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PEIXOTO-JUNIOR, C. A. Michael Balint - A Originalidade de Uma Trajetória Psicanalítica
PEIXOTO-JUNIOR, C. A. Michael Balint - A Originalidade de Uma Trajetória Psicanalítica
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ISBN 978-85-372-0485-6
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P43s
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-372-0485-6
A Alteridade em Questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
vii
A Alteridade em
Questão
1
Joel Birman
I. CONJUNÇÃO, DECLINAÇÃO E
PROBLEMÁTICA
Nesta obra, Carlos Augusto Peixoto apresenta-nos o percurso
teórico de Balint na psicanálise, de maneira ao mesmo tempo
concisa e sistemática. Digo concisa na medida em que o autor é
não apenas preciso ao empreender o mapeamento do repertório
conceitual presente no pensamento de Balint, mas também por-
que é bastante econômico nos recursos de que se vale para nos falar
do que é fundamental no pensamento deste. Porém, digo tam-
bém sistemática, pois na leitura que nos propõe do discurso teóri-
co de Balint o autor procura estabelecer quais seriam as linhas
básicas de força e as matrizes conceituais que estariam em pauta
na produção deste discurso.
Desta conjunção entre a concisão e a sistematicidade resulta
uma exposição lapidar, de forma que apenas o que é essencial é
colocado em evidência, depurado e despojado que é de qualquer
gordura. Em decorrência disso, o ensaio empreende uma carto-
grafia conceitual do discurso psicanalítico de Balint, na qual os
conceitos se encaixam e se remetem de maneira múltipla e diver-
sificada, em diferentes contextos.
Porém, é preciso afirmar ainda que a marca estilística da con-
cisão remete à da sistematicidade e vice-versa, de forma que a dita
1 Psicanalista, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do
Espace Analytique, Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, Professor
Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ, Diretor de Estudos em Letras
e Ciências Humanas, Universidade Paris VII; Pesquisador-Associado do Laboratório
“Psicanálise, Medicina e Sociedade”, Universidade Paris VII. ix
x Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
II. ORIGINALIDADE?
Contudo, o que o autor pretende enfatizar no seu texto é que o
percurso psicanalítico de Balint seria caracterizado pela “origina-
lidade”. Daí porque esta palavra também aparece no título da
obra, de forma a colocar em destaque o que deveria ser ressaltado
na dita trajetória. Portanto, Balint é delineado neste ensaio como
um autor original no campo da psicanálise, sendo esta uma das
A Alteridade em Questão xi
Gallimard, 2001.
3 Dejean, J.
Anciens against Moderns. Culture Wars and the Making of a Fin de
Siècle. Chicago, The University of Chicago Press, 1997.
4 Deleuze, G., Guattari, F. Qu´est-ce que la philosophie? Paris, Minuit, 1991.
xii Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
Gallimard, 1968.
8 Klein, M. Essais de psychanalyse. Paris, Payot,1975
9 Lacan, J. “L´agressivité en psychanalyse” (1948). In: Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil,
1966.
10 Winnicott, D. Brincar e realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
A Alteridade em Questão xiii
V. DESDOBRAMENTOS
Desta maneira, da problemática inicial do amor primário à pro-
blemática final centrada na falha básica, o foco teórico de Balint
se voltaria sempre para a formulação da questão da alteridade no
discurso psicanalítico. Esta questão, contudo, não se restringe ao
25 Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité (1905). Paris, Gallimard,
1962.
26 Freud, S. “Pulsions et destins des pulsions” (1915). In: Freud, S. Métapsychologie. Op.
cit.
27 Balint, M. Thrills and regressions. Op. cit.
28 Balint, M. O médico, o paciente e a doença. Rio de Janeiro, Atheneu, 1988.
29 Balint, M. A falha básica. Op. cit.
A Alteridade em Questão xvii
Seuil, 1964.
32 Deleuze, G. Différence et répétition. Paris, PUF, 1968.
Introdução
quanto a isso. Mas o que me parece é que esse aspecto de sua pro-
dução acabou ofuscando outras elaborações extremamente signi-
ficativas e relevantes para o desenvolvimento da prática psicanalí-
tica que ele nos deixou como herança. Acredito que estas últimas
acabaram relegadas a um segundo plano, tamanho foi o sucesso
alcançado pela proposta dos grupos. Diante dessa situação, talvez
até o próprio autor tenha se deixado levar nessa direção, dedican-
do-se cada vez mais a teorias sobre esse assunto.
Ainda assim, fui atrás do “outro” Balint. Daquele cuja obra
apresenta marcas indeléveis da herança de seu grande mestre,
Sándor Ferenczi, e que, certamente em função desse legado, aca-
bou por levar à produção de teorias sobre a técnica psicanalítica
que continuam absolutamente atuais. Pesquisando sobre sua
vida, descobri, em primeiro lugar, um homem apaixonado pela
atividade clínica, para em seguida me deparar com o teórico
cujas acuidade e facilidade na transposição de seus achados práti-
cos para o campo da teoria da técnica são absolutamente impres-
sionantes. Foi assim também que me vi diante de um autor que,
no decorrer de sua existência, procurou incansavelmente questi-
onar os parâmetros enrijecidos do establishment psicanalítico,
sempre preocupado com a necessidade de pensar o novo e rever o
que a técnica da psicanálise tinha postulado até então como ab-
solutamente correto ou seguro. Com isso, me parece que Balint
simplesmente levava a um extremo radical a tese freudiana de
que, diante de cada novo paciente, o psicanalista deveria “esque-
cer-se” de tudo o que sabia até então sobre a psicanálise para em-
barcar em viagens inusitadas e singulares, dispondo-se a enfren-
tar os acasos das novas aventuras que lhe oferecessem.
Além disso, a capacidade de criação de Balint não deixava
nada a desejar e chegava mesmo a se destacar diante de um certo
marasmo da maioria daqueles que frequentavam a sociedade psi-
canalítica inglesa entre os anos 1940 e 1970. Foi dessa mesma
capacidade criativa colocada ininterruptamente em ação ao lon-
Introdução 3
desejo de seu pai com uma sede de saber que, por meio da medici-
na, pode estender-se aos mais diversos conhecimentos humanos.
O jovem estudante de medicina presta serviço militar duran-
te a Primeira Guerra Mundial, em um grande hospital militar,
ferindo-se em 1916 ao tentar desmontar uma granada, o que lhe
provocou uma pequena deformidade no pulso. Outra versão um
tanto suspeita para esse acidente considera-o não uma impru-
dência fruto de sua curiosidade, mas uma tentativa de automuti-
lação que o livrará do serviço militar. Independentemente da ver-
são mais correta, ele é dispensado do serviço militar nesta época,
por volta de 1917, e forma-se em Medicina em 1920, muito
interessado em bioquímica e fisiologia, após ter feito cursos para-
lelos de filosofia, matemática e religião comparada.
Essa também é a época em que, relendo os “Três ensaios
sobre a sexualidade” e “Totem e tabu” – que haviam tido sobre
ele um efeito crítico bastante ambivalente quando da primeira
leitura, durante seus estudos secundários –, ele será conquistado
pela psicanálise freudiana. Como muitos judeus húngaros, cujos
antepassados adotaram nomes alemães, Michael decidiu adotar
ao fim da Guerra o sobrenome Balint, para afirmar desse modo
sua pertença à nação húngara.
Na universidade, ele havia conhecido Alice Szekeley-Kovacs,
estudante de etnologia que também ajuda a redespertar o seu inte-
resse pela psicanálise. Esse encontro, a princípio amistoso e depois
amoroso, vai transformar não apenas sua vida, mas também sua
orientação e engajamento profissionais – “amor e psicanálise per-
manecerão daí em diante ligados por toda a sua vida”.2 É Alice
quem lhe empresta as obras de Freud, que o leva a rever seu des-
dém inicial pela teoria psicanalítica, promovendo dessa maneira
uma grande virada na vida de Michael. Através dela, com quem se
casa aos 21 anos, Mihály Bergsmann entra na família Kovacs, pela
qual ele parece ter sido definitivamente adotado.
3 Balint M, Ornstein PH, Balint E. La psychothérapie focale. Paris: Payot, 1975. p. 165.
8 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
afirmando que ela não teria sido uma verdadeira análise, sem que
tenhamos conhecimento preciso dos seus motivos.
Enquanto faz a sua formação em psicanálise, trabalha ao
mesmo tempo como químico (doutorando da Universidade de
Berlim) no laboratório I. G. Farben. No quadro da policlínica do
prestigioso Instituto Berlinense de Psicanálise, volta-se para o
estudo então pioneiro da medicina psicossomática, tratando
pacientes no Hospital de Caridade da cidade, onde também
desenvolve pesquisas em bioquímica no laboratório de medicina
clínica. Em 1924, Michael defende seu doutorado em ciências,
abandona seus estudos de química e volta-se definitivamente
para a psicanálise – tornando-se analista membro da Sociedade
de Psicanálise de Berlim –, a qual não deixará mais até o fim de
sua vida. Nessa época, autorizado por professores do Hospital,
encarrega-se da análise de novos pacientes, junto àqueles do Ins-
tituto aos quais já se dedicava.
De volta à Budapeste, Balint segue uma análise de dois anos
com Ferenczi e é admitido na Sociedade Psicanalítica daquela
cidade em 1925, ano em que nasce seu filho John Balint e no
qual é publicado seu primeiro artigo “Perversão ou sintoma his-
térico”.4 Ele participa da organização do Instituto de Psicanálise
e de uma policlínica de psicoterapia psicanalítica da qual se torna
diretor em 1933, quando da morte de Ferenczi. Desde a segunda
metade dos anos 1920, ele havia criado na policlínica de Buda-
peste um seminário voltado para clínicos gerais, o qual será inter-
rompido em razão do clima político que se instala em seu país
nos anos próximos à Segunda Grande Guerra. A partir destes
“primeiros e efêmeros esboços de uma formação de médicos que
não tem muito a ver com o que será o funcionamento dos futu-
publicada pela primeira vez em Gyógyászat, 65, 1925, reimpressa em Problems of human
pleasure and behaviour. New York: Liveright, 1956. p. 182-87.
Pequeno Retrato Biográfico 9
8 Sobre isso ver King P, Steiner R. (Eds.) Les controverses Anna Freud – Melanie Klein,
11 Idem, p. 786-88.
14 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
12 Cf. Roudinesco E, Plon M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 48.
16 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
13 Stewart H. Michael Balint: object relations pure and applied. London: Routledge, 1996. p. 4-5.
14 Entrevista a Swerdloff B. In: Ricaud MM. Op. cit. p. 221.
15 Cf. “Boletim da Sociedade Médica Balint n. 6, Out. 1975" citado por Ricaud MM.
18 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XI; Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de
paranoia descrito autobiográficamente” (1911[1910]). In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1995, vol. XII; Tótem y tabú (1912). In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1995, vol. XII.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 21
que, neste sentido, ele seria produto de uma nova ação psíquica
que, acrescida ao autoerotismo, desembocaria no narcisismo.
Assim, o narcisismo passa a ser visto como um estágio interme-
diário entre as pulsões autoeróticas, presentes desde o começo, e
as relações de objeto posteriores. Essa seria a ação psíquica que
levaria ao tipo de escolha objetal descrito como narcísico. Balint
destaca que este tipo de escolha narcísica passa, então, a ser consi-
derado uma alternativa àquele descrito nos “Três ensaios”, isto é,
a postulação da existência de uma relação objetal primária, a qual
resultaria em uma escolha que, só mais tarde, seria caracterizada
como anaclítica ou de apoio. Além disso, ele também ressalta
que, em todas essas articulações, Freud mostra que o narcisismo
é essencialmente um fenômeno secundário ou uma fase a meio
caminho entre o autoerotismo e a relação de objeto. Nas suas
palavras: “é de admirar que o trabalho ‘Sobre o narcisismo’, in-
trodutor dessa teoria, não contenha uma descrição concisa do
narcisismo primário. Entretanto, como em geral se sabe, o narci-
sismo primário tornou-se a teoria-padrão para descrever a relação
mais primitiva do indivíduo com seu entorno”.22 Em seus escri-
tos posteriores, Freud faz constantes referências a ela, chegando
mesmo a afirmar, em seu último trabalho, que toda a cota de libi-
do disponível seria primeiramente armazenada no ego, e que esse
estado absoluto inicial é o que se pode chamar de narcisismo pri-
mário.23 Esse estado permaneceria até que o ego começasse a
investir libidinalmente os objetos, transformando a libido narci-
sista em libido objetal. Talvez pelo fato de a formulação citada
constituir o último depoimento freudiano sobre o tema, esta te-
nha tornado-se a versão oficial do narcisismo amplamente divul-
gada por todo o universo psicanalítico.
Balint, no entanto, não se contenta com essa interpretação.
Segundo ele, as teorias sobre o autoerotismo, o amor objetal pri-
mário e o narcisismo primário parecem contraditórias, ainda que
22 Balint M. Op. cit. p. 34.
23 Cf. Freud S. Esquema del psicoanálisis (1939 [1934-38]), Capítulo II – “Doctrina de las
pulsiones”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XXIII, op. cit. p. 148.
22 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XVI, op. cit. p. 388 (grifado no original).
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 23
25 Cf. Freud S. Dos artículos de enciclopedia: ‘Psicoanálisis’ y ‘Teoría de la libido’ (1923 [1922]).
In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, vol. XVIII, op. cit. p. 231-254.
26 Freud S. El yo y el ello (1923). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol.
Psycho-Analysis, vol. 37, citado por Balint M. A falha básica, op. cit. p. 38.
29 Balint M. Op. cit. p. 39.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 25
30 Cf. Ferenczi S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
31 Balint M. Op. cit. p. 46.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 27
32 Cf. Balint M. Critical notes on the theory of the pregenital organizations of the libido In:
Primary love and psycho-analytic technique. London: Hogarth Press, 1952. p. 59.
28 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
33 Sobre isso ver Abraham K. A short study of the development of the libido (1924). In:
Selected papers. London: Hogarth Press, 1942, apud Balint M. Primary love..., op. cit. p. 13.
34 Cf. Ricaud MM. Op. cit. p. 99.
35 Cf. Ferenczi S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade, op. cit. e Confusão de língua
entre os adultos e a criança. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. vol. IV.
36 Cf. Balint M. New beginning and the paranoid and depressive syndromes. In: Primary love ...,
37 Idem, p. 263.
38 Gelly R. Aspectos teóricos do movimento Balint. In: A experiência Balint: história e
43 Balint M. Early developmental states of the ego: primary object-love. In: Primary love..., op.
cit. p. 102.
32 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
46 Balint A. Love for the mother and mother love. In: Primary love..., op. cit. p. 126.
34 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
47 Cf. Balint M. On genital love (1947) e Love and hate (1951). In: Primary love...,
52 Sobre isso ver Changing therapeutical aims... In: Primary Love..., op. cit. p. 221-235.
53 Balint M. A falha básica, op. cit. p. 63.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 37
63 Sobre isso ver Balint M. Contributions to reality testing. In: Problems of human pleasure
67 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988. p. 222.
52 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
72 Sobre isso ver Thrills and regressions. Op. cit. Caps. 8 e 11.
73 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 62 (grifado no original).
56 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
Buenos Aires: Amorrortu, 1989, vol. XXIII, op. cit. p. 211-2254 e Ferenczi S. O problema
do fim da análise (1928). In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, vol. IV p.
15-24.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 65
maturação infantil. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.
p. 207-17.
70 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
88 Idem, p. 152-53.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 73
garo, o novo começo que se segue a uma regressão não deve ser
compreendido apenas como o reencontro com um estado har-
monioso anterior, mas como uma possibilidade de lidar com essa
experiência visando criar novas alternativas de relação consigo
próprio e com o mundo.91
A gênese do conceito de novo começo, na obra de Balint,
encontra-se nos seus trabalhos dos anos 1930 sobre o amor pri-
mário, ao qual ele se articula a partir, e através, do movimento de
regressão. Sua primeira menção ao termo aparece em uma comu-
nicação à Sociedade Psicanalítica Alemã, em 1932, inspirada no
que chamaríamos de uma “biologia” freudo-ferencziana e intitu-
lada “Paralelos psicosexuais da lei biogenética fundamental”. Lá
ele afirmava que, “para escapar da morte e continuar sua existên-
cia, todos os organismos devem sempre começar de novo”,92 isto
é, operar novos começos. Compondo esta tese biológica com as
hipóteses de Ferenczi em Thalassa, ele afirma que, na situação
analítica, temos acesso a um fenômeno semelhante ou familiar
sempre que procuramos ajudar um paciente com uma vida que
se tornou insuportável a começar de novo, livrando-o das formas
de reação rígidas com as quais ele agia até então.
Assim, o novo começo possibilitaria a produção de mudan-
ças em um caráter que, até então, se mostrava muito rígido na
medida em que era determinado por condições excessivamente
limitadas de relação objetal. Cabe salientar que essa é uma das
principais hipóteses clínicas de Balint, estabelecida pelo menos
desde o início dos anos 1930. Ela está relacionada com a possibi-
91 Este conceito de repetição, aliás, serviria também para compreender a própria apreensão
93 Balint M. Character analysis and new beginning. In: Primary love..., op. cit. p. 166.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 77
94 Idem, p. 173.
78 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
95 Balint M. The final goal of psycho-analytic treatment. In: Primary love ..., op. cit. p. 193.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 79
96 Sobre isso ver Ferenczi S. Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: Obras
completas, vol. IV, op. cit. p. 97-108. Neste artigo Ferenczi trata justamente dos efeitos
possivelmente traumáticos provenientes do confronto entre a linguagem da ternura com a
qual operam as crianças e a linguagem da paixão empregada pelos adultos.
97 Balint M. The final goal of the psycho-analytic treatment, op. cit. p. 198.
80 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
uma longa jornada, que lhe foi dada uma nova vida; ele experi-
menta um sentimento de grande liberdade como se uma carga
pesada lhe tivesse sido retirada etc.”98 Tal experiência profunda-
mente comovente passa-se em um clima semelhante ao de uma
despedida de algo muito querido e precioso, em que são inevitá-
veis certo pesar e algum luto. Mas esse sofrimento sincero e pro-
fundo é ao mesmo tempo mitigado pela sensação de segurança
que provém das novas possibilidades de felicidade real recente-
mente conquistadas pelo sujeito. O que temos aqui, continua o
nosso autor, é uma espécie de luta de uma parte da personalidade
com outra, que resulta em um estado semelhante ao depressivo,
que antecede qualquer período de novo começo. Esse estado
depressivo “terapêutico” difere consideravelmente de outras for-
mas de depressão encontradas na clínica psicanalítica que ten-
dem ao aniquilamento do sujeito. “Nesta forma benigna de de-
pressão, o paciente, com sua coragem novamente conquistada,
permite a si próprio experimentar o renascimento atual de anti-
gas relações objetais primitivas”.99 Ele as admite não apenas co-
mo meras possibilidades, mas como anseios e sentimentos atuais,
mesmo sabendo que a situação analítica só lhe proporcionará
gratificações bastante parciais e por um período muito limitado.
Ainda assim, ele não reprime nem se fecha diante da ternura um
tanto dolorosa desses desejos.
Infelizmente, não são todos os que podem chegar a se
decidir por um novo começo. Algumas pessoas não deixam de
exigir do mundo compensações insistentemente renovadas
pelos erros cometidos, mesmo sabendo o quão obsessivas e
irreais são essas demandas: elas querem apenas ser amadas sem
amar em troca e exigem o reconhecimento que consideram
apropriado, sem nunca chegar a reconhecer propriamente o
98 Balint M. On the termination of analysis. In: Primary love..., op. cit. p. 238.
99 Balint M. New beginning and the paranoid and the depressive syndromes. In: Primary
po. De acordo com sua personalidade, o líder pode dar uma co-
loração mais ou menos rigorosa à liderança. No entanto, Balint
ressalta que, para que os objetivos do grupo possam ser realmen-
te alcançados, é necessário que o líder seja democrático e que te-
nha ultrapassado certos conflitos. Ele deve ser capaz de coorde-
nar o trabalho em equipe, interpretar quando necessário, manter
o grupo numa certa tensão e evitar que ele degenere em uma es-
pécie de sociedade de admiração mútua.
Sendo assim, um conhecimento de dinâmica de grupo pare-
ce necessário para que se percebam as tensões no grupo, zelando
por sua coesão e controlando as eventuais crises. Neste sentido,
torna-se importante que um líder tenha passado por uma análi-
se, pois, se ele pretende sensibilizar os médicos para as manifesta-
ções do inconsciente, ele mesmo deve estar familiarizado com
seu próprio inconsciente. Aliás, é fácil notar que Balint define as
condições fundamentais para o funcionamento do grupo em ter-
mos idênticos, ou pelo menos bastante próximos, aos utilizados
em uma cura psicanalítica. Eles se resumem em uma “criar uma
atmosfera”104 de tal forma que cada membro do grupo (incluído
o próprio líder) possa suportar o choque da difícil e desagradável
tomada de consciência sobre os seus limites.
Nesses termos, o líder ensina pela sua maneira de escutar e
respeitar as identificações dos membros entre eles, possibilitando
que cada um se exprima ao seu modo no momento que lhe pare-
ce adequado. Ainda que investido transferencialmente de sua
função, ele evita que o grupo transforme-se em um empreendi-
mento abertamente terapêutico, o que poderia ocasionar a perda
de seus principais objetivos. Para isso, procura fazer com que as
atenções não se concentrem excessivamente nele, evitando inter-
pretações constantes ou um silêncio supostamente analítico, o
que produziria o mesmo efeito. Resumindo, “o líder deve criar
uma equipe de formação-pesquisa a mais igualitária possível
104 Balint M. Op. cit. p. 264.
88 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
107 Gelly R. Aspectos teóricos do movimento Balint. In: A experiência Balint. Op. cit. p. 29.
90 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
110 Cf. o capítulo XIX sobre “O paciente e sua doença”. In: O médico, seu paciente e a doença.
118 Balint M. The final goal of psycho-analytic treatment. In: Primary love..., op. cit. p. 199.
102 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
119 Sobre isso ver Winnicott DW. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
122 Souza O. Notas sobre algumas diferenças na valorização dos afetos nas teorias
psicanalíticas. Op. cit. p. 293.
106 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
rias e insuficientes para dar conta de experiências cada vez mais avas-
saladoramente disruptivas e desintegradoras para os sujeitos. Daí
também a sua insistência quase obsessiva na importância do apego,
do asseguramento e da tranquilidade na situação analítica, como
mecanismos facilitadores de uma constituição subjetiva descentra-
da, embora integrada no seu descentramento. Trata-se, portanto, de
oferecer uma dimensão de continuidade fluida em um universo de
descontinuidades cada vez mais ameaçadoras.
Diante de tudo isso, uma última palavra sobre a interpreta-
ção balintiana da regressão, do novo começo e da falha básica nos
parece se impor antes de concluirmos todo este percurso que vi-
mos traçando até aqui. Como vimos antes, o abismo diante do
qual certos pacientes se veem colocados no decorrer de um trata-
mento analítico pode ser suplantado, caso alcancemos o objetivo
de oferecer a ele a oportunidade de transformar seu enorme res-
sentimento em um pesar de teor afirmativo. Nesses casos, a
agressividade dirigida contra uma vida “que não vale a pena ser
vivida se algo os priva de seu ódio” não dispõe, estranhamente,
de nenhum objeto para o qual se dirigir: este algo, na verdade,
não é ninguém, e tal ódio não responde efetivamente a uma frus-
tração determinada, relativa a um objeto específico, mas torna-se
uma experiência genérica que arruína a vida do paciente. Esta
agressividade sem objeto adquire uma tonalidade impessoal, na
qual o sujeito se vê tomado sem qualquer defesa aparente. No
entanto, o que Balint acreditava poder mostrar era que esta inca-
pacidade do paciente de admitir a realidade não era senão a pró-
pria realidade de uma vida assim. Em termos fenomenológicos,
como nos mostra Faure, “sua vida é a apreensão factícia de sua indivi-
duação enquanto ente vivo e apreendendo-se como sofredor. Assim se dá
enfim o desvelamento ontológico da falha básica”.126
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