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MANA 10(2):397-414, 2004

ENTREVISTA
POR UMA ANTROPOLOGIA DO CENTRO

Bruno Latour

Esta entrevista foi realizada em Paris, em seus coletivos modernos que se processa a
fevereiro de 2004, no gabinete de Bruno produção e proliferação desses híbridos, em
Latour na École Nationale Supérieure des paralelo à prática, tipicamente moderna,
Mines, por Renato Sztutman e Stelio de sua purificação. É por isso que os labo-
Marras. A École des Mines oferece, tradi- ratórios de alta tecnologia, por exemplo,
cionalmente, cursos em geofísica, enge- são lugares privilegiados de investigação
nharia de materiais e energia, robótica, etnográfica para uma antropologia das
matemática, economia industrial, mecânica, ciências, coração de uma antropologia da
reatores. Ali, Latour ensina sociologia, no modernidade. Metodologicamente, trata-se
quadro da formação oferecida pelo de seguir as coisas através das redes em
“Centre de sociologie de l’innovation”, mas que elas se transportam, descrevê-las em
parece preferir não ser tomado por um seus enredos — é preciso estudá-las não a
sociólogo. Sua formação é em filosofia, partir dos pólos da natureza ou da
embora ele não se diga filósofo. sociedade, com suas respectivas visadas
Epistemólogo seria, ainda talvez, uma de- críticas sobre o pólo oposto, e sim simetri-
signação mais justa. Se bem que ele não camente, entre um e outro.
recusaria de todo o rótulo de historiador Por meio de uma dezena de livros e de
das ciências. Ele próprio se define como um centenas de artigos e ensaios, as idéias de
“sujeito híbrido”. Visto como um antropó- Latour vão se estendendo, também em
logo, Latour seria um antropólogo da mo- rede, pelos continentes. Seu livro-manifesto
dernidade — mais especificamente, um Jamais fomos modernos — ensaio de
antropólogo da ciência ou da natureza. antropologia simétrica (publicado na
Como ciência humana das coisas, esta França em 1991, no Brasil em 1994), foi
antropologia da natureza não adere, con- traduzido em 18 línguas. Ao desmontar ali
tudo, seja ao realismo das ciências naturais, a ilusão moderna de que é possível isolar o
seja ao construtivismo das humanidades. domínio da natureza (o inato) do domínio
Latour situa sua perspectiva nem de um da política (a ação humana), Latour
lado, nem de outro, mas no meio — no reconectou a modernidade a todas as
centro, precisamente onde ocorre seu obje- demais naturezas-culturas do globo, deli-
to de estudo por excelência, os híbridos ou neando propostas para uma possível con-
matters of concern, isto é, as coisas ao vivência intraplanetária. Quase como um
mesmo tempo naturais e domesticadas, os profetismo às avessas, o novo mundo para
quase-sujeitos e quase-objetos dotados onde Latour aponta é idêntico ao mundo
simultaneamente de objetividade e paixão. tal qual ele sempre foi, mas que nunca os
E é também no centro do Ocidente e de modernos, antes, pudemos notar.
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Sociologia da crítica, antropologia da dade de uma representação, no duplo


ciência, science studies... Qual o me- sentido da palavra, como tentei preci-
lhor modo de se referir ao seu campo sar no livro Politiques de la Nature
de pesquisa? Seria essa aparente inde- (2000). Assim, para responder à ques-
finição um sintoma da urgência de tão, em termos de rótulo, não disponho
uma redefinição dos instrumentos ca- de uma definição precisa para ofere-
pazes de iluminar os mecanismos da cer. No entanto, em termos de objeto,
modernidade? penso que meu objeto é o estudo dos
matters of concern, a invenção de um
Em termos de “disciplina”, o que eu certo empirismo — um segundo empi-
faço não existe. Meu trabalho se situa rismo, digamos, que não tem a ver sim-
ao lado da história das ciências, da no- plesmente com os objetos, no sentido
va história das ciências — a área que tradicional do empirismo, mas com os
mais atrai gente hoje no mundo uni- matters of concern, com as coisas que
versitário —, daquilo que costumamos constituem causas, em oposição aos
chamar de science studies, expressão objetos1. Eu gosto dos antropólogos,
que não tem correspondente direto em gosto dos sociólogos (um pouco menos,
francês, e que é a tradução em inglês talvez!), gosto dos filósofos (um pouco
da palavra grega “epistemologia”. menos ainda!), e gosto muito dos
Sempre colaborei com os antropólogos, science studies, este é o meu domínio,
e de vez em quando gosto de me defi- que, em parte, eu mesmo criei, junta-
nir como um antropólogo das ciências. mente com amigos, e o domínio de
Esse rótulo agora é menos útil, graças pertença é sempre importante. É nele
ao trabalho de Philippe Descola, que que encontro os colegas mais queridos.
vem desenvolvendo a escola da “an-
tropologia da natureza” (este é o nome Você utiliza a antropologia clássica pa-
de seu curso no Collège de France), e ra criar instrumentos metodológicos
eu fico muito contente em fazer parte que permitam uma nova abordagem
dela. Mas ao mesmo tempo, aqui [na da ciência moderna. Isso implica, se-
École des Mines], eu ensino sociologia. gundo você, a constituição de uma an-
Minha formação é unicamente em filo- tropologia simétrica. Em que sentido a
sofia, meus diplomas são em filosofia. empresa de uma antropologia da mo-
Assim, os rótulos não são fáceis de es- dernidade pode contribuir para reno-
tabelecer. Por outro lado, se definirmos var a antropologia geral?
pelo objeto, o único objeto que estudo
é o que chamei, de início, de “objetos Comecei pela utilização bastante clás-
híbridos”, e que chamo agora de mat- sica da antropologia definida como et-
ters of concern, em oposição aos mat- nografia, como método etnográfico. Se
ters of fact. É o que interessa também pensarmos na formação clássica em
ao pessoal dos science studies, os an- antropologia tal como se fazia há mais
tropólogos da ciência, os historiadores ou menos trinta anos, veremos que não
da ciência, que convergem para este havia muitas formas de aplicá-la ao es-
objeto que tem características novas e tudo das atividades científicas do cen-
que podemos definir como — segundo tro. Em troca, o método etnográfico era
o antigo sentido desses termos — utilizável. E assim alguns autores, co-
things em inglês, choses em francês: mo Mike Lynch, na Califórnia, Karin
coisas, ou seja, seres que têm necessi- Knorr, também na Califórnia, Sharon
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Traweek (uma verdadeira antropóloga contato com os antropólogos, que co-


entre os sociólogos) e eu mesmo, sem- meçavam a dizer haver ali algo de in-
pre na Califórnia, por acaso e sem nos teressante para eles, pois, até então,
conhecermos, utilizamos os métodos não se haviam aplicado métodos etno-
etnográficos. E foi apenas depois que gráficos à distinção “Natureza-Cultu-
trouxemos o problema para a antropo- ra”. Penso que, desse ponto de vista,
logia geral que nos defrontamos rapi- prestei um serviço aos antropólogos.
damente — ou rapidamente para mim Mas será que isso abalou a antropolo-
— com a questão “Natureza/Cultura”, gia como um todo? Não. Porque, de
mononaturalismo e multiculturalismo. início, nada abala a antropologia e as
disciplinas acadêmicas em geral, e
Nessa época, na Califórnia, você já também porque as ciências continuam
possuía alguma formação em antropo- a interessar apenas a pouquíssimas
logia? pessoas. Assim, afora Descola e Vivei-
ros de Castro, um pouco Sahlins, o im-
Sim, porque eu já havia passado dois pacto da antropologia das ciências co-
anos na África pela ORSTOM2, onde mo a que faço sobre a antropologia ge-
tinha bons colegas, como Marc Augé. ral é, creio, nulo. Por outro lado, há
pessoas como Paul Rabinow, toda uma
Você fez o serviço militar na África, série de antropólogos pós-modernos,
não é? que mantêm laços mais fecundos entre
os science studies e a antropologia.
Sim. Fiz o meu primeiro trabalho de Mas isso permanece sempre meio mar-
campo lá, sobre a formação de traba- ginal na antropologia, como vocês sa-
lhadores de médio escalão em fábricas bem muito bem, pois são antropólogos.
na Costa do Marfim. Eu já era, então,
um sujeito híbrido, uma vez que estava Por que a influência dos science stu-
na Costa do Marfim, mas estudava um dies se fez sentir mais nos Estados Uni-
assunto relativo à modernidade. Apli- dos, e tão pouco na França?
cávamos o método etnográfico, mas
não abordávamos as grandes questões Na França, isso não teve absolutamente
da antropologia. Estas encontramos qualquer influência, salvo no curso de
depois, quando começamos a fazer es- Descola, ou na Inglaterra, um pouco por
tudos de campo, e aí nos demos conta Marilyn Strathern, que estabeleceu co-
de que os antropólogos não compreen- nexões muito produtivas entre os scien-
diam nada do que fazíamos, pois eram ce studies e a antropologia. Na Alema-
obcecados pela distinção “Nature- nha, tenho a impressão de que não hou-
za/Cultura”, uma natureza e várias ve grande influência. Assim, a antropo-
culturas. Foi nesse momento que co- logia continua o debate entre ciência e
nheci Philippe Descola e Marshall cultura3. Sobretudo, isso não teve qual-
Sahlins e, em seguida, Eduardo Vivei- quer influência no lugar onde justa-
ros de Castro. Com eles, as minhas dis- mente teria de ter tido, ou seja, nas re-
cussões começaram a se aproximar lações entre a antropologia física e a
realmente da antropologia. Foi então antropologia cultural. Era lá que estava
que publiquei Nous n’avons jamais été — e ainda está — o futuro, o impacto fu-
modernes (1991), que foi um momen- turo dos recursos intelectuais mobiliza-
to-chave para mim, quando entrei em dos pelos science studies. E esse traba-
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lho ainda nem sequer começou, apesar riferia, aliás. Agora não sabemos muito
de ser interessantíssimo. As coisas não bem onde é o centro e onde é a perife-
caminham rápido na vida intelectual. ria. Os antropólogos não se interessam
pelas multinacionais, eles não se inte-
Qual é, para você, a diferença mais sig- ressam pela indústria, pelas técnicas.
nificativa entre a (nova) antropologia Mas não posso lhes falar sobre a antro-
das ciências e a assim chamada filoso- pologia na França. Sobre esse assunto,
fia das ciências? seria melhor vocês entrevistarem Des-
cola, pois eu não freqüento os antropó-
Aqui, o contraste é total, entre a epis- logos — só freqüento os melhores! Eu
temologia (ou filosofia da ciência) e os não freqüento todos os outros; não es-
science studies. Há ainda um terceiro tou habilitado a responder a essa ques-
personagem, que é a história das ciên- tão. Mas o ponto é que, de fato, meu
cias, hoje em dia muito desenvolvido projeto vem mudar a antropologia em
na França e muito interessante. Há geral. Se deslocarmos o debate de con-
muitas coisas agora. Assim, há Ian ceitos como “mononaturalismo” e
Hacking, que é, aliás, um colega de “multiculturalismo” para novos con-
Descola no Collège de France, um ca- ceitos, faremos a antropologia mudar.
so típico dessa hibridização entre filo- Quando Viveiros de Castro inventa sua
sofia, história e sociologia das ciências. história de “multinaturalismo”, ele
Mas ele não é francês, é canadense… chuta o pau da barraca. Isso é certo.
Durante muito tempo, a única maneira Assim, depois disso, a antropologia de-
de se pensar a ciência na França era a ve se refazer. Mas quais são aqueles
epistemologia. Mas isso mudou muito, que têm consciência desse problema,
pois há Hacking no Collège de France; além das três pessoas já mencionadas?
há, ao redor de Dominique Pestre, his-
toriadores da ciência numerosos e de Você apresenta o projeto, a Constitui-
ótima qualidade, de nível internacio- ção Moderna, como algo fadado ao fra-
nal. Assim, a situação agora é bem casso. Quais são os signos deste desti-
mais rica. Há muitos bons trabalhos do no trágico, uma vez que a ciência pare-
que podemos chamar de science stu- ce continuar ocupando um lugar de
dies na França, sobre a França, e feitos centralidade na produção de nossas
por franceses. A ligação com a antro- verdades? Se é assim, por que não po-
pologia, creio, permanece débil, pois demos mais ser modernos? Nós jamais
seria preciso que os antropólogos se in- fomos modernos, ou fomos, uma vez,
teressassem, justamente, pelo centro. mas agora deixamos de sê-lo? Retros-
Há poucos antropólogos que fazem is- pectivamente, de acordo com sua teo-
so, e quando o fazem, é da maneira ria, nós já não éramos, antes, moder-
mais superficial possível. nos. Mas éramos mais modernos que
hoje? Somos menos modernos que há
Poderíamos dizer que esses antropólo- trinta anos?
gos que trabalham com o tema da mo-
dernidade não se interessam senão pe- Sim, isso é certo. Não tenho provas,
la “periferia” da cultura ocidental? pois todos os signos podem ser reinter-
pretados dentro de uma lógica de de-
Sim, é isso, a periferia do centro! E não senvolvimento modernista. Eu não
o centro do centro! Ou tampouco a pe- possuo uma só prova — o que me preo-
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cupa muito, aliás — de que a história e menos crível. Mas não é propriamente
a flecha do tempo modernistas não se- um destino trágico não ser moderno. O
jam verdadeiras. Se formos haberma- que seria trágico seria o fato de sermos
sianos, a lógica do desenvolvimento mesmo modernos. Este sim seria um
dos últimos cinqüenta anos pode ser destino trágico. Aliás, os modernistas
perfeitamente compreendida como o já choraram todas as lágrimas disponí-
avanço da modernidade, da “hipermo- veis para explicar que ser moderno era
dernidade”, como disseram alguns, terrível, era desencantar-se etc. Então
com o pequeno problema da pós-mo- o fato de jamais termos sido modernos
dernidade, entretanto, que é um sinto- não é absolutamente uma tragédia. É
ma bastante forte. Então, o que eu faço justamente o contrário! Os europeus
é simplesmente oferecer uma outra in- jamais abandonaram a matriz antropo-
terpretação, dizendo: se olharmos as lógica ordinária4. Agora temos a prova
coisas de um modo diferente, é possí- disso, pois Descola está mostrando que
vel que o que está acabando seja uma o modernismo é um dos quatro casos
modernidade que jamais existiu de fa- de identificação com a natureza: o na-
to: jamais fomos modernos. É parado- turalismo, ao lado do analogismo, do
xal. Mas, ali onde eu possuo as provas totemismo e do animismo. É um caso
que os outros não possuem, é porque, digno de interesse, mas é uma varian-
digamos, mais uma vez, graças à histó- te entre outras. Não é mais o horizonte
ria da ciência, graças aos science stu- para o qual evolui o resto do mundo.
dies, nós nos demos conta, finalmente, Isso coloca evidentemente problemas
de que o único disparador e as únicas políticos enormes, que Descola não re-
provas de que os modernistas dispõem solve. Descola tem muitas qualidades,
para fazer o seu quadro de desenvolvi- mas sua política é completamente clás-
mento do Homem modernista — da sica.
Renascença até hoje — são as ciências.
É Galileu, é Newton, Pasteur, Einstein Mas há algo realmente inédito, histori-
etc. Ora, é justamente isso que, junta- camente falando, no que dizem e fa-
mente com os historiadores da ciência, zem os modernos...
meus amigos, pudemos revisar de al-
gum modo. Porque agora temos a his- Sim, eles são originais. O naturalismo é
tória de Galileu, a história de Newton, muito original. Eles são interessantes.
a história de Pasteur, a história de O modernismo é uma particularidade
Einstein. A cada vez, em lugar de en- antropológica interessante. Certamen-
contrar uma separação entre objetivi- te — não o nego. E podemos mesmo ir
dade e subjetividade, encontramos o mais longe. Essa particularidade expli-
contrário. Foi isso que contei na minha ca muito de seu dinamismo. É porque
pequena conferência no Collège de estivemos constantemente a imaginar
France, no quadro do seminário de a purificação que pudemos operar a hi-
Descola. Para nós, que somos historia- bridização. Essa hipótese, que formulei
dores da ciência, no sentido dos scien- sem a menor prova em 1991 em Jamais
ce studies, as provas de que jamais fo- fomos modernos, eu diria que se acha
mos modernos são mais fortes, pois hoje, no fim das contas, razoavelmente
dispomos justamente dos exemplos confirmada. Aliás, devo agradecer por
das ciências, que nós revisamos. Por is- isso, em parte, aos trabalhos dos antro-
so a idéia de uma Grande Narrativa pólogos. É graças ao fato de o moder-
modernista parece hoje em dia bem nismo não ser uma realidade, mas uma
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interpretação da realidade que tem um gente, mas que eu não consigo de ma-
efeito muito importante sobre esta, que neira nenhuma provar.
podemos agora fazer uma antropologia
do dinamismo dos modernos. É preci- Para voltar a Philippe Descola, ele fala
samente porque eles estão constante- de uma ontologia naturalista. Você fala
mente a trabalhar com a idéia de puri- de uma constituição moderna que
ficação que puderam produzir esses oculta ou encobre, digamos, um lado
hibridismos, que os outros — diríamos não-moderno e que poderia ser chama-
hoje, os analogistas ou os multinatura- do, para continuar com os termos de
listas — se proíbem. Eu falei disso al- Descola, de animismo, totemismo ou
gumas vezes com Sahlins e com Vivei- analogismo. Que acontece, então, em
ros de Castro, e creio que essa não é sua própria reflexão, com essa noção
uma hipótese absurda, ainda que con- de ontologia?
tinue sem poder prová-la. O dinamis-
mo dos modernos é ter feito constante- Essa é uma questão difícil... Não sei.
mente outra coisa que aquela que pre- Os naturalistas são realmente natura-
tendiam fazer. A comparação com a listas? Sim e não. Na perspectiva de
China é muito interessante, com os Descola, o naturalismo define um certo
chineses conforme imaginados e re- modo de identificação. Ora, penso que
construídos por François Jullien5, pois isso não é certo no que diz respeito aos
lá vemos muito bem a diferença de um modernos, pois define apenas o lado
pensamento que procura, ao contrário, de sua empresa que corresponde à re-
ficar o mais próximo possível da práti- presentação oficial que eles têm de si
ca. É muito interessante, mas nós, do mesmos, e da qual têm necessidade
lado ocidental, não compreendemos para construir os recintos [enceintes]
esse pensamento, pois ele nos parece dos matters of fact. Mas ao mesmo
banal. Ora, essa banalidade é, segun- tempo, no interior desse recinto, que é,
do Jullien, justamente a força e o inte- grosso modo, seu laboratório, eles vi-
resse desse pensamento, que se recusa vem de uma maneira bastante diferen-
a dramatizar suas preocupações. te. Por exemplo, os átomos que, em
Então, eu não possuo signos, pos- uma ontologia naturalista, são suposta-
suo índices que reinterpreto sob outra mente tão exteriores a nós, exibirão, no
ótica. Mas se vocês me perguntam laboratório, um monte de outras onto-
qual é a prova que eu tenho de jamais logias — no plural —, uma porção de
termos sido modernos... bem, eu não estados ontológicos que contradizem
tenho provas! Todos os meus amigos flagrantemente a visão pedagógica e
pensam que minha hipótese não é ver- epistemológica oficial. Essa contradi-
dadeira, que a modernização avança; ção não é entre o velado e o revelado,
mesmo aqui [no CSI] — vocês podem mas entre o recinto e o que ele permi-
perguntar a meus colegas — ninguém te. Não é a mesma coisa. É porque os
acredita na minha hipótese. Todos modernos estão protegidos das conse-
pensam que a modernização continua; qüências de sua hibridização que eles
muitos crêem que nós nos tornamos se permitem tais coisas.
pós-modernos. É de se espantar, pois A questão diz respeito ao recinto. É
esse livro que eu escrevi em três sema- exatamente como se nós tivéssemos
nas foi publicado em dezoito línguas! É uma central nuclear e, para fazer essa
uma hipótese que interessou a muita central nuclear, fosse necessário cons-
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truir recintos sólidos para proteger o leiros são interessantes porque eles ja-
que se passa no núcleo do reator, sepa- mais acreditaram, no final das contas,
rando-o muito bem do exterior. Que é, nessa história de purificação. Eles pos-
então, necessário estudar? Os recintos? suem uma visão que difere daquela do
O núcleo do reator? O exterior? Tudo, modernismo dos franceses.)
provavelmente. Se nos interessarmos Então, direi, para retomar os ter-
pelo recinto, diremos que os modernos mos da questão de vocês, que não se
possuem uma ontologia naturalista — trata aqui de uma ontologia pura e
é isso o que diz Descola —, mas se nos simples, mas de uma ontologia que
interessarmos pelo que se faz dentro ainda não conhecemos, em virtude da
dos recintos, veremos algo muito dife- falta de estudos. Mas quando estamos
rente. Isso não quer dizer que eles se- diante de alguns bons trabalhos — co-
jam animistas — os modernos não po- mo, por exemplo, o belíssimo livro de
dem ser de modo algum animistas, to- Hans Jorg Rheinberger sobre os seres
temistas ou analogistas. Bem, analo- biológicos em um laboratório contem-
gistas talvez seja mais provável, pois porâneo —, vemos que a ontologia na-
herdamos muito do analogismo... Vê- turalista de Descola e Viveiros de Cas-
se isso muito bem, aliás, no belo livro tro não parece descrever muito bem o
de Foucault, As palavras e as coisas. que se passa nesse laboratório. Coisas
Herdamos muitos aspectos do analo- estranhas acontecem com os seres bio-
gismo. O problema é que não sabemos lógicos. Isso não quer dizer que os bió-
como se passou do analogismo ao na- logos sejam animistas, isso significa
turalismo, da “prosa do mundo”, como que acontecem coisas que a criação do
diz Foucault, à Natureza modernista. recinto modernista permite. Quando se
O fato é que há pouca antropologia do está no recinto modernista, é possível
modernismo. Temos muito menos estu- fazer experiências sobre as ontologias
dos, curiosamente, sobre as nossas on- que não se pode fazer quando se está
tologias que sobre a ontologia dos no terreno do animismo. É essa a dife-
Achuar, por exemplo. Então não temos rença crucial, é essa a particularidade
respostas a essas questões. Pessoas co- do naturalismo. Mas aqui há uma
mo Descola e Viveiros de Castro costu- questão técnica que tomaria muito o
mam dizer: “estudo os outros e não nosso tempo.
nós, e por isso não considero os natura-
listas modernos por aquilo que eles fa- Tomemos a questão anterior sob um
zem realmente, mas apenas por aquilo prisma diferente. Os modernos detêm
que eles dizem oficialmente sobre si uma certa constituição, que lhes per-
mesmos”. E assim, o paradoxo é que mite encobrir o que se passa realmen-
sabemos menos sobre as ontologias te dentro de seus recintos. Entre os pré-
mobilizadas pelos biólogos, pelos téc- modernos, ao contrário, poderíamos di-
nicos de computação, pelos empresá- zer que tudo se passa de uma maneira
rios, que sobre aquelas mobilizadas diferente, que eles são mais transpa-
pelas práticas de caça achuar. Porque rentes e que jamais se enganam. Ou
pensamos que os brancos, os habitan- seja: o que eles dizem, eles fazem. O
tes do centro, realmente possuem uma “engano” seria um atributo dos moder-
ontologia naturalista. Isso é uma ver- nos. Podemos dizer que os modernos
dade tão superficial que acaba por se encerram uma contradição mais séria
tornar completamente falsa. (Os brasi- que os demais? Se isso é verdade, eles
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se tornariam realmente diferentes dos nossa própria cultura, seremos obriga-


outros, situando-se em uma posição dos a tomar graves precauções, tere-
realmente assimétrica. mos de tomar muito cuidado. E com is-
so, viveríamos em uma atmosfera de
É muito interessante essa questão. Eu desaceleração.
e Viveiros de Castro já discutimos mui- A questão de vocês é muito astucio-
to sobre esse ponto. Não é absurdo di- sa. Não se trata de dizer: “todos os ou-
zer que a particularidade dos moder- tros fazem o que dizem, e nós, moder-
nos é estar em maior contradição con- nos, temos a particularidade de mentir,
sigo mesmos que os demais coletivos. nós mentimos!”. Superficialmente, isso
O caso dos chineses é, nesse sentido, é verdade. Mas é preciso fazer as duas
extraordinário; tomemos mais uma vez coisas ao mesmo tempo, senão não po-
os chineses de Jullien, que descreve deremos nos permitir liberar energias.
efetivamente as suas práticas. Mas na Essa é a grande astúcia dos modernos:
nossa perspectiva, a dos modernos, ter uma constituição que possui dois ra-
criadores de recintos no interior dos mos. O primeiro permite alegar:
quais se faz algo diferente, o objetivo “quando você faz isso, você pode mis-
da sua filosofia [dos chineses] não é turar o que bem quiser, e as conse-
descrever as suas práticas, mas criar qüências não vão existir”. O segundo,
condições para que isso que eles sa- por sua vez, constata justamente que
bem na prática possa ser levado às úl- essas conseqüências existem. “Ah, sim,
timas conseqüências, com energias destruímos a floresta amazônica, trans-
consideráveis, pois os pressupostos e formamos completamente as grandes
conseqüências das conexões são man- planícies norte-americanas. Uau, isso é
tidos em desconhecimento. Costuma- estranho, como isso pôde acontecer?”
se concluir do fato de “jamais termos Não se pode negar que haja para os
sido modernos” o fato de que os mo- modernos um contraste excessivo entre
dernos teriam se enganado. Não é essa o que eles dizem e o que fazem. É isso
a questão — sou geralmente mal com- que explica sua surpresa total diante
preendido nesse ponto. Mais uma vez: das conseqüências inesperadas de suas
quando se está numa central nuclear, ações. Eles dizem que são emancipa-
nunca se está dentro, mas fora; nin- dos, mas ao mesmo tempo: “ah, é es-
guém vai querer entrar, pois dentro tu- tranho... hoje estamos novamente reco-
do irradia, tudo queima, e é porque se nectados à atmosfera, ao ar que respi-
está fora e que há um recinto de con- ramos. Como isso aconteceu? Isso
tenção que se pode, no interior, fazer aconteceu porque tivemos uma in-
coisas com energias formidáveis, inco- fluência tão grande que acabou alte-
mensuráveis, com o que se passa no rando o próprio clima”. Nós dizemos,
exterior... É preciso levar em conta as finalmente: “Olhem só, estamos real-
energias das experiências modernas. mente reconectados!”. Pois é, estamos
Se, a cada vez que começamos a esta- reconectados. Os outros sabiam. Isso
belecer os protocolos dessas experiên- não causa espanto aos outros. E aqui há
cias nós nos dissermos: “isso tem in- uma verdadeira diferença. Os outros
fluência sobre a sociedade, sobre o nos dizem: “Welcome back!”. Nós lhes
cosmos, sobre os ancestrais, sobre os perguntamos: “Vocês não são emanci-
cultos” etc. se, a todo momento, não ti- pados?”. E eles respondem: “Não! Nós
rarmos os olhos do fato social total da sabíamos. Nós, os outros, sabíamos um
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pouquinho das coisas”. A húbris mo- elas se modernizam e se dissolvem em


derna, que foi estudada por todos os todos sentidos. O imaginário da antro-
modernistas — esse é o grande tema da pologia é uma estátua cuja encarnação
crítica. Há qualquer coisa de verdadei- foi Lévi-Strauss.
ro nesse tema da húbris. De qualquer Ora, a situação atual é completa-
modo, se todas as questões de vocês fo- mente diferente, pois não há mais o
rem tão difíceis como esta, eu não po- domo da natureza, e menos ainda o te-
derei mais responder... ma do desaparecimento das culturas,
pois há a formação de novas culturas
Então, se a constituição moderna é ofi- completamente bizarras, híbridas, à
cial, mas não oficiosa, podemos voltar maneira de Appadurai, feitas de mer-
a falar em uma ontologia de base — e cado mundial, de marketing, de arcaís-
por que não dizer universal? — ligada mo, de folclore etc. E a assembléia que
às práticas de “tradução” ou “hibridi- permitiria essa conexão não existe. Por
zação”, essas que tornam impossíveis isso, a situação se torna realmente in-
todos os esforços de purificação? Você teressante, pois agora a comparação
defende a idéia de que todos os coleti- deixa de ser “somos todos de diferen-
vos são híbridos. É isso que tornaria tes culturas, sobre o pano de fundo de
possível a simetrização e a comparação uma mesma natureza”, para ser “o que
entre os modernos e os outros? nos espera?”. E assim essas questões
vão ficando cada vez mais interessan-
A questão do universal não me parece tes. É isso que eu queria dizer sobre o
apropriada. Não é um modo ideal para tema da nova forma de auto-apresen-
se falar do mundo. O problema é: será tação dos europeus. Os europeus se re-
que podemos viver no mesmo planeta, presentam e se apresentam novamen-
sabendo que temos definições comple- te aos outros, de modo agora polido,
tamente diferentes sobre o planeta, so- dizendo: “não sabemos em que mundo
bre o que é viver e o que é estar junto? estamos”. Tomemos a famosa disputa
E, nesse ponto, a comparação deixa de de Valladolid. Valladolid versava sobre
ser intelectual, para ser uma compara- os índios. E, como lembram Lévi-
ção que podemos chamar, com Isabel- Strauss e Viveiros de Castro, será que
le Stengers, de cosmopolítica, mas não os brancos estavam de acordo com
no sentido de Ulrich Beck ou de Kant. eles? Antes, a questão era simples, era
Talvez fosse necessário falar, como Pe- a do universal local, tal a controvérsia
ter Sloterdijk, em domo ou envelope. de Valladolid. Mas... e se dissermos:
Qual o domo no interior do qual se faz “qual é a diplomacia necessária para
a comparação? Esta é, em si, uma que haja um mundo comum entre es-
questão importantíssima. A solução ses que dizem ‘Em Valladolid, experi-
clássica dos antropólogos é dizer que mentam-se almas; em Porto Rico, ex-
nós sabemos o que é esse domo, ele é perimentam-se corpos’”? Não há mais
o conhecimento, a natureza, a nature- mundo comum a abrigar estes dois ex-
za humana, essa mansão da moderni- tremos. De fato, e estamos mesmo as-
zação para onde se encaminham as sim engajados ora em uns, ora em ou-
culturas, sob uma forma geralmente tros, obrigados a estar em guerra para
triste — “tristes trópicos”, eis a fórmu- poder fazer a paz. E assim as coisas
la que resume todo um passado. Elas vão ficando interessantes.
entram na mansão, nós as honramos,
406 ENTREVISTA

Retomemos, antes de prosseguir, a sua Há muitas definições, mas eu prefiro


noção de “hibridização”... aquela de Isabelle Stengers. Ou seja, a
de que a “política” são os humanos, e
Hibridização não é um bom termo. Se que o “cosmos” são as coisas: nenhum
o empreguei, foi simplesmente para dos dois sozinho é o bastante. A pala-
testá-lo. “Híbrido” é já todo um mundo vra “cosmopolítica” é uma palavra que
da genética. Usei o termo “híbrido” permite dizer que se fizermos a políti-
para começar a discussão, ele descreve ca apenas entre humanos, vamos aca-
bem o fato de que quando você fala em bar nos fechando em uma esfera exí-
garrafas de água mineral, por exem- gua demais, feita de interesses de boa
plo, você vai encontrar a legislação, os vontade. Se tivermos apenas cosmos,
problemas de poluição e a água vai se iremos nos encerrar sozinhos na velha
pôr a diferir, a se complicar, deixando idéia dos naturalistas, que definem a
de estar situada como um matter of priori um mundo comum que os outros
fact. Só que hoje eu não utilizaria mais devem compartilhar. A cosmopolítica
o termo híbrido, pois, a rigor, só há hí- permite impedir que os dois se fechem:
bridos, em toda parte. Se assim fosse o cosmos está lá para impedir que a
não poderíamos mais fazer a distinção política se feche, e a política, para im-
entre animismo, totemismo etc.. Mas pedir que o cosmos se feche. O cosmos
nós produzimos um tipo de híbrido que não é mononaturalizado, ele é a ex-
é muito interessante: o ato da hibridi- pressão de uma política. Acredito que
zação é negado em seus recintos. Se o podemos dizer hoje que temos uma
recinto exibe matters of fact, seu inte- prova para esse fenômeno, e esta é
rior é codificado. Essa é a nossa inven- muito difícil de ser negada. O número
ção. É uma coisa engraçada. E nós, não de fatos, que aparece ainda sob a for-
nós antropólogos, mas nós que faze- ma modernista de matters of fact, dimi-
mos a cosmopolítica, nós dizemos que nuiu muito em relação aos fatos que
a tarefa da política é abrir o recinto e aparecem agora sob a forma de mat-
mostrar o que ele é e o que permite, ou ters of concern. Nós não podemos ain-
seja, os matters of concern. Essa oposi- da quantificar a mudança, mas há uma
ção está um pouco em toda parte: so- grande mudança. Podemos também
bre a guerra no Iraque, por exemplo, interpretar isso alegando que, não, é
diremos: “esta vai ser rápida, vai dar simplesmente o modernismo que tenta
tudo certo, nós controlamos tudo”. Mas avançar, mas esse tipo de interpreta-
tudo dá errado, como vamos sair dessa, ção acaba parecendo com os epiciclos
estamos enrascados... Nós vivemos ptolomaicos. Enfim, não se deve acres-
neste momento uma oposição particu- centar epiciclos a epiciclos. Não é um
larmente dramática. Temos as provas modo honesto de pensar.
absolutas de que há armas de destrui-
ção em massa, e então, de repente, da- Tomemos, como exemplo, o caso das
mo-nos conta de que não as temos, es- descobertas sobre o genoma humano.
távamos enganados. Essa oposição es- Fala-se muito, nos termos de Viveiros
tá por toda parte. Fatos indiscutíveis de Castro, em “multinaturalismo”, ou
são substituídos por fatos discutíveis. seja, múltiplas naturezas. Ora, as des-
cobertas recentes sobre a biotecnolo-
Como definir essa noção de cosmopolí- gia genômica insistem sobre uma base
tica? biológica certamente universal, que
ENTREVISTA 407

nos reenvia forçosamente ao monona- curso sobre a ação do gene é uma pe-
turalismo. O que é encoberto nesse quena fração, agora, do que se passa
processo? Ou, dito de outro modo: não na genética7. Há aqui gente que estu-
teria a antiga constituição moderna en- da as questões relativas às doenças
contrado, ali, a sua realização? que são devidas a um gene apenas, e
mesmo assim observamos diferenças
Este é o gênero importante de questão, enormes. Sem falar do fato de que ago-
pois estamos aqui no cruzamento entre ra um gene é uma empresa, são paten-
antropologia física e antropologia cul- tes, é um jogo geopolítico enorme co-
tural, social. Esse cruzamento deverá mo vemos com o caso dos transgêni-
ser, no futuro, o cerne da antropologia. cos. É por isso que a relação entre a an-
Mas reflexões como essas não foram tropologia física e a antropologia cultu-
praticamente realizadas. Mas há um ral tornou-se tão interessante de um
modo típico de responder à questão de ponto de vista político. Estamos diante
vocês. Podemos, e há gente que o faz, de um lugar de controvérsias, pois po-
saudar a genômica como o grande demos dizer: “Olha, temos razão de fa-
evento dos últimos vinte anos. Pode- zer antropologia física, pois agora isso
mos efetivamente repetir a narrativa já está unificado”. E, ao mesmo tempo:
do modernismo com a biologia no cen- “Olha, temos uma rica antropologia
tro. Ao mesmo tempo, entretanto, veri- social — digamos assim — dos genes,
fica-se uma proliferação de definições porque a genética é assunto das mais
do gene, das influências dos genes, variadas controvérsias”. Isso é normal,
que reduziu a nada a universalidade pois não há uma única maneira de um
do discurso biológico. Este é tipica- corpo existir no mundo. Os geneticis-
mente um problema modernista. Todo tas não sabem o que fazem. É que o
mundo tem o mesmo genoma, estamos problema do gene é complicado. Um
todos finalmente unificados sob o teto gene é múltiplo e os seus modos de
da mansão da genética. Sim, mas, si- ação são múltiplos. Não há um só dis-
multaneamente, as definições do gene, curso sobre o gene que possa unificar a
das influências do gene que serviam genética.
para unificar essa mansão, explodiram A questão de vocês é muito interes-
em uma multiplicidade de definições. sante e a minha resposta a essa ques-
Por exemplo, muita gente tem síndro- tão é: eis porque é preciso uma antro-
me de mongolismo, mas não manifesta pologia da ciência. É preciso conseguir
o mongolismo. Pierre Sonigo, que é um compreender as duas coisas: o discurso
grande biólogo francês e que escreveu, unificador triunfalista dos geneticistas
no ano passado, um livro apaixonante — quando estes dizem que “o genoma
sobre o gene, oferece uma definição é, finalmente, o fim da diferença cultu-
completamente oposta6. Ele diz não, o ral, porque temos agora um só gene
gene não é algo que transporta as in- para tudo”, e o seu contrário, ou seja, a
formações, mas algo que come. Já não idéia de que o gene não explica tudo:
é a mesma coisa. Todas as conseqüên- fazemos genômica, agora temos o Ge-
cias que você pode tirar de um e de ou- noma, e nos damos conta de que não é
tro para a unificação do comportamen- isso que explica tudo, é preciso olhar
to são diferentes. Evelyn Fox Keller para as proteínas etc. O objetivo da an-
publicou, no ano passado, The century tropologia não é opor o discurso oficial
of the gene, onde argumenta que o dis- ao discurso oficioso, mas estudar os
408 ENTREVISTA

dois. E explicar por que o primeiro per- blema de representação dos humanos,
mite uma parte do segundo ao mesmo de tomadas de posição dos humanos,
tempo em que impede o seu desenvol- mas não como uma cosmopolítica. Ago-
vimento. Hoje o desenvolvimento da ra que jamais fomos modernos, com o
genética está paralisado por um dis- problema que expliquei há pouco, co-
curso que não corresponde, de modo meça a ficar claro por que o senhor Lu-
algum, àquilo que o ser deve fazer, la tem de se ocupar do aquecimento do
presa como está à estranha ontologia globo, do milho híbrido, da pobreza, da
do antigo gene codificante e informan- habitação, da crise do abastecimento
te, algo como a imitação de um livro, de água etc. É evidente por quê.
algo que se assemelha à linguagem.
Podemos dizer que o problema da eco-
Você fala da crise da representação po- logia esteve sempre no centro da polí-
lítica como parte da crise da moderni- tica?
dade. Em que sentido você pode dizer
que a democracia — ao mesmo tempo Sempre esteve no centro da política,
o melhor e o pior sistema político, para mas nem sempre no centro da filosofia
retomar a frase de Churchill que você política. Agora o problema é que a filo-
mencionou em uma conferência recen- sofia política deve absorver de novo as
te — deve ser estendida às coisas? coisas que estavam antes nas mãos ex-
clusivas dos experts científicos — os
A política sempre foi, de fato, uma po- genes de que acabamos de falar são
lítica das coisas. A questão foi sempre um ótimo exemplo disso —, e que ago-
construir cidades, definir fronteiras e ra migram para o centro da atenção co-
paisagens. Foi a filosofia política que mum. E aí, a democracia das coisas é
inventou, em meados do século XVII, uma outra história. É o “parlamento
uma teoria da representação unica- das coisas”. Este é o problema da ex-
mente do mundo social humano, ao co- posição Making Things Public [“Tornar
locar a economia e as ciências do outro as coisas públicas”], que estou prepa-
lado. Isso significa que, do ponto de rando em Karlsruhe, na Alemanha. Re-
vista da atividade que chamamos polí- tomando, portanto, a questão de vocês:
tica, sempre se tratou de questões — is- não se trata apenas da representação
sues, como dizem os ingleses —, que dos centros da vida política em torno
são preocupações não simplesmente da eleição e da autoridade, mas a re-
materiais, mas preocupações em rela- presentação também no sentido bem
ção a bens e coisas. A melhor demons- conhecido “dos instrumentos que re-
tração disso é um afresco muito conhe- presentam as coisas de que falamos”.
cido de Lorenzetti, em Siena, Do bom e Assim, a questão da democracia atual
do mau governo. A diferença entre o não é apenas saber se nós votamos ou
bom e o mau governo é que no mau go- não, se estamos ou não autorizados pe-
verno há coisas que são destruídas, ao las pessoas que nos elegeram, o que é
passo que no bom governo as coisas a primeira parte da representação, mas
são coerentes. Não fui eu quem inven- também a de saber como, quando fala-
tou a política das coisas (a democracia mos do milho transgênico, essa coisa
das coisas, sim). É a filosofia política de que falamos é representada, desta
que a esqueceu e que durante alguns vez no interior do recinto. Por isso, a
séculos definiu a política como um pro- “democracia das coisas” quer dizer,
ENTREVISTA 409

justamente, o duplo interesse pelos retórica. Mas é claro que é necessário


dois sistemas de representação: repre- que ela seja uma. É necessário ser ca-
sentação dos humanos que falam das paz de dramatizar, verificar, encontrar,
coisas, e representação das coisas de expressar, convencer, ser compreensí-
que os humanos falam, em seus recin- vel por um grande número de pessoas.
tos. Um caso típico de mau exemplo de E isso corresponde exatamente às ar-
representação é o do Mr. Collin Powell mas e às grandezas da retórica clássica.
quando diz à ONU: “Olha, eu tenho a
prova de que há armas de destruição Parece que o que nos falta, hoje em
em massa, e posso exibi-las na tela”. E dia, não é a retórica em si mesma, mas
ele nos mostra péssimas imagens falsi- justamente uma espécie de “rigor retó-
ficadas etc. Há uma carência de repre- rico”...
sentação. Não estou dizendo que Bush
não é autorizado, ele foi eleito. Mas o Podemos falar de rigor retórico, vocês
que ele faz não é representativo. A de- têm razão. Infelizmente, opomos retóri-
mocracia das coisas é transportar de ca e rigor. É bela essa expressão de vo-
um modo confiável as coisas de que fa- cês... Vejam só, por exemplo, Collin Po-
lamos e, por outro lado, estar autoriza- well em um episódio muito interessante
do para falar delas por meio de um em que ele foi obrigado a dizer: “These
procedimento social. Trata-se de uma are not obsessions, my friends, these
questão extremamente simples, mas are facts”. Ele foi obrigado a dizer isso
que a filosofia política não abordou, perante o Conselho de Segurança da
pois ela fez uma separação completa ONU. Evidentemente, não se tratava de
entre, de um lado, as coisas que são re- fatos indiscutíveis. Ele bem sabia. Se
presentadas pelos cientistas, mas fora ele tivesse seguido o rigor retórico, ele
do procedimento político, e a represen- talvez pudesse ter dito: “Eu não sei o
tação dos humanos. Mas no meio disso que se passa de fato, eu possuo provas
tudo havia a retórica, que era justa- muito pouco claras. Mas elas são impor-
mente uma forma de comunicação e tantes demais para que deixemos de
manipulação, uma espécie de relações agir imediatamente”. Aqui sim tería-
públicas, e não o trabalho público so- mos uma retórica rigorosa. Ele poderia,
bre as provas incompletas. A retórica talvez, nesse caso, ter convencido al-
jamais foi — a não ser entre os gregos, guém, mas a oposição entre fatos e re-
certamente — pensada como sendo o tórica (“These are not obsessions, my
meio essencial de reconduzir as coisas friends, these are facts”) torna impossí-
aos recintos ocupados por aqueles que vel o rigor retórico. O que eu quero fa-
falam delas. Assim, essa questão toca zer nessa exposição é justamente dizer
de fato no problema da invenção de que há um duplo fenômeno de repre-
uma retórica política. sentação: representação do lado das
coisas, e representação do lado das pes-
É porque a retórica é uma técnica... soas, e que é precisamente isso o que
chamo de democracia.
Sim, mas que foi muito importante du-
rante vinte e quatro séculos e que de- Você disse, no seminário de Philippe
sapareceu completamente no fim do Descola, em novembro de 2003, que é
século XIX. Desapareceu, pois a ciên- preciso que o Ocidente mude o seu
cia não poderia ser, supostamente, uma contraste com os outros para que ele
410 ENTREVISTA

possa, enfim, fazer uma oferta de paz. Os modernos serão simplesmente obri-
Os antropólogos teriam, assim, um pa- gados a pensar assim, porque eles não
pel central nessa missão, e isso implica são mais os donos do mundo. Essa é a
a definição da antropologia como di- diferença. Antes, eles não precisavam
plomacia. Você poderia falar um pouco ser diplomatas. Antes, como disse Slo-
mais desse papel que o antropólogo terdijk, todo mundo achava formidável
deve assumir? a globalização, quando nós éramos os
únicos a globalizar. Do século XVII ao
Já falamos um pouco disso. A diferença século XX, pensávamos que a globali-
é que o diplomata não possui princípio zação era ótima. Era o mundo, era a
superior comum, ele não conta com um naturalização, era a modernização.
árbitro indiscutível acima dele próprio Agora, todo o mundo globaliza. Os Ka-
para definir as posições e os papéis, yapó globalizam, pois participam do
porque senão não haveria guerra e não mercado mundial com seus produtos…
haveria conversações de paz, tampou- O problema é que os europeus agora
co necessidade de diplomatas. A diplo- são obrigados a serem polidos, pois
macia é a busca dessas condições co- eles não são mais os donos do mundo,
muns em ambos os lados. Assim, esta é e têm sorte de não mais o serem. Eles
a grande diferença entre o antropólogo podem retomar as questões da antro-
como diplomata e o antropólogo como pologia clássica e concluir: “Agora não
erudito [savant]: o antropólogo savant estamos mais na situação de antropó-
reúne em seu escritório, no Collège de logos savants convocando o mundo to-
France, o conjunto de culturas que são do simplesmente porque temos o po-
convocadas, de certa maneira, sem der indiscutível de fazê-lo em nome da
dramas — senão o drama do conheci- Natureza”; pois entramos em uma ta-
mento — e ele as compara umas com as refa diplomática arriscada, a de dizer
outras reunindo-as num quadro, ao aos outros, aos brasileiros, por exem-
passo que o antropólogo diplomata não plo: “Eis o que nós, franceses ou euro-
dispõe de um lugar particular para ex- peus, pensamos que devemos defen-
por sua oferta de paz, ele pode ser con- der como nossa definição de existên-
siderado a qualquer momento como cia, e se vocês nos tirarem isso, vocês
um traidor, pois não possui um princí- brasileiros, nós morreremos”. Isso é,
pio superior comum a partir do qual po- portanto, muito interessante. Assim, o
deria arbitrar as diferentes posições. diplomata é uma figura que me inte-
Ele não sabe o que é aceitável para as ressa demais, pois acredito que ele se-
pessoas que o enviam, as pessoas de ja uma figura maldita. O diplomata é o
sua própria cultura, e tampouco o que é traidor. Ele é uma figura mais forte e
aceitável para os outros. Então há uma mais antiga que a figura do savant.
grande diferença entre o antropólogo Havia diplomatas bem antes de haver
savant e o antropólogo diplomata. Mas savants. O diplomata é aquele que se
este é um tema de debate com meus engaja em questões sem saber ao cer-
eminentes colegas. to em que coisas crer antes de iniciada
a discussão. Assim, ele é obrigado a
Para além de um problema antropoló- trabalhar de ambos os lados, tanto o
gico, a diplomacia seria também uma daqueles para quem ele trabalha, co-
solução para o problema — ocidental, mo o daqueles a quem ele se endereça.
moderno — da globalização? Em uma antropologia diplomática, so-
ENTREVISTA 411

mos obrigados a nos engajar entre a guerra. Para a maior parte das pessoas,
química, os índios etc. não estamos nem mesmo em guerra,
O diplomata chega no final de uma estamos no desenvolvimento de técni-
guerra que esgotou a todos. Assim, é cas que fazemos convergir para o mes-
preciso haver, antes de tudo, uma de- mo mercado mundial. O diplomata é
claração de guerra: primeiro a guerra, de fato a figura que chega depois que
depois o esgotamento; por fim, a diplo- as pessoas já estão esgotadas pela
macia. O diplomata não aparece no co- guerra, que as conversações já come-
meço, mas no fim. Se não há guerra e çaram, e que as pessoas se perguntam:
partes dispostas a negociar, não há di- “no fundo, no que acreditar?”. E então
plomatas. Estamos em uma situação de o diplomata refaz seu trabalho de re-
guerra. definição de valores e diz: “Penso que
nós acreditamos nisso. E agora eu me
Mas o que exatamente fazer no fim da volto aos meus, e lhes digo: ‘Nós acre-
guerra? ditamos nisso. Você está de acordo que
nós aceitemos isso para não retomar a
Na maior parte das frentes, a guerra guerra?’” E aí as pessoas podem dizer:
ainda não começou. Não houve decla- “De modo algum. Esse diplomata é um
ração de guerra. Este é um ponto mui- traidor! Fomos vendidos pelo diploma-
to importante, é o que eu chamo de ta por um pedaço de pão.” Eu fiz essa
“guerras pedagógicas”. Na maior par- experiência. Fui aos cientistas euro-
te dos casos, não há ainda guerra, pois peus e lhes disse: “Não se defende a
os modernos não faziam guerra, faziam racionalidade. O que se deve defender
pedagogia. Assim, quando eles dizem são os híbridos etc. Vocês estão de
“saber racional” e “saber irracional”, acordo?” Eles não estavam mesmo de
não se trata de guerra, mas de pedago- acordo! De fato, podemos fracassar nas
gia. E aos irracionais dizem: “Não é relações diplomáticas. Mas a diploma-
sua culpa, não estamos em guerra con- cia é algo muito interessante.
tra vocês, nós gostamos muito de vo-
cês, mas vocês são irracionais e nós so- Nesse domínio, o que podemos pensar
mos racionais”. Isso não é uma situa- dos conflitos atuais entre os países oci-
ção de guerra, e por quê? Porque su- dentais e os países islâmicos?
põe-se que haja um princípio superior
comum que define essas duas posi- De qual guerra estamos falando? Tra-
ções, racional e irracional. Não está em ta-se de uma guerra dos modernos
discussão o que seja o “racional” e o contra o arcaísmo? Não, evidentemen-
“irracional”. Ao passo que quando se te não. Trata-se de uma guerra entre
diz: “para que haja guerra, é preciso dois modernismos, dois fundamentalis-
haver declaração de guerra”, e nada mos. No mais, há uma série de assun-
de árbitros, ou de princípio superior tos sobre os quais os antropólogos não
comum. É preciso dizer que a moderni- têm nada a dizer. Aqui eles deviam
zação desapareceu, que o mononatu- aprender com os islamólogos, e há al-
ralismo desapareceu, e assim por dian- guns excelentes. O que é certo é que
te. Isso nos coloca muitas condições. não estamos diante de um conflito da
Por isso, não apenas não estamos no modernização contra o religioso, mas
fim da guerra, mas não chegamos se- de um modernismo extremo, que é um
quer, em muitos casos, à declaração de fundamentalismo, e que se assemelha
412 ENTREVISTA

muito ao nosso modernismo. Ficamos


surpresos com essa constatação, pois o
modernismo era ótimo quando éramos
nós que o praticávamos, ou seja, quan-
do era indiscutível, direto, quando não
havia mediação. O fundamentalismo é
algo muito interessante. Ele é um mo-
dernismo. Mas nós, os modernos — nós
jamais fomos modernos! —, nós sem-
pre fizemos o contrário. Assim, quando
vemos os verdadeiros modernistas
diante de nós, ficamos horrorizados!
Não porque eles tenham barba e vis-
tam djellabas, mas porque esta é a
imagem que nós mesmos demos ao
mundo! Isso é extraordinário. É como
um retorno. Sempre vimos a natureza e
a ciência de modo indiscutível, cons-
truímos laboratórios etc. Mas vende-
mos o modernismo aos outros, aos pra-
ticantes. Este é o paradoxo. Agora, os
outros dizem: “Mas nós também somos
modernos”. “Ah bom! Mas então mo-
derno significa o quê?” “Significa que
as coisas são indiscutíveis, que não há
mediação, não há história. E isso é ser
modernista!” Recuo horrorizado dos
europeus, que exclamam: “Não, não é
isso, não pode ser isso!”. O fundamen-
talismo é o modernismo amputado de
seus híbridos, que agora se volta con-
tra os modernos e os aterroriza — com
razão.

Tradução de Renato Sztutman


ENTREVISTA 413

Notas

1 No original, “des choses qui ont pris chose en opposition à l’objet”. Latour
usa o conceito de chose no duplo sentido arcaico de res ou ding, isto é, de coisa-
causa (causa jurídica ou política) “que remete […] a um assunto levantado em uma
assembléia, na qual se trava discussão que exige um julgamento passado em co-
mum…” (Politiques de la nature, p. 351) [N.E.].

2 Office de Recherche Scientifique des Territoires d’Outre-Mer, atual IRD —

Institut de Recherche pour le Développement [N.E.].

3 É possível que tenha havido aqui um lapso, e que Latour estivesse queren-
do dizer “Assim, a antropologia continua o debate entre natureza e cultura” [N.E.].

4 Entenda-se, a matriz ou a condição humana, o modo de nossa espécie ha-

bitar o real — a “velha matriz antropológica”, como a chama Latour em Jamais fo-
mos modernos [N.E.].

5 Sinólogo e filósofo francês contemporâneo, autor de importantes trabalhos


sobre diversos aspectos e figuras do pensamento chinês. Ver o balanço de sua obra
recentemente publicado em Penser d’un Dehors: la Chine (F. Jullien e T. Marchais-
se, Paris: Seuil, 2001) [N.E.].

6 Ver P. Sonigo e I. Stengers, L’Évolution. Paris: Edp Sciences, 2003 [N.E.].

7Ver E. Fox Keller e L.L. Winship, The Century of the Gene. Cambridge, MT:
Harvard University Press, 2002 [N.E.].

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