bratpa Vice-Retror Henrique Nocusira Rets José Luiz Rezenve PEREIRA Hips Micareto RoGeRIo CasnGRANDE Suett Manta Dos Rets SANTOS Srupto eprtona UFJF Proyero GrAFico, Eprroracto & CAPA Eprrar - Eprrora Associapa LTDA Revisho DE NorMas TECNICAS: LUCIANA DAMASCENO Keeurzrexp Rewisio be Porrucuts: Luciana Danasceno KREUTZEELD Henrique Duque Dg MiRANDA Caves FILHO Glissant, Edouard. O pensamento do tremor. La cohée dit lamentin | Edouard Gllissant; tradugio de Enilce do Carmo Albergaria Rocha e Lucy ‘Magalhaes. ~ Juiz de Fora: Gallimard/Editora UFJE, 2014. 248 p. (Cultura Colegio) ISBN 978-85-7672-201-4 1, Identidade cultural. 2. Arte contemporinea. 3. Filosofia. I. Rocha, Enilce do Carmo Albergaria. II. Magalhaes. 11 CDU 008. Este livro obedece as normas do Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa, promulgada pelo Decreto n. 6.583 de 29 de setembro de 2008. Eprrora UFJF Rua Bensamin Constant, 790 Centro - Juiz pe Fora - MG Cer 36015-400 Fone/Fax: (32) 3229-7645 (32) 3229-7646 sectetaria@editoraufificom.br distribuicao.editora@ufffedu.br ‘www.editoraufif.com. br Nossos agradecimentos a Michéle Constans e Nicolas Guillon pelo didlogo ¢ colaboracao durante nossa tradugao. As tradutoras O que por forca se repete, € se unde com a obscuridade do mundo, enele ergue intuigdes: e trémulas, e fraturadas de brilbos. PREFACIO.W..cssssessecssssesesssssssssssssnecsssneeseeccessseessnnseseses 11 COMO O PASSARO INUMERAVEL....ssseessssssssssssnes 19 PRELUDIO A CHUVA DE AREIAS ...ssssssssssssssssssiien 49 A PLANTATION, O BURGO, A CIDADE... IMAGINARIO DOS POVOS...ssssssssssssssesenteeenssnens 107 IMPERIOS ..essssssssscsesssssssssnessssccnsssssssssssesssececssssssssees 131 PREFACIO Nao é ficil apresentar La Cohée du Lamentin, um dos tltimos ensaios de Edouard Glissant. Melhor: 0 seu tiltimo ensaio, o de niimero V, se considerarmos apenas a série intitulada Poétique'. O livro, publicado em 2005, foi traduzido para o italiano em 2008 com 0 titulo JI pensiero del tremore’. No momento atual, ao verté- lo para o portugués, as tradutoras brasileiras, Enilce Albergaria Rocha ¢ Lucy Magalhies, resolveram juntar, com muita razao e alguma astiicia, 0 titulo quase transparente O pensamento do tremor, ao titulo original, intraduzivel: este é um verdadeiro enigma até para um leitor francés de Franga, como diria outro poeta antilhano, Léon-Gontran Damas. O ensaio foi escrito por um grande poeta francéfono, jé na sua velhice: Edouard Glissant. Nascido na Martinica a 21 de setembro de 1928, Glissant, aos 77 anos, retoma e repisa incansavelmente as suas ideias mestras de forma, por vezes, alegérica ou alusiva, sem preocupagio agora de datas nem de bibliografia. O livro é, ao mesmo tempo, uma stimula poética e uma coda barroca ao conjunto da sua obra ensaistica. Para entender La Cohée du Lamentin, a sua poética e 0 seu alcance, seria necessdrio inicialmente retornar ao titulo original — intraduzivel, repetimos~ ¢ tentar perceber nao sé o que significa, mas, sobretudo, o que sugere: Cohée, Lamentin e, unindo subterraneamente os dois topénimos estranhos, um terceiro elemento, forcosamente implicito e vibrando sem cessar no nfo-dito do texto, La Lézarde. Esta palavra feminina “cria” literalmente os outros dois topénimos, Cohée ¢ Lamentin: & 0 nome do maior curso de gua da ilha natal, curso de 4gua muito pouco “rio” para brasileiros ou para os parametros de um. pais continental como 0 nosso, com vatios cursos caudalosos de gua com mais de 1000 km. Com a extensdo total de apenas 33 km (tamanho que no mereceria entre nés a denominagio de rio, quando muito de ribeirao Soleil de la conscience (Poétique 1, 1956); LIntention poétique (Poétique U1, 1969); Poétique de la relation (Poétigue UM, 1990); Traité du Tout-Mone (Poétique W, 1997). 2 Il pensiero del tremore, Traduttore Restori E. Libri Scheiwiller: Settembre 2008. (Collana L’Arte e le arti). ISBN: 887644579X. ou ribeira), La Lézarde atravessa a comuna do Lamentin’, no centro-oeste dailha. Foi no Lamentin que nasceu Glissant, nao exatamente na planicie de aluviéo, mas num dos seus morros. Hoje, para quem chega a ilha, é a regio onde se situa o aeroporto internacional, denominado Aimé Césaire, como 0 Galeio que passou a chamar-se aeroporto Ant6nio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro. Quem chega pela primeira vez 4 Martinica nio vé quase nada de diferente ou de exético ¢ atravessa de taxi uma baixada que se assemelha & primeira vista, do ponto de vista da paisagem, & Baixada Fluminense ou & Baixada Santista. La Lézarde~ palavra que retoma Iézard (“lagarto”, em francés) ¢ 0 verbo Mzarder (“deitar-se imével ao sol como um lagarto” ou entéo “rasgar algo provocando uma fissura”) - evoca 0 curso sinuoso de um ribeiréo que corta as terras baixas do Centro-Oeste da Martinica’, até jogar-se no mar do Caribe (ou das Carafbas) num delta. O mar do Caribe, a Oeste da Martinica, é totalmente diferente da fiiria do Oceano a Leste. E 0 delta, outrora, estava coberto de mangues (mangrove, outra palavra encantatéria na poesia das Antilhas francesas), hoje quase invisiveis a quem chega de fora’. O primeiro romance de Glissant, de 1958, chamava-se La Lézarde ; a narrativa — ponto de partida de uma grande saga romanesca com varias linhagens que vao se cruzando progressivamente em intimeras narrativas, cada ver mais intrincadas no espago e no tempo — recebeu no momento do seu langamento, na Franga, 0 prémio Renaudot. A agéo de La Lézarde, romance, se passa nas semanas seguintes ao fim da II Guerra Mundial em torno de uma cidadezinha denominada Lambrianne (nome inventado pelos jovens protagonistas da narrativa que juntam Lamentin ¢ Marianne, nome este que encarna, como se sabe, a Reptiblica francesa). Lambrianne, cidadezinha ficcional como tantas outras — ¢ como a célebre cidade de Duas Pontes no centro obscuro da obra de Autran Dourado - Jembra Lamentin, onde 0 autor passou a sua juventude. > Le Lamentin & a segunda comuna mais povoada da Martinica, depois da capital Fort-de-France: tem hoje cerca de 40 mil habitantes. * Hé outros cursos de égua no espaco francés com o mesmo nome, La Lézarde: um pequeno ribeirio do Departamento de Seine-Maritime que se langa no estudrio do Sena em Harfleur (Normandia); um riozinho préximo da costa de Basse-Terre na Guadalupe que se lanca no Atlintico perto de Petit-Bourg. > O mangue foi preservado muito melhor na Guadalupe do que na Martinica. Um passeio maritimo em barco pequeno no interior do seu labirinto verde é inesquecivel. Trajeto semelhante poderia ser proposto aos visitantes no fundo da baia da Guanabara. Paris, Seuil, 1958, 250 p. 12

Você também pode gostar