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Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR LA COHEE DU LAMENTIN Tradugao: Enilce Albergaria Rocha Lucy Magalhaes GALLIMARD EDITORA Or. F Edouard Glissant nasceu em 1928 na Martinica, situada nas Antilhas francesas — Caribe. Aos 18 anos, em 1946, 0 governo francés concedeu-lhe uma bolsa de estudos para cursar a universidade na Franga, onde residiu até 1965. Em Paris, licenciou-se em filosofia e defendeu o Doutorado em Letras na Universidade de Sorbonne. Obteve também 0 Diplame d'Etudes Supérieures em Etnologia no Musée de I'Homme com a seguinte dissertagéo: Découverte et conception du monde dans Ia poésie contemporaine (Descoberta e concepcio do mundo na poesia contemporinea). Durante sua permanéncia na Metrépole, integrou ativamente © grupo de estudantes africanos e antilhanos residentes em Paris — entre os quais se encontrava o também martinicano Frantz Fanon — que questionava a colonizagao na Africa e nas Antilhas e postulava a libertagao e emancipagio de seus povos. Participou intensamente da vida intelectual parisiense. Durante os anos 1950, fez parte dos circulos literdrios marxistas ao lado de poetas como Yves Bonnefoy ¢ 0 argelino Katebe Yacine. Em 1956, apés a invaséo de Budapeste, participou juntamente com André Breton, André Memmi, Benjamin Pérec, Aimé Césaire, Jean Duvignaud, Michel Leiris, Maurice Nadeau e outros, do Circulo Internacional dos Intelectuais Revoluciondrios, cujo objetivo centrava-se na andlise critica do marxismo eno estudo das questées ligadas ao colonialismo. Foi membro do Comité Diretor da revista Les Lettres Nouvelles, ao lado de Roland Barthes e Maurice Nadeau. Nesta revista publicou artigos de andlise e critica literdria, ¢ de estética da pintura. Participou de debates literdrios e culturais na Fédération des Etudiants Africains Noirs e na Société Africaine de Culture, fazendo parte do seu comité executivo. Foi também colaborador da revista Présence Afvicaine ¢ membro do grupo semiético que se reunia em torno de Roland Barthes. De 1982.a 1988 foi Diretor do Courrier de I'Unesco. Em 1989 foi nomeado Distinguished University Professor da Universidade do Estado da Louisiana (LSU) onde dirigiu 0 Centre d études francaises et francophones. Durante muitos anos, a partir de 1965, dividiu sua existéncia entre o seu pais natal, a Martinica - onde fundou o Institut Martiniquais d'Etudes - a Franca, ¢ os Estados-Unidos, onde leciona na City University of New York (CUNY). Em Paris, em 2006, com o apoio do Conselho Regional d’fle de France e do Ministére de V Outre-Mer fundou o Institut du Tout-Monde. Edouard Glissant faleceu em Paris, em fevereiro de 2011. Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR La Cougs pu LAMENTIN Prefacio de Lilian Pestre de Almeida 2014 Edouard Glissant O PENSAMENTO DO TREMOR La CoHEE DU LAMENTIN Traducao: Enilce Albergaria Rocha Lucy Magalhaes GALLIMARD EDITORA UFRJ EF © Eedicons Gallimard, 2005 © Editora UFJR, 2014 Este livro ou parte dele ndo pode ser reproduzido por qualquer meio sem aurorizacéo expressa da editora contetido desta obra, am de autorizagées relacionadas & permissio de uso de imagens e/ou textos de outzo(s) auror(s), é de inteira responsabilidade do(s) autor(es) e/ou organizador(es). EDITORA Ur F Direror pa Eorrora UEJF / PRESIDENTE DO Coxsetio EDrroriat AnENor SALzER RODRIGUES UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Conse Eprroniat Rerror AFONSO CELSO CARVALHO RODRIGUES Fanricto Avia CARVALHO Freperico Bratpa Vice-Retror Henrique Nocusira Rets José Luiz Rezenve PEREIRA Hips Micareto RoGeRIo CasnGRANDE Suett Manta Dos Rets SANTOS Srupto eprtona UFJF Proyero GrAFico, Eprroracto & CAPA Eprrar - Eprrora Associapa LTDA Revisho DE NorMas TECNICAS: LUCIANA DAMASCENO Keeurzrexp Rewisio be Porrucuts: Luciana Danasceno KREUTZEELD Henrique Duque Dg MiRANDA Caves FILHO Glissant, Edouard. O pensamento do tremor. La cohée dit lamentin | Edouard Gllissant; tradugio de Enilce do Carmo Albergaria Rocha e Lucy ‘Magalhaes. ~ Juiz de Fora: Gallimard/Editora UFJE, 2014. 248 p. (Cultura Colegio) ISBN 978-85-7672-201-4 1, Identidade cultural. 2. Arte contemporinea. 3. Filosofia. I. Rocha, Enilce do Carmo Albergaria. II. Magalhaes. 11 CDU 008. Este livro obedece as normas do Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa, promulgada pelo Decreto n. 6.583 de 29 de setembro de 2008. Eprrora UFJF Rua Bensamin Constant, 790 Centro - Juiz pe Fora - MG Cer 36015-400 Fone/Fax: (32) 3229-7645 (32) 3229-7646 sectetaria@editoraufificom.br distribuicao.editora@ufffedu.br ‘www.editoraufif.com. br Nossos agradecimentos a Michéle Constans e Nicolas Guillon pelo didlogo ¢ colaboracao durante nossa tradugao. As tradutoras O que por forca se repete, € se unde com a obscuridade do mundo, enele ergue intuigdes: e trémulas, e fraturadas de brilbos. PREFACIO.W..cssssessecssssesesssssssssssssnecsssneeseeccessseessnnseseses 11 COMO O PASSARO INUMERAVEL....ssseessssssssssssnes 19 PRELUDIO A CHUVA DE AREIAS ...ssssssssssssssssssiien 49 A PLANTATION, O BURGO, A CIDADE... IMAGINARIO DOS POVOS...ssssssssssssssesenteeenssnens 107 IMPERIOS ..essssssssscsesssssssssnessssccnsssssssssssesssececssssssssees 131 PREFACIO Nao é ficil apresentar La Cohée du Lamentin, um dos tltimos ensaios de Edouard Glissant. Melhor: 0 seu tiltimo ensaio, o de niimero V, se considerarmos apenas a série intitulada Poétique'. O livro, publicado em 2005, foi traduzido para o italiano em 2008 com 0 titulo JI pensiero del tremore’. No momento atual, ao verté- lo para o portugués, as tradutoras brasileiras, Enilce Albergaria Rocha ¢ Lucy Magalhies, resolveram juntar, com muita razao e alguma astiicia, 0 titulo quase transparente O pensamento do tremor, ao titulo original, intraduzivel: este é um verdadeiro enigma até para um leitor francés de Franga, como diria outro poeta antilhano, Léon-Gontran Damas. O ensaio foi escrito por um grande poeta francéfono, jé na sua velhice: Edouard Glissant. Nascido na Martinica a 21 de setembro de 1928, Glissant, aos 77 anos, retoma e repisa incansavelmente as suas ideias mestras de forma, por vezes, alegérica ou alusiva, sem preocupagio agora de datas nem de bibliografia. O livro é, ao mesmo tempo, uma stimula poética e uma coda barroca ao conjunto da sua obra ensaistica. Para entender La Cohée du Lamentin, a sua poética e 0 seu alcance, seria necessdrio inicialmente retornar ao titulo original — intraduzivel, repetimos~ ¢ tentar perceber nao sé o que significa, mas, sobretudo, o que sugere: Cohée, Lamentin e, unindo subterraneamente os dois topénimos estranhos, um terceiro elemento, forcosamente implicito e vibrando sem cessar no nfo-dito do texto, La Lézarde. Esta palavra feminina “cria” literalmente os outros dois topénimos, Cohée ¢ Lamentin: & 0 nome do maior curso de gua da ilha natal, curso de 4gua muito pouco “rio” para brasileiros ou para os parametros de um. pais continental como 0 nosso, com vatios cursos caudalosos de gua com mais de 1000 km. Com a extensdo total de apenas 33 km (tamanho que no mereceria entre nés a denominagio de rio, quando muito de ribeirao Soleil de la conscience (Poétique 1, 1956); LIntention poétique (Poétique U1, 1969); Poétique de la relation (Poétigue UM, 1990); Traité du Tout-Mone (Poétique W, 1997). 2 Il pensiero del tremore, Traduttore Restori E. Libri Scheiwiller: Settembre 2008. (Collana L’Arte e le arti). ISBN: 887644579X. ou ribeira), La Lézarde atravessa a comuna do Lamentin’, no centro-oeste dailha. Foi no Lamentin que nasceu Glissant, nao exatamente na planicie de aluviéo, mas num dos seus morros. Hoje, para quem chega a ilha, é a regio onde se situa o aeroporto internacional, denominado Aimé Césaire, como 0 Galeio que passou a chamar-se aeroporto Ant6nio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro. Quem chega pela primeira vez 4 Martinica nio vé quase nada de diferente ou de exético ¢ atravessa de taxi uma baixada que se assemelha & primeira vista, do ponto de vista da paisagem, & Baixada Fluminense ou & Baixada Santista. La Lézarde~ palavra que retoma Iézard (“lagarto”, em francés) ¢ 0 verbo Mzarder (“deitar-se imével ao sol como um lagarto” ou entéo “rasgar algo provocando uma fissura”) - evoca 0 curso sinuoso de um ribeiréo que corta as terras baixas do Centro-Oeste da Martinica’, até jogar-se no mar do Caribe (ou das Carafbas) num delta. O mar do Caribe, a Oeste da Martinica, é totalmente diferente da fiiria do Oceano a Leste. E 0 delta, outrora, estava coberto de mangues (mangrove, outra palavra encantatéria na poesia das Antilhas francesas), hoje quase invisiveis a quem chega de fora’. O primeiro romance de Glissant, de 1958, chamava-se La Lézarde ; a narrativa — ponto de partida de uma grande saga romanesca com varias linhagens que vao se cruzando progressivamente em intimeras narrativas, cada ver mais intrincadas no espago e no tempo — recebeu no momento do seu langamento, na Franga, 0 prémio Renaudot. A agéo de La Lézarde, romance, se passa nas semanas seguintes ao fim da II Guerra Mundial em torno de uma cidadezinha denominada Lambrianne (nome inventado pelos jovens protagonistas da narrativa que juntam Lamentin ¢ Marianne, nome este que encarna, como se sabe, a Reptiblica francesa). Lambrianne, cidadezinha ficcional como tantas outras — ¢ como a célebre cidade de Duas Pontes no centro obscuro da obra de Autran Dourado - Jembra Lamentin, onde 0 autor passou a sua juventude. > Le Lamentin & a segunda comuna mais povoada da Martinica, depois da capital Fort-de-France: tem hoje cerca de 40 mil habitantes. * Hé outros cursos de égua no espaco francés com o mesmo nome, La Lézarde: um pequeno ribeirio do Departamento de Seine-Maritime que se langa no estudrio do Sena em Harfleur (Normandia); um riozinho préximo da costa de Basse-Terre na Guadalupe que se lanca no Atlintico perto de Petit-Bourg. > O mangue foi preservado muito melhor na Guadalupe do que na Martinica. Um passeio maritimo em barco pequeno no interior do seu labirinto verde é inesquecivel. Trajeto semelhante poderia ser proposto aos visitantes no fundo da baia da Guanabara. Paris, Seuil, 1958, 250 p. 12 Quase 50 anos (1958-2005) separam esse primeiro romance e 0 tiltimo ensaio, que é, mais uma vez, um retorno ao lugar primordial, assim como o poema de Césaire, Cahier d’un retour au pays natal’. Mas ainda nao se explorou tudo do titulo enigmético. Lamentin & ainda, para leitores de literatura africana, um animal mitico porque retorna sempre & origem, & fonte primeira de onde veio. Para explica-lo, é preciso tomar um Desvio (Détour, em francés € sempre com maitiscula), como diria 0 préprio Glissant. O nome erudito do animal, nos diciondrios de ciéncias, é: Trichechus*. Faz parte da ordem dos Sirénios. Se o leitor quiser sonhar, esse grande animal “aqudtico” é parente imagindrio das sereias. O lamentin corresponde, no fundo, ao peixe-boi ou ao boto amazénico, ou seja, um tipo de grande mamifero herbivoro, de corpo afunilado, vivendo em Aguas pouco profundas, nos igarapés, na foz de rios ou nos pantanos costeiros da zona tropical do Atlintico. Sao, também, chamados em portugués manatins. Exatamente como no caso do boto’, seu parente proximo, criaram-se muitas lendas sobre essas criaturas estranhas, Jes lamentins. Uma dessas lendas data da primeira expedigéo de Colombo 4 América, em 1492: 0 descobridor anota no seu livro de bordo, referindo-se aos lamentins, “és sereias”. Assim, uma baixada da Martinica em torno do delta de um ribeirdo que serpenteia como um lagarto recebeu esse nome Lamentin porque, segundo os cronistas antigos, outrora os lamentins frequentavam os scus mangues. Com a urbanizagao e os aterros, desapareceram animais ¢ desapareceram quase totalmente os mangues. Mas a meméria de um posfacio célebre de Senghor, de 1954, no seu ensaio Liberté I — “Comme les lamentins vont boire a la source” (literalmente: como os botos ou manatins vao beber a fonte) — anuncia a lembranga quase apagada de uma busca de identidade. Resta-nos, ainda, uma palavra, a primeira do titulo, talvez a mais obscura: Cohée. Iniitil procuré-la nos diciondrios ou mesmo na internet. O seu significado, vamos aché-lo num outro ensaio de Glissant: “camps et morne et ravine, monts et cohées! [...] Une source’en 7 CESAIRE, Aimé. Cahier d'un retour au pays natal: Didrio de um retorno ao pais natal, Edicao bilingue. Com Posficio, bibliografia e notas de Lilian Pestre de Almeida. S40 Paulo: EDUSP, 2012. ® Hé diferentes tipos de Trichechus: peixe-boi-marinho, peixe-boi. peixe-boi-amazbnico. ° O verbete sobre o boto é um dos mais extensos do monumental Diciondria do folclore brasileiro, de Camara Cascudo. 13 prison, un delta tout en boue”” (campos e morro e ravina, montes € cohées ... Uma fonte aprisionada, um delta de lama). Cohée é, assim, uma pequena zona meio lamacenta, & beira-mar, intermédia entre terra € Agua, entre dgua salgada do mar com suas marés e agua doce do rio que transborda no momento das chuvas, com uma vegeracao em forma de labirinto e arvores de raizes altas, mergulhando no mangue. Esse titulo, ininteligivel para quem nao conhece a Martinica, remete a um lugar bem preciso do pais natal. Eis como 0 autor tenta justificar a palavra da qual ignora inclusive a etimologia: Cohée; 56 se encontra nessa baia dos Flamingos, ao longo do mangue: a Cohée du Lamentin, A palavra vem da lingua crioula ou da lingua francesa? Talvez de accorer?' O leitor respira enfim aliviado. Accorer: o verbo pode ser encontrado num diciondrio. O Dicionario da Academia francesa, de 1835, registra: ACCORER. Terme de Marine. Etayer, soutenir avec des accores un objet quelconque. Accorer un navire échoue. ACCORE, EE, Participe.'? Ou seja: nao s6 0 verbo accorer é rato, como pertence a lingua especial da Marinha a vela. Se alguém quiser, no terreno de aluviao, incerto ¢ mole da Cohée, escorar um navio com estacas para teparé-lo, esse barco s6 pode ser muito pequeno, barco de pescador. Oleitor, sem querer, ao procurar solucionar o enigma do titulo, reencontra uma_alusio (indireta) & piroga dos tiltimos movimentos do Cahier d'un retour au pays natal, de Césaite, que aftonta 0 oceano em firia a Leste. Uma primeira clivagem se faz, quase invisivel: Basse Pointe, o burgo natal de Aimé Césaire, esté situado a Nordeste da ilha, em face do oceano indémito numa costa escarpada que contradiz o GLISSANT, Edouard. Jn Le Thaité du Tout-Monde. Paris: Gallimard, 2003. p. 75. "Le Traité du Tout-Monde. Paris: Gallimard, 2003. p. 39. In: Dictionnaire de Académie francaise. Vle edition. 1835. p.59. Disponivel em: . Acesso em: 10 dez. 2013. 14 topdnimo (a costa é selvagem ¢ a montanha proxima coberta de mata fechada); 0 Lamentin corresponde a um outro espaco, terra de aluvido e de sedimentagao no tempo da longa duragio. No Lamentin, os tracos a ler esto ainda mais apagados com o desaparecimento dos mangues. ‘A palavra Cohée — com a sua carga de gestos perdidos (quem escora um batco hoje para reparé-lo numa ilha que se tornou um oximoro, ou seja, uma colénia de consumo e de férias?), lugar prenhe ainda de fantasmas, de histérias ¢ de conotacées quase esquecidas — sé existe na toponimia local. Glissant, ao retomar essa palavra perdida, totalmente opaca, como titulo do seu ensaio, resgata-a com a sua meméria que se esvai. Primeira consequéncia dessa longa conversa nao vadia em torno de um titulo enigmédtico para a grande maioria dos leitores, até mesmo para os que tém o francés como lingua materna: a paisagem é fundamental na poética de Glissant. Comegamos a frequentar as paisagens ndo mais unicamente como puros cendrios que consentem, propicios ou ndo, mas como verdadeiras mdquinas de induzir, muito complexas e as vezes inextrincdveis. Elas nos conduzem para além de nbs mesmos e nos fazem conhecer 0 que estd em nbs. Sao soliddrias com as nossas fatalidades, Vivem e morrem em nos e conosco." Desse ponto de vista, La Cohée du Lamentin prolonga 0 ptimeiro ensaio do autor, Soleil de la conscience (Sol da consciéncia), no qual Glissant meditava, em 1956, antes do seu primeiro romance, sobre o seu primeiro encontro com a paisagem da Franca — a0 mesmo tempo préxima e longinqua, conhecida e nova -, que o fez descobrir sua identidade antilhana. Ou melhor: 0 confronto com a paisagem francesa fez o escritor perceber a sua dupla e problematica identidade de antilhano, nascido nas Américas negras e descendente de escravos, e de francés, nascido numa ilha, hoje juridicamente um DOM (Département d’Outre-mer, ou seja, Departamento francés de Além-Mar). ® GLISSANT, Edouard. O pensamento do tremor. Traducio de Enilce Albegaria da Rocha e Lucy Magalhaes. Paris: Gallimard; Juiz de Fora: EDUFJE, no prelo. Traducao de: La cohée du Lamentin. 15 Esse retorno ao pais natal, a0 microcosmo de uma pequena regido da sua ilha natal, serve de pretexto a Glissant para revisitar € repisar alguns temas que lhe sao caros: a digénese que se opée & génese, © pensamento arquipélico que se opde ao pensamento de sistema, a identidade-relacao que se opée & raiz tinica, a totalidade 4 unidade, as Américas & América, a mundialidade & mondializagao etc., etc. No momento atual, cresce, no Brasil, o interesse em torno da obra ensaistica de Glissant como instrumento de andlise do nosso entorno americano. Mas é preciso lé-lo criticamente. Nio é dificil, de certa maneira, apontar, nos numerosos ensaios de Glissant, erros de datas, imprecis6es, a sua menor familiaridade com a producao “americana” de lingua portuguesa e, até mesmo, de lingua espanhola ou, ainda, a auséncia de qualquer referéncia clara as diferentes temporalidades das literaturas do continente"’, J assinei alguns textos sobre o assunto'®, mas é inegavel que Glissant permanece um contemporaneo incontornével ¢ a sua obra pode ser um fermento estimulante para novas abordagens. O que se defende aqui a necessdria articulagao das ideias de Glissant com outros modelos criticos das Américas: a antropofagia cultural brasileira, mas, igualmente, a nogio de aculturagio de Fernando Ortiz ou a tradicao da ruptura de Octavio Paz. Nenhum ctitico que pretenda trabalhar a partir das ideias de Glissant sobre “LAutre Amérique” deveria deixar de considerar 0 belissimo texto de Octavio Paz, escrito para 0 London Times Literray Supplement, intitulado simplesmente “Poesia latino-americana”"®, “Ha um problema recorrente em varios criticos francéfonos trabalhando sobre as Antilhas ou sobre as Américas em geral: nao levam em consideracao a diferenga de temporalidades, colocando-a de certo modo entre parénteses. Suas andlises pecam por vezes por falta de perspectiva, uma vez que trabalham a partir de tradugdes € nao a partir de obras nas suas linguas originais. Ou entio estudam um corpus limitado no tempo, ignorando 0 que precede, no interior da outra cultura. 'S Ver, por exemplo, trés textos, sendo que o tiltimo pode ser consultado facilmente por internet: a) Laxe américain et les littératures francophones. In: CHEYMOL, Mare (Dit). Litténatures au Sud. Montréal, Québec, Canada: Agence universitaire de la francophonie; Paris, France: Archives contemporaines — Editions des Archives, 2009. p. 113 - 120. b) Delaville de Christophe Colomb au paysan piémontais: A la recherche d’une trace italienne dans l’ceuvre d’Edouard Glissant. Francofonia: Le frémissement de la lecture - parcours littéraires d’Edouard Glissant, Bologna, n. 63, p. 147 -166, autunno 2012. Numéro special sous la direction de Carminelli Biondi et Elena Pessini. ©) Réflexions sur les traces italiennes pour et dans une poétique antillaise: Edouard Glissant. RIME — Rivista dell Istiruto di Storia dell Europa Mediterrdnea, n. 10, p. 127 — 154, giugno 2013. 18 PAZ, Octavio. Convergéncias: ensaios sobre arte ¢ literatura. Rio de Janeii Rocco, 1991. p. 161 - 173. 16 Um dos scus conceitos, a meu ver, mais rico e promissor é aquele que distingue poéticas naturais ¢ contra-poéticas, estas ligadas a culturas que se exprimem e produzem em regime de diglossia. Por outras palavras: ha culturas ~ ¢ 0 caso evidente das ilhas francesas, Martinica e Guadalupe, e da Guiana francesa — que vivem entre duas linguas, hicrarquizadas, situagio problematica de divisio coletiva entre coracao e mente, imagindrio ¢ ascenséo social. A diglossia, que nao é simples bilinguismo, provoca o aparecimento de estratégias de “marronnage” poético com referéncias (ocultas) & “outra” lingua. Resta-nos uma tiltima questéo para terminar: a qual linhagem de pensamento poderiamos relacionar a obra ensaistica de Edouard Glissant? Ela nao se prende, evidentemente, & linhagem de tendéncia generalizante, do universal abstrato ¢ transcendente, nem aquela dos que créem na esséncia e na unicidade do Ser e do Mundo, mas 4 antiga linhagem dos Pré-Socrdticos ou do relativismo de Montaigne ¢ de Diderot. Glissant coloca-se a favor de um universal” enraizado na carne desejante do universo; afirma a especificidade das Antilhas — como a de cada um dos inumerdveis lugares ¢ recantos do mundo = na sua diversidade de linguas ¢ histérias - e, sobretudo, reivindica o direito, para cada comunidade humana, & opacidade contra a transparéncia ofuscante e redutora do Ocidente, defendendo a necessidade imperiosa da exploragio do passado coletivo, rasurado pela Historia oficial ¢ imposta pela légica do mais forte. Passado nao perdido, mas disperso ¢ esgarcado a ser reencontrado numa busca érfica da qual os poetas indicam o caminho, criando, por assim dizer, a meméria do futuro. Nao sou nem de Atenas nem de Corinto, sou cidadéo do mundo. Socrates Quero ser chamado Cidadéo do Mundo. Erasmo de Roterdam Muitas homenagens recentes a Edouard Glissant, no momento da sua morte em Paris (em 3 de fevereiro de 2011), 0 apresentaram como “cidadao do mundo”, titulo “allait de soi” Aquele que defendeu a Relagao, 0 Caos-Mundo e sobretudo o direito & opacidade. Atribui-se, muitas vezes, a Sécrates a expressio de “cidadao do mundo”: ela est, alids, impressa num painel de azulejos de uma das estacdes 7 Glissant abandonard progressivamente o termo universal em favor do termo “totalidade-terra”. A viragem se dé entre os seus dois mais importantes ensaios Le discours antillais (1981) ¢ Introduction a une poétique du Divers (1995, 1996). Neste tiltimo, ele esboga uma articulagéo com outros teéticos da América Latina, o que infelizmente nao sera aprofundado. 7 de Metré em Lisboa, a da Cidade Universitéria. A frase seria, afirmam. outros, de Didgenes de Sinope, 0 Cinico, que possuia o talento do insulto e da derrisio. Representa-se, tradicionalmente, Didgenes acompanhado de alguns pobres objetos: 0 cajado, a tigela, a lanterna, a jarra'®, ‘A filosofia estoica é sem ambiguidade a esse respeito. Segundo ela, o homem ¢ por nascimento (nao se torna) um cidadéo do mundo e um filho, uma parcela do Deus-Mundo. Esse tema, diretamente saido do estoicismo antigo, reaparece (implicitamente) em Spinoza e, sobretudo, no pensamento moderno (Russel). Na verdade, pouco importa a quem pertence a reivindicacao de ser cidadao do mundo, aos Cinicos, aos Estoicos ou unicamente a Sécrates. Erasmo, no alvorecer dos tempos modernos na Europa, também o reivindicou. Mas a reivindicacao s6 era possivel no mundo coerente e denso da grande bacia do Mediterraneo ¢, talvez, um pouco mais. Era, entio, mais facil imaginar-se cidadao do mundo. E para os cidadaos do mundo, haveria uma literatura Todo-Mundo (Tout-Monde) em que os textos se juntam, se reencontram, se articulam entre si, se entrecruzam ou se contradizem, em novas ¢ imprevistas combinacées. Mas os textos, 8s vezes, resistem, langam raizes muito profundas na terra de uma lingua. Por que néo seguir a lico do proprio Glissant, no seu grande ensaio Le discours antillais (O discurso antilbano, de 1981)" sobre os perigos da busca incansével do Outro que desemboca as vezes no Mesmo? Glissant, mais do que um tebrico da literatura ou um defensor da ctioulizacao, é um grande escritor. Creio que seria bom proceder a uma espécie de inversio. Fala-se demais do tebrico ou do autor de uma antologia endo o suficiente do criador, do romancista e do poeta. Pode-se contestar 0 te6rico a partir de certas afirmagées ou de algumas das suas tradugées, mas que riqueza a explorar do ponto de vista da narrativa e da poesia! A partir da sua obra, pode-se tomar a sua pratica poética como instrumento de andlise para explorar tanto a meméria quanto a metamorfose do escrito e do oral. Assim fazendo-o, o leitor joga Glissant contra Glissant dogmatico, Melhor: contra Glissant, tornado dogma por aqueles que o leem ao pé da letra. Lilian Pestre de Almeida Lisboa, dezembro 2013 8 No grande afresco do Vaticano A Escola de Atenas, por Rafael (1509 - 1512), Diégenes de Sinope € aquele que esté reclinado, seminu, ao centro, num dos degraus da escadaria, abaixo do par central formado por Platéo e Aristételes. ” Creio que os trés ensaios fiundamentais mais importantes de Glissant sio Le Discours antillais (1981), Poétique de la Relation (1990) e 0 jé citado Introduction a une pottique du Divers (1996). Este tltimo ja foi traduzido para o portugués por Enilce Albegaria da Rocha com 0 titulo Jntrodugio a uma poética da diversidade (2005). » Ver, em particular, as tradugées reivindicadas por Glissant de poemas em portugués e em espanhol na sua antologia La terre, le feu, Veau et les vents. Une anthologie de la poésie du Tout-Monde (2010). 18 COMO O PASSARO INUMERAVEL Imagine 0 voo de milhares de passaros sobre um lago da Africa ou das Américas. O Tanganica' ou o Erie, ou um desses lagos dos Trépicos do Sul que se aplanam e se fundem a terra. Veja essas revoadas de pdssaros, esses enxames. Conceba a espiral que eles desenlacam, e na qual o vento escorre. Mas nao saberd enumerd-los verdadeiramente durante o seu langar-se todo em crista e ravina, sobem ¢ descem fora da vista, caem e enrafzam-se, revoam em um sé impeto, seu imprevisivel € que os une e rodopiando aquém de toda ciéncia. Sua beleza golpeia e foge. Depois a noite surge e 0 deixa estupefato. Suas asas sao de brilho e seus ventres de sombra; vocé ndo os viu estenderem, nas margens e nas espumas enegrecidas, 0 tecido adamascado do siléncio que eles fazem. "Tanganica: lago da Africa. Erie: lago da China. 21 O pensamento do Tremor surge de toda parte, miisicas e formas sugeridas pelos povos. Musicas suaves ¢ lentas, pesadas e percucientes. Belezas, grito aberto. Ele nos preserva dos pensamentos de sistema e dos sistemas de pensamento. N&o supée o medo ou a irresolucao, estende-se infinitamente como um pdssaro incontdvel, asas semeadas do sal negro da terra. Ele nos retine na absoluta diversidade, num turbilhao de encontros. Utopia que nunca se fixa e que abre o amanha, como um sol e um fruto compartilhados. (O Tremor da énfase ao instinto, medido ou desmesurado, dessa diversidade.) 22 “A Divisao das aguas” Como na Califérnia, também nos é atribuido, predito, reservado um Desastre final, Daqui a quarenta anos, a Martinica desaparecerd num abalo sismico sem apelacao. Nao paramos de ruminar isso, ou seja, nao paramos de morrer por antecipagio. E liquido e certo, quarenta e cinco mil caixdes ja esto estocados, no caso de... Medida perecivel. Quem poderia ter tomado tal decisdo, realiz4-la? Quem a fantasiou? Saberemos perdurar ao lado de um cemitério futuro, assim virtual? Alids, uma vez engolido o pais, para qué servirao esses caixdes, que ndo sero mais do que cascas submarinas, arrastadas para longe de toda meméria? Li essas predi¢ées num dos nossos jornais. Aterroriza-me 0 pensamento de que tantos outros ao meu redor as tenham lido ao mesmo tempo em que eu: nao s6 agitamos assim 0 nosso t4o manifesto inconsciente coletivo, mas também o publicamos e digerimos todos juntos. Um individuo pode tentar supor 0 que ser4 o universo sem ele; mas um povo pensaria em faltar a si mesmo? Deixariamos ao menos a lembranga de uma Atlantida em miniatura, sem civilizagio misteriosa, uma Black Atlantis — e reconhego que reproduzo o titulo, The Black Atlantis, de um livro do Sr. Paul Gilroy? Enquanto isso, ha as dezenas de dezenas de milhares de mortos pelo mundo, varridos a intervalos regulares e com uma fatalidade mecanica por terremotos e inundagoes. Estamos 23

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