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4 ANTIGONA E OS YANOMAMI: O TECIDO i CIAL FRENTE A ENCRUZILHADA DO LUTO Fabiano Veliq! Paula Magalhaes? O esptrito que se forma lentamente, tranquilamente, em diregdo a sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edificio de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido sao os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronasse gradual, que ndo alterava 4a fisionomia do todo, 6 interrompido pelo sol nascente, que revela num clardo a imagem do mundo nova. Hegel Ble esté morto e eu estou viva no tempo dos mortos, sendo 0 tempo dos mortos o tempo em que estar vivo é uma forma 1 Doutor em Psicandlise pela Pontificia Universidade Catdlica de Minas Gerais. Pés-doutorado em Psicandlise pela Pontificia Universidade Catdlica de Minas Gerais. Pés-doutorado em Filosofia pela Faculdade Jesuita de Belo Eo tizonte. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Pontificia Universidade Catélica de Minas Gerais. : a Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. al 193 > ando Ribeiro, Luciana Piment, Camatta Moreira ¢ Rubiio, Femando # André Rubio, Ferny deestar mort, nés estamos Ors NESE Moment, = is iio podemos ser de todos 05. eis que somes, que sj e estar yg Jamaica Kineai 7 4. Introdugao Falar sobre qualquer assunto que envolva Hegel ja se Mostry uma tarefa extremamente ousada dada 0 excesso de textos, estudos, teses e dissertacdes que se produziram sobre 0 importantissimo filgsof, alemio. No entanto, como qualquer classico, 0S assuntos sempre podem, ser revisitados e reinterpretados & luz de novas teorias € formulacie, e & este um dos motivos pelos quais esse texto ganha vida. “E precisy recolher as flores / de que rezam velhos autores”, nas palavras de Carlos Drummond de Andrade. © nosso objetivo nesse texto & analisar como © conceito de “conceito” formulado por Hegel no prefécio da Fenomenologia do esprits pode ser extremamente proficuo para pensar 0 debate entre Direito ¢ Literatura, tema este to caro ao debate contemporaneo. Hegel em grande medida ¢ muito lembrado pelos estudiosos da area do direito por conta da sua famosa obra Principios da Filosofia do Direito (Grundlinien der Philosophie des Rechts, em alemao, no original), publicada em 1820, Por mais interessante que seja a nogao de direito em Hegel, o nosso objetivo neste trabalho é seguir outra via para propor o didlogo entre Filosofa, Direito e Literatura. Como podemos ler no Editorial da revista Sintese de 1981, em comemoragao aos 150 anos morte de Hegel, A “liberdade’ enfim, designa a mediagio que poe em jog? aracionalidade fundamental da histéria como realizaci? efetiva da Idéia da liberdade, que Hegel denomina Dirt. 3 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema da necessidade. in: Sett mento do mundo. 1* edicéo, Rio de Janci jane es Brasileiros, 4, 2008, p. 13, Janeiro, Colecdo Folha Grandes Escrito! 194 Direito ¢ Literatura: O sentimento do mundo Essa mediacao sistemidtica sustenta a arquitetura do texto na “Filosofia do Espirito objetivo” (Enciclopédia das Ciéncias Filoséficas, p. 11, 2a. sec.) e nas “Linhas fundamentais de uma Filosofia do Direito: A articulacio dialética une aqui os extremos da particularidade das situages histéricas (mediagao objetiva) ¢ da singularidade dos atores edas agdese, antes de mais nada, dessa ago histérica por exceléncia que é pensar ahistéria ou refletia no conceito (mediacio subjetiva). So as estruturas conceptuais primeiras da Idéia da histéria que Hegel tenta construir através da mediacio sistemética, segundo os trés momentos fundamentais nos quais se desdobra a filosofia do Espitito objetivo ou do Direito: a possessio do mundo (Direito abstrato), a consciéncia- de-si sob 0 imperativo do dever-ser (Moralidade), e 0 reconhecimento do outro nas formas de ser-em-comum que asseguram a realizagdo efetiva da liberdade: familia, sociedade civil e Estado (Vida ética)’, Num primeiro momento, focaremos nossa atencao na articulagéo entre singular ¢ universal, articulacao essa formadora das manifestacdes mais elevadas do espirito, a saber: a filosofia, a arte e a religido. Essa ideia também é fundamental para a constitui¢ao da ideia de liberdade, que Hegel. denomina Direito. Em outras palavras, nao ha Direito se nao hi filosofia, arte ereligio, A fim de que nao afundemos em opinides rasas e simplificagdes em demasia, é necessario tentar dar conta de uma anilise mais complexa, que conjugue varias partes. “Como num trabalho de historiador ou de um pintor, hd maneiras de, ao fixar num ponto o foco de nossa visio, nem por isso perder de vista o que se encontra em torno”*. Especificamente na literatura, abordaremos a tragédia grega Antigona, de Séfocles, a qual representa, dentre outras significagoes que exploraremos no corpo do texto, 0 impedimento de enterrar dignamente os nossos mortos. Para complementar esta abordagem 4 Hegel: A Escritura da hist6ria, Revista Sintese. Belo Horizonte, v. 8 n- 23, 1981, p. 5 SERRA, Alice Mara; VIEIRA, Leonardo Alves. A dialética do tempo e espaco na filosofia de Hegel: (Viena: 1801-1807). 2003. Dissertagao (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Filosofia, p. 16. 195 —” Fernando Armando Ribeir ¢ Nelson Camatta Morel André Rubio, literéria do luto, utilizamos também © ie aaa os bg i ami, mortos num hospital publico de Roraima, .) indigenas Yanmar MOV 5 devolvidos & familia. Ag, "8 corpes erspectiva da forga da vyioléncia da nao-ritualizagio ae & partir da p i retendemos entrelagar uma relagio com 0 coy que partiram G¥° ToviD-19, que “esterilia 0s abragos”?, san almente mortal nos barra de reunirmocnog Jo as com quem moramos, até mesmo para Re tir da luz trazida pela tragédia sofocliana eg, 5 examinar o que a ndo-cerimonializagig ny consequéncia para © lago social, convocan, to, mento pede. a 0 da pandemia que o virus potenci coutras pessoas que 0 luto, Destarte, a par" Yanomami, pretendemo: simbolizar e trazer como clareza politico-filos6fica que o mo! 2. O conceito de “conceito” no ptefacio da Feng. maenologia do espirito O prefacio da Fenomenologia do Espirito é um texto bastante sui generis, pois é escrito por Hegel de ‘maneira posterior a sua obra e longe de ser uma apresentacao do livro, se mostra como uma articulagao extre- mamente densa de sua proposta em Jinhas mais gerais. Umas das articu- lagdes importantes que 0 autor faz no prefacio é trazer a tona a nogio te conceito como algo que perpassaré toda a Fenomenologia. Indo diretamente ao ponto, o conceito nada mais é do queo se objetiva no mundo, sendo este o resultado dt as transformagGes internas peles dar com os acontecimet: Je modo a tornar-se cade um falhar melhor vir-a-ser imanente qu rememoragao da consciéncia. Ou seja, quais o sujeito passa sao fruto do processo de li tos do pasado e dar-Ihes uma ressignificacao, d vex mais rico e complexo, Em palavras resumidas, 6 BRUM, Eliane. Maes Yanomami imploram pelos corpos de seus bebés Pafs, Sio Paulo, 24 de junho de 2020, Pandemia de Coronavirus. 7 ANDRADE, Carlos Drummond de. Congresso internacion In; Sentimento do mundo. 1* edicao, Rio de Janeiro, Cole¢ao Folha Gr critores Brasileiros, v. 4, 2008, p. 27. ral do me andes Es 196 a Direito ¢ Literatura: O sentimento do mundo yportante notar também a sagacidade de Hegel em iicas que © submetiam a um idealismo desenfreado: nae ge que tal Process interno deve se objetivar ¢ eae da- ns undo. Aquilo que é concreto € aquilo que con-cresce, ss de cresce junto a0 mundo, uma vez que ambos estdo em e se faze ja, 0 en gente relacao E exatamente aqui que a dimensio teérico. a em pe expressio no pensamento hegeliano. O conceito en: a tica g000ir ela dialética se evidencia nas diversas reed nto efe- si ea sociedade de maneirairtedutivel. Como afrma pep 0 conhecimento cultivado ¢ completo, é a verdade que se ceito € Um Jveu até sua forma genuina, e é capaz de sera propriedade de toda cont desenvo” asazfo. con CO conceito enquanto construsao da razdo substitui a coisa? mes- ra 80 proprio objeto a que nos teferimos, da vida a este, permitindo tle sejaressignificado para o sujeito e para o mundo - com a ressalva dequeo processo conceituante nao se da via acimulo de conhecimento, enem 4 rememoracao é um justapor passivo de um depois 0 outro. O conceito deve ser produtivo, criativo a partir de seu passado. fi dessa forma que podemos entender a importancia da nogio ara nds aqui. Na medida em que o conceito substitui a na base da forma como nos relacionamos com 0 mundo, Diante disso fica um pouco mais claro entender a importancia do con- ceito enquanto palavra que transforma, palavra que traz vida e ressigni- ficado para as coisas. Novamente pontua Lima Vaz na apresentagao da Fenomenologia, “O resultado da dialética do jogo reciproco das forcas quefaz surgir 0 conceito de infinidade como distingao no seio do que 4idéntico - ou como emergéncia da vida - desenha, desta sorte, uma nova figura da consciéncia””. sciente-de-si®. de conceito P: coisa, ele estd $ HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do esprito. * ed. tev, Petrépolis, RJ: Vozes; Braganca Paulista, SP: Universidade Sao Fr 2019, §70 e §71, p. 66. 9 Ch capitulo 1. ‘A certeza sensivel ou: 0 Isto ou o ‘Visat”. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Fenomenologia do espirito. ed. rev. Petropolis RJ Mos Sagan Paulista, SP: Universidade io Francisco, 2019. ; LIMA VAZ, Henrique Claudio de. A significagao da Fenomenologia do rancisco, 197 Jo Ribeiro, Luciana Pim « Rubio, Fernando Armand ; ty Andeé Rubio Fernando Mr Moreira £ movimento dialético que Hegel situarg to no a a desenvolvimento do mundo, da str ae iia < eae como ° ee tdo bet é ee a uma verdade,¢ eee senda é-verdade de um saber. Segundo 0 fildsofo, , © comeso da cultura edo esforgo Para emergi da da vida substancial deve consistir sempre em, conhecimentos de principios € pontos de vista urge ‘Trata-se inicialmente de um esforg0 para ch ; pensamento da Coisa em geral e também para a Ja ou refuté-la com razbes, captando a plenitude = e rica segundo suas determinidades, sabendo gg informagio ordenada eum juizosérioaseurespeita comego da cultara deve, desde logo dar lgard sens vida plena que se adentra na experiéncia da Cosa me Quando enfim 0 rigor do conceito tiver penetra imei, profundeza da Coisa, entao tal conhecimento ¢ apreciag, terdo na conversa o lugar que lhes corresponde.” Para além da sua fungao meramente organizacional, a cults 6s valores de tal cultura séo por isso um desenvolver da marcha é consciéncia que se modifica na historia. Assim que podemos percéer em que medida todas as acdes dos homens dentro de sua cultura s sempre marcadas pelo espirito do tempo ou espirito de agora (Zeit) €m que se insere, no entanto hé algo que esta sempre em um “para alén! do Zeitgeist e perpassa o homem em sua totalidade, espirito, In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espirito. ged. rev, Petrépolis, RJ: Vozes; Braganca Paulista, SP: Universidade Sao Francs 2019, p. 16. u Notemos que a palavra Bildung, em alemao, pode servir tanto pa educacao quanto para formacéo cultural. Aqui, para os nossos propésitos tom emos ambos os sentidos como sindnimos, 1 pengt BGP Georg Wilhelm Friedrich, Fenomenologia do esp. 8 rev. Petrépolis, RJ: Vues; Braganca Patilisa, SP: Universidade Sao oo 2019, §4, p. 25, 198 Direito Literatura: O sentimento do mundo. Neste sentido a prépria literatura pany Hegel dé a ela na sua fenomenologia o lugar de manifestacéo do Espirito. No caminho para o objetivo ee “o conceito que-veio-a-ser conceito simples do todo”, cane lugar central e sem ela 0 espirito nao alcanga o seu objet énos permitido entender a arte (e consequentemente Pode ser vista dessa > @ arte ocupa um tivo. Dessa forma, 3 ‘ : a literatura com expressao de arte nao escapa disso) como um momento necessério ae ‘ocaminho em dire¢ao ao saber absoluto. Introduzindo a dialética em anélise da arte, 0 autor afirma que quanto mais abstrato, mais eee a pensamento, & portanto, mais distante do sensivel, melhor ela é Tanto mais filosdfico, mais potente é o saber para este autor, uma vez que ele & mais suscetivel As fluidificacées realizadas pelo pensamento dialético. Dito isso, podemos dizer, no tempo-espaco em que nos inserimos, que ha uma fratura ou um bloqueio advindo de intimeras forcas, de modo que o ‘conceito’ hegeliano (referimo-nos ao seu contetido) é barrado, A articulacao singular-universal (convivéncia entre o individuo easociedade, por exemplo) é produtiva na medida em que ambos lidam um com 0 outro sabendo preservar suas diferencas, sem que haja uma repressio tal que impeca o vit-a-ser. Tal articulagéo esta perdurando a duras penas. A auséncia de sensibilidade com o social poderia ser sintetizada pela primeira estrofe do poema Os ombros suportam o mundo: Chega um tempo em que nao se diz mais: meu Deus. “Tempo de absoluta depuracio. ‘Tempo em que nao se diz, mais: meu amor. Porque o amor resultou inuitil. Eos olhos nao choram. Eas mios tecem apenas o rude trabalho. Eo coragao esta seco"* 3 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espirito. 9 ed. rev. Petrépolis, RJ: Vozes; Braganca Paulista, SP: Universidade Séo Francisco, 2019, $12, p. 29. 1g ANDRADE, Carlos Drummond de. Os ombros suportam 0 mundo. In: Sentimento do mundo, 14 edigio, Rio de Janeiro, Colegio Folha Grandes Escrito- es Brasileiros, v, 4, 2008, p. 51. 199 > | André Rubio, Fernando ‘Armando Ribeito, Luciana Piment, e¢ Nelson Camatta Moreira Tendo como base, entao, @ situagao social Presente, emp, mos 0 esforco de fazer dialogar © conceito ee © 0 tema rt cuja obra paradigmatica na literatura é a tragédia ntigona, de Se by, Pois, acreditamos, ainda, que ¢ dever do leitor fazer 0 exercigg a sua realidade, como um modo de criagéo ¢ nao de mera repes tarefa fundamental da filosofia, como disse Roberto Gomes, ¢ = palmo diante do nariz”!’, Ou como propée Hegg “enxergar um © bem-conhecido em geral, justamente por x conhecido, nao é reconhecido. E © modo mais i sganar-seeenganar 05 OU: PESSUPOr No con , algo como jé conhecido ¢ deixé-lo como est, Yq ddesses, com todo o vaivem de palavras, nio sa dy ‘sem saber como isso lhe sucede'*. bey lag, ‘B dessa forma que compreendemos a importincia de um como ele para o didlogo com a literatura, uma vez que nos apo © exame daquilo que achamos mais proximo a nés, e 20 fazermone, clhamos diferentes para o que aparentemente familiar, e em ra medida é 0 que nos propomos nesse texto. 3 15 A fim de esmiucar melhor essa relacdo entre a néo-repeti¢do docoah cimento, sobretudo para a realidade brasileira, referente ao capitalismo petit peer 0 seguinte artigo: GARCIA, Luis Flip. dest ae fupnigui 0 pensamento vivo diante do conceto ett . — ‘lia, v. 41, n. 4, pp. 53-74, out./dez. 2018. L, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do esprit. *# rev. Petrépolis, RJ: Vozes; : enologa do 2019, Spagna Pals, SP: Unive to Fans 200 Dircito ¢ Literatura: © sentiments do mundi 0 do mundo 3, Antigona, Yanomamij ¢ q ‘N40-)ritualizacs nortos (Mio-)ritualizacao dos Ha muito tem-se a ideia de i (Ue © modo como u i vive o Iuto é um pilar fundamental QUE a constitui, “Ess ce ae da vida social. Os gregos sabem desde A ti a eee : £ ntigona, ie a ja 0 ritual de meméria, dos seus ch a — expuls egue afalle. A questo que est lembrar afetivamente dos olicamente na vida social - lade. Desse modo, como em fazemos Perguntas ao passado - Se de fazer perguntas especificas mais sobreviver””, afirma categoricamente §, ‘em jogo € a questao da meméria, de poder queridos que ja se foram e preserva-los simb ato este fundamental para a vida em comunid: qualquer pesquisa das ciéncias humanas, mas nao quaisquer perguntas; pois trata-: quenos norteiem - e mergulharmos nele, coma esperanca de que quando retornarmos a superficie, carregaremos conosco Tespostas satisfatérias e outras perguntas mais, de sorte que continuemos a nadar, Antes de adentrarmo-nos na obra em especifico, é preciso dizer que a tragédia é um género literdrio muito precioso e sempre revisitado, nao sem razdo. Trata do conflito do ser humano com 0 seu destino, coisa sobre a qual tanto pensamos e que é¢ sempre motivo de angtistia. O conflito se dé fundamentalmente pelo encontro desditoso do nao-saber do sujeito com algum acontecimento arruinador, quase sempre este sendo causador de perda de status social. O que se passa na obra Antigona’*, escrita por Séfocles, por volta de 442 a.C,, éa trama de Antigona, filha do rei Edipo, aquele amaldigoa- do pelos deuses e que perfurou os préprios olhos ao ter descoberto que a mulher com quem casou e teve filhos era sua mae, ao mesmo tempo que matou seu pai. Antigona tem o direito de enterrar seu irmao falecido em uma guerra negado, e sofre por nao poder viver um luto digno, dada a Punicéo do rei Creonte da cidade de Tebas, lugar da histéria em questdo, 17 AMARAL, Marina. Safatle: “Bolsonaro se acha capaz de esconder cor- os", Agéncia Publica, Sao Paulo, 6 de abril de 2020. f 18 es SOFOCIES J. B. DE MELLO E SOUZA. Antigona. E-Books Brasil, Clissicos Jackson, vol. XXII. 2005. 201 reanando Armando Ribeiro, Lacing py, : “André Rubio, ‘¢ Nelson Camatta Moreira en, emente com 0 DOSSO atual ©SPa¢0-tem me So irma Po, cidade que, coincident Se eae : os jada pela peste. Sua luta é P sola me gt ri cam a passagem do corpo do ™undg ot costumes aPtBM os ela desobedece as eis do rt trang eg thy: ao mee ‘ ee tenciada a morte € enterrada publicamente, my, este ato. “Pu nig, & ig be tum passo atrés em su que mat : 38 nig, 1a decisdo, tampouco se arrepende, ey rrajosa e questionadora ter sido enterra, ossui a visio dos sentidos,& cago, mai nte, vem dar um pressé, fe ser feita: Apés a mulher co! irésias, o sibio que nao possui a ca dentro, por isso é um a aaa ia apontando que a justica divina. ha O erro é comum entre os homens: mas quando &sensato comete uma falta, é feliz quando ee mal que praticou, e néo permanece renitente, A tei : produzaimpredénca, Cede dante damseade ga nfo profanes um cadaver! De que te serviré mau ® segunda ver, a quem ja ndo vive? (..) Que pode wk mais oportuno do que um conselho realizayele, Nesta passagem podemos ver a importncia central de muy para a realidade social. A nao-sepultura é lida como um grande deny peito aos costumes da sociedade. E uma segunda morte, como aponis Tirésias, o que intensifica duplamente o trauma do luto. Este tema é cay a Freud, que em Lufo ¢ Melancolia®, nos afirma que 0 que ests emp na operacio psiquica de aceitar a morte ndo é necessariamente a cag do sujeito ou a facticidade da vida ou morte depois da vida terrena, ms sim a questo do sentido, do significado do falecido para os que ican ‘Um exemplo bizarro (0 adjetivo nao é sem fundamento) emit emblematico da problematica do luto na atual pandemia de COVID-é 4 situacdo de trés bebés indigenas Yanomami desaparecidos apés eet 19 SOFOCLES; J. B. DE MELLO E SOUZA. Antigona. E-Books Bs! Classicos Jackson, vol. XXIL. 2008, p. 63. a 20 _ FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: Obras completas de Sam Freud. ESB Vol. 12 (1917/2006). Pp. 140-153, 8 a1 BRUM, Eliane. Maes Yanomami imploram ‘pelos corpos dese tt Pals, Sao Paulo, 24 de junho de 2020, Pandemia de Coronavirus. 202 Direito ¢ Liternturn: O sentimento do mundo contd08 doenga em um hospital na capital de Roraima, Boa Vista, LA morreram ¢ seus corpos desapareceram, provavelmente en no cemitério da cidade, As mies imploram em desesp eld ws fl08. Esse caso é de uma extrema violencia, que nio ¢ de re seus lvvegada desde a chegada das caravelas portuguesa, Estas nfo sie gars do Bras 0 tvs dso, so verdes ‘encobridorae tiase dos modos de vida dos diversos povos que aqui habitavam - histor 5 ifm, como dz-de modo preciso ane rum, foralista do Pa 8 torrados Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazbnica porque seu filho tem sintomas de uma doenga, a pneumonia, transmitida pelos primeitos brancos que dizimaram parte da populagio Yanomami, no século passado, é uma violéncia, Passar deste mundo para o espago de um hospital, ¢ de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violéncia. Ter seu bebé contaminado por uma segunda doenga, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipétese, é mais uma violéncia. Eentao ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho”, Esse é um relato que provoca, ou pelo menos deveria provocar, raiva e tristeza agudas. A ferocidade da situagéo ¢ ainda maior, na medida em que enterrar um corpo Yanomami é arrancé-lo do mundo dos humanos. A dor para as pessoas desse povo ¢ incompreensivel € incomensurdvel, pois 0 corpo para eles nao & nunca enterrado; hd um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade, ‘A-comecar pelo fato de que a nogio de ‘individuo, aquele que néo se divide, é incompreensivel para os povos origindrios, Cada um dos seres humanos pertencentes a esse grupo se vé como um sujeito coleti como porta-voz de sua comunidade e que se entrelaga com varias dimensdes do mundo visiveis ¢ invisiveis. Seus rituais flinebres possuem ma complexidade incrivel, seguida de varios pasos. —_—_— 2 CEDUSSEL, Enrique, 1492, Oencobrimento do Outro: origem do “mito da Modernidade” Tradugao de Jaime A. Clasen. Petrépolis, ed. Vozes, 1993. % BRUM, Eliane. Maes Yanomami imploram pelos corpos de seus bebés. El Pals Si0 Paulo, 24 de junho de 2020. Pandemia de Coronavirus. LE Monde Diplomatique Brasil. Vozes da Floresta. Youtube. ivo™, ‘ 203 i pando Ribeiro, Lacing iy, nen ‘ernando Ati : iernando A camatia Moreira Anu Ri, Female "4, teh imeiro ugar, se a pesson €acometlt POF Ung dg iu rim iu - ‘i a nflia chora sua futura morteantes mesmo dela nop 0 ¢ arag " a aoe ie evycerias (roupasy flechas, arcos, ate mesmo jeys ences 3 papagaios). Suas cinzas siio guardadas, "Tada ‘ sia el My 1¢ se acabar materialmente. Num segundo momento, 0% vin tem qu Jo ente querido em toda a sua trajetéyi, den! “i, reinem para a tao ser esquecido, quando, finalmente, suas forem dilufdas em mingau de banana ¢ espana elo corpo de um dos integrantes do grupo, para que rie 0 permanesa pr, “ nia meméria da comunidade, Assim, & medida que a comunidade pela ritualizagio finebre, 0s vivos nao se tornam mortos também 08 vivos conseguem viver sua vida com maior tranquilidade ¢ re luto, Sco ciclo nao é completo, o espfrito do morto persegue os ViV05 cy quiem cle se relacionava. Apés a completude dos rituais, faz-se um, ag pata celebrar a vida, 0 que ndo se deu com os bebés. Isso significa gy Madey seus pert : de companhla, Pay, sng alia, ritual fa o morto morrer também como meméria pay 08 vivos possam viver Se 0 ritual néo for realizado mm, nfo poderd ser esquecido nem se deixard esquece, Provoca muito mal a seus parentes ea toda a comunidade Semanas apés uma luta incessante das maes, descobriu-se ee seus corpos haviam sido sepultados no cemitério pi = havi iblico da cidade! "m a autorizagéo ou sequer comunica¢ao as familias, desrespeitando mostra na sua vertente sepultar os seus Mortos), universal (0 direito de Percebe-se que na prética, tal direito niost piveito e Literntura: © sentimento do mando caso Yanomami, 0 que obviamente coloca uma questio para o a ano manifesta da iberdade ginnagio dos indigenas Yanomami presentifca, bem como Antigon® @ fragilidade do lago social frente ao: do sepilaneais insti s, Delas podemos tirar, entre outras coisas, 0 conflito entre & da ancestralidade ea lei dos homens, A primeira esté diretamente a dad preservagao de determinados costumes que honram os seus ease "Asegunda, por sua vez, Aarbitrariedade dasTeis instauradas fans. sabemos, com clarera, que nio & necessariamente porque a Begone cl us De mau govenos spre team me, mas & curioso pensar também que eles sempre forjam os tecimentos para fazer parecer com que os seus questionadores é que infortinios a si préprios, eximindo-se (os tiranos) assim de sua ceed, em rol de so boe-farsnte-iagem, 4, Conclusio ‘A partir do que foi exposto nesse texto podemos perceber que a nogao de conceito em Hegel como mediador entre Universal e Particular searticula de forma estruturante a relacao entre Antigona e Creonte € 0s mami e o Estado brasileiro. E exatamente nesse né em que nos en- ergar de maneira nitida como que 0 conhe- de se dé como o lugar em que as diversas de forma que sermos capazes de en- ante do mundo. Esse texto € Hoje, escandalosamente, no ‘Yanot contramos que podemos enxt cimento na contemporaneida dreas se encontram, se entrecruzam, xergar isso nos coloca de maneira diferente di 20 mesmo tempo um relato e uma deniincia. titimo dia em que revisamos esse texto, 80 120" pessoas foram mortas ela doenca respiratéria causada pelo virus no Brasil, mortes essa8 que Poderiam ser evitadas com a atuagao protetiva do Estado — dever prescri- tivo que Ihe cabe; agir eticamente nao é pedir muito. Mas a resposta do lider executivo da nagéo nao é menos que grotesca, para dizer o minimo: ——— a eerie Brasil passa de 80 mil mortes ¢ registra 20 mil casos em ido Paulo, 20 de julho de 2020. 205 ~~ . Jo Ribeito, Luciana Pime ep hizo, Fernando Atmand ent André Rui, FoR gon Camatta Moreira ‘on coveiro, ta?”®. Carece espace para pai at “Nio s », tat ie Hs aia .gsoas, com rostos, COTPOS, jeitos de ser, familias e ami 80,120 pessoas, 8, Cor os cs singulares que nao so meros nuime Nessa visada, Hegel nos chama a atengao Let olharmos ate mente para as dimensoes da vida que fuera ae ‘ama o, mas que a0 nos determos nelas percel ses a oO Mundo j, escapa. Nao seria essa exatamente a nossa lemporineg? ci mais atentamente para 0 que nos cerca para que enxerguemos g os dramas evidenciados na literatura, nas reportagens, na vida do, a sofrem colocam para nés uma nova relagéo com a esfera do Direitoz Bay além de um aspecto meramente legal, 0 que 0 didlogo entre Direit, lite, raturae sentiment do mundo nos traz€ percepcio de que € impo fazer Direito sem que o mundo seja trazido a tona, sem queo Sentimg do mundo, 0 sentimento de pertenca ao mundo venha & tona. Para alin, de um Direito externo, uma mera aplicagao de cédigos, o que se Colo, nesse didlogo proposto neste livro é face humana disso que jé em eg & chamado de Direito; um momento no desenrolar da consciéncia, ng etapa em direcio & efetivacio da liberdade da consciéncia, al fy gos, Set a A tragédia Antigona nos fornece um recado muito precioso acerg do trauma coletivo que é nao viver devidamente © luto, incluindo as dg culdades perpassadas por uma lideranga governamental inapta, Por ou denunciamos o ultraje ao também ritual fiinebre dos povos indigenas do ay do Xingu, devido a intensificacéo do genocidio histérico que continua ere tualizando aqui e agora. A palavra é “genocidio’, no ha rodeios ou mess palavras. Portanto, por meio desses relatos e resgates de referéncias cult- rais que se presentificam de um modo frutifero, e a0 nos permitirmas st atravessados pela sensibilidade, criadora da unio coletiva e reformadora des sujeitos, temos uma safda possivel para as brumas e trevas do imbréglioem que nos encontramos. O “triste mundo fascista”° hd de se. decompor. 29 CE. GOMES, Pedro Henrique. ‘Nao sou coveiro, td? diz Bolsonaro ao repo der sobre mortes por coronavirus. GI, Braslia, 20 de abril de 2020, Seco Coronas 30~_CfANDRADE, Carlos Drummond de. A noite dissolve os homes Sentimento do mundo. 1* edicgao, Rio de Janeiro, Colecao Folha Grandes Esti” tes Brasileiros, v. 4, 2008, p. 61, 206 Diteito e Literatury muet: O sentimento do mundo Referencias L, Marina, Safatle: “Bolsonaro cia Piiblica, Sao Paulo, 6 de abril de ee elec eee én As Disponivel e a scorposl- Acessado, 0 de junho de 2020, ANDRADE, Carlos Drummond de, Os om sentimento do mundo. 1* edicao, Rio de Jane Bscritores Brasileiros, v. 4, 2008 bros suportam o mundo, In: iro, Colegao Folha Grandes ANDRADE, Carlos Drummond de, Poema todo mundo, 1* edicao, Rio de Janeiro, Brasileiros, v. 4, 2008 da necessidade, In: Sentimen- Colegio Folha Grandes Esctitores ANDRADE, Carlos Drummond de. Congresso internacional do medo. In: Sentimento do mundo, 1* edisio, Rio de Janeito, Coleco Folha Grandes Escritores Brasileiros, v. 4, 2008 ANDRADE, Carlos Drummond de. 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Inclui bibliografa ISBN 978-65-87403-92-2 1. Direito ¢ Literatura, 2. Textos Literérios. 3. Ensino Juridico. 4, Linguagem Juridica, 5, Fiegdo e Direito. I. Rubio, André. II. Ribeiro, Femando Armando. Ill. Pimenta, Luciana, IV, Moreira, Nelson Camatta, V. Titulo, CDD 801.95 (CDU 34+82.091 DIALETICA EOITORA © editoradiatetica © @editoradialetica www.editoradialetica.com ~ all Direito € | ress, Literatura: | “== O sentimento do mundo J

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