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° ‘UniveRstDane ESTADUAL De CAMPINAS ReitorManceto KNoBEt. Coordenadora Geral da Universidade Tents Dun Zaatson ATVARS Consetho Baltorial Presidente MARCIA ABRED ‘Eocurpes px Mesqutta Neto ~ TARA Lis FRANCO ScHAVINATSO ‘Maina Rocka MacHabo ~ Mania Ins PerRucct Rosk [Renato Hrupa bt Luna Papmesa ~ RopRioo LANNA FRANCO DA SILVEIRA ‘Oavaroo Novats bf OLvEIRA Jt. ~ VERA NiSAKA SOLFERISE Reitor Ricanno MAncsio FONSECA PrisRetora GnacteLa Ins Botz6n pe MUNtzZ eé-Reitor de Extensi e Cultura LEaNoR0 FRANKLIN GORSDORF Diretorda Editora RopRico Tapev GoNaves ‘Vice Diretorda Bditora UFPR Hexr2 Wexprt. DB CAMARGO Const Editorial [ApntaNo Nenvo CopATO ~ ALLAN VALENZA DA SILVEIRA ‘Auzun Fenanes BUPEARA ANTUNES ~ CLAUDIO JOSE BARROS De CARVALHO ‘rowan AvoUSTO De QUADROS ~ ELEUSIS RONCON! DE NAZARENO Fanio MauReR ~ FABRICIO SCHWANZ DA /ARGARETE CASAGRANDE LASS ERBE parmicia Leen Kosaso ~ Sénoto Lotz MetstaR BERLEZE Colegio Bibliotheca Latina CComissdo Baitoral ‘CoonDENaDones ‘Marna Travizaw x PAULO SéRaIO DE VASCONCELLOS IsaBeLLa TARDIY CaRDOsO ~ Manos MARINO Dos SAsTOS "Magia Inds Prrmucct ROSA PEDRO PavLo ABREU FUNARE ‘Ropnico TaDEU GOXGALYES Robson Tadeu Cesila Epigrama Catulo e Marcial Robson Tadeu Cesila constam na antologia final. As excegdes a essa regra serio, como é praxe, informadas em nota. Por fim, agradecemos a nossos colegas docentes Paulo Sér- gio de Vasconcellos (Unicamp) e Matheus Trevisam (UFMG), onganizadores da série Bibliotheca Latina, pelo convite que nos foi feito para escrever o presente volume. : Esperamos que ele possa atender aos objetivos da Colegio, auxiliando os alunos de graduagio e de pés-graduagao e os es- tudiosos e interessados em geral a conhecerem o género epigra- ma e, sobretudo, a poesia de seu maior cultor na Antiguidade, Marcial. -16- CAPITULO I Epigrama: Origens e definicao 1.1 Origens e primeiros desenvolvimentos do género Para as origens do epigrama, a exemplo de tantos outros géne- ros de poesia ou de prosa, temos de remontar & Grécia, mais Precisarnente ao seu periodo arcaico (séculos VII-VI a.C.). Ali, © terme én ypapa (que se translitera epigramma e que em Roma foi mais tarde latinizado como epigramma, com a tonica deslocada para a pentltima silaba) significava simplesmente “inscrigio’, indicando o resultado da aco do verbo émypddew (epigrdphein), que é “escrever em cima de’, “inscrever”, “gravar/ fazer uma inscrigao’. Com efeito, em én(-ypayqa (epigramma), © prefixo én (epi) significa “em cima de’, “sobre”; 0 substantivo ‘Yodupa (grémma), “letra’, “escrito”: epigramma é, pois, o que escrito em cima de algo, inscrito sobre algo, inscrigao. Nesse sentido, 0 termo é correlato e cognato; mais que isso, é siné- nimo de“epigrafe’, do grego émvypa) (epigraphé), derivado do mesmo verbo, Embora se referisse a quaisquer inscrig6es, o termo grego ara “ep'grama” dizia respeito, sobretudo, as breves inscrigdes, em pedra ou metal, gravadas (ou pintadas) em ttimulos, esté- -17- Robson Tadeu Cesila tuas, monumentos ou objetos votives, podendo ou nao ser em versos. Seu objetivo era muito pratico, com fins de celebragio, comemoragio, informacao, dedicatéria, meméria, homena- gem. Assim, tais “epigramas”, no caso das lépides tumulares, podiam indicar 0 individuo sepultado, seu local de nascimento, seus feitos em vida e suas qualidades fisicas ou morais; no caso dos monumentos, o evento ou 0 fato celebrado e a pessoa que o empreendera, 0 artista que construira o monumento ou a pessoa que o encomendara; em se tratando de objetos votivos (troféus, ex-votos), podiam informar 0 ofertante, o motivo da oferta e a pessoa ou divindade a que se ofertava; se estitua ou outra obra de arte, o que era ou quem representava, quem a fi- zera ou mandara fazer. ‘Assim, os primeiros epigramas eram indissocidveis de seu suporte material e, por seu carter pragmatico, tinham um es- tilo um tanto impessoal e uma linguagem mais objetiva, sem maiores pretensdes poéticas, mesmo quando compostos em verso. Antes do século VI a.C., sequer possufam uma autoria declarada, 0 que também se deve & finalidade pratica ¢ a0 caré- ter convencional desse tipo de produgao. Além disso, a exigui: dade de espaco no suporte fisico (lapide de ttimulo, pedestal de estitua, pequenas superficies dos objetos votivos etc.) conferia ‘aessas inscrigdes sua caracteristica de brevidade e concisio que seré.a principal marca do género até os dias atuais (ver adiante jtens 1.2 ¢ 1.3.1). © metro ~ para os que eram compostos em. ‘versos ~ parece ter sido inicialmente o hexametro (é nele que foram compostos os mais antigos exemplares de epigramas conhecidos, do século VIII a.C.), mas jé no século seguinte ha epigramas em disticos elegiacos que, a partir do final do século V1a.C,, se tornarao o metro predominantemente tipico desse tipo de poesia, ainda que hexametros e outros esquemas métri- 18- Epigrama cos nunca tenham deixado de ser usados! (para mais detalhes sobre esses metros, ver a frente 1.3.2). Com as guerras Médicas (499-479 a.C.), entre gregos e per- 25, jé no inicio do periodo cléssico (século V a fins de IV a.C.), as inscrigées epigraméticas tornaram-se mais numerosas em ra- zo das homenagens prestadas nos ttimulos dos soldados mor- tos nos combates e nos troféus ofertados aos guerreiros vence- dores.* Ainda vinculados a essa funcao pratica, os epigramas dessa época, porém, jé comecam a apresentar, ainda que apenas embrionariamente, certos elementos literdrios que se desenvol- verdo nos séculos seguintes. Talvex por isso mesmo date dessa época 0 primeiro epigrama de que se conhece com certeza 0 nome do autor: fon de Samos, que compés por volta da segun- da metade do século IV a.C. os versos inscritos na estétua con- sagrada por Lisandro quando da tomada de Atenas.’ Foi 20 periodo helenistico (fins do século IV a.C. a fins de .C.), entretanto, que o epigrama, embora mantendo a bre- vidade como a sua principal caracteristica, libertou-se de sua finalidade pritica e de sua estreita vinculacéo a um suporte ma- terial.‘ Passou, entio, a abarcar uma gama maior de temas, de forma que vieram se somar, aos mais tradicionais epigramas votivose sepulcrais, aqueles de tematica convivial, erdtica, sati- rico-jocosa, 0s filoséfico-exortativos, os destinados & felicitagio de amigos e patronos por um aniversério, casamento, restabe- lecimento da satide, retorno de uma viagem, os que descreviam objetos (como obras de arte) etc.> O epigrama se torna, entio, verdadero género pottico, tendo sido cultivado por quase to. dos os grandes poetas da época* E importante ressalvar, porém, que o epigrama-inscrigéo, aquele feito para ser inscrito e li- gado a um suporte material, nao desapareceu e continuou a ser largamente produzido. E que mesmo a producao independente -19- Robson Tadew Cesila de tais suportes e ja circulando como literatura propriamente dita em recitagdes ¢ livros de papiro ou pergaminho inclufa muitos epigramas fiinebres ot votivos ficticios, ou seja, feitos & maneira do epigrama-inscrigao, mas néo mais para serem efe- tivamente gravados em qualquer superficie de pedra ou metal” £ também na época helenistica que se difunde a pratica de se produzirem antologias de epigramas, embora esse hébito possa ser mesmo anterior. Normalmente, tais antologias eram cha- madas, por seus compiladores, oTébavos (stéphanos), “guir- Janda/coroa de flores”, as “flores” sendo os epigramas antologi- zados. Assim, por volta de 100 a.C., 0 poeta Meléagro, natural de Gadara, cidade da Judeia helenizada, a leste do Mar da Gali- leia, publica a sua Guirlanda, composta por centenas de epi- gramas de algumas dezenas de poetas. Néo possuimos o texto exato dessa antologia tal como publicado 4 sua época, mas po- de-se ter uma ideia dele a partir de informagées colhidas na “Antologia Grega (ver & frente 2.1), que preserva nao s6 0s epi- igramas compilados por Meléagro, mas também o poema prefa- ial em que este timo elenca os poetas que antologizou. Pode- -se depreender que Meléagro adotou como critérios para a sua colecio a brevidade e 0 metro elegiaco (a esmagadora maioria dos epigramas de sua Guirlanda tem essas caracteristicas), com 6 que contribuiu para a consolidacao ¢ a afirmacio definitiva desses dois tracos como préprios do género epigramatico. E verdade que tais caracteristicas eram predominantes desde a origem do género, mas como também sempre houve conside- ravel producio de epigramas de maior extensio ¢ em outros metros, inclusive na época helenistica, a quase exclusao destes “iltimos de uma antologia importante e extensa como a Guir- landa de Meléagro certamente confirmou aqueles dois tragos como essenciais, a0 mesmo tempo em que, se nao excluia da -20- mu Epigrama categoria “epigrama” as pecas diferentemente compostas (as extenses e/ou em outros esquemas métricos), ao menos as rele- gava 8 condicao de “incomuns’, Outra Guirlanda importante, a de Filipe de Tessal6nica, for- temente influenciada que foi pelas diretrizes da Guirlanda de Meléagro, reforca também a brevidade e o distico elegiaco co- mo caracteristicas do epigrama. Teria reunido 50 poetas que produziram depois da época deste tiltimo (a reconstituigao hi- potética da recolha ¢ igualmente feita a partir de poema pre- facial ¢ de epigramas da Antologia Grega) ¢ foi publicada jé no periodo romano, na época de Caligula (37 4.C.-41)° ou, se- gundo outros, de Nero (54 d.C.-68)."” Uma diferenga, porém, em relacéo & Guirlanda de Meléagro é que comega a ganhar forca, na antologia de Filipe, o elemento satirico, que pouco depois vai se desenvolver sobremaneira nas maos de Lucilio, cscreveado epigramas em grego,e de Marcil, ema latin." Mais frente, no capitulo 2, traremos mais detalhes sobre os principais poetas que praticaram 0 género em lingua grega. 1.2 Definicao de epigrama ‘Como termo literdrio, a acepgaio moderna de “epigrama’, en- contrada em dicionérios lexicais ou de critica literdria, é a de uma composi¢do curta ¢ concisa, em versos ¢ de temitica sa- tirica cu jocosa. Assim 0 entenderia um poeta novel que deci- disse se dedicar hoje ao género, compondo, sem diivida, como resultado, um texto poético curto e de tema. tom satitico-joco- sos, e empenhando-se para que as palavras, sobretudo as do fi- nal do poema, contivessem algo de engenhoso, espirituoso, ar- guto, malicioso, sarcéstico, mordaz, picante ou como quer que -21- Robson Tadeu Cesila chamemos aquele elemento de agudeza que esta presente na grande maioria dos exemplares do género através dos séculos. Essa definigao, porém, nao serviria plenamente para 0 ¢pi- grama antigo, nem mesmo funcionaria para todas as compo- siges do mais importante epigramatista individual da Antigui- dade, Marcial, que foi justamente quem influenciou a definigao moderna do género ao valorizar e privilegiar o elemento sa rico ea jocosidade e ao elevar & mais alta qualidade a elocucio ea técnica epigramaticas. Se predominam em seus 12 livros de temitica variada (ver a frente 4.2.4) os epigramas de cardter satirico (734, ou quase 63% do todo), também é verdade que os hd de tema nao satirico (os restantes 437, ou cerca de 37%);!* se a grande maioria ¢ breve (1.031, ou aproximadamente 88%), nao devemos nos esquecer de seus 140 epigramas longos (12%).!" ‘Mas voltaremos a Marcial mais a frente. Como vimos no item anterior, o epigrama era, inicialmente, mera inscrigdo, que foi evoluindo aos poucos, ganhando em poeticidade até se tomar, provavelmente nos primeiros tempos da época helenistica, um género poético de fato.'* Os temas, que na época do epigrama-inscrico eram restritos ¢ limitados pela fungao fiinebre ou votiva que ele possuia, multiplicam-se entio, havendo epigramas sobre praticamente qualquer temé- tica. O satirico é jé um desses temas, mas dos menos frequen- tes. Fle vai se tornar predominante no género epigramatico ape- nas mais tarde, com Catulo, jé cultivando o epigrama em latim, Lucilio, escrevendo em Roma epigramas em grego, na época de Nero, e, por fim, Marcial, na época dos imperadores Flavio. Porém, paralelamente a esses agora predominantes temas sa- tiricos, muitos outros temas continuarao tendo espaco cons deravel, como se pode perceber também pelas obras de Catulo ¢ Marcial. Quanto ao metro, se 0 epigrama-inscri¢io dos pri- -22- crswrlr ements Epigrama meiros tempos até podia ser em prosa, na sua fase helenistica como género estabelecido isso nao ser mais possivel: o epigra- ma é agora género poético, é poesia, é em versos. O metro tipi- co, como vimos no item anterior, vinha sendo desde ha muito © distico elegiaco, mas com uso de outros esquemas métricos também, cendrio que permanece entre os poetas helenisticos, apesar do critério que Meléagro privilegiaria ao compor sua antologia."*Jé a brevidade dos epigramas parece ser a caracteris- tica de mais facil assercao, j4 que é trago constante na evolucao do género (a ponto de permanecer nas definigdes modernas) ¢ caracterizando a esmagadora maioria dos epigramas antigos que nos chegaram. Temos, porém, alguns exemplares de maior extensio, tanto entre os epigramatistas gregos"” como, sobretu- do, em Marcial, os quais foram igualmente chamados por seus autores ou compiladores de “epigramas”, ainda que muitos de- les abordem justamente, em polémico tom de autodefesa, o di- reito ea conveniéncia de se escreverem epigramas destespei- tando ¢ “lei” da brevidade. Vé-se, pois, que a tarefa de defini 0 género em questo nao é simples, mas cremos que a definico seguinte seja a que me- hor se aplica ao epigrama antigo, latino ou grego, sobretudo a partir co periodo helenistico: epigrama é um poema curto e con- ciso, sobre qualquer tema, composto sobretudo ~ mas ndo sé ~ em distico elegiaco. Como dissemos, tal definigéo contempla o tipo predominante, 0 epigrama tipico, mas, como se sabe, “gé- nero” rauitas vezes é uma categoria instavel, mutavel, relativa, € no se deve ignorar o fato de que a literatura inova e se renova também quebrando regras. Comentemos no préximo item, mais detidamente, cada uma dessas trés caracteristicas do género na Antiguidade. -23- Robson Tadeu Cesila 1.3 Caracteristicas do epigrama 1.3.1 A brevidade e a concisio Como jé foi afirmado, a brevidade do epigrama tem a ver com suas oigens epigrdficas: nas lépides tumulares, nos pequenos objetos votivos, nos pedestais de estétuas etc., dispunha-se de ‘pouco espaco para a inscricéo do texto.'* A etimologia de nosso adjetivo “lapidar” oferece um bom paralelo para entendermos essa relagio: “lapidar” €0 estilo (0 texto, a frase, 0 discurso etc.) que é breve, econdmico e conciso como uma inscrigao em pe- dra, sobretudo em lépide tumular (“lépide” vem do substantivo latino lapis, genitivo lapidis, que significa “pedra’, em geral, ou, especificamente, a lépide de um témulo).”” ‘A curta extensio do epigrama obrigava, pois, a um estilo conciso e econémico, que dissesse o essencial em poucas pala- ‘vras ou em poucos versos. A linguagem era em grande medida formular, ou seja, utilizava muitas “formulas”, expressdes re- correntes e convencionais que, por serem de amplo conheci- mento de todos, eram adequadas para dizer muito com pouco (citem-se, no caso do epigrama fiinebre, expresses como “que ‘a terra lhe seja leve”, “aqui jaz..”, “tu, que por aqui passa, para € 18” etc.). Quando o epigrama comega a ganhar em poeticidade ea se transformar em género literario, essa concisio é reinter- pretada, ressignificada, enriquecida com novas nuances, sobre- tudo pelos poetas helenisticos, que tinham justamente na brevi- dade um de seus maiores valores estéticos (0 que explica a forte atragdo que o epigrama exerceu sobre eles). Busca-se, entdo, a perfei¢ao na forma breve, ou seja, ndo apenas a forma breve em si, mas o breve que é completo, que é uno, que é perfeito em sua brevidade: o epigrama deve, pois, em curto espaco, tratar a -24- Epigrama mensagem por completo, para que ao final da sua fruicio fique a sensagio de que nada mais precisa ser dito, de que nada ficou faltando, enfim, a sensagao de um todo conciso, uno e harmé- nico. £ a concisio como objetivo estético. Como se vé, a despeito da diversificagao tematica e das ino- vagGes na linguagem e nas imagens poéticas, a brevidade conti- nuard sendo a principal caracteristica do genero, confirmada, como vimos em 1.1, pelas antologias de Meléagro de Gadara e de Filipe de Tessal6nica, que terdo reforgado, em seus leitores e nos cultores subsequentes do género, a convicgao de que o epi- grama tinha de ser curto, Eo que ocorreré também mais tarde na obra de Marcial (se- gunda metade do século I d.C.), em que predominam larga- mente os epigramas curtos.”" Encontraremos, porém, poemas em que esse autor se defende de criticas que parece ter recebido por haver escrito também exemplares longos. De fato, ele os fez, chegando a compor 20 epigramas com mais de 24 versos,2? uum deles (111.58) atingindo a radical extensdo de 51 versos. Além disso, outros 120, com entre 13 ¢ 23 versos, poderiam, segundo © critério abracado por Dezotti, ser considerados longos.”* (Os epigramas em que Marcial se defende por desrespeitar a “lei” da brevidade podem ser classificados como epigramas me- tapoéticos ou metaepigramas, na medida em que 0 seu contet- do € autorreferencial, ou seja, trata justamente da arte ou ativi- dade de escrever epigramas.* A metapoesia é, alids, uma das principais vertentes temdticas da obra desse epigramatista, 0 que denota um poeta esteticamente ativo e consciente de sua importancia literéria. Além disso, os metapoemas que temati- zam a brevidade nos permitem examinar o cuidado estético do Poeta né propria organizacao de seus livros, uma vez que é muito comum que tais poemas venham, no volume, ime -25- Robson Tadeu Cesila mente depois de um epigrama extenso, como se o epigrama- tista se apressasse em justificar uma peca que certamente inspi- raria a desaprovagio dos criticos. Vejamos alguns exemplos. Logo apés 0 longo epigrama 1.109, que descreve em 23 versos a cadelinha de estimagao de ‘um certo Publio, vem o epigrama 110, formado por um s6 dis- tico, em que o poeta se defende contra 0 poeta e critico Veloz Scribere me quereris, Velox, epigrammata longa. Ipse nihil scribis: tu breuiora facis.* "Tu criticas, Veloz, meus epigramas longos, 10 mais curtos. mas nada escreves. E, Os teus Veloz se queixa de Marcial escrever epigramas longos, in- sinuando talvez que essa caracteristica é imprépria ao genero (v. 1). Mas em vez de rebater diretamente ou negar a acusagio, o epigramatista prefere usar da ironia para desqualificar a opi- nido do critico: como Veloz nada escreve, ele, Marcial, tem de admitir que os epigramas de seu critico séo, de fato, muito mais curtos (v. 2). Pode-se interpretar, inclusive, que o epigramatista esti a sugerir sutilmente que Veloz nada escreve porque no tem talento para fazé-lo, Note-se que o proprio nome do critico Velox, do original, significa “veloz”, € escolhido a propésito: “répido”, sendo nome adequado a alguém que se queixa de epi- gramas longos, que nao possam ser lidos velozmente. Outro exemplo: 0 poema VL64, no qual um poeta que teria escrito versos contra Marcial é violentamente atacado, com- pe-se de 32 hexdmetros. A ele se segue o poema VI.65, em que se defende que é costume nav sé a composicao de epigramas de longa extensio como também a utilizagao de versos hexéme- tros nesse tipo de poesia: -26- ‘ i t Epigrama “Hexametris epigramma facis” scio dicere Tuccam. Tucca, solet fieri, denique, Tucca, licet. “Sed tamen hoc longum est.” Solet hoc quoque, Tucca, licetque: si breuiora probas, disticha sola legas. Conueniat nobis ut fas epigrammata longa 5 sit transire tibi,scribere, Tucca, mihi. “Epigrama em hexametro fazes!”, diz Tuca. E normal, Tuca, assim fazer, e é licito. “Mas este longo!” Tuca, é normal também, licito: se gostas dos mais breves, lé s6 0s disticos. Fagamos, Tuca, assim: os epigramas longos 5 pular é teu direito, e os fazer, meu. Diante da insisténcia do personagem Tuca em encontrar um motivo para criticar os poemas de Marcial, este Ihe propoe ‘uma espécie de pacto: se Tuca quiser, pode ler somente os epi- gramas curtos, mas deve deixar de criticar as composigées lon- gas, como a imediatamente anterior (V1.64), j& que, segundo o poeta, também é possivel e é mesmo normal compor epigramas com esa caracteristica. Sobre o metro heximetro em epigra- ‘mas, falaremos mais adiante (cf. o préximo item, 1.3.2). Apenas mais um caso. Logo apés X.58, que possui 14 versos, ‘vem um epigrama (X.59) em que, dirigindo-se ao leitor que s6 Ié 0s epigramas breves, escreve 0 poeta: Consumpta est uno si lemmate pagina, transis, et breuiora tibi, non meliora placent. Diues et ex omni posita est instructa macello cena tibi, sed te mattea sola iuuat. Non opus est nobis nimium lectore guloso; 5 hunc uolo, non fiat qui sine pane satur. Robson Tadeu Cesila Se o meu poema ocupou toda a folha, nao lés, 08 mais breves te agradam, nao os bons. Sirvo um rico jantar, provido dos mercados todos, mas gostas s6 das iguarias! Eu no preciso de um leitor gourmet, ¢ sim, 5 daquele que sem pio nao se sacia. Marcial esté a dizer, utilizando-se de uma analogia entre li- teratura e alimentos recorrente em sua obra, que o leitor que seus livros pressupdem é aquele que Ié o livro todo (aquele que se deleita com o rico jantar, preparado com todos os ingredientes do mercado) ¢ nao o que s6 Ié os poemas breves (as iguarias). ‘Assim, afirma querer o leitor que aceita e lé também os epigra- mas longos, alimento forte e substancioso como 0 pao, ou seja, o leitor que Ié todo e qualquer poema do livro, independente- mente de sua qualidade, tema, metro ou tamanho. Quanto aos outros metaepigramas que abordam a questio da brevidade, mencionemo-los apenas: 11.77, 11.83 (que vem a seguir a um epigrama de 33 versos) e VIIL.29 (depois de VIIL.28, dde 22 versos). 1.77 6 alids, um caso interessante, pois a sua dispo- sigio no livro obedece a um esquema diferente dos outros que citamos: ele nao vem depois de um longo epigrama para jus- tificar-Ihe o tamanho; 20 contrario, vem depois de um curto. No entanto, é seguido por cinco epigramas curtos, de um s6 distico (11.78-82), algo que, segundo Wolff, nao ocorre em parte alguma dos livros I-XII.% O fato pode indicar a tentativa do poeta de mostrar sua versatilidade, compondo epigramas de qualidade com qualquer extensio, e de provar que, quando com poe epigramas longos ¢ quando ataca os criticos dos epigramas Jongos, nao o faz por nao saber compor bem os breves.” 28 Loses sone me : Epigrama © que se conclui de todos os epigramas até aqui analisados é que o préprio fato de Marcial ter sentido a necessidade de jus- tificar seus epigramas longos, defendendo-se, ainda que jocosa e desdeahosamente, das criticas que por esse motivo lhe eram feitas, demonstra que a brevidade era de fato “lei” do género, era uma caracteristica que fazia parte do conjunto das expecta- tivas de leitor ou ouvinte quando se deparava com textos clas- sificades, por seus autores, como “epigramas”. Quanto a isso, também é significativo o fato de que mesmo um poeta empe- nhado em tais polémicas nao tenha produzido mais que 140 epigramas longos, niimero pequeno (9% da obra), se compara- do a seus 1.418 epigramas curtos (aqui inclufdos os poemas do Liber Spectaculorum, de Xenia e de Apophoreta). 1.3.2 O metro predominante - distico elegiaco - e a diversi- dade métrica Como vimos, 0 metro tipico do epigrama foi, desde muito cedo ne Grécia, 0 distico elegiaco. Nas coletaneas de Meléagro de Filipe, mais de 95% das pegas antologizadas usam esse me- tro." Trata-se de uma estrofe composta por um hexametro se- guido de um pentimetro, ambos de base datilica, ou seja, em que o pé chamado datilo (uma silaba longa seguida de duas si- labas breves) é obrigatério em determinada posigio. A métrica das pocsias grega e latina antigas, importa lembrar, era baseada na sucesso € no arranjo de silabas longas ¢ silabas breves em unidades maiores chamadas “pés”, os quais, por sua vez, com- punham os diversos tipos de esquemas métricos. Vejamos primeiramente o esquema do hexametro datilico, que eratambém o metro das poesias épicas grega e latina. Com- pée-se, como o nome sugere, por seis pés (do gregoéEdperpov, -29- Robson Tadeu Cesila hexdmetron, “de seis medidas”, “de seis pés": EE, hex; “seis”, uérpov, métron, “pé, medida”). Seus quatro primeitos pés Po- dem ser datilos ou espondeus (pé composto por duas silabas Jongas); 0 quinto pé deve, obrigatoriamente, com rarissimas excesdes, ser um datilo; ¢ 0 sexto pé ter duas silabas, sendo a primeira longa e a segunda indiferente (breve ou longa), 0 que faz desse tiltimo pé um espondeu (duas longas) ou um troquew (ama longa seguida de uma breve). Eis entio 0 esquema do heximetro datilico, em que o simbolo * indica a silaba breve € alonga: app Ry epee Quanto ao pentmetro, também chamado de hexametro sincopado, era formado por cinco pés (wévTe, pent, “cinco”), na seguinte ordem: dois datilos (que poderiam ser trocados por espondeus), uma silaba longa antecedendo uma cesura (pausa), mais dois datilos obrigatorios e uma silaba final, indiferente: ‘Assim, 0 distico elegiaco apresentava o seguinte esquema métrico: ey > (hexdmetro) mor (pentametro) ced (ed Thad Como estrofe que era, 0 distico elegiaco era visto, métrica, sintitica e semanticamente, como uma unidade, capaz de en- 30- Bpigrama cerrar concisamente o todo de um pensamento ou ideia, inde- pendentemente do mimero de disticos que compunham 0 epi- grama. Nada impedia, evidentemente, que uma imagem, ideia, pensamento ou argumento ultrapassasse os limites do distico. ‘Mas o fato de ser ele uma unidade em si em muito favorecia a concisio e a economia do género epigramitico, cujos exempla- res muitas vezes eram compostos de um tinico distico elegiaco, como ocorre em 547 epigramas de Marcial e em intimeros da Antologia Grega (sobre esta, ver 2.1). O metro elegiaco como predominante no epigrama coloca a questio da relacio e da diferenciacio desse género com outra forma postica antiga, que teve grande desenvolvimento em Ro- ma, e para a qual o distico elegiaco era o metro obrigatério. Es- tamos falando da elegia. A primeira diferenga é justamente esta: a elegia devia ser escrita, obrigatoriamente, em disticos elegia- cos, metro ao qual, inclusive, deve ela seu nome; jé 0 epigrama tem nesse 0 seu metro preferencial e predominante, mas néo exclusivo, nunca tendo deixado de lado outros esquemas métri- cos, como jé vimos afirmando. Prova disso é o livro XII da An- tologia Grega, que retine epigramas compostos em diferentes metros que nao 0 elegiaco. Ademais, em Roma, Catulo e Mar- cial utilizaram, em consideravel nimero de epigramas, 0 hen- decassilabo falécio (40 ¢ 238 epigramas, respectivamente) € 0 coliambo, também chamado trimetro idmbico escazonte (8 €75 epigrarnas, respectivamente).” Horicio, na Arte Poética, na célebre passagem (vv. 73-92) em que associa a cada género um metro ¢ uma matéria, apro- xima os géneros da elegia ¢ do epigrama quanto a sua origem, a0 dizer que o distico elegiaco primeiramente foi usado para expressar 0 lamento, depois, o voto atendido." O “lamento” remete clegia, associada, por sua etimologia (ainda que con- -31- Robson Tadeu Cesila troversa), a0 contexto de luto, funeral, mas lembremos que também o epigrama, em sua origem, era ligado a esse contexto, ja que um de seus tipos mais comuns era justamente o epigra- ‘ma finebre, J4 “voto atendido” pode remeter ao epigrama voti- vo, outro tipo igualmente comum nos primérdios do género epigramatico. Como observa Oliva Neto," Horicio pode estar ainda fazendo referencia, com o adjetivo “ténues” (exiguos) aplicado a “elegias” (elegos), & matéria amorosa que tinha gran- de voga na elegia romana de sua época. Hordcio esta tratando da longinqua origem comum dos dois géneros, mas o fato é que na época desse poeta, ¢ muito antes na elegia grega arcaica e no epigrama helenistico, tanto um quanto 0 outro género poderiam tratar de uma enorme gama de temas.” Sendo assim, se a multiplicidade de temas era co- mum a ambos os géneros e se o metro da elegia era também 0 mais usado no epigrama, como, entéo, diferenciar uma elegia de um epigrama composto em disticos elegiacos? Na verdade, a resposta a esse problema nao é simples, mas a distingdo passa- ria de alguma forma pela questio da brevidade, e considerar- -se-ia um epigrama se 0 exemplar fosse composto de alguns poucos disticos, ¢ uma elegia quando tivesse maior extensao. Essa regra, porém, ainda que util, sé funciona em parte, pois no abarcaria um grande niimero de pecas mais extensas que foram chamadas, por seus proprio autores, de “epigramas”, € assim recebidas por seus leitores e ouvintes, como é 0 caso de 65 epigramas de Marcial, em disticos elegiacos, que tem mais de 12 versos (ou mais que seis disticos).” Por outro lado, existem ele- gias mais curtas, de forma que em Catulo, por exemplo, como lembra Oliva Neto, “nao é sempre facil saber se [um texto em disticos elegiacos] é um longo epigrama ou uma elegia breve”. 32 ean SO Nt gan a Fpigrama Como conclusio a este t6pico, podemos simplesmente rea- firmar que 0 distico elegiaco ¢ o metro preferencial do epigra- ‘ma, mas que outros esquemas também foram usados, de forma que nio é exagero falar em diversidade métrica no genero, apesar da enorme desproporgio entre o metro mais usado e os demais* Duas razdes podem ajudar a explicar esse uso de uma quan- tidade maior de esquemas métricos. A primeira é 0 préprio de- sejo de um poeta de inovar, experimentando metros novos ou incomns e ultrapassando certos “limites” do género, com ob- jetivos estéticos. A segunda é o principio da uariatio (“varia- 40”) aplicado a organizagao interna dos livros, principio esse que, se nao se aplica a todas as antologias de epigramas, que ti- nham muitas vezes a homogeneidade como critério, costumava ser seguido, porém, quando os epigramas eram reunidos e or- ganizados em volumes individuais de um mesmo autor, quer por ele proprio, quer por um organizador externo. Explicando melhor: um livro composto de poemas em um sé metro certa mente cansaria e entediaria o leitor que os fruisse na forma es- crita, dai a insergao estratégica de pegas em metros diferentes no decerrer do volume. Esse mesmo principio da uariatio go- vernard a disposigao dos epigramas no livro quanto a outros aspectos, como tema, extensio e elocugio (linguagem), como teremos chance de exemplificar, pela obra de Marcial, mais & frente: fazia-se com que em um livro nao houvesse uma se- quéncia muito grande de epigramas com 0 mesmo tema, 0 mesmo tipo de linguagem ou a mesma extensio, para nao can- sar 0 leitor.”” A preocupacio com a uariatio acima descrita é mais ur exemplo ~ junto do posicionamento estratégico dos ‘metapoemas sobre a brevidade de que tratamos no item ante- rior ~ do cuidado estético dispensado na organizacdo interna =33-

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