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Michael Ballint: a originalidade de uma trajetória psicanalítica

Book · March 2013

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carlos augusto oliveira peixoto junior


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica
Copyright © 2013 by Livraria e Editora Revinter Ltda.

ISBN 978-85-372-0485-6

Todos os direitos reservados.


É expressamente proibida a reprodução
deste livro, no seu todo ou em parte,
por quaisquer meios, sem o consentimento
por escrito da Editora.

Contato com o autor:


cpeixotojr@terra.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P43s

Peixoto Junior, Carlos Augusto, 1962-


Michael Balint, a originalidade de uma trajetória psicanalítica / Carlos Augusto Peixoto
Junior. - Rio de Janeiro : Revinter, 2013.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-372-0485-6

1. Psicanálise. 2. Psicologia. I. Balint, Michael. II. Título.

12-5598. CDD: 150.195


CDU: 159.964.2

A responsabilidade civil e criminal, perante terceiros e perante a Editora Revinter, sobre o


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v

À memória de Márcia Ramos Arán.


Sumário

A Alteridade em Questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

I Pequeno Retrato Biográfico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

II A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais. . . . . . . 19


Amor versus narcisismo primário . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Importância do apego na ocnofilia e
expansões amistosas do filobatismo . . . . . . . . . . . . . 37
Falha básica e três áreas da mente . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Regressão e novo começo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
O fenômeno dos Grupos Balint . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

III Atualidade do Pensamento de Michael Balint . . . . . . 95

Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

vii
A Alteridade em
Questão

1
Joel Birman

I. CONJUNÇÃO, DECLINAÇÃO E
PROBLEMÁTICA
Nesta obra, Carlos Augusto Peixoto apresenta-nos o percurso
teórico de Balint na psicanálise, de maneira ao mesmo tempo
concisa e sistemática. Digo concisa na medida em que o autor é
não apenas preciso ao empreender o mapeamento do repertório
conceitual presente no pensamento de Balint, mas também por-
que é bastante econômico nos recursos de que se vale para nos falar
do que é fundamental no pensamento deste. Porém, digo tam-
bém sistemática, pois na leitura que nos propõe do discurso teóri-
co de Balint o autor procura estabelecer quais seriam as linhas
básicas de força e as matrizes conceituais que estariam em pauta
na produção deste discurso.
Desta conjunção entre a concisão e a sistematicidade resulta
uma exposição lapidar, de forma que apenas o que é essencial é
colocado em evidência, depurado e despojado que é de qualquer
gordura. Em decorrência disso, o ensaio empreende uma carto-
grafia conceitual do discurso psicanalítico de Balint, na qual os
conceitos se encaixam e se remetem de maneira múltipla e diver-
sificada, em diferentes contextos.
Porém, é preciso afirmar ainda que a marca estilística da con-
cisão remete à da sistematicidade e vice-versa, de forma que a dita
1 Psicanalista, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do
Espace Analytique, Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, Professor
Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ, Diretor de Estudos em Letras
e Ciências Humanas, Universidade Paris VII; Pesquisador-Associado do Laboratório
“Psicanálise, Medicina e Sociedade”, Universidade Paris VII. ix
x Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

conjunção entre estes diferentes registros se desdobra imediata-


mente numa declinação entre estes. Com efeito, o que o autor
realizou neste ensaio foi declinar a concisão com a sistematicida-
de na sua escrita sobre o discurso teórico de Balint, procurando
colocar em evidência qual seria a problemática que orientaria a
produção deste discurso e que constituiria a sua condição de pos-
sibilidade.
Assim, sem excessos e preciosismos verbais, mas destituída
ao mesmo tempo de qualquer barroquismo retórico, a escrita do
ensaio evidencia-se pela clareza e pela explicitação dos conceitos
que orientariam o projeto teórico de Balint. Para isso, contudo, o
autor baseia-se no exame acurado da totalidade dos textos publi-
cados por este, percorrendo-os numa ordem cronológica. Ao
lado disso, vale-se ainda de alguns comentadores e de biografias
da obra de Balint, que lhes ofereciam ressonâncias para a leitura
que realizava e que lhe possibilitavam ainda algumas indicações e
referências biográficas sobre este.
Desta maneira, pode-se afirmar que a obra em questão apre-
senta-se como uma exposição linear sobre o discurso teórico de
Balint, percorrendo-o do início ao fim de seu percurso na psica-
nálise, de forma datada e circunstanciada. Daí porque a palavra
“trajetória” aparece no título deste ensaio, para enfatizar os dife-
rentes passos teóricos empreendidos por Balint ao longo de seu
percurso psicanalítico.

II. ORIGINALIDADE?
Contudo, o que o autor pretende enfatizar no seu texto é que o
percurso psicanalítico de Balint seria caracterizado pela “origina-
lidade”. Daí porque esta palavra também aparece no título da
obra, de forma a colocar em destaque o que deveria ser ressaltado
na dita trajetória. Portanto, Balint é delineado neste ensaio como
um autor original no campo da psicanálise, sendo esta uma das
A Alteridade em Questão xi

teses que o autor pretende se não demonstrar de maneira rigorosa,


ao menos mostrar nas indicações que fornece ao leitor.
Nesta perspectiva, Balint seria um autor propriamente dito e
que como tal teria produzido efetivamente uma obra, pois apenas
seria autor de uma obra quem teria a marca indiscutível da origi-
nalidade, pelo menos na tradição do Ocidente, desde o século
XVIII. Com efeito, foi desde a querela histórica dos antigos e dos
modernos, estabelecida desde o século XVII,2,3 que o conceito
de originalidade foi então forjado, na articulação estabelecida
entre os registros do autor e da obra.
Porém, o que significa dizer que alguém é efetivamente origi-
nal tendo como contraponto disso as exigências de ser um autor
e de ter forjado uma obra especificamente?
Assim, o que se pretende enfatizar com isso é que se alguém é
original seria porque produziu marca de diferença num determi-
nado campo discursivo. Esta marca de diferença promoveria,
então, uma descontinuidade no campo do discurso em questão,
de forma que uma ruptura seria produzida no campo do mesmo e
da continuidade anteriormente existente. Enfim, seria isso o que
se evidenciaria na ideia de originalidade.
Contudo, o que significam os conceitos de ruptura e de des-
continuidade, como signos que seriam do conceito de diferença,
variam de acordo com a ordem discursiva em questão. Com efei-
to, se no discurso filosófico a originalidade se evidencia pela pro-
dução de novos conceitos e no discurso científico pela invenção de
um outro objeto teórico que tem um outro campo experimental
como o seu correlato,4 no campo estético o que estaria em pauta
seria a invenção de um outro estilo – seja este literário, poético,
2 Le Coq, A. M. La Querelle des Anciens et des Modernes: XVIIe-XVIIIe Siècles. Paris,

Gallimard, 2001.
3 Dejean, J.
Anciens against Moderns. Culture Wars and the Making of a Fin de
Siècle. Chicago, The University of Chicago Press, 1997.
4 Deleuze, G., Guattari, F. Qu´est-ce que la philosophie? Paris, Minuit, 1991.
xii Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

pictórico, imagístico, cinematográfico etc. –, de acordo com o


registro artístico em questão.
No que concerne à psicanálise o que estaria então em ques-
tão como signo de originalidade, afinal das contas? É preciso se
indagar sobre isso, pois a psicanálise não se inscreve rigorosa-
mente nem no discurso científico, nem tampouco no discurso
filosófico e no discurso artístico, tendo então a sua especificidade
discursiva.
Assim, se a psicanálise se forjou indiscutivelmente como
uma teoria, é preciso dizer que esta remete necessariamente para
um dispositivo clínico, que se fundaria na experiência da transfe-
rência.5 Porém, ao longo de sua história a psicanálise enunciou
diferentes teorias que remetiam para diferentes dispositivos clíni-
cos, na medida em que estes foram construídos a partir de positi-
vidades clínicas diferentes. Com efeito, se Freud se baseou inicial-
mente na histeria6 e posteriormente na melancolia,7 Melanie Klein,
em contrapartida, baseou-se nas psicoses esquizofrênica e manía-
co-depressiva,8 enquanto Lacan e Winnicott se basearam na para-
noïa9 e nos estados limites10 respectivamente. Portanto, nestes
diferentes autores, a produção da teoria remete necessariamente
para um dispositivo clínico diferenciado e para uma positividade
clínica específica. Enfim, pensar o discurso psicanalítico apenas
no registro conceitual seria uma redução teórica inaceitável, pois
a dita teoria remeteria necessariamente para o dispositivo clínico
centrado na transferência.

5 Freud, S. La technique psychanalytique. Paris, PUF, 1972.


6 Freud, S. L´interpretation des rêves (1900). Paris, PUF, 1976.
7 Freud, S. “Deuil et mélancolie” (1917). In: Freud, S. Metapsychologie. Paris,

Gallimard, 1968.
8 Klein, M. Essais de psychanalyse. Paris, Payot,1975
9 Lacan, J. “L´agressivité en psychanalyse” (1948). In: Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil,

1966.
10 Winnicott, D. Brincar e realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
A Alteridade em Questão xiii

Nesta perspectiva, se no discurso psicanalítico a teoria reme-


te ao dispositivo clínico e às positividades clínicas, sem os quais a
teoria seria vazia e destituída de qualquer sentido, seria nesta
conjunção de registros que a originalidade de Balint deveria ser
colocada em evidência.

III. CARTOGRAFIA CONCEITUAL E


DISPOSITIVO PSICANALÍTICO
No que concerne à teoria psicanalítica é preciso destacar que
Balint forjou diversos conceitos, que devem ser aqui evocados, de
maneira sumária: amor primário11 e falha básica.12 Além disso,
Balint destacou a existência de diferentes formas de funciona-
mento psíquico no sujeito, que seriam reguladores diversos da ex-
periência psíquica, a saber, os registros da falha básica, da criativi-
dade e de Édipo.13 Formulou ainda, enfim, a existência de moda-
lidades opostas de relação do sujeito com o campo dos objetos,
quais sejam, a ocnofilia e o filobatismo,14 pelas quais o sujeito teria
uma adesividade excessiva aos objetos (ocnofilia) e maior liberda-
de e autonomia face a estes (filobatismo).
Porém, este conjunto de novos conceitos inscreve-se num
delineamento específico da experiência clínica e do dispositivo
analítico, nas quais o que estaria em pauta seria a superação do
defeito fundamental. Vale dizer, o que a experiência analítica de-
veria promover seria a cicatrização da falha básica, de forma que a
dita experiência deveria ser a condição de possibilidade para o su-
jeito de um novo começo (new begining).
Portanto, na conjunção entre os registros diferentes da teo-
ria, do dispositivo analítico e da positividade clínica, Balint nos
11 Balint, M. Primary love and psychoanalytic technique. London, Hogarth Press,
1952.
12 Balint, M.
A falha básica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.
13 Balint, M.
Thrills and regressions. Connecticut, International Universities
Presses, 1987.
14 Idem.
xiv Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

propôs uma articulação nova entre a teoria, o método e a técnica


em psicanálise. Neste contexto, a transferência e a contratransfe-
rência se conjugariam no dispositivo analítico de maneira especí-
fica, para promover as subjetivações15 das formas contemporâ-
neas de dor, que não mais se inscreveriam nas formas clássicas das
neuroses.
Enfim, seria nesta nova conjunção promovida por Balint no
discurso psicanalítico que se poderia aquilatar efetivamente a sua
originalidade, segundo a leitura proposta por Peixoto.

IV. DO AMOR PRIMÁRIO À FALHA BÁSICA


O que estaria aqui em pauta, contudo, seria a retomada dos pres-
supostos presentes na Escola Psicanalítica de Budapeste, que teve
em Ferenczi o forjador de sua matriz teórica e clínica.16,17,18,19
Analisado inicialmente por Ferenczi, antes de imigrar para Ber-
lim e posteriormente para Londres, Balint retomou as linhas de
força desta leitura da psicanálise, introduzindo nesta algumas
marcas de diferença. Vale dizer, Balint não repetiu como um dis-
cípulo zeloso os conceitos formulados por Ferenczi, mas relan-
çou-os em novos horizontes, por um lado, e forjou outros concei-
tos, pelo outro.
Para isso, no entanto, a sua questão estratégica foi a proble-
matização do estatuto do objeto na constituição do psiquismo.
Desta maneira, Balint inscreve-se num campo onde diferentes
teóricos trabalharam igualmente, antes e simultaneamente a ele.
Devem ser aqui devidamente destacados, não apenas os nomes
de Ferenczi, mas também o de M. Klein, Lacan e Winnicott.

15 Foucault, M. La volonté de savoir. Paris, PUF, 1976.


16 Ferenczi, S. Psychanalyse I. Paris, Payot, 1975.
17 Ferenczi, S. Psychanalyse II. Paris, Payot, 1976.
18 Ferenczi, S. Psychanalyse III. Paris, Payot, 1978.
19 Ferenczi, S. Psychanalyse IV. Paris, Payot, 1982.
A Alteridade em Questão xv

O que deve ser sublinhado é que o registro do objeto em psi-


canálise foi o caminho pelo qual os diferentes teóricos, acima
referidos, procuraram colocar em destaque a dimensão da alteri-
dade que seria constitutiva do psiquismo. Os caminhos teóricos
que percorreram não foram os mesmos, mas em todos eles a
dimensão transferencial que fundaria a experiência psicanalítica,
desde Freud, era a problemática fundamental de referência que
os direcionavam nas suas pesquisas.
No que tange a Balint, o seu foco foi a crítica da teoria do
narcisismo primário no discurso freudiano, que foi sistematizada
no ensaio intitulado “Para introduzir o narcisismo”,20 publicado
em 1914. Isso porque seria pelo viés desta crítica que se poderia
destacar a importância do registro do amor primário na constitui-
ção psíquica do infante.21 Desta maneira, Balint sustentava que
o narcisismo seria sempre secundário.22
Ao lado disso, Balint empreendia a crítica da teoria do desen-
volvimento libidinal, realizada por Abraham,23 em nome sempre
da dita teoria do amor primário. Vale dizer, Balint colocava em
questão a dimensão da ambivalência, que estaria presente na lei-
tura da relação do sujeito com o objeto, segundo a leitura de
Abraham e retomada posteriormente por M. Klein, pela propo-
sição de uma relação primária daquele com o objeto que seria
não ambivalente e que se positivaria no enunciado do conceito
do amor primário.24

20 Freud, S. “Pour introduire le narcisisme” (1904).


In: Freud, S. La vie sexuelle. Paris,
PUF, 1973.
21 Balint, M. Primary Love and psychoanalytic technique. Op. cit.
22 Ibidem.
23 Abraham, K. “Esquisse d’une histoire de la libido basée sur la psychanalyse
des troubles mentaux” (1924). In: Abraham, K. Développement de la libido.
Oeuvres Complètes, volume II. Paris, Payeleot, 1973. Discurso.
24 Balint, M. Primary Love and psychoanalytic technique. Op. cit.
xvi Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Pode-se entrever assim como o foco teórico de Balint é o conceito


de pulsão, tal como foi enunciado inicialmente por Freud.25,26 Isso
porque a questão da ambivalência, que foi enunciada inicialmente
por Freud, se desdobrou na teoria do narcisismo primário.
Foi deste patamar teórico, portanto, que a teoria da falha
básica se forjou posteriormente, assim como a sua leitura da
regressão, da ocnofilia e do filobatismo.27 Seria em torno do es-
pectro virtual da falha básica, enfim, que as questões da regres-
são, da ocnofilia e do filobatismo se inscreveriam, de fato e de di-
reito, no discurso teórico de Balint. Portanto, o conceito de falha
básica passou a ocupar uma posição estratégica do final do dis-
curso teórico de Balint.
Assim, se o conceito de falha básica foi enunciado inicial-
mente por Balint na sua pesquisa sobre a relação médico-pacien-
te28 nos anos 50, onde se forjou o famoso grupo Balint e se for-
mulou uma leitura das enfermidades somáticas fundada na falha
básica, este conceito foi retomado posteriormente de maneira
sistemática29 para conceber os alicerces do psiquismo, numa
perspectiva eminentemente estrutural. Seria em torno deste con-
ceito, portanto, que todos os demais que foram enunciados
anteriormente por Balint passariam desde então a orbitar.

V. DESDOBRAMENTOS
Desta maneira, da problemática inicial do amor primário à pro-
blemática final centrada na falha básica, o foco teórico de Balint
se voltaria sempre para a formulação da questão da alteridade no
discurso psicanalítico. Esta questão, contudo, não se restringe ao
25 Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité (1905). Paris, Gallimard,
1962.
26 Freud, S. “Pulsions et destins des pulsions” (1915). In: Freud, S. Métapsychologie. Op.
cit.
27 Balint, M. Thrills and regressions. Op. cit.
28 Balint, M. O médico, o paciente e a doença. Rio de Janeiro, Atheneu, 1988.
29 Balint, M. A falha básica. Op. cit.
A Alteridade em Questão xvii

registro eminentemente teórico, mas se desdobra num campo


bem mais abrangente, onde os registros ético e político são tam-
bém colocados em cena. Seria para este desdobramento crucial
que o leitor desta obra deve ficar bem atento, na medida em que a
questão da alteridade é o ponto nevrálgico de aglutinação para
onde convergem inequivocamente as múltiplas e diversas preocu-
pações teóricas na contemporaneidade, face aos impasses nela
presentes.
Nesta perspectiva, a psicanálise pode e deve inscrever-se efeti-
vamente no campo deste debate, na medida em que no seu cerne
a questão da alteridade se inscreve, de fato e de direito, desde a
sua constituição histórica. Com efeito, como dispositivo clínico
voltado para a promoção de subjetivações, a experiência psicana-
lítica tem um alcance ético e político fundamentais, que se con-
densam no campo da transferência, polarizada entre os registros
da repetição do mesmo e da repetição diferencial, como nos ensina-
ram de diferentes maneiras Freud,30 Lacan31 e Deleuze.32 Seria
por este viés, portanto, que as questões do autor e da obra pode-
riam ser lançadas para o sujeito na atualidade.
Enfim, para não perder o bonde da história é preciso que a
psicanálise na atualidade não perca de vista as suas prioridades
teórica, ética e política, que tem hoje, na questão da alteridade, o
seu ponto estratégico de conjunção.

30 Freud, S. “Au-delà du príncipe du plaisir”


(1920). In: Freud, S. Essais de
psychanalyse. Paris, Payot, 1981.
31 Lacan, J. Les quatres concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris,

Seuil, 1964.
32 Deleuze, G. Différence et répétition. Paris, PUF, 1968.
Introdução

E ste trabalho tem como objetivo oferecer ao leitor uma apre-


sentação geral da vida e da obra de Michael Balint. Com esse
propósito em mente, me deparei com um aspecto de sua ativida-
de como psicanalista que, apesar de me parecer uma grande facili-
dade, mostrou-se, em última instância, uma pequena dificulda-
de. Acredito que o relato de uma situação banal do cotidiano, que
antecedeu a preparação deste pequeno livro, seja bastante ilustra-
tivo do que significou a dificuldade a qual me refiro, e por isso
gostaria de retratá-la aqui. Encontrando-me com uma amiga,
também psicanalista, disse a ela que estava trabalhando em um
livro dedicado à vida e ao pensamento de Balint. Ela então me
perguntou, surpresa, diante do inusitado do propósito: “Balint,
aquele dos grupos Balint?” E eu imediatamente respondi: “Não!”
Minha amiga então, mais surpresa ainda, indagou mais uma vez:
“Como não?!” Logo em seguida procurei me corrigir e disse que
sim, ainda que não fosse exatamente isso. Tratava-se nesse caso de
um ato falho e, portanto, bem-sucedido?
Parando para refletir sobre o ocorrido foi que me dei conta
do que se passava e do que se passaria daí em diante. Na verdade
eu talvez já estivesse me deparando com as consequências do
rumo tomado pelo legado de Balint no meio psicanalítico: ele ti-
nha tornado-se “aquele dos grupos Balint”. E o que se passava
comigo era que aquele não era o Balint que me interessava inves-
tigar, ainda que eu não pudesse deixar de considerá-lo. Neste
sentido, o leitor poderá constatar, no decorrer de seu percurso
por este livro, que o Balint ao qual procurei dar prioridade em
minha pesquisa era realmente outro. No entanto, isso não signi-
fica que os trabalhos com os grupos de discussão das relações
entre médicos e pacientes não tenham importância nas propos-
tas do autor. De modo algum; não tenho nenhuma dúvida 1
2 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

quanto a isso. Mas o que me parece é que esse aspecto de sua pro-
dução acabou ofuscando outras elaborações extremamente signi-
ficativas e relevantes para o desenvolvimento da prática psicanalí-
tica que ele nos deixou como herança. Acredito que estas últimas
acabaram relegadas a um segundo plano, tamanho foi o sucesso
alcançado pela proposta dos grupos. Diante dessa situação, talvez
até o próprio autor tenha se deixado levar nessa direção, dedican-
do-se cada vez mais a teorias sobre esse assunto.
Ainda assim, fui atrás do “outro” Balint. Daquele cuja obra
apresenta marcas indeléveis da herança de seu grande mestre,
Sándor Ferenczi, e que, certamente em função desse legado, aca-
bou por levar à produção de teorias sobre a técnica psicanalítica
que continuam absolutamente atuais. Pesquisando sobre sua
vida, descobri, em primeiro lugar, um homem apaixonado pela
atividade clínica, para em seguida me deparar com o teórico
cujas acuidade e facilidade na transposição de seus achados práti-
cos para o campo da teoria da técnica são absolutamente impres-
sionantes. Foi assim também que me vi diante de um autor que,
no decorrer de sua existência, procurou incansavelmente questi-
onar os parâmetros enrijecidos do establishment psicanalítico,
sempre preocupado com a necessidade de pensar o novo e rever o
que a técnica da psicanálise tinha postulado até então como ab-
solutamente correto ou seguro. Com isso, me parece que Balint
simplesmente levava a um extremo radical a tese freudiana de
que, diante de cada novo paciente, o psicanalista deveria “esque-
cer-se” de tudo o que sabia até então sobre a psicanálise para em-
barcar em viagens inusitadas e singulares, dispondo-se a enfren-
tar os acasos das novas aventuras que lhe oferecessem.
Além disso, a capacidade de criação de Balint não deixava
nada a desejar e chegava mesmo a se destacar diante de um certo
marasmo da maioria daqueles que frequentavam a sociedade psi-
canalítica inglesa entre os anos 1940 e 1970. Foi dessa mesma
capacidade criativa colocada ininterruptamente em ação ao lon-
Introdução 3

go de, pelo menos, 30 anos que se originaram conceitos comple-


tamente novos, como os de amor primário, novo começo e falha
básica, dos quais procuro tratar na parte deste livro dedicada à
sua obra. Seu interesse pelos fenômenos regressivos em psicanáli-
se indicava um psicanalista notavelmente disposto a chegar ao
limite de seus esforços no sentido de auxiliar pacientes profunda-
mente perturbados por seus conflitos. As críticas ao destaque
dado à noção de narcisismo primário no meio psicanalítico de-
notam uma grande preocupação com a alteridade e com a neces-
sidade de pensar no estatuto das novas formas de subjetivação,
com as quais ele se defrontava a cada dia em sua prática clínica.
Essa mesma preocupação foi, possivelmente, a que acabou por
levá-lo a procurar compreender os comprometimentos básicos
na maneira como o ambiente pretende se encarregar do ser hu-
mano nos seus momentos mais primitivos e que se constituem
na causa fundamental das mais diversas doenças, não apenas psi-
cológicas como também físicas. A partir de então, não era mais
possível deixar de se preocupar com a extensão de suas teorias
para o campo da clínica médica geral, o que acabou fazendo dele
o psicanalista cuja fama se atribui, apenas, ao fato de ser “aquele
dos grupos Balint”, conforme dito anteriormente.
Portanto, nossa intenção daqui em diante é falar deste, mas
também do “outro” Balint. Talvez até falar mais do outro do que
daquele. Enfim, abordar a vida e a obra de Michael Balint é levar
em conta uma trajetória marcada pela preocupação com o
humano e suas dificuldades em estar e manter-se vivo. É conside-
rar também um tipo de psicanálise que não se atém de modo
algum a uma dimensão idealista, de teor transcendente, racional
e logicista, mas uma abordagem psicanalítica que nunca se fur-
tou ao que há de trágico na experiência humana, no que esta traz
com ela reflexos extremamente profundos para a subjetividade.
Subjetividade que não pode prescindir de modo algum da di-
mensão sensorial de sua experiência, quer se trate do paciente ou
4 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

do analista. Significa, ainda, pensar em uma relação psicanalítica


na qual o termo relação é levado ao extremo de suas consequên-
cias terapêuticas.
Em última instância, decidir-se por um percurso pelas ideias
de Balint é se interessar por uma trajetória indubitavelmente ori-
ginal e independente, de quem sempre soube marcar claramente
sua posição e afirmar sua diferença no panorama da psicanálise
mundial do seu tempo. Acredito que isso não é pouco. Em um
universo psicanalítico tão marcado ultimamente pela derrocada
das adesões quase fundamentalistas a teorias encaradas como
dogmas – aos quais não se pode senão submeter-se sem qualquer
tipo de questionamento crítico mais profundo –, o apego à cria-
tividade parece ser mesmo um dos últimos recursos que nos res-
tam para continuar a fazer da psicanálise um instrumento de luta
pelo direito à singularidade de pacientes e analistas. E, quanto a
isso, a meu ver, Balint estava à frente do seu tempo.
Nestas circunstâncias, muito além daquele que foi o respon-
sável pela criação dos grupos de discussão sobre as relações entre
médico e paciente, o outro Balint ao qual me refiro no decorrer
deste trabalho é aquele autor que, tomando como referência a
teoria e a prática da psicanálise, nos faz pensar, a partir de suas
ideias e de sua trajetória, na dimensão trágica que constitui a
existência humana. Considerando a relevância dessas questões,
vejamos, então, um pouco da vida e da obra deste autor brilhan-
te, que tem andado um tanto esquecido pelos psicanalistas nos
últimos tempos, para em seguida avaliarmos a atualidade de seu
pensamento na psicanálise contemporânea.
Pequeno Retrato
Biográfico I
P sicanalista, discípulo mais próximo de Ferenczi e o mais criati-
vo da Escola de Budapeste, conhecido hoje, acima de tudo,
pela atenção que dedicou aos problemas da relação entre médicos e
pacientes, Mihály Bergsmann nasceu em 3 de dezembro de 1896,
em Budapeste. Membro de uma família judaica, encaminhou-se
nos estudos médicos sob a pressão de seu pai, Ignác Bergsmann, ele
próprio médico – clínico geral em um subúrbio de Budapeste e que
confessava sua decepção por não ter podido tornar-se um especia-
lista – estudando química paralelamente. Amado por sua mãe,
Margit Maria Bianca Berger, mulher simples, inteligente e afetuo-
sa, o jovem Mihály contrariou por um lado a vontade do pai, ao
envolver-se em seus estudos de química, mas ainda assim resolveu
estudar medicina. Suas relações com ele – homem rígido por cons-
tituição, temperamento ou decepção – eram bastante problemáti-
cas desde cedo, “uma oposição cordial”, como diria o próprio
Balint,1 tornando-se mais tarde uma relação de amizade.
Vivendo uma relação de afeto caloroso com sua mãe e de certo
terror com seu pai, Michael torna-se um garoto um tanto turbu-
lento, mas sempre muito interessado por tudo o que aprendia na
escola, chegando a realizar estudos secundários brilhantes. Ávido
por conhecimento, lia qualquer coisa que lhe caísse nas mãos,
adquirindo dessa forma uma vasta cultura geral, o que lhe traria
certos problemas no momento de escolher uma carreira, já que
tudo parecia lhe interessar. É assim que acaba por seguir o exemplo
do pai e inicia seus estudos de medicina na universidade de Buda-
peste, em 1913, aos 17 anos. Essa escolha lhe permitirá conciliar o
1 Entrevista a B. Swerdloff citada por Ricaud MM. Balint M. Le renouveau de l’école de

Budapest. Paris: Érès, 2000. p. 49. 5


6 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

desejo de seu pai com uma sede de saber que, por meio da medici-
na, pode estender-se aos mais diversos conhecimentos humanos.
O jovem estudante de medicina presta serviço militar duran-
te a Primeira Guerra Mundial, em um grande hospital militar,
ferindo-se em 1916 ao tentar desmontar uma granada, o que lhe
provocou uma pequena deformidade no pulso. Outra versão um
tanto suspeita para esse acidente considera-o não uma impru-
dência fruto de sua curiosidade, mas uma tentativa de automuti-
lação que o livrará do serviço militar. Independentemente da ver-
são mais correta, ele é dispensado do serviço militar nesta época,
por volta de 1917, e forma-se em Medicina em 1920, muito
interessado em bioquímica e fisiologia, após ter feito cursos para-
lelos de filosofia, matemática e religião comparada.
Essa também é a época em que, relendo os “Três ensaios
sobre a sexualidade” e “Totem e tabu” – que haviam tido sobre
ele um efeito crítico bastante ambivalente quando da primeira
leitura, durante seus estudos secundários –, ele será conquistado
pela psicanálise freudiana. Como muitos judeus húngaros, cujos
antepassados adotaram nomes alemães, Michael decidiu adotar
ao fim da Guerra o sobrenome Balint, para afirmar desse modo
sua pertença à nação húngara.
Na universidade, ele havia conhecido Alice Szekeley-Kovacs,
estudante de etnologia que também ajuda a redespertar o seu inte-
resse pela psicanálise. Esse encontro, a princípio amistoso e depois
amoroso, vai transformar não apenas sua vida, mas também sua
orientação e engajamento profissionais – “amor e psicanálise per-
manecerão daí em diante ligados por toda a sua vida”.2 É Alice
quem lhe empresta as obras de Freud, que o leva a rever seu des-
dém inicial pela teoria psicanalítica, promovendo dessa maneira
uma grande virada na vida de Michael. Através dela, com quem se
casa aos 21 anos, Mihály Bergsmann entra na família Kovacs, pela
qual ele parece ter sido definitivamente adotado.

2 Ricaud MM. Op. cit. p. 54.


Pequeno Retrato Biográfico 7

A mãe de Alice, Vilma Prosnitz, havia se casado pela segunda


vez com o arquiteto Frederic Kovacs, a quem conhecera em um
sanatório onde ela se tratava de uma tuberculose e que se encon-
trava em processo de análise com Georg Groddeck em razão de
distúrbios somáticos diversos. Após o casamento com Frederic,
que decidiu adotar suas três filhas, e uma análise com Ferenczi,
na qual se cura de uma grave agorafobia, ela torna-se psicanalista
com o nome de Vilma Kovacs. Mulher dotada de uma inteligên-
cia notável e original, logo torna-se um personagem de primeiro
plano no meio analítico – uma das primeiras analistas didatas de
Budapeste, conhecida sobretudo por suas ideias quanto à forma-
ção dos psicanalistas – ligada também aos círculos literários da
capital húngara. Mãe e filha terão, sem dúvida, um papel decisi-
vo na trajetória de Balint, profundamente marcada, além disso,
pela figura de Sándor Ferenczi, de quem assiste às conferências
pronunciadas na Universidade de Budapeste desde 1919.
Logo após o fim da Primeira Guerra, a República Comunis-
ta de Bela Kun estabelece-se na Hungria, sustentada ativamente
por jovens progressistas como Balint. Um ano mais tarde, com a
queda do regime anterior e a ascensão ao poder do Almirante
Horthy com suas políticas antissemitas, o futuro do recém-for-
mado médico húngaro torna-se incerto, o que o leva a deixar
Budapeste pouco mais tarde. Em 1921, casado com Alice, Mi-
chael instala-se em Berlim. Lá se torna vizinho de M. Klein,
então em análise com Abraham e já uma analista de renome no
cenário berlinense, a quem conhecia da época de sua análise com
Ferenczi em Budapeste. Durante a estadia na capital alemã, é
analisado durante dois anos por Hans Sachs – o mesmo analista
de Alice – e supervisionado por Max Eitingon. Nessa época, por-
tanto, como ele próprio dirá mais tarde em obra póstuma, acaba
“servindo de cobaia”3 da primeira escola de formação de psicana-
listas no mundo a abrir suas portas. Dessa análise, sai insatisfeito,

3 Balint M, Ornstein PH, Balint E. La psychothérapie focale. Paris: Payot, 1975. p. 165.
8 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

afirmando que ela não teria sido uma verdadeira análise, sem que
tenhamos conhecimento preciso dos seus motivos.
Enquanto faz a sua formação em psicanálise, trabalha ao
mesmo tempo como químico (doutorando da Universidade de
Berlim) no laboratório I. G. Farben. No quadro da policlínica do
prestigioso Instituto Berlinense de Psicanálise, volta-se para o
estudo então pioneiro da medicina psicossomática, tratando
pacientes no Hospital de Caridade da cidade, onde também
desenvolve pesquisas em bioquímica no laboratório de medicina
clínica. Em 1924, Michael defende seu doutorado em ciências,
abandona seus estudos de química e volta-se definitivamente
para a psicanálise – tornando-se analista membro da Sociedade
de Psicanálise de Berlim –, a qual não deixará mais até o fim de
sua vida. Nessa época, autorizado por professores do Hospital,
encarrega-se da análise de novos pacientes, junto àqueles do Ins-
tituto aos quais já se dedicava.
De volta à Budapeste, Balint segue uma análise de dois anos
com Ferenczi e é admitido na Sociedade Psicanalítica daquela
cidade em 1925, ano em que nasce seu filho John Balint e no
qual é publicado seu primeiro artigo “Perversão ou sintoma his-
térico”.4 Ele participa da organização do Instituto de Psicanálise
e de uma policlínica de psicoterapia psicanalítica da qual se torna
diretor em 1933, quando da morte de Ferenczi. Desde a segunda
metade dos anos 1920, ele havia criado na policlínica de Buda-
peste um seminário voltado para clínicos gerais, o qual será inter-
rompido em razão do clima político que se instala em seu país
nos anos próximos à Segunda Grande Guerra. A partir destes
“primeiros e efêmeros esboços de uma formação de médicos que
não tem muito a ver com o que será o funcionamento dos futu-

4 Conferência pronunciada na policlínica do Instituto Psicanalítico de Berlim em 1923 e

publicada pela primeira vez em Gyógyászat, 65, 1925, reimpressa em Problems of human
pleasure and behaviour. New York: Liveright, 1956. p. 182-87.
Pequeno Retrato Biográfico 9

ros grupos Balint”,5 dois de seus artigos, a propósito dos temas


da crise da prática médica e do uso da psicoterapia pelos clínicos
gerais, são publicados em jornais médicos. O período que vai de
1933 a 1937 correrá em uma atmosfera de intensa produção
científica, tanto para Michael quanto para Alice.
Em 1938, o clima de Budapeste torna-se irrespirável com a
aproximação dos tempos de barbárie. Entre outras denúncias, a
policlínica é acusada de receber comunistas sob seus cuidados, o
que realmente ocorria. As reuniões de médicos passam a ocorrer
com a presença de um policial, e a posição dos psicanalistas fica
cada vez mais difícil. Após a anexação da Áustria (a Anschluss), o
presidente da Associação Psicanalítica Húngara, István Hollós,
pede ajuda à Associação Psicanalítica Internacional (IPA) para
salvar os psicanalistas. Seu presidente na época, John Rickman,
chega da Inglaterra e incita os analistas húngaros a emigrar. É
assim que o casal Balint solicita um passaporte britânico, toma o
caminho do exílio, foge da Hungria e se instala em Manchester
com o filho, no início de 1939. Como todos os imigrantes, ele se
vê obrigado a refazer seus estudos em medicina para, de posse das
qualificações médicas britânicas, obter autorização para clinicar
em solo inglês.
A escolha da Inglaterra parece ter razões políticas, pois se tra-
tava de um país tolerante para com as ideias, religiões e raças,
onde o antissemitismo não encontrou forças para proliferar.
Além disso, “as qualidades intelectuais pragmáticas de Balint, sua
tendência a colocar os fatos em primeiro lugar e seu raciocínio
lógico o aproximam do gênio empírico inglês”.6 Em particular,
de John Rickman, amigo que verdadeiramente o ajudou muito
no exílio, assim como de outros analistas ingleses. Outra razão
decisiva para a opção inglesa refere-se ao fato de que, desde 1938,

5 Ricaud MM. Op. cit. p. 84.


6 Idem, p. 108.
10 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Freud havia se instalado em Londres, fazendo desta capital o


novo centro de pesquisas do mundo analítico. Essa circunstância
favorecia o grande projeto balintiano de continuar a obra de
Ferenczi e torná-la cada vez mais conhecida, contrapondo-se à
disposição de seus detratores de sepultá-la definitivamente após
sua morte e que, já durante a sua vida, temiam seus avanços ico-
noclastas.7 Em função das perspectivas de trabalho, Balint não
pode instalar-se em Londres logo de início, tendo de optar a con-
tragosto por Manchester, cidade pela qual não sente maiores
atrações.
Lá ele terá de enfrentar não apenas a dor do exílio, mas tam-
bém a perda de Alice, que morre brutalmente em agosto de
1939, e, um ano depois, a de Vilma, amada sogra a quem era
muito apegado e que não conseguiu sobreviver muito tempo ao
desaparecimento de sua filha. A morte de Alice é uma das provas
mais duras de sua vida, pois ele perde não apenas a mulher ama-
da, mas a inigualável companheira e colaboradora de todos os
instantes. Um longo período de luto se anuncia. Uma dolorosa
travessia de deserto – pontuada às vezes por breves momentos de
felicidade e recomeços possíveis que logo se mostrarão ilusórios –
inicia-se nessa época e dura, aproximadamente, até 1948. Seu
trabalho de pesquisa teórica entra imediatamente em crise, e o
ano de 1940 será o primeiro ano virgem de toda a sua produção;
durante os cinco anos que se seguem à morte de Alice ele não
publica praticamente nada. Quanto a seus próprios pais, Balint
ficou sabendo após a guerra, em uma missão científica à Hungria
que visava restabelecer as relações internacionais entre os psica-
nalistas, que eles teriam se suicidado para escapar da captura e do
assassinato nas câmaras de gás dos nazistas.

7 Sobre isso ver Haynal A. A técnica em questão – Controvérsias em psicanálise: de Freud e

Ferenczi a Michael Balint. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.


Pequeno Retrato Biográfico 11

Ainda assim, apesar das dificuldades inerentes aos tempos de


guerra, o psicanalista húngaro mostra-se disposto a tentar
suplantar o abismo que se abriu diante dele. Encontra forças para
continuar a viver e trabalhar, tornando-se membro da Sociedade
Britânica de Psicanálise, em 1941. Mesmo exilado em Manches-
ter, consegue participar dos grandes debates e controvérsias que
se passavam em Londres no seio daquela sociedade. A questão
central de tais debates dizia respeito ao valor que se deveria atri-
buir às teorias de Melanie Klein, consideradas por alguns um
inadmissível desvio da tradição freudiana. Sem dúvida, para
além dos mais diversos temas psicanalíticos que movimentavam
aquelas discussões (a técnica, o fantasma, a formação e o método
psicanalíticos), uma série de interesses políticos encontravam-se
em jogo naquele momento.
Considerando-se a importância das “Controvérsias ingle-
8
sas” no contexto da história da psicanálise, cabe aqui um breve
parênteses para precisar melhor a posição de Balint quanto a elas
não apenas do ponto de vista institucional, mas também teórico.
Talvez o aspecto fundamental a ser destacado seja que Balint faz
parte daquele grupo de analistas que, diante das duas escolas
rivais que se constituíram em torno de Melanie Klein e Anna
Freud após a morte de Freud, procuravam um terreno de acordo
e o prosseguimento do diálogo: o Middle Group ou Grupo dos
Independentes.
Presente em julho de 1942 à assembleia geral e à discussão
científica de 21 de outubro do mesmo ano, onde a teoria kleinia-
na sobre as fantasias precoces foi colocada em questão, ele inter-
vém demonstrando sua decepção: do seu ponto de vista, o que
conta é a validade de uma tese, muito mais do que o nome de seu
autor, e não seria um voto que poderia decidir algo a propósito de

8 Sobre isso ver King P, Steiner R. (Eds.) Les controverses Anna Freud – Melanie Klein,

1941-1945. Paris: PUF, 1996.


12 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

uma teoria científica. E, chegado o momento de se pronunciar em


uma votação sobre a oportunidade de se difundir os textos científi-
cos que serviam de base para as discussões, ele propõe, muito
pragmaticamente para aqueles tempos de guerra, que cada mem-
bro contribua financeiramente com uma pequena quantia para a
reprodução dos textos.
Em 17 de fevereiro de 1943, data do debate em torno do tex-
to de Susan Isaacs, “Natureza e função do fantasma”,9 ele se
interroga sobre os sentimentos reais do bebê durante os primei-
ros meses de vida e seus graus de satisfação e insatisfação durante
o tempo que passa acordado. Em dezembro daquele mesmo ano,
uma discussão a respeito da regressão10 suscita de sua parte uma
intervenção sobre as fobias infantis. Elas são entendidas como
tentativas de liquidar, por meio de projeções dos perigos internos
sobre o mundo exterior, “as angústias que surgem primeiramente
dos fantasmas canibalísticos do estágio sádico-oral, fantasmas
que o próprio Freud havia descoberto ainda que não os tivesse re-
lacionado com as primeiras fobias”.
Enfim, em março de 1944, a propósito de um texto de M. Kle-
in, ele expõe a tese da Escola de Budapeste sobre o desenvolvimento
precoce da criança: a primeira fase da vida extrauterina está volta-
da para a necessidade de ser amado. Em seguida, apoia-se em
Edward Glover para formular sua já então habitual crítica ao
estado de narcisismo primário: “o termo narcisismo primário,
em certa medida, perdeu sua utilidade”. Nessa mesma época, no
momento em que Glover é demitido da Sociedade Britânica,
Balint é o único a manifestar algum pesar e anseio pelo retorno
do colega.
Mas sua intervenção mais importante no seio da Sociedade
Britânica acontece na seção dedicada a uma exposição do Comi-
9 Isaacs S. Nature et fonction du phantasme. In: Développements de la psychanalyse. Paris:

PUF, 1966. p. 64-114.


10 Cf, King P, Steiner R. Op. cit. p. 616-36.
Pequeno Retrato Biográfico 13

tê de formação. Após uma análise geral da situação da Sociedade –


em que comenta o clima de agressividade e atrito entre os com-
panheiros, partidários de diferentes tendências, responsável,
segundo ele, por diversas passagens ao ato – Balint formula sua
crítica à formação dos analistas. Esta se caracterizaria por um sis-
tema didático ultrapassado e constituído primeiramente como
um mecanismo de defesa contra feridas não cicatrizadas, fruto da
saída de alguns analistas da instituição como Jung, Adler e Stec-
kel. Além disso, a formação analítica também procurava evitar
ambições pessoais e a atuação de situações edipianas não resolvi-
das contra uma figura paterna. Esse sistema, que parecia eficaz
até a morte de Freud, mostrava uma série de falhas e precisava ser
repensado, principalmente considerando-se o grande número de
lutas internas que ainda ocorriam no seio da Sociedade. Com o
fim da organização patriarcal e o advento de uma organização
igualitária de irmãos, dotados dos mesmos direitos ao debate de
suas teses, todo o sistema se encontrava em crise justamente por
não ter sido pensado para lidar com esse tipo de situação. Nessas
condições, a análise didática não se encontrava submetida prati-
camente a nenhum tipo de controle e possuía um poder quase
autocrático que precisava urgentemente ser revisto a partir de
novos critérios.
Em termos mais objetivos, sua proposta era a de que fosse
oferecida aos candidatos uma lista de didatas, dando-lhes a op-
ção de escolha, em vez da indicação de um único analista deter-
minado pelo Comitê de formação. Assim, os candidatos a analis-
tas seriam tratados com mais liberdade e maturidade, o que os
retiraria da posição de puberdade artificial em que haviam sido
colocados.11 Resumindo, o que Balint propunha era: maior li-
berdade para os candidatos, advinda de um controle igualitário
para todos, inclusive os didatas; uma oposição quase sistemática
à conservação do poder por parte de uns poucos analistas, que

11 Idem, p. 786-88.
14 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

acabavam por adquirir uma “reputação artificial”; e, enfim, uma


maior clareza e um engajamento mais direto dos analistas. Ainda
que a assunção destas posições corajosas tenha lhe valido a inimi-
zade de alguns, como Ernest Jones (por “coincidência”, um dos
maiores críticos de Ferenczi) e seus correligionários, Balint aca-
bou sendo eleito para o Comitê de formação e sua influência no
seio da Sociedade Britânica não parou mais de se afirmar a partir
da segunda metade dos anos 1940.
Em 1944, após alguns anos de celibato, ele vem a se casar
novamente com uma antiga paciente, Edna Oakeshott, que tam-
bém se tornara psicanalista, com quem viveu em situação pouco
confortável e passando por várias dificuldades, separando-se dela
três anos depois. Em 1945, ele consegue retomar a pesquisa e,
com um trabalho em psicologia genética sobre a personalidade
dos bebês, obtém um título de mestre em ciências, o que favore-
ceu suas ambições acadêmico-universitárias.
Após a guerra, Balint muda de vida e se estabelece em Lon-
dres, onde trabalhará com grandes astros da escola psicanalítica
inglesa na Clínica Tavistock, para a qual entrou em 1949, como
Wilfred Bion e seu velho amigo John Rickman. Celeiro de pes-
quisadores em ciências humanas, funcionando como um labora-
tório onde novas experiências podiam ser desenvolvidas, a Tavis-
tock havia recentemente tornado-se ilustre naquela época ao
propor uma teoria psicopatológica original, fundada no estudo
das interações do indivíduo com seu ambiente social e familiar.
No quadro dessa prestigiosa instituição, ele logo abre seu primei-
ro seminário consagrado aos problemas psicológicos da prática
médica, dando continuidade ao trabalho em psicanálise aplicada
que havia iniciado antes da guerra, em Budapeste. Foi lá também
que conheceu Enid Albu-Eicholtz, sua terceira esposa.
Analisada por Rickman e Winnicott, admitida como psica-
nalista da Sociedade Britânica em 1956, Enid Balint iniciou Mi-
chael em uma nova técnica: a do case work. Fruto de seu trabalho
Pequeno Retrato Biográfico 15

no Family Discussion Bureau, criado em 1948 visando desenvol-


ver técnicas profissionais para lidar com problemas familiares e
ajudar casais em seus problemas pessoais, o case work tinha como
objetivo comentar e trocar relatos de casos em grupos compostos
por médicos e analistas. Essa experiência foi imediatamente
incorporada ao seminário balintiano de discussão de casos e dela
se originariam os chamados “grupos Balint”, posteriormente tão
famosos, como seminários para clínicos gerais interessados em
compreender melhor os problemas emocionais com os quais se
deparavam no cotidiano de sua prática. Enid e Michael se divor-
ciam de seus respectivos cônjuges, em 1953, para casar e conti-
nuar a trabalhar em conjunto, empreendendo uma longa cola-
boração científica. Este seria, portanto um encontro crucial e de-
terminante na vida de Balint, do qual ele reconheceu explicita-
mente a importância na continuação e renovação de sua obra.
Em 1954, Balint torna-se o primeiro convidado estrangeiro
da Sociedade Francesa de Psicanálise, sendo apresentado nessa
ocasião a Ginette Raimbault, aluna de Jenny Aubry e membro
da Escola Freudiana de Paris. É ela quem introduz a prática dos
grupos Balint no Hospital de Crianças Doentes, em 1965, e no
serviço do Prof. Pierre Royer,12 onde Enid e Michael assistiram a
várias reuniões. Judith Dupont, membro da Associação Psicana-
lítica da França – neta de Vilma Kovacs, filha de Olga Dormandi
(nascida Szekely) e sobrinha de Alice Balint –, foi quem traduziu
sua obra para o francês, tendo tornado-se, também, a executora
testamentária da obra de Sándor Ferenczi. Tudo isso contribuiu
para a afirmação da escola húngara na França e para o desenvol-
vimento de uma corrente particular da historiografia freudiana,
cujos traços encontram-se na revista Le Coq Héron, criada em
1971. Na Suíça, em Genebra, são abertos os arquivos Balint por
André Haynal, após receber manuscritos e correspondências de
Enid Balint.

12 Cf. Roudinesco E, Plon M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 48.
16 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

No fim dos anos 1950, inúmeras propostas de trabalho pas-


sam a afluir de todas as partes do mundo. Após oferecimentos da
universidade de Baltimore (que ele recusa) e de Cincinnati (que
ele aceita), Balint é convidado a dar conferências em Oxford,
Paris e Frankfurt. Em 1955 é eleito presidente da seção médica
da Sociedade Britânica de Psicologia e, em 1957, nomeado pro-
fessor adjunto da Universidade de Cincinnati. Em 1960, volta
pela primeira vez a Manchester para dar conferências que se se-
guem em Bristol e Londres. No mesmo ano, aposenta-se a con-
tragosto da Clínica Tavistock para, no ano seguinte, aos 65 anos,
tornar-se o responsável honorário pelos seminários de formação
pós-universitária na College Hospital University de Londres.
Após uma conferência em Dublin, parte para a América apresen-
tando seminários em Pittsburg, Birmingham e Cleveland. Em
1964, novamente vai à América, para conferências em Albany e
Denver, e um ano depois vai à Austrália e à Suíça, participando
em 1967 do Congresso Internacional de Psicoterapia de Weisba-
den. No ano seguinte, dá uma conferência na Sorbonne em ple-
na efervescência da revolta estudantil de maio de 1968. Em
1969, será finalmente eleito presidente da Sociedade Britânica
de Psicanálise, após ter sido secretário científico daquela institui-
ção durante três anos. Sua última conferência parisiense, sobre a
formação de clínicos gerais, acontece no Hotel Hilton, em abril
de 1970, época em que suas pesquisas estavam voltadas para
pacientes cujas doenças não podiam ser identificadas e para as
quais, portanto, não havia diagnóstico possível. Em 31 de de-
zembro daquele mesmo ano, Balint morre de uma crise cardíaca
durante o sono aos 74 anos de idade. Após sua morte, seu traba-
lho foi divulgado e continuado por Enid Balint até o falecimento
dela, em 1994.
De acordo com o breve perfil biográfico esboçado por um
amigo e comentador de sua obra, Harold Stewart, “Michael Balint
era amável, generoso, compreensivo e avesso ao autoritarismo.
Pequeno Retrato Biográfico 17

Ele também podia ser provocativo, arrogante, desdenhoso e au-


toritário. Ele podia ser amado ou odiado, mas era difícil ser indi-
ferente a ele”.13 Ainda segundo Michelle Moreau Ricaud, outra
biógrafa, todos os que o conheceram reconheciam nele as quali-
dades de presença, cortesia, generosidade, mas também de hu-
mor. Implicante, divertia-se em irritar alguns de seus amigos pró-
ximos e tinha consciência disso. Este humor lhe permitia rir de si
mesmo, de seu investimento irremediável, da paixão única de sua
vida venturosa. “Sou um viciado na análise (I am an inveterate
addict): o que mais me interessa é a análise. Não posso fazer nada
contra isso. Minha vida não seria minha vida sem a análise”.14
A partir de suas lembranças evocadas no Congresso Interna-
cional Balint de 1986, Enid Balint o apresenta como um homem
exigente, jamais satisfeito, sempre preocupado em progredir.
Trabalhador infatigável, ele prossegue em sua reflexão durante as
noites, pelas caminhadas em Regent Park e até mesmo durante as
férias. Bastante preocupado em se comunicar com seus colegas e
numerosos correspondentes, Michael permanece acessível a
todas as solicitações. Os companheiros de trabalho louvam sua
coragem diante dos doentes, que ele escuta com “todos os ouvi-
dos da pele”, e diante dos próprios colegas a quem lhe interessa
despertar a atenção, mesmo não sendo um orador brilhante.
Sem se caracterizar como grande professor, ele praticava acima de
tudo a maiêutica: “Gostaria de utilizar e demonstrar através de
suas próprias experiências que vocês sabem muito mais do que a
medicina lhes ensinou”, diz ele ao grupo Balint organizado por
Gendrot, em 1968, em um castelo de Kernuz na Bretanha.15 O
dever do médico de família é reunir os detalhes isolados: “Não
sabemos, mas podemos saber. É necessário falar disso juntos”.

13 Stewart H. Michael Balint: object relations pure and applied. London: Routledge, 1996. p. 4-5.
14 Entrevista a Swerdloff B. In: Ricaud MM. Op. cit. p. 221.
15 Cf. “Boletim da Sociedade Médica Balint n. 6, Out. 1975" citado por Ricaud MM.
18 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Em uma atmosfera positiva, propícia ao trabalho e às trocas,


ele sabia escutar, encorajar e surpreender, criando um clima que
permitia aprender com as experiências. Balint recomendava aos
colegas “pensar com arrogância [mas] se exprimir com modera-
ção: esta era sem dúvida sua própria maneira de se conduzir
naquele momento de sua vida”.16 No entanto, sua costumeira
gentileza podia transformar-se em grande severidade e dar lugar
a discussões mordazes sempre que a resistência ou a má fé torna-
vam-se flagrantes. Por outro lado, também era dotado de uma
enorme tolerância, exortando os colegas a falar livremente, ou-
sando sempre dizer coisas pessoais e ligadas às fantasias. Não se-
riam exatamente essas fantasias, esta zona de sombras do pensa-
mento aquela que permite que nos recriemos quando consegui-
mos apreendê-la? Ousar pensar contra as verdades estabelecidas,
fora dos modelos e dos hábitos preguiçosos, esse é o lado icono-
clasta de Balint, que ousa pensar com insolência ainda que sem-
pre com cuidadosa prudência. É talvez à junção do pensamento
húngaro com o empirismo inglês que devemos esta formação e
teorização ousadas que encontramos em Balint. Fiel discípulo e,
no entanto, pesquisador independente e inovador, ele correu o
risco, à sua maneira, de ser considerado um herético, um traidor,
e de ser traído por seus colegas, do mesmo modo como a história
recente de Ferenczi lhe havia mostrado a possibilidade. Valori-
zando grandemente a independência de pensamento e recorren-
do sempre a argumentações consistentes, Michael Balint deve ser
considerado um personagem essencial na história do movimento
psicanalítico, se a psicanálise ainda pretende continuar a se rein-
ventar.
Após esse breve percurso por sua vida, vejamos em seguida
algumas de suas principais contribuições para a clínica e as teo-
rias psicanalíticas.

16 Ricaud MM. Op. cit. p. 222.


A Obra de Balint –
Conceitos II
Fundamentais

AMOR VERSUS NARCISISMO PRIMÁRIO

U m tema central nas discussões de Balint a respeito da teoria


psicanalítica toca em um conceito crucial da psicanálise: o
de narcisismo. Mais precisamente, é a hipótese do narcisismo pri-
mário – segundo a qual o indivíduo ao nascer tem pouca ou ne-
nhuma relação com seu entorno – que lhe parece problemática, já
que boa parte das teorizações a respeito deste conceito permanece
incerta. Segundo ele, não são poucas as contradições existentes
entre o narcisismo primário, as noções de autoerotismo e a rela-
ção objetal primária, mesmo se considerarmos que todas essas
referências dirigem-se para um mesmo problema, ou seja, preten-
dem de algum modo dar conta das relações mais primitivas do
infante com o mundo ao seu redor. Para Balint, “enquanto a lite-
ratura sobre o narcisismo primário é escassa, dificilmente indo
além de repetir as várias afirmativas e sugestões feitas por Freud, a
do narcisismo secundário é muito rica e baseada em excelentes
observações clínicas”.17 Sendo assim, vejamos mais detidamente
como o autor aborda o que ele considera que sejam os problemas
inerentes ao conceito de narcisismo primário.
Uma das suposições básicas da teoria balintiana é que Freud
parece ter conservado durante um bom tempo três pontos de vis-
ta distintos quanto à relação mais primitiva que se estabelece
entre o bebê e seu entorno. O mais antigo dentre eles, publicado
na primeira edição dos “Três ensaios sobre a sexualidade” de

17 Balint M. A falha básica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 59. 19


20 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

1905,18 permaneceu imutável em todas as edições posteriores


revisadas e corrigidas pelo autor. Como sabemos, Freud costu-
mava acrescentar suas novas descobertas à última edição publica-
da, o que neste caso não ocorreu. A passagem destacada por
Balint como aquela que caracteriza a posição freudiana mais
antiga a respeito das relações de objeto encontra-se na derradeira
seção do último ensaio e intitula-se, na edição que utilizamos,
“O encontro de objeto”.19 Nela, Freud destacava que, a princí-
pio, a pulsão sexual tem um objeto fora do corpo da criança e
que só posteriormente, perdido aquele objeto, ela se tornaria
autoerótica. Como haveria uma tendência em busca de restaurar
de alguma forma esta primeira modalidade de relação objetal,
Freud passou a ver nela o protótipo de toda e qualquer relação de
amor. Nesse sentido, qualquer encontro com um objeto seria na
verdade um reencontro com a primeira satisfação sexual. Só em
1915 é que essa passagem seria acrescida de uma nota de rodapé
na qual Freud assinalava a descoberta de mais uma modalidade
de satisfação, isto é, a satisfação do encontro narcísico. Nestes
termos, a hipótese de Balint é a de que mesmo após a introdução
da teoria do narcisismo,20 por muitos anos, Freud não teria tido a
intenção de abandonar a tese de uma relação objetal precoce pri-
mária em benefício do conceito de narcisismo primário.
Porém, nesse mesmo artigo de introdução ao narcisismo,
também encontramos a exposição final de uma segunda teoria
sobre as relações mais primitivas com o ambiente, a qual já vinha
sendo anteriormente esboçada.21 Essa teoria afirma a inexistên-
cia de uma unidade comparável com o ego desde o princípio e
18 Freud S. Tres ensayos de teoría sexual (1905). In: Obras completas. Buenos Aires:

Amorrortu, 1995, vol. VII.


19 Idem, p. 202.
20 Cf. Freud S. Introducción del narcisismo (1914). In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1995, vol. XIV.
21 Cf. Freud S. Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci (1910). In: Obras completas.

Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XI; Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de
paranoia descrito autobiográficamente” (1911[1910]). In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1995, vol. XII; Tótem y tabú (1912). In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1995, vol. XII.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 21

que, neste sentido, ele seria produto de uma nova ação psíquica
que, acrescida ao autoerotismo, desembocaria no narcisismo.
Assim, o narcisismo passa a ser visto como um estágio interme-
diário entre as pulsões autoeróticas, presentes desde o começo, e
as relações de objeto posteriores. Essa seria a ação psíquica que
levaria ao tipo de escolha objetal descrito como narcísico. Balint
destaca que este tipo de escolha narcísica passa, então, a ser consi-
derado uma alternativa àquele descrito nos “Três ensaios”, isto é,
a postulação da existência de uma relação objetal primária, a qual
resultaria em uma escolha que, só mais tarde, seria caracterizada
como anaclítica ou de apoio. Além disso, ele também ressalta
que, em todas essas articulações, Freud mostra que o narcisismo
é essencialmente um fenômeno secundário ou uma fase a meio
caminho entre o autoerotismo e a relação de objeto. Nas suas
palavras: “é de admirar que o trabalho ‘Sobre o narcisismo’, in-
trodutor dessa teoria, não contenha uma descrição concisa do
narcisismo primário. Entretanto, como em geral se sabe, o narci-
sismo primário tornou-se a teoria-padrão para descrever a relação
mais primitiva do indivíduo com seu entorno”.22 Em seus escri-
tos posteriores, Freud faz constantes referências a ela, chegando
mesmo a afirmar, em seu último trabalho, que toda a cota de libi-
do disponível seria primeiramente armazenada no ego, e que esse
estado absoluto inicial é o que se pode chamar de narcisismo pri-
mário.23 Esse estado permaneceria até que o ego começasse a
investir libidinalmente os objetos, transformando a libido narci-
sista em libido objetal. Talvez pelo fato de a formulação citada
constituir o último depoimento freudiano sobre o tema, esta te-
nha tornado-se a versão oficial do narcisismo amplamente divul-
gada por todo o universo psicanalítico.
Balint, no entanto, não se contenta com essa interpretação.
Segundo ele, as teorias sobre o autoerotismo, o amor objetal pri-
mário e o narcisismo primário parecem contraditórias, ainda que
22 Balint M. Op. cit. p. 34.
23 Cf. Freud S. Esquema del psicoanálisis (1939 [1934-38]), Capítulo II – “Doctrina de las

pulsiones”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XXIII, op. cit. p. 148.
22 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Freud nunca tenha chegado a discutir essa contradição. As


evidências encontradas por Balint, ao contrário, mostram que Freud
conserva simultaneamente as três teorias, parecendo não conside-
rá-las mutuamente excludentes. Neste sentido, Balint lembra
que o termo narcisismo acaba sendo utilizado para descrever es-
tados semelhantes, ainda que de modo algum idênticos. Sendo
assim, aquilo que Freud nomeou como narcisismo primário ou
absoluto não passaria de uma hipótese que se poderia presumir,
mesmo sem contar com nenhuma observação clínica que a com-
provasse. Já o narcisismo secundário seria realmente passível de
observação clínica e descreveria um estado no qual uma parte da
libido que anteriormente investia os objetos externos seria retira-
da deles e se voltaria para o ego.
Cabe salientar que, sem nunca mencionar a necessidade de
reconciliar as possíveis contradições inerentes às três teorias, Freud
parece ter tentado sintetizá-las na 26ª das “Conferências de intro-
dução à psicanálise”, de 1917, intitulada “A teoria da libido e o
narcisismo”. Lá ele afirma que o progresso no desenvolvimento
libidinal posterior ao estado narcísico, isto é, a escolha de objeto,
poderia ocorrer de acordo com duas possibilidades diferentes: “o
tipo narcisista, em que o próprio eu é substituído por outro que é
o mais parecido possível com ele, ou o tipo de apoio (anaclítico),
em que as pessoas que adquiriram valor por terem satisfeito as
outras necessidades da vida também são escolhidas como objetos
pela libido”.24 Nessas condições, o autoerotismo seria considera-
do a atividade sexual do estágio narcísico de alocação da libido.
Nessas condições, de acordo com Balint, apesar de Freud nos
oferecer uma teoria extremamente ampla, em que o narcisismo
primário é tido como a fase mais primitiva a partir da qual se
desenvolvem posteriormente as demais organizações libidinais,

24 Freud S. Conferencias de introducción al psicoanálisis – parte III (1917). In: Obras

completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol. XVI, op. cit. p. 388 (grifado no original).
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 23

essa síntese teórica não parece resolver certas contradições ine-


rentes a ela. Uma boa ilustração dessa situação pode ser encon-
trada em uma nota de rodapé acrescentada ao terceiro capítulo
de “O ego e o id”, publicado como sabemos em 1923, no mesmo
ano em que Freud publicou um artigo enciclopédico em que
defendia a natureza primária do amor objetal.25 Nesta nota, ele
se refere à primeira parte do capítulo sobre “O ego e o superego”
e descreve as mudanças que podem ocorrer no ego, como por
exemplo, as introjeções e identificações, depois que o id – e não o
ego, como havia sido postulado no “Esboço de Psicanálise” – te-
nha sido forçado a abandonar seus objetos de amor. Diz ele:
“agora, quando da separação entre ego e id, devemos reconhecer
o id como o grande reservatório da libido no sentido de ‘Intro-
dução ao narcisismo’. A libido que aflui ao ego através das identi-
ficações descritas produz seu ‘narcisismo secundário’”.26 Mais adi-
ante essa tese é reafirmada de maneira ainda mais inequívoca
quando Freud diz literalmente que, enquanto o ego ainda está
em formação, toda a libido é acumulada no id, e que o narcisis-
mo egoico é, portanto, secundário.
A finalidade óbvia dessas passagens, afirma Balint, é esclare-
cer uma situação incerta à luz de novas descobertas. Mas isso se-
ria feito de forma apenas temporária, criando ao mesmo tempo
mais problemas. Aprendemos, então, que o id, e não o ego, é o
grande reservatório da libido e que o investimento libidinal do
ego, particularmente o das partes modificadas pelas introjeções e
identificações, é definitivamente classificado como narcisismo
secundário, ainda que possa ocorrer no princípio da vida. Resta-
ria saber se realmente faz sentido pressupor, a partir da teoria psi-
canalítica, um narcisismo primário no ego, questão que Freud

25 Cf. Freud S. Dos artículos de enciclopedia: ‘Psicoanálisis’ y ‘Teoría de la libido’ (1923 [1922]).

In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, vol. XVIII, op. cit. p. 231-254.
26 Freud S. El yo y el ello (1923). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1995, vol.

XIX, op cit. p. 32 (grifado no original).


24 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

deixa em aberto. Se ele existe, quais então seriam o seu lugar e o


seu papel?
James Strachey sugeria, em um apêndice ao texto freudia-
no,27 que a expressão “grande reservatório da libido” tenha sido
utilizada em dois sentidos diversos: um indicando a função
semelhante à de um tanque de armazenamento, e o outro suge-
rindo uma fonte de suprimento. Uma hipótese que Balint consi-
dera plausível, mas que nunca chegou a ser elaborada pelo pró-
prio Freud. Heinz Hartmann,28 por sua vez, afirmava que Freud
utilizava o termo ego em mais de um sentido e propunha que se
distinguisse entre dois significados: um referindo-se às funções e
aos investimentos de um sistema e o outro opondo o investi-
mento em si mesmo ao investimento no outro, sendo que o pri-
meiro teria precedência sobre o segundo, caracterizando-se por-
tanto como narcísico. A este argumento, pautado na formulação
de um “si mesmo” entendido como self, Balint opõe resumida-
mente a objeção de que se trata de um conceito nebuloso e vago,
que simplesmente não responde às questões colocadas, conside-
rando-as já respondidas. Do seu ponto de vista, uma definição
do narcisismo como investimento libidinal do self nos obrigaria a
distinguir, além da forma geral de narcisismo do self, classes espe-
ciais de narcisismo do id, dos narcisismos do ego e do superego,
cada uma possivelmente com suas formas primárias e secundá-
rias. “Embora essa subdivisão aparentemente precisa possa ser
futuramente vantajosa – desde que se possa definir adequada-
mente o self, distinguindo-o do ego, do id e do superego – atual-
mente vejo apenas suas desnecessárias complicações teóricas".29
Na verdade, o recurso a uma nova terminologia não resolve
as dúvidas clínicas a respeito da natureza primária de qualquer
27 Idem, p. 63-66.
28 Hartmann H. The ego concept in Freud’s work (1956). In: International Journal of

Psycho-Analysis, vol. 37, citado por Balint M. A falha básica, op. cit. p. 38.
29 Balint M. Op. cit. p. 39.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 25

tipo de investimento narcísico. O problema de definir topografi-


camente a parte do aparelho mental investido pelo hipotético
narcisismo primário – em contraste com a fonte de toda a libido –
nunca teria sido resolvido por Freud e teria sido apenas posto de
lado pela tradição psicanalítica que a ele se seguiu. Freud, assegu-
ra Balint, poderia ser tudo menos um escritor descuidado.
Assim, deveria haver alguma razão para que sempre voltasse ao
investimento do ego, sempre que falava de narcisismo. Embora
nunca tivesse aspirado ser um teórico obsessivo, ele definitiva-
mente era um impecável observador clínico, pois, quanto mais se
examinam suas descrições da prática psicanalítica, mais impressi-
onam sua profundidade e veracidade. Por conseguinte, continua
Balint, a causa dessa contradição interna da teoria do narcisismo
primário não poderia ser o emprego descuidado ou a incapacida-
de de ver claramente ou definir exatamente algo, mas a pouca
vontade de Freud de abandonar ou modificar as observações clí-
nicas em benefício de uma teoria bem organizada. O motivo
pelo qual ele voltava invariavelmente ao tema do investimento
do ego pela libido, ao tratar do narcisismo, era simplesmente
porque isso é o que se observa na prática clínica. O resto seria
apenas especulação, mais ou menos razoável, mas não um fato
clinicamente observável.
Ressaltando a importância deste argumento, que atribui um
peso fundamental à questão da observação clínica, Balint procura
mostrar que as observações sobre as quais Freud e outros psicana-
listas fundamentaram a hipótese do narcisismo como primário só
comprovam a existência do narcisismo como um fenômeno se-
cundário. Nesse sentido, ele procura discutir diversos aspectos nos
quais teria se fundamentado a teoria freudiana sobre o narcisismo
para mostrar que, em todos eles, trata-se na verdade de manifesta-
ções do narcisismo secundário. No que diz respeito à discussão
sobre o homossexualismo, por exemplo – caracterizado por Freud
nos “Três ensaios” como um tipo de distúrbio no desenvolvimen-
to libidinal em que prevaleceria uma escolha de objeto narcísica –,
26 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Balint chama a nossa atenção para o fato de que, segundo o pró-


prio Freud, tal escolha não é senão uma consequência de um
período primitivo de intensa ligação com a figura materna, que a
precede e determina. A observação de que as escolhas narcísicas
que caracterizariam o homossexualismo são posteriores à fixação e
à identificação com a mãe constitui, portanto, um forte argumen-
to a respeito da natureza secundária deste tipo narcísico de escolha.
O mesmo parece ocorrer no caso das diversas supervalorizações
não realistas do eu, que vão desde a megalomania psicótica até as
idealizações observadas nas crianças e nos povos primitivos. Nestes
casos, Balint nota que a onipotência que os marca revela-se invari-
avelmente como uma tentativa desesperada de se defender contra
o sentimento avassalador de impotência ou dispersão provocado
por experiências frustrantes.
Finalmente o psicanalista húngaro refere-se ao argumento
do sono. Sendo ele uma instância regressiva, poder-se-ia supor
que essa regressão se encaminharia, justamente, em direção ao
estado de narcisismo primário. Porém, mais uma vez, Balint
argumenta – agora recorrendo às referências nitidamente ferenc-
zianas30 – que o ponto ao qual tenta chegar a pessoa adormecida
não é o do narcisismo primário, mas o de uma espécie de estado
primitivo de paz com o entorno, no qual o ambiente sustenta o
indivíduo. Na verdade, este, quando tenta adormecer, retira-se
do mundo dos objetos e aparentemente fica só. Sendo assim, o
autor argumenta: “Esse recolhimento e solidão, que foram inter-
pretados como narcisismo, revelaram, a um exame mais aprimo-
rado, que a verdadeira intenção do adormecido é fugir às pres-
sões das relações comuns, para recapturar uma forma de relação
mais primitiva e satisfatória com os objetos, cujos interesses são
idênticos aos seus”.31 Nota-se que esses objetos, evidentemente,

30 Cf. Ferenczi S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
31 Balint M. Op. cit. p. 46.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 27

são representantes ou símbolos de objetos internos, que, por sua


vez, derivam de contatos precoces com o entorno.
Mas, então, poderíamos nos perguntar, diante de tantos pro-
blemas com esse conceito de narcisismo, o que poderia ser feito?
As alternativas balintianas seriam, primeiramente, admitir os
aspectos autocontraditórios e improdutivos da teoria do narcisis-
mo primário, deixando-a de lado. Em seguida, deveríamos recor-
rer a experiências clínicas que nos possibilitassem construir uma
nova teoria, mais eficaz porque passível de observações e refuta-
ções. Essa teoria, que começou a ser elaborada por Balint em seus
primeiros artigos dos anos 1930, consiste na ideia do amor primá-
rio e pretende dar conta das relações mais primitivas do psiquismo
com o meio ambiente, desalojando definitivamente as hipóteses
sobre o narcisismo primário. Já em 1935, nas “Notas críticas sobre
a teoria da organização pré-genital da libido”, o autor descreve o
desenvolvimento primitivo das relações objetais em termos de
amor ou libido, e não em termos de ódio ou destrutividade, como
ele era trabalhado na teoria psicanalítica de sua época. Esse tema
percorrerá quase todo o seu pensamento e será retomado ou modi-
ficado ao longo de grande parte de sua obra, chegando inclusive a
provocar algumas modificações importantes em sua teoria, tal
como veremos mais à frente ao analisarmos o conceito de falha
básica. Partindo das teses sobre o amor primário, Balint supõe que
o desenvolvimento do ódio seria sempre secundário, fruto de ex-
periências de frustração e separação. Sendo assim, a questão seria
compreender a razão pela qual a atitude do indivíduo para com o
ambiente, ou, mais especificamente, para com seus objetos de
amor, se modifica dando lugar às relações objetais descritas como
orais, anais, fálicas ou genitais.32
O que se encontrava aqui questionado era a influência esma-
gadora sobre a comunidade psicanalítica daquela época das teo-

32 Cf. Balint M. Critical notes on the theory of the pregenital organizations of the libido In:

Primary love and psycho-analytic technique. London: Hogarth Press, 1952. p. 59.
28 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

rias de Karl Abraham33 quanto aos estágios de organização da


libido, as quais apresentavam, aos olhos de Balint, não apenas
graves problemas de periodização, deixando de lado inclusive vá-
rias outras pulsões parciais, como também não davam conta da
existência das relações de objeto mais precoces34. Na verdade, era
o caráter passional da demanda do bebê nesses estágios mais pri-
mitivos que teria levado os analistas de então a verem nessas rela-
ções um signo de agressividade ou sadismo inatos. Assim, Balint
também já marcava sua distinção teórica com relação às propos-
tas kleinianas herdadas das teses de Abraham. Estas são substituí-
das pelas proposições de Ferenczi em Thalassa e Confusão de lín-
gua...,35 que demonstram a passagem do amor de objeto, passivo –
a vontade de ser amado a qualquer preço, de forma incondicio-
nal e absoluta, que reencontramos em alguns momentos regressi-
vos do trabalho analítico – para o amor de objeto ativo, em que o
sujeito pode esperar ser gratificado pelo parceiro em função de
seu próprio investimento amoroso no objeto. As críticas a Mela-
nie Klein serão ampliadas em um artigo de 1952,36 no qual
Balint, mais uma vez, propõe que o amor objetal primário seria o
período mais arcaico da existência, em que não haveria nenhum
tipo de ansiedade, e não as posições paranoide e esquizoide, con-
sideradas pela analista austro-inglesa como o ponto nodal a par-
tir do qual se irradiariam todas as possibilidades de transforma-
ção posteriores. Nesse artigo, nosso autor também mostra como
o narcisismo é, na verdade, uma das respostas possíveis para o
fracasso no atendimento aos anseios primários de amor: “se não
sou amado pelo mundo (do modo como eu quero), devo amar a

33 Sobre isso ver Abraham K. A short study of the development of the libido (1924). In:

Selected papers. London: Hogarth Press, 1942, apud Balint M. Primary love..., op. cit. p. 13.
34 Cf. Ricaud MM. Op. cit. p. 99.
35 Cf. Ferenczi S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade, op. cit. e Confusão de língua

entre os adultos e a criança. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. vol. IV.
36 Cf. Balint M. New beginning and the paranoid and depressive syndromes. In: Primary love ...,

op. cit. p. 244-65.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 29

mim mesmo”.37 Neste sentido, as atitudes paranoide e depressi-


va, interligadas, não são senão defesas contra um outro insufici-
entemente amoroso.
Cabe salientar que a teoria do amor primário não exclui os
lugares do sadismo e do masoquismo, mas os considera fenôme-
nos secundários, fruto das inevitáveis frustrações pelas quais se
passa na interação com o entorno. Como mostra René Gelly, “o
amor para Balint é o fato primitivo, correlato de qualquer exis-
tência e de qualquer fenômeno vital. É também por isso que ele
jamais aderiu à hipótese da pulsão de morte e que, ao contrário
de Melanie Klein, não acredita na existência de um sadismo pri-
mitivo”.38 Todos os esforços humanos visam estabelecer ou resta-
belecer uma harmonia envolvente com o entorno, visando amar
em paz. Sadismo e ódio parecem, portanto, inúteis e incompatí-
veis com esse desejo, ainda que a agressividade ou a violência
possam ser utilizadas em momentos que precedem imediata-
mente esse estado de harmonia desejada.
Esta forma primária de amor ativo está na base do que futu-
ramente será chamado de “trabalho de conquista”, o qual possi-
bilita o estabelecimento de um tipo de amor genital.39 Desta ma-
neira, o esquema de uma evolução biológica natural, implícito
no modelo clássico de desenvolvimento libidinal, fruto de um
certo tipo de leitura da obra freudiana, é abandonado em provei-
to de uma explicação histórico-relacional. A partir dessa forma
de ver as coisas, o “perverso polimorfo” bebê freudiano pode vir a
tornar-se mais ou menos agressivo por razões históricas vincula-
das às experiências vividas por ele. Assim, o amor não depende
da “biologia”, mas da “história pessoal” e da singularidade das

37 Idem, p. 263.
38 Gelly R. Aspectos teóricos do movimento Balint. In: A experiência Balint: história e

atualidade. São Paulo: Casas do Psicólogo, 1994. p. 34.


39 O “trabalho de conquista” é um tema que será mais bem desenvolvido no ano de 1959 em

Balint M. On genital Love. In: Primary love..., op. cit. p. 128-40.


30 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

relações objetais estabelecidas primariamente com o ambiente.


Isso significa que a relação afetiva da criança com o adulto não é
determinada pela natureza da satisfação sexual, dependente da
excitação ou do prazer ligados à estimulação das zonas eróge-
nas.40 “A criança, em plena fase sádico anal, segundo a teoria
freudiana, mostrava-se, de fato, nada sádica e nada anal. Ao con-
trário, era dócil e tranquila. Afetivamente, portanto, experimen-
tava um estado emocional que era justamente o oposto dos esta-
dos supostamente derivados da fase sádico anal”.41
Neste sentido, graças à regressão terapêutica, como veremos
melhor adiante, seria possível reencontrar em um primeiro tem-
po a relação de objeto passiva, para apenas em um segundo
momento, engajar-se em modos de relação objetal ativas, o que
proporcionaria ao sujeito um novo começo em sua vida afetiva.
Este seria um novo campo de investigações que Balint pressentia
escapar à teoria ortodoxa. Segundo o autor, “o que a cura restitui
à criança doente é a qualidade afetuosa da relação primária com o
seu entorno”.42 O duplo postulado da existência bastante preco-
ce de relações de objeto, relações elas próprias precedidas por um
estado primário pré-ambivalente – o amor primário –, condu-
zem-nos ao coração da originalidade de Balint, ainda que aqui
sua dívida para com os trabalhos de Ferenczi seja inegável.
Essas teses – que mostram a perplexidade não apenas de Balint,
mas de toda a Escola de Budapeste com relação ao conceito de
narcisismo primário – serão ampliadas e desenvolvidas com mai-
or precisão em um dos principais artigos sobre o tema do amor

41 Sobre a primazia da busca de objeto por parte da libido em detrimento da satisfação

pulsional, ver também a interessante perspectiva formulada por Ronald D. Fairbairn em


Études psychanalytiques de la personalité. Paris: Éditions Du Monde Interne, 1998. Para as
diferenças entre as teorias de Balint e Fairbairn, ver o livro de Neville Symington, The
analytic experience: lectures from the Tavistock. London: Free Association Books, 1986.
41 Costa, J F. Balint e o amor. In: Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de

Janeiro: Rocco, 1998. p. 107.


42 Faure F. La doctrine de Michael Balint. Paris: Payot, 1978. p. 126.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 31

primário, escrito dois anos depois, em 1937, e intitulado “Esta-


dos primitivos de desenvolvimento do ego: amor objetal primá-
rio”. Nesse artigo, que teve origem em uma comunicação feita
em um simpósio em Budapeste, o autor endereça-se aos analistas
de todo o mundo e, face às duas grandes correntes predominan-
tes desta época, quais sejam a ortodoxia freudiana e a escola klei-
niana, tem a audácia não apenas de mostrar-lhes seus pontos
cegos como também de propor, diferentemente de uma simples
reconciliação ou de um remanejamento, sua teoria do amor de
objeto primário. Com essa atitude audaciosa, ele demonstra, em
primeiro lugar, que pretende ser um herdeiro legítimo de Ferenc-
zi e, ao mesmo tempo, assume uma postura de marginalidade
com a qual dá um destino sublime à sua transferência não resol-
vida ou simplesmente interrompida pela morte do mestre. Veja-
mos, então, na sequência quais seriam suas teses fundamentais
quanto ao amor primário.
Uma de suas principais características é que ele ocorre, inevita-
velmente, muito cedo na vida dos indivíduos, sendo que outras
relações objetais futuras podem sempre ser a ele remetidas. Não
estando necessariamente vinculada a nenhuma das zonas eróge-
nas, esta relação objetal primária tem como base a interdependên-
cia pulsional da criança com a mãe. Os dois dependem um do
outro e estão sintonizados um com o outro; cada um satisfaz a si
por meio do outro sem a compulsão de recompensá-lo. “Na ver-
dade o que é bom para um vai bem para o outro. Esta interdepen-
dência biológica na unidade dual só tem sido considerada até ago-
ra muito superficialmente; por exemplo, achamos que a havíamos
explicado, pelo lado da mãe, através de uma identificação narcísica
com seu filho”.43 Essa relação íntima é interrompida muito cedo
pelo ambiente, o que acaba tendo como consequência a instaura-

43 Balint M. Early developmental states of the ego: primary object-love. In: Primary love..., op.

cit. p. 102.
32 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

ção de tendências na criança como o descontentamento, a avareza


insaciável e o desejo de manter-se agarrado – esta última será teori-
zada mais tarde a partir do conceito de ocnofilia, como veremos a
seguir. Quando tais impulsos de desejo são adequadamente satis-
feitos, instala-se um tranquilo sentimento de bem-estar. Assim, o
amor primário será designado como sendo a primeira de todas as
relações: a relação com o objeto mãe. Essa relação, a princípio
indiferenciada, será a base a partir da qual se desenvolve a satisfa-
ção libidinal dos dois parceiros. É importante destacarmos que
nesta ligação mãe–criança a satisfação de um é também a satisfa-
ção do outro e sua ausência resulta em tensões relacionais que
podem levar ao surgimento de todos os tipos de distorções do eu
da criança ou de fenômenos neuróticos na mãe. Segundo Harold
Stewart, esta descrição pode ser vista como “a precursora da futura
máxima de Winnicott de que não há algo como um bebê sem a
mãe e das ainda mais tardias conclusões da pesquisa observacional
das relações mãe–bebê”.44
A possibilidade de que as coisas se passem mal nessas relações
muito primitivas com o ambiente é plena de consequências. Se
pensarmos, por exemplo, que é precisamente uma catástrofe do
mesmo tipo que se repete na cura, a prática analítica de Balint
pode ser vista como o palco no qual ele encena sua crítica ao nar-
cisismo primário. “O retorno regressivo à zona que ele chamará
de área da falha básica, recolocando em jogo para superá-la uma
catástrofe atravessada pelo paciente, demonstra, com efeito, a
evidência de que a solução narcísica, longe de ser primária, é con-
secutiva a esta catástrofe”.45 Partindo de dados clínicos de paci-
entes regredidos em análise, fica claro como as qualidades básicas
dos desejos que estão em jogo nessas situações são as de que eles
sempre se voltam para um objeto e de que nunca vão além do
nível do pré-prazer, no sentido freudiano do termo. Tais fenôme-
44 Stewart H. Michael Balint: object relations pure and applied. op. cit. p. 25.
45 Ricaud MM. Op. cit. p. 134.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 33

nos, portanto, manifestam-se nos processos terapêuticos, porque


já possuem uma história na existência do paciente, que implica
os desenvolvimentos do estado de amor de objeto passivo primá-
rio, como haviam sido descritos no artigo anterior sobre o ego
em seus estados primitivos. Esses são alguns dos argumentos uti-
lizados pelo psicanalista húngaro para criticar a ideia de narcisis-
mo primário, uma das principais fontes das polêmicas entre as
escolas de Londres e Viena na época, crítica esta que, para Balint,
parecia ser tão importante quanto era para Freud a argumenta-
ção em favor da existência do inconsciente.
O artigo de Alice Balint “Amor pela mãe e amor materno”, de
1939, incluído no conjunto de trabalhos que compõem o livro
Amor primário e técnica psicanalítica, faz parte do trabalho realiza-
do em conjunto com Michael e é uma importante corroboração
de suas posições. Ali Alice afirma que a forma mais primitiva de
amor para com um objeto arcaico prescinde de qualquer sentido
de realidade, ainda que seja dela que aquilo que somos levados a
chamar propriamente de amor se desenvolva. Do seu ponto de
vista, “o amor arcaico sem sentido de realidade é a forma de amor
do id, a qual persiste como tal através da vida, enquanto que a for-
ma de amor social baseada na realidade representa a maneira de
amar do ego”.46 Assim, o amor pela mãe deixa de ser um amor
meramente sensual para ser visto como desprovido de sentido de
realidade, enquanto o amor ou o ódio pelo pai na situação edipia-
na são dominados pela realidade. Esse amor arcaico, que foi pri-
meiramente considerado como amor de objeto passivo, é descrito
agora como amor objetal primário, já que determinadas tendên-
cias ativas na criança representam nele um papel fundamental; o
que faz com que Balint abandone daí em diante a nomenclatura
passiva em suas futuras referências ao termo.

46 Balint A. Love for the mother and mother love. In: Primary love..., op. cit. p. 126.
34 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Em artigos posteriores, do final dos anos 1940 e início dos


1950,47 Balint mostra como em uma verdadeira relação de amor
encontramos, além da satisfação genital, aspectos como a ideali-
zação (acidental ou temporária), a ternura e uma forma particu-
lar de identificação, as quais se perpetuam no decorrer da infân-
cia prolongada do homem, este “embrião neotênico não apenas
anatomicamente, mas também no plano psíquico”.48 Nessa for-
ma de amor parecem contar mais a confiança e o bem-estar de
uma “união mística” do que a presença da prova de realidade.
Diante disso, a satisfação genital não passaria de uma breve e
periódica reprodução ilusória por via regressiva por meio da
fusão de seus elementos com os da ternura pré-genital. Assim, i-
nicialmente, o amor infantil de natureza não sexual opõe-se ao
amor adulto. Este só se estabelece posteriormente, quando o
objeto deixa de ser plenamente satisfatório quanto às demandas
primárias e passa a ser um parceiro cooperativo em função de um
trabalho de conquista, momento em que o princípio de realida-
de se impõe. Na teoria balintiana, “o amor ‘genital’ ou ‘o amor
adulto’ é redescrito não como o produto ‘natural’ da evolução
psíquica, mas como uma solução de compromisso entre desejo
de ternura infantil e necessidades sexuais genitais adultas, com-
promisso este arbitrariamente criado e incentivado por nossa
cultura”.49 Nessas condições, a conjugação da ternura com a sen-
sualidade deixa de ser uma consequência inevitável do desenvol-
vimento libidinal para tornar-se um ideal amoroso que busca-
mos por força das injunções culturais. Assim como o amor, o
ódio primitivo também se opõe ao ódio adulto, separados um do
outro pela aptidão para o teste de realidade. Além disso, o ódio é
visto como o último vestígio defensivo de uma demanda primá-
ria de amor não atendida.

47 Cf. Balint M. On genital love (1947) e Love and hate (1951). In: Primary love...,

op. cit. p. 128-58.


48 Balint M. On genital love. In: Op. cit. p. 134.
49 Costa JF. Op. cit. p. 118.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 35

Mesmo as descrições da vida fetal e das fases mais precoces


da vida extrauterina podem ser interpretadas, na visão balintiana,
como argumentos para a hipótese de uma interação precoce e
intensa ente o feto-bebê e seu entorno, interação na qual ainda
não existem objetos propriamente ditos, mas que constitui “uma
espécie de ‘oceano’ não estruturado”,50 interrompida subitamen-
te com o nascimento. A imagem do oceano utilizada nesta passa-
gem é bastante significativa não apenas por suas ressonâncias
ferenczianas, mas também porque parece apontar para uma pe-
quena modificação na maneira como Balint compreende a rela-
ção precoce do bebê com o ambiente, que a partir de seus traba-
lhos do final dos anos 1950 – principalmente Thrills and regres-
sions51 – passa a supor a existência de substâncias (às vezes cha-
madas de pré-objetos) com as quais o bebê funde-se para apenas
posteriormente dar origem a objetos propriamente ditos. Balint,
portanto, aceita as descrições da primeira infância como um esta-
do indiferenciado em que ainda não há limites entre o indivíduo
e o entorno e considera uma contradição lógica a coexistência
desse estado com o de narcisismo primário ou com o que tradi-
cionalmente se compreende como identificação primária. Mais
uma vez, por questões de rigor teórico e clínico, a natureza do
narcisismo só poderia ser efetivamente concebida como secun-
dária.

50 Balint M. Idem, p. 55.


51 Optamos aqui pela manutenção do título deste trabalho em inglês mediante dificuldades

de tradução do termo thrills em uma única palavra em português. Nos dicionários


encontramos definições como tremor, emoção, sensação, estremecimento, frêmito ou
sensação espasmódica. Todas elas nos parecem bastante insuficientes para traduzir o que
se passa no caso de uma experiência que provoca sensações impactantes ou emocionantes
como as que vivemos nos filmes de suspense (thrillers). Os tradutores franceses também
parecem ter passado por dificuldades na tradução deste termo, já que sua tradução para o
título do livro de Balint, Os caminhos da regressão (Les voies de la régression. Paris: Payot,
1972), também nos parece um tanto precária para expressar rigorosamente o problema.
O termo thrills aparecerá traduzido no decorrer deste livro simplesmente como emoções
ou emoções impactantes.
36 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

A hipótese balintiana é a de que há um investimento bastan-


te intenso do entorno desde a vida fetal, ainda que esse entorno
seja indiferenciado, o que caracteriza uma situação de mistura
harmoniosa interpenetrante. Neste mundo da mistura, da mes-
cla, do hibridismo não existem ainda objetos diferenciados, mas
apenas substâncias ou expansões ilimitadas, com as quais o indi-
víduo se relaciona não apenas biologicamente, mas também em
termos libidinais. Nele o self e o entorno encontram-se harmo-
niosamente misturados. Um aspecto comum a todas as formas
primitivas de relação objetal é que nelas o objeto é sempre tido
como certo – sem que haja a necessidade de considerar que ele
possa ser indiferente –, o que possibilita que ele se torne um par-
ceiro operatório a partir de um trabalho de conquista.52 Nessa
harmoniosa relação a dois, somente um dos parceiros pode ter
desejos, interesses e demandas; “sem qualquer necessidade de tes-
tá-lo, é dado como certo que o outro parceiro, o objeto ou
expansão amistosa, irá ter, automaticamente, os mesmos desejos,
interesses e expectativas, o que explica por que tal estado é, com
muita frequência, chamado de ‘estado de onipotência’’.53 Caso
ocorra algum obstáculo ou desarmonia, a reação consiste em sin-
tomas ruidosos e intensos de natureza destrutiva, agressiva ou
profundamente desintegrada, como se o mundo inteiro, incluin-
do o próprio ego, tivesse rompido-se ou como se o sujeito tivesse
sido engolfado por impulsos agressivos e destrutivos puros.
Neste quadro, portanto, o nascimento é visto como um trau-
ma que rompe o equilíbrio por uma mudança radical do entorno
e que quebra a harmonia das expansões sem limite. Quando a
relação desenvolvida com parte do entorno ou com o objeto
entra em contraste com a harmonia anterior, a libido retorna ao
ego e inicia ou acelera seu desenvolvimento, na tentativa de recu-

52 Sobre isso ver Changing therapeutical aims... In: Primary Love..., op. cit. p. 221-235.
53 Balint M. A falha básica, op. cit. p. 63.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 37

perar a sensação anterior de unidade. O investimento narcísico,


portanto, é secundário com relação ao investimento original do
entorno observado na primeira infância. Uma, dentre outras
possibilidades de reinvestimento libidinal original para além do
narcisismo secundário, resulta, segundo Balint, do desenvolvi-
mento das experiências ocnofílica e filobática do mundo. Ainda
que a ocnofilia pareça ser uma atitude mais primitiva que o filo-
batismo, a relativa cronologia das duas é bastante incerta. O que
é certo é que “ambas são bastante primitivas”,54 como veremos
no que se segue.
Voltando ao tema da crítica ao narcisismo primário, com o
qual iniciamos este capítulo, observa-se como até mesmo estados
regressivos, como a esquizofrenia e o sono profundo, são consi-
derados por Balint como uma forma bastante primitiva de rela-
ção e investimento de um ambiente provavelmente indiferencia-
do. Isso o leva a reafirmar sua posição de que “seria muito mais
simples aceitar a ideia de que, desde o começo, existe a relação
com o entorno de uma forma primitiva e que a criança pode
dar-se conta e responder a qualquer mudança considerável ne-
le”.55 Neste sentido, não poderia haver qualquer identificação
primária já que todas as identificações deveriam ser, por defini-
ção, secundárias a algum investimento objetal ou ambiental.
Ainda que haja narcisismo e identificação primários, ambos não
podem coexistir simultaneamente.

IMPORTÂNCIA DO APEGO NA OCNOFILIA E


EXPANSÕES AMISTOSAS DO FILOBATISMO
Como tivemos a oportunidade de ver, uma das hipóteses avança-
das no conjunto de trabalhos sobre o Amor primário é que a partir
de um tronco comum, o amor primário, fase em que o objeto
54 Balint M. Thrills and regressions. Connecticut: International Universities Press, 1987. p. 27.
55 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 56-57.
38 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

enquanto tal ainda não emergiu – em que o mundo, a mãe, as


substâncias (leite, ar), os odores, o calor etc. são misturas nas quais
o bebê está envolvido –, relações de objeto defeituosas, patológi-
cas podem-se instaurar como reação a um trauma. Delas, Balint
destaca duas: a ocnofilia e o filobatismo, termos por ele criados em
razão da insuficiência do vocabulário psicanalítico para descrever as
emoções ligadas ao amor primário, restrito até então às experiên-
cias orais precoces. O primeiro dos dois termos é derivado do gre-
go okneo (agarrar-se, aferrar-se, segurar-se com força), e o segun-
do, do modelo do acrobata (que caminha pelas extremidades, na
ponta dos dedos, longe da terra firme).56 Em cada um desses
casos o prazer e a angústia são vividos ou experimentados de for-
mas basicamente diferentes. Lá onde a busca de proximidade
possibilita um prazer crescente para uns, para outros esse prazer
intenso e excitante é obtido fora dessa região de segurança.
No mundo ocnofílico, o investimento primário, embora
misturado com uma grande dose de angústia, parece aderir aos
objetos emergentes. Eles são sentidos como seguros e tranquili-
zadores, ao passo que os espaços entre eles são considerados ame-
açadores e terríveis. A reação ocnofílica à emergência dos objetos
é prender-se a eles, introjetando-os, pois sem eles o indivíduo
sente-se perdido e inseguro; “aparentemente, prefere superinvestir
suas relações objetais”.57 Pelo fato de que nos estágios iniciais, logo
após o nascimento, a manutenção de uma forma primitiva de
relação exclusivamente bipessoal parece ser o limite do desenvol-
vimento da capacidade do bebê, Balint acreditou, durante mui-
tos anos, que só havia um único tipo de relação bipessoal preco-
ce, ou seja, a ocnofilia. Nela, qualquer ameaça de ser separado do
objeto cria uma intensa angústia, e a defesa utilizada com maior
frequência é o que o psicanalista húngaro descreve como sendo

56 Cf. Balint M. Thrills and regressions. Op. cit. p. 25 (grifado no original).


57 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 61 (grifado no original).
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 39

uma espécie de adesividade. Suas principais consequências são a


supervalorização do objeto e a inibição contra o desenvolvimen-
to de habilidades pessoais que tornem o indivíduo independen-
te. Desta maneira, a reação ocnofílica (segurar ou agarrar-se a
algo) parece ser não apenas a primeira, como também a mais
espontânea de nossas reações, já que a princípio ela deve preceder
a capacidade de ser independente e autônomo. Neste sentido, os
objetos ocnofílicos são considerados como símbolos da seguran-
ça proporcionada pelo amor materno, perfazendo um objetivo a
ser alcançado e mantido.
Diferentemente disso, no mundo filobático as expansões
sem objeto retêm o investimento primário original e são conside-
radas como seguras e amistosas, enquanto os objetos são percebi-
dos como empecilhos à satisfação e perigos traiçoeiros. O filoba-
ta “superinveste suas próprias funções do ego”58 – desenvolvendo
habilidades que lhe permitem manter-se só, ou seja, com muito
pouco ou até mesmo nenhum auxílio dos objetos. A partir do
desenvolvimento destas capacidades pessoais (egoicas) torna-se
possível recuperar a liberdade de movimentos e a harmonia com
as expansões sem objeto, ainda que as relações objetais possam
ser dificultadas. Sendo assim, o comportamento no estado filo-
bático impressiona justamente pela capacidade que o indivíduo
adquire de manter-se por si mesmo, sentindo-se seguro longe de
qualquer suporte. O filobata, afirma Balint, mantendo-se por
suas próprias forças, evoca-nos a capacidade de manter-se ereto e
afastado da mãe-terra, provando sua capacidade de independên-
cia pelo tempo que consegue manter-se sem se apegar a nada. O
filobatismo, portanto, parece ter alguma relação simbólica com a
ereção e a potência, sem que com isso seja possível considerá-lo
como um estágio propriamente primitivo da genitalidade, ou
mesmo uma genitalização secundária na idade adulta de uma

58 Balint M. A falha básica. p. 61(grifado no original).


40 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

função originalmente não genital; na verdade, é muito difícil


decidir por uma dessas duas posições. O que ocorre na realidade
é que todo filobatismo parece ser acompanhado de tendências
ocnofílicas regressivas, pois a maioria dos filobatas agarra-se a
pelo menos um objeto ocnofílico, ele próprio símbolo de potên-
cia e de ereção, em suas aventuras pelas expansões amistosas.
“Ter um objeto ocnofílico conosco”, diz o nosso psicanalista,
“também significa estar de posse de um pênis poderoso e jamais
flácido, o que reforça magicamente nossa potência e nossa pró-
pria confiança”.59 Estando de posse destes objetos comprovada-
mente ocnofílicos (seu equipamento), o filobata sente-se possui-
dor de poderes quase mágicos, o que o faz sentir-se mais confian-
te ao enfrentar os perigos das situações filobáticas.
Segundo Balint, comumente somos confrontados com mis-
turas variadas dos dois tipos de relação objetal, já que uma dessas
atitudes pode ser utilizada para reprimir ou sobrecompensar a
outra. Na ocnofilia a relação é incondicional e envolve obvia-
mente um temor dos (horríveis) espaços vazios entre os objetos,
os quais provocam um alívio quando são alcançados e mantidos
junto ao sujeito. Nela, encontramos praticamente todos os traços
característicos do amor primário, e um dos principais problemas
desse apego ocnofílico é a inevitável frustração a que ele está su-
jeito, antes de qualquer coisa, porque o objeto possui vida pró-
pria e isso implica em um perigo constante de ser abandonado.
Além disso, como muitas vezes um objeto parcial é utilizado na
aderência ocnofílica, a possibilidade de que ele possa destacar-se
do objeto total prejudicando-o é muito frequente na fantasia e
apenas ocasional na realidade. Tal situação gera várias complica-
ções que fazem com que essa relação nunca seja totalmente satis-
fatória para o ocnofílico. O objetivo real perseguido pelo sujeito,
que na verdade é o de ser mantido pelo objeto sem precisar pedir,

59 Balint M. Thrills and regressions. Op. cit. p. 29.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 41

também nunca é alcançado pelo ato de agarrar-se desesperada-


mente a ele. Como, nesse caso, pedir auxílio e segurança acaba
sendo muitas vezes humilhante, esse tipo de relação leva inevita-
velmente à ambivalência.
Já no caso do filobata, o mundo parece ser bastante diferen-
te, e o problema é ter de negociar a satisfação com um objeto
determinado, o que é tido como perigoso e que provoca medo.
Pode-se dizer, portanto, que o mundo filobático “consiste de
expansões amistosas dotadas mais ou menos densamente de
objetos perigosos ou imprevisíveis. Vive-se nas expansões amis-
tosas evitando cuidadosamente contatos arriscados com objetos
potencialmente perigosos. Enquanto o mundo ocnofílico está
estruturado pela proximidade física e pelo toque, o mundo filo-
bático estrutura-se pela distância segura e pela visão”.60 Balint
afirma que uma boa prova de como a ocnofilia está ligada ao
toque e o filobatismo à visão pode ser obtida quando considera-
mos situações em que é preciso mover-se por ambientes desco-
nhecidos com os olhos vendados. Quando perdemos a orienta-
ção visual, passamos de um objeto para outro, nos sentimos
seguros quando tocamos neles e particularmente incertos quan-
do estamos sozinhos nos espaços entre eles.
Entretanto, é importante analisar de forma mais detalhada a
complexidade dessa situação, a fim de compreendermos melhor
o que se passa nesse tipo de experiência. Deve-se notar, por
exemplo, que na ocnofilia não são os próprios espaços vazios que
são sentidos como perigosos. O perigo real permanece o mesmo
que encontramos em qualquer uma das situações filobáticas: a
emergência repentina de um objeto perigoso com o qual é preci-
so negociar. O ocnofílico vive a ilusão de estar a salvo disso, man-
tendo-se colado a um objeto específico sempre que possível. Já o
filobata vive a ilusão de que a liberdade proporcionada pelo ape-
60 Idem, p. 34.
42 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

go exclusivo a seu equipamento de circulação pelos espaços vazi-


os – nos quais confia na medida em que tais espaços são compos-
tos por objetos escolhidos – o garante contra os perigos ofereci-
dos pelos outros objetos ameaçadores do mundo (dos quais ele
desconfia), mantendo-o seguro. Com o seu equipamento à dis-
posição, ele supõe poder lidar com qualquer tipo de situação.
“Enquanto o ocnofílico tem de supor que pode obter o favor e a
parcialidade do seu objeto, o filobata sente que faz parte de seu
poder conquistar o ‘mundo’ sem contar com os favores de obje-
tos individuais não confiáveis”.61 O otimismo e a confiança
indevidos do filobata só são limitados pela necessidade quase
compulsiva de olhar o mundo a sua volta; necessidade esta que
lhe proporciona, é verdade, uma grande variedade de prazeres.
O filobata precisa olhar para objetos feios ou bonitos, úteis
ou inúteis, agradáveis e amistosos ou não, contanto que eles pos-
sam ser subitamente trocados de uma categoria para outra, atra-
vés de movimentos aparentemente pequenos. O importante, de
acordo com o argumento balintiano, é que eles são objetos totais,
que precisam ser conquistados por meio da resolução do proble-
ma ou do embaraço que apresentam. Este tipo de conquista –
que transforma o objeto indiferente ou hostil em parceiro coope-
rativo – é possível sempre que se mostra algum cuidado, conside-
ração ou preocupação com o objeto. Todas essas atitudes emoci-
onais estão intimamente relacionadas com a distância e a visão, já
que implicam em olhar intensamente algo a distância. Neste caso
específico, cuidamos de alguém quando olhamos por alguém.
Assim, podemos estar próximos, mas ao mesmo tempo distantes
do objeto.
Diferentemente desta, outro tipo de atitude de considera-
ção pelo objeto, bem mais próxima, como aquela que se dá pelo
tato, caracteriza o universo ocnofílico. Diante de eventos que
61 Ibid. p. 35.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 43

provocam medo ou ansiedade, a reação do ocnofílico é chegar e


manter-se o mais próximo possível do objeto, enquanto a do
filobata é encarar o perigo de frente para manter-se distante de
objetos que ofereçam falsa segurança. Nessas condições, parece
que as atitudes filobáticas estão todas ligadas à aceitação da
separação e ao olhar para o objeto a uma distância possivelmen-
te curta. É evidente que essas atitudes só podem desenvolver-se
após uma aceitação emocional do fato de que sujeito e objeto
têm uma existência separada e de que ambos continuam a exis-
tir mesmo quando já não estão mais em contato um com o
outro. Só depois da aceitação emocional deste tipo de situação
torna-se possível deixar que o objeto amado siga o seu caminho
para, daí em diante, olhar por ele, preocupar-se com ele e cui-
dar dele.
Voltando a afirmar a inexistência de tipos ocnofílicos ou filo-
báticos puros, caracterizando-os como propensões em certas
esferas mentais, Balint também chama a nossa atenção para o
fato de que as atitudes filobáticas e ocnofílicas não estão apenas
confinadas ao mundo físico externo, mas também se aplicam, de
maneira semelhante, às experiências relativas ao mundo interno,
ou seja, à nossa relação com ideias e ideais. Podemos ter maior ou
menor dificuldade para compreender as coisas com as quais lida-
mos e nos sentirmos mais ou menos perdidos diante de objetos
externos ou internos. Alguns parecem ter maior dificuldade para
mudar suas opiniões ou ideias, o que tende a indicar uma atitude
mais ocnofílica, ou, no caso, tímida, diante da necessidade de
mudança, já que só se sentem seguros em contato constante com
o que ou quem lhes parece importante. O mesmo aplica-se às
relações com as pessoas. Outros se mostram mais autoconfiantes
e aparentemente independentes, acreditando na possibilidade de
mudar de ideia ou de relacionamento com certa frequência, ape-
gando-se a uma ideia ou pessoa apenas quando lhes parece neces-
sário, traços que caracterizam de forma clara uma tendência típi-
44 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

ca do filobatismo. Os tipos filobáticos parecem querer evitar ob-


jetos independentes, aderindo apenas àquilo que lhes parece
estar absolutamente sob controle e inclusive fazendo parte deles
mesmos como utensílios pessoais. Essas pessoas podem ter obje-
tos (termo que mais uma vez inclui ideias, pessoas etc.) que eles
podem deixar ou recuperar como melhor lhes convier, sem ne-
nhum medo de que isso possa resultar em recriminação ou res-
sentimento; “na verdade, é duvidoso se estes objetos – o equipa-
mento – são sentidos como tendo alguma liberdade por eles
mesmos. Isto nos leva ao mesmo problema para com o ocnofíli-
co, isto é, qual a verdadeira natureza desta relação e se ela deve ser
considerada como de amor ou de ódio”.62
Mais uma vez, encontramos em ambas as atitudes uma mes-
ma tendência: a de negar a liberdade aos objetos, recusando-lhes
uma verdadeira alteridade, fruto de sua dimensão contingencial,
seja pelo apego excessivo, seja por sua degradação ao humilhante
estatuto de utensílio em um equipamento. A dificuldade de
Balint, portanto, procede, na medida em que a “filia”, que a prin-
cípio caracteriza ambas as posturas, encontra-se aí definitiva-
mente obscurecida. Ainda que no caso das atividades filobáticas
o elemento da agressividade esteja indubitavelmente presente, o
que faz com que as consideremos, muitas vezes, pelo prisma do
desafio heroico, a posição problemática da “filia” também se
coloca quanto às atividades ocnofílicas, principalmente quando
lembramos que ambas são tentativas de superação da situação
primitiva básica de amor primário. Tentando lidar com esse pro-
blema, qual seja, o das relações entre o amor e o ódio na ocnofilia
e no filobatismo, Balint esclarece inicialmente que esses dois
estados não se opõem, ainda que às vezes se possa ter essa impres-
são superficial e ilusória. Eles, na verdade, são duas atitudes dife-
rentes que possivelmente se desenvolvem ou se ramificam a par-
tir de uma mesma raiz. Deve-se evitar a tentação ingênua de con-
62 Ibid. p. 40-41.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 45

siderar que um desses estados seja fundamentalmente amoroso e


o outro odioso, o que seria um erro grosseiro, já que as coisas não
são assim tão simples. Ambos os tipos são de amor e ódio ao mes-
mo tempo, ou seja, caracterizam-se por uma ambivalência fun-
damental de sentimentos.
Assim, mesmo que o ocnofílico tenda a apegar-se de um mo-
do excessivo aos objetos, isso não quer dizer necessariamente que
ele os ame, pois com frequência acontece exatamente o oposto, ou
seja, ele odeia o objeto do qual depende na medida em que desloca
para ele o desprezo que sente por sua própria fraqueza. De forma
similar, pareceria fácil dizer que o filobata odeia e não dá crédito
aos objetos, posto que eles representam perigos imprevisíveis. No
entanto, isto é apenas parcialmente verdadeiro na medida em que
todos os objetos que constituem seu “equipamento”, seus “utensí-
lios”, são por ele amados, como também são amadas as pessoas
que os fornecem. Por essa razão, Balint chama esses objetos que
fazem parte do “equipamento” filobata de objetos ocnofílicos e os
considera não apenas representações simbólicas inconscientes de
um phallus poderoso, mas também representações do amor mater-
no, fontes de emoções altamente positivas para o sujeito.
Essas atitudes ambivalentes de ambos os tipos subjetivos são
fruto de experiências ocorridas no decorrer da instalação do prin-
cípio de realidade, após um período primário de amor, em que
sujeito e objeto ainda não estão propriamente diferenciados e a
relação com o mundo é vivida como uma intromistura harmoni-
osa de substâncias. Nos primeiros estágios do teste de realidade,
em que é preciso distinguir os mundos interno e externo e o que
os causa, ambos, filobata e ocnofílico, parecem reagir da mesma
maneira.63 O que os diferencia é a interpretação dada ao ambien-
te: enquanto o primeiro considera-o adorável, o segundo tem
sentimentos horríveis com relação a ele, apesar da primitiva ex-

63 Sobre isso ver Balint M. Contributions to reality testing. In: Problems of human pleasure

and behaviour. Op. cit. p. 153-70.


46 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

periência prazerosa. Desta forma, ainda que o mundo externo


seja exatamente o mesmo para os dois, seus mundos internos
diferenciam-se, radicalmente, neste caso.
No entanto, o que parece mais importante do ponto de vista
balintiano são as falhas que ocorrem – tanto no caso do filobata
quanto no do ocnofílico – naquilo que se refere ao teste de reali-
dade, porque essas falhas, obviamente, influenciam em suas a-
ções e modos de estar no mundo. Nesses termos, enquanto um
tende a minimizar os perigos reais do mundo exterior com uma
confiança que nunca se justifica plenamente, o outro parece
amplificá-los em seu temor excessivo aos espaços vazios. Porém,
apesar desta aparente diferença, é importante destacar, mais uma
vez, que a ambivalência se faz presente, o que acaba por aproxi-
mar os dois tipos de relação objetal. Na verdade, o ocnofílico é
tão pouco sincero com ele mesmo quanto o filobata. Neste senti-
do, pode-se perceber que por trás da exibição de independência
do filobata existe, ainda que cuidadosamente disfarçada, uma
real necessidade de objetos seguros, que pode ser interpretada
como uma atitude ocnofílica, ou seja, uma busca de segurança
na proximidade física com seus objetos. Mas por que esta neces-
sidade de se agarrar a eles tão desesperadamente? Essa adesão
desesperada pode ser vista como uma reação a uma ameaça, real
ou imaginária, diante da possibilidade de perdê-los. Alguma for-
ça brutal poderia afastá-los dele ou, o que seria ainda mais assus-
tador, seus objetos poderiam tornar-se indiferentes e, de maneira
descuidada e até maliciosa, abandoná-lo. “Como o filobata, o
ocnofílico também minimiza ou mesmo nega o perigo, e sua
negação é igualmente facilitada por um deslocamento comum
que o capacita a dizer que o perigo não está no objeto mas fora
dele e pode ser evitado se ele puder permanecer em contato com
seu objeto agarrando-o com força”.64

64 Balint M. Thrills and regressions. Op. cit. p. 55 (grifo nosso).


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 47

Constata-se, portanto, que por um lado a confiança filobáti-


ca em sua habilidade para lidar com os perigos externos no con-
forto dos espaços amistosos é exagerada e um tanto irreal, e, por
outro, que a crença ocnofílica de que seus objetos são seguros,
poderosos e afáveis é igualmente falsa. Mesmo assim, cada um
deles parece não abrir mão das suas convicções, apesar dos cons-
tantes testemunhos prestados pela realidade. Assim, para que se
possa compreender os mecanismos que possibilitam a manuten-
ção de tais convicções, é preciso reafirmar a hipótese de um mun-
do mais primitivo, ou seja, o do amor primário, cronologica-
mente anterior aos mundos ocnofílico e filobático, e ao qual só se
tem acesso através da regressão.
Entrando neste mundo da primeira infância, Balint promo-
ve uma extensa investigação etimológica das palavras “sujeito” e
“objeto”, concluindo que ambos derivam e se constituem a partir
de uma harmoniosa mistura primitiva de substâncias. Esta mis-
tura dos mundos interno e externo, segundo o autor, é uma velha
conhecida da experiência psicanalítica em virtude de fenômenos
clínicos como alucinações, confusões, despersonalizações e dos
processos dinâmicos de introjeção e projeção. A harmonia carac-
terística desta situação primitiva acaba por ser destruída por fa-
lhas provocadas pelo próprio sujeito ou pelos outros a sua volta.
Tal estado harmônico encontra-se de acordo com sua teoria do
amor objetal primário, e, a partir dele, a presença discreta de
objetos separados emerge na interação do indivíduo com o seu
ambiente. “A descoberta traumática de sua existência deve ser
aceita e, como um resultado secundário disso, surgem as duas
atitudes básicas de filobatismo e ocnofilia através das quais o in-
divíduo responde a esta descoberta, com inúmeras gradações e
matizes entre elas”.65 A análise mais detalhada da passagem trau-
mática da situação de harmonia para a constituição dos objetos e
65 Stewart H. Michael Balint: object relations pure and applied. Op. cit. p. 42.
48 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

de suas possíveis consequências para a subjetivação nos é forneci-


da por Balint não apenas por meio de sua teorização sobre a
regressão, mas também pela teoria da falha básica.
Finalmente, antes de passarmos a uma abordagem mais de-
talhada desses dois conceitos fundamentais do pensamento ba-
lintiano, é importante destacar desde já que as noções de ocnofi-
lia e filobatismo já implicam, por si mesmas, em uma articulação
com a regressão na situação analítica, o que introduz uma discus-
são sobre a técnica psicanalítica, que será ampliada com a delimi-
tação mais precisa do conceito de falha básica. Balint afirma que
em um número considerável de análises existem momentos em
que os pacientes sentem uma enorme necessidade de levantar do
divã. Tal atuação, sobredeterminada sem dúvida, afasta o pacien-
te de um objeto perigoso, seu analista, e abre para ele espaços
que, mesmo não sendo inteiramente amistosos, ainda são senti-
dos como menos perigosos ou excitantes do que a proximidade
com o terapeuta. Esses episódios são considerados remanescentes
dos estados filobáticos e, quando corretamente reconhecidos e
manejados pelo psicanalista, revelam-se, na maioria das vezes,
experiências importantes em termos de elaboração, que propor-
cionam um melhor entendimento entre paciente e analista. Isso
depende da capacidade que o analista tem de produzir mudanças
na fantasia do paciente, mudanças que permitam transformar o
objeto perigoso em uma parte das expansões amistosas, elimi-
nando, assim, as suspeitas e temores que recaíam sobre ele. Já no
caso de outros pacientes, que começam suas análises atentos, de
olhos abertos e quase angustiados, eles gradualmente descobrem
a possibilidade de fechar os olhos, abandonam o atento apego
ocnofílico ao mundo externo e se voltam para o interior de si
mesmos. Apenas após um longo trabalho neste segundo nível é
que eles voltam a ser capazes de se dirigir novamente para o mun-
do de olhos abertos sem temê-lo.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 49

Fenômenos transferenciais como esses, reconhecidos agora


como determinados por tendências ocnofílicas e filobatas, deno-
tam uma certa modificação na maneira como Balint os encarava.
Se até então a necessidade de estar próximo, em contato ou agar-
rado ao analista, era uma das principais características do amor
primário, agora elas são vistas como uma reação a um trauma, ou
seja, como uma expressão e ao mesmo tempo uma defesa contra
o medo de ser largado ou abandonado. Trata-se portanto de “um
fenômeno secundário apenas, cujo objetivo é a restauração por
proximidade e toque da identidade sujeito-objeto original (...)
que eu chamo de relação objetal primária ou amor primário”.66
Esta mudança de ponto de vista com relação à reação de apego
influencia, em muito, no modo de pensar a técnica analítica,
principalmente no que se refere à relação com pacientes regredi-
dos, como veremos ao discutir o trabalho que Balint dedica à fa-
lha básica.
Aqui, importa ainda discutir o que poderiam ser as técnicas
ocnofílicas e filobatas em análise. Alguns analistas tendem a o-
lhar com suspeita a tendência à regressão de certos pacientes na
transferência, chamando-a de acting out e interpretando qual-
quer movimento em sua direção como tentativas de escapar ao
trabalho analítico. Outros podem até mesmo tolerar uma regres-
são, mas, ainda assim, forçam o paciente a sair dela por intermé-
dio de interpretações. Porém, segundo Balint, mesmo conside-
rando que muitas vezes a interpretação correta exija do paciente
uma maturidade maior que aquela possibilitada pela regressão,
estas técnicas – particularmente as que interpretam tudo na situ-
ação analítica como transferência – acabam por fazer com que o
analista se ofereça incessantemente ao seu paciente justamente
como um objeto que pede para ser agarrado, interpretando tudo
que contrarie essa tendência como tentativa de fugir da análise.

66 Balint M. Thrills and regressions. Op. cit. p. 100.


50 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Disso resulta uma técnica altamente ocnofílica que tende a


induzir o paciente a introjetar e idealizar o analista, mantendo-o
excessivamente apegado a ele. Isso dificulta não apenas a separação
como também a possibilidade de que o paciente venha a se manter
por si próprio. Uma técnica filobata, mesmo que contrária a essa,
também não está isenta de dificuldades. Esta recorreria de forma
bastante econômica a interpretações facilmente compreensíveis,
mantendo apenas o analista vivo e disponível para as regressões do
paciente. Neste caso, o perigo seria deixar o paciente livre demais
em uma independência excessivamente forçada e precoce. Sendo
assim, de acordo com a visão balintiana, nenhuma dessas técnicas
– em estado puro – seria capaz de proporcionar ao sujeito a liber-
dade necessária para viver, devendo, portanto, ser utilizadas de for-
ma equilibrada no decorrer de uma análise.

FALHA BÁSICA E TRÊS ÁREAS DA MENTE


Como dissemos anteriormente, a passagem traumática da situa-
ção originária de harmonia para a constituição mais definitiva dos
objetos funda o que a teoria balintiana chamou de falha básica.
Neste sentido, ocnofilia e filobatismo parecem ser duas instâncias
da falha básica, ainda que certamente não sejam as únicas. Para
Balint, a falha básica seria uma das três áreas que constituem a
mente. A ela se acrescentam as áreas da criação e a área edipiana.
Todas as três compõem a nova tópica do psiquismo elaborada
pelo autor, em 1968. A primeira alusão à falha básica aparece no
capítulo XIX de seu livro sobre O médico, seu paciente e a doença,
de 1957. Nesse trabalho o autor faz referência a uma doença (de-
ficiência) fundamental do ser humano, desencadeada por dife-
rentes crises no desenvolvimento do indivíduo, tanto em nível
psíquico quanto biológico. Sua hipótese é a de que a origem dessa
deficiência fundamental possa estar em uma discrepância consi-
derável entre as necessidades do indivíduo durante os seus pri-
meiros anos (ou possivelmente meses) de formação e os cuidados
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 51

e a atenção disponíveis em momentos importantes. Neste senti-


do, “este fenômeno cria um estado de deficiência, cujas conse-
quências, apenas em parte, são reversíveis. Embora o indivíduo
possa adaptar-se bem, ou mesmo muito bem, subsistem vestígios
de suas primeiras experiências que contribuem para o que deno-
minamos sua constituição, sua individualidade ou a formação de
seu caráter”.67 Porém, mesmo considerando essa insuficiência,
Balint demonstra, na verdade, que tudo pode ir mais ou menos
bem nesta fase precoce das necessidades infantis. É somente no
momento em que a criança é atingida por um traumatismo
(aquele ao qual nos referíamos anteriormente) que, inevitavel-
mente, imprimem-se cicatrizes marcantes. Nesses termos, a falha
básica seria uma ferida que eventualmente pode cicatrizar, mas
que não pode de modo algum ser suprimida.
Segundo Franck Faure, um de seus comentadores franceses,
essa formulação sobre a falha básica corresponderia a uma trans-
formação considerável no conceito de amor de objeto primário,
cunhado nos anos 1930. Com este último, como tivemos a opor-
tunidade de ver, o autor apresentava sua contribuição original e
substancial à psicanálise, qual seja, a teorização sobre os períodos
precoces do desenvolvimento pré-edipiano, singularizando-se pela
descoberta de que a relação dual primitiva mãe – criança não tinha
uma estrutura em comum com a dos outros estágios de evolução
libidinal. Suas características essenciais provinham da disparidade
entre os seres ligados naquela “unidade dual”, como a descrevia
Alice Balint, e da passividade ambígua deste tipo especial de amor,
que estava marcado pela impossibilidade da criança em conceber
que seu objeto poderia dedicar-se a qualquer outra coisa que não
às suas próprias necessidades. Ainda que a questão de uma desco-
berta traumática do teor ilusório desta situação pela criança esteja
implícita nessa descrição, ela parece ainda não adquirir, em toda a

67 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988. p. 222.
52 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

sua plenitude, a característica de um trauma estrutural. Talvez por


isso, em 1968, ao consolidar uma nova topografia para o psiquis-
mo, Balint não vá chamar essa área de área do amor primário, mas
sim de área da falha básica. Termo este que parece doravante subs-
tituir o anterior, o qual vinha sucessivamente sendo utilizado, pelo
menos, desde 1935.68
Além disso, nota-se também que o privilégio dado à noção
de falha básica em detrimento do amor primário implica em
uma modificação no estatuto dos objetos e consequentemente
na relação que se estabelece com o entorno. A ênfase, a partir daí,
passa a recair sobre a transformação do que o autor chama de
pré-objetos em objetos, e sobre as noções de substância, de intro-
mistura ou de mistura interpenetrante, das quais se originaram
os conceitos de ocnofilia e filobatismo, como tivemos a oportu-
nidade de ver anteriormente.
Com este leve remanejamento da teoria, a função materna
sofre modificações significativas na medida em que a interdepen-
dência mãe – bebê no plano pulsional cede lugar à mistura har-
moniosa por interpenetração. Trata-se aqui, basicamente, de
uma mutação no estatuto do objeto primário e da constituição
da alteridade na experiência amorosa mais originária. A mãe pas-
sa a ser considerada em sua qualidade essencial de ambiente ade-
quado, provedora por ela mesma de todas as necessidades do seu
bebê nos primeiros tempos de vida extrauterina, mas é ao mesmo
tempo aquela que se move por meio da percepção do bebê no
curso de sua subjetivação. “Nesta movimentação da percepção
devemos incluir a mutação de pré-objetos em objetos, a mutação
de agente (desconhecido mas eficiente) de preservação da har-
monia existencial entre necessidades e respostas, em ‘obstáculo
resistente’, em ‘objeto organizado’, certamente, e tendo ‘interes-

68 Faure. F. La doctrine de Michael Balint. Op. cit. p. 159-60.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 53

ses próprios’”.69 Na parte final deste trabalho, dedicada à atuali-


dade da obra de Balint, esmiuçaremos melhor as distinções entre
as abordagens relacional e pulsional em diferentes teorias psica-
nalíticas, que constituem o pano de fundo da argumentação bre-
vemente esboçada anteriormente.
Ainda assim, já podemos adiantar que a sutileza desta dife-
renciação desvela primeiramente o sentido da palavra “interpe-
netração”. A mãe assume aqui uma posição significativa tanto
em seu sentido objetivo quanto objetal, não apenas em suas
conotações pulsionais, mas também relacionais. Ela ultrapassa,
portanto, a percepção anterior do bebê – único referencial possí-
vel neste nível, que é o da substância na “mistura harmoniosa
sem objetos” – tornando-se ela própria um ambiente acolhedor.
Nestes termos, a exegese da diferença entre os argumentos cen-
trados nas teses sobre o amor primário e a falha básica nos permi-
te compreender o que Balint quer dizer quando promove a res-
tauração ou a preservação de uma harmonia inicial ao estatuto de
objetivo primordial de todo e qualquer esforço libidinal. É que
ambas (a preservação e a restauração) não têm exatamente a ver
com a simples modificação do objeto, presente efetivamente ape-
nas para um observador ideal. Ao contrário, o último objetivo
visado é a própria substância da mistura harmoniosa por interpe-
netração. Aquela da coexistência fetal concreta, remanescente
como experiência ou única vivência possível, excluída de qual-
quer sistema sujeito – objeto, de emergência ulterior.
Se o amor primário deveria dar um fim ao reino do narcisis-
mo primário, a noção de falha básica, elaborada no aprofunda-
mento da regressão enquanto fenômeno fundamental da expe-
riência psicanalítica, é a formulação teórica que fundamenta a
hipótese de um nível real e temporal, radicalmente estranho ou
distinto por natureza do nível edipiano. O que se infere necessa-
69 Idem, p. 189.
54 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

riamente a partir da falha básica é que só podemos falar de regres-


são profunda se considerarmos a existência de uma relação ante-
rior, ou seja, de uma relação primária de amor que se estabelece
com o ambiente nos primeiros tempos de vida, logo após o nas-
cimento. Entretanto, e aqui parece estar o elemento fundamen-
tal da descoberta balintiana, “o ambiente não é a mãe, pois a mãe
enquanto tal, objetivada ou objetalizada, pertence rigorosamente
à experiência posterior do estado edipiano. A única experiência
do bebê nos primeiros tempos da vida extrauterina é a da ‘mistu-
ra harmoniosa por interpenetração’; o ambiente como realidade
é fundamentalmente ‘substancial’ e ‘desprovido de objeto’ tanto
quanto de ‘delimitação’”.70 Daí que as vivências temporais não
podem aparecer senão no horizonte de uma “harmonia”, isto é,
como fundamento da relação com o ambiente percebido positi-
va ou negativamente em termos de “substância”. É sobre esse
fundamento que se constituem, então, tanto o que Balint define
como sendo a área de criação como o complexo de Édipo.
Já no que se refere à área da criação, uma de suas característi-
cas mais relevantes é a de que nela ainda não está presente ne-
nhum objeto externo, sendo que a principal preocupação do su-
jeito é “produzir algo por si mesmo, que pode ser um objeto,
embora nem sempre o seja”.71 Neste sentido, na área da criação o
que existem são pré-objetos, muito primitivos, que não che-
garam a se organizar como um todo. Sendo assim, é justamente o
trabalho da criação propriamente dito que transformaria esses
pré-objetos em um todo de objetos organizados, possibilitando,
então, a adequada interação verbal ou edípica entre eles e os obje-
tos externos.
Provavelmente, sempre ocorrem interações mais primitivas,
adequadas aos níveis da falha básica e da criação, ainda que elas

70 Idem, p. 191 (grifado no original).


71 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 21.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 55

sejam difíceis de observar e descrever com precisão.72 Balint


mostra como nos deparamos com inúmeras dificuldades quan-
do, diante de tais situações, recorremos única e exclusivamente à
linguagem convencional na tentativa de apreendê-las. A comple-
xidade inerente a esses casos torna-se explícita quando nos
damos conta de que, apesar de sabermos que não existem objetos
na área da criação, percebemos também que nela, durante a mai-
or parte do tempo, o sujeito não se encontra totalmente sozinho.
O grande problema é que nossa linguagem parece não dispor de
palavras para descrever, ou pelo menos indicar, “o que” está pre-
sente quando o sujeito não está completamente só. Daí a necessi-
dade imperiosa de se falar de algo como um embrião de objeto,
ao qual nosso autor refere-se propondo os termos pré-objeto ou
objeto primário.
Segundo Balint, a área da criação parece se constituir, inicial-
mente, a partir de uma espécie de retirada dos objetos desagradá-
veis e frustrantes em direção à mistura harmoniosa dos estados
anteriores, seguida de uma tentativa de criar algo melhor, mais
amistoso, mais consistente e harmonioso do que demonstram
ser os objetos reais. Tentativa esta que nem sempre é bem-sucedi-
da. Como possivelmente a maioria dos objetos é indiferente ou
frustrante em um primeiro momento, para que alguns deles pro-
vem ser gratificantes é necessário que os cuidados primários com
a criança não sejam excessivamente deficientes ou insensíveis.
Assim, “partes do entorno poderão conservar algo de seu investi-
mento primário original, tornando-se o que chamei de objetos pri-
mários”.73
Ainda que os exemplos mais evidentes do que se passa nesta
área sejam os processos ligados à criação artística e ao conheci-
mento, a teoria da clínica balintiana lembra-nos também da
importância de outros indícios do que ocorre nessa área. Dentre
eles destacam-se os fenômenos presentes no início e na fase de

72 Sobre isso ver Thrills and regressions. Op. cit. Caps. 8 e 11.
73 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 62 (grifado no original).
56 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

recuperação espontânea das doenças físicas ou mentais. Tendo


em conta as dificuldades na apreensão dos processos que se pas-
sam na ausência de um objeto externo, que a princípio impedem
o estabelecimento de uma relação transferencial, os momentos
em que os indivíduos se queixam de suas doenças parecem favo-
recer o trabalho com um método analítico que leve em conta os
aspectos terapêuticos da regressão. O mesmo se passa no mo-
mento em que um objeto ou uma teoria começam a ser construí-
dos em uma criação artística ou na produção de uma teoria cien-
tífica. Nessas condições, tenta-se transformar uma situação emi-
nentemente unipessoal em seu começo em uma relação bipesso-
al, o que torna possível aos analistas utilizarem-se de seus méto-
dos, técnicas e formas de pensar habituais para avaliar o que
ocorre nessas experiências.
Mesmo considerando que o processo de criação, que trans-
forma pré-objetos em objetos, seja imprevisível, parece que con-
flitos graves em nível edipiano podem acelerar ou retardar a velo-
cidade do processo criativo. Assim, em um percurso analítico,
para além da elaboração desses conflitos fundamentais, torna-se
possível não apenas observar e acompanhar pessoas absorvidas
em sua área de criação, como também esboçar as possíveis confi-
gurações mentais que estruturam essa área. Neste sentido, diante
de um paciente silencioso faz-se necessário dar uma positividade
a esse silêncio. Não devemos simplesmente adotar a atitude ana-
lítica habitual, que vê nesse silêncio uma mera forma de resistên-
cia aos materiais originados do passado ou à situação transferen-
cial atual. Nas palavras de Balint: “podemos acrescentar que tal
interpretação quase sempre está correta; o paciente está fugindo
de alguma coisa, geralmente de um conflito, mas também poderá
ser que ele esteja correndo para alguma coisa, isto é, está em um
estado no qual se sente relativamente seguro, podendo fazer algo
a respeito do problema que o está atormentando ou preocupan-
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 57

do”.74 Este algo que ele eventualmente irá fazer e posteriormente


apresentar ao analista é uma espécie de criação, ou seja, produto
de sua criatividade. Talvez seja necessário, portanto, modificar-
mos nossa postura tradicional, deixando de tratar o silêncio
como um simples sintoma da resistência e passar a considerá-lo
como uma preciosa fonte de informação sobre a área da criação.
Antes de voltarmos à discussão sobre a área da falha básica,
vale a pena tentar rapidamente delimitar um pouco melhor os
processos que se produzem na área edipiana. Não há a menor
dúvida de que todas as coisas no nível edípico, mesmo quando
ligadas a experiências genitais ou pré-genitais, se passam em uma
relação triangular. Isso evidentemente significa que, além do su-
jeito, existem sempre, pelo menos, mais dois objetos paralelos
envolvidos. Este é, portanto, o nível no qual Freud situou seu fa-
moso Complexo de Édipo, que, apesar de ser característico de
uma fase ainda precoce do desenvolvimento, pode ser descrito
em linguagem adulta ou convencional no que diz respeito a dese-
jos, sentimentos e emoções nele envolvidos. Com ele Freud teria
arriscado sua audaciosa hipótese de que “as moções pulsionais,
satisfações e frustrações da criança muito pequena são não ape-
nas muito semelhantes às do adulto, mas também possuem entre
si relação de reciprocidade”.75
Levando em conta a ambivalência originada das complexas
relações entre o sujeito e seus dois objetos na situação edipiana,
Balint considera o conflito que ela provoca como uma das princi-
pais características desta área da mente. Assim, toda vez que o tra-
balho analítico se passa no nível edipiano, é com um conflito que
temos de lidar até chegarmos à sua elaboração. O exemplo mais
estudado deste tipo de conflito é aquele no qual uma autoridade,
interna ou externa, proíbe determinada forma de gratificação.

74 Ibid. p. 23 (grifado no original).


75 Ibid. p. 10.
58 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Eventualmente, tal conflito pode levar a uma fixação – se uma


determinada quantidade de libido ficar aí retida em uma luta inú-
til –, criando uma tensão contínua. Neste caso uma análise terá
como tarefa mobilizar e liberar essa quantidade de libido por meio
da interpretação ou dando ao paciente a chance de regredir na
transferência a fim de encontrar uma solução melhor. Note-se que
aqui o paciente é capaz de lidar com objetos organizados e totais,
como as interpretações, já que estas seriam passíveis de uma elabo-
ração por parte dele. Daí é possível derivar ainda uma outra carac-
terística fundamental do nível ou da área edipiana: nele a lingua-
gem adulta, com a qual formulam-se as interpretações, é um meio
de comunicação adequado e confiável. Por essa razão, Balint chega
mesmo a afirmar que, se fosse preciso criar um novo termo para
esse nível, poderíamos chamá-lo de nível de concordância, de lin-
guagem adulta ou convencional.
Tendo nomeado a área ou o nível edipiano a partir de suas
características principais, ou melhor, convencionais, nosso autor
volta-se mais uma vez para a discussão daquele outro nível men-
tal, no qual se passam processos psíquicos fundamentalmente
mais originários, ou seja, o nível da falha básica, evitando cha-
má-lo de pré-edipiano por considerar que ele possa coexistir com
as experiências edipianas. Desta maneira, o nível ou a área da fa-
lha básica é definitivamente mais simples que o edípico, e a utili-
zação do termo falha para caracterizá-lo acentua a preocupação
de que ele não seja confundido com um estágio, uma posição ou
até mesmo um complexo. Uma de suas características mais notá-
veis é que todos os eventos que nele ocorrem pertencem a uma
relação exclusivamente bipessoal, de natureza bastante particular
e completamente diferente das mais familiares relações do nível
edipiano. Como a natureza da força dinâmica que opera no nível
da falha básica não é a de um conflito, muitas vezes a linguagem
adulta pode ser inútil ou enganadora para descrever tais expe-
riências, já que nelas nem sempre as palavras estão de acordo com
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 59

o seu significado convencional. Na verdade, “as palavras perdem


a credibilidade como meios de comunicação entre o paciente e o
analista; em particular, as interpretações, que tendem a ser expe-
rimentadas pelo paciente como sinais de hostilidade e agressivi-
dade ou de afeição”.76 A natureza dessa relação bipessoal primiti-
va pode ser considerada como uma instância da relação objetal
presente no amor primário, ao qual fizemos referência antes, e
qualquer terceiro que nela interfira tende a ser sentido como um
pesado encargo ou uma força intolerável. Outra notória qualida-
de dessa relação é a imensa diferença de intensidade entre os fe-
nômenos de frustração e de satisfação. Enquanto esta última
acontece por meio de uma adaptação do objeto ao sujeito que,
mesmo provocando sensações de bem-estar naturais e suaves, só
pode ser observada com muita dificuldade, a frustração – experi-
mentada como falta de adaptação do objeto – produz sintomas
extremamente intensos e tumultuados.
Considerando a importância clínica dessas relações na área
da falha básica, Balint chega mesmo a indicar os tipos de evento
durante o tratamento analítico que podem ser considerados si-
nais de que se atingiu esse nível. Em certos momentos, de manei-
ra súbita ou insidiosa, descreve o autor, a atmosfera da situação
analítica modifica-se profundamente. Dentre os vários aspectos
desta modificação intensa e profunda, destaca-se a impossibili-
dade de que as interpretações oferecidas pelo analista sejam expe-
rimentadas pelo paciente enquanto tais, pois, como dizíamos há
pouco, elas são sentidas como um enorme ataque ou uma imen-
sa gratificação com tonalidades de sedução. Além disso, também
pode acontecer que as palavras comuns, que tinham até então
um significado convencional “adulto” e podiam ser utilizadas
sem maiores consequências, tornem-se extremamente importan-
tes e poderosas, tanto no bom como no mau sentido. Nessas
horas, qualquer observação casual, gesto ou movimento do ana-
76 Ibid. p. 78.
60 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

lista pode adquirir uma significação imensa e assumir uma im-


portância muito maior do que realmente se tinha pretendido.
Nesta atmosfera de inquietante estranheza surgem certos
fenômenos um tanto “misteriosos”. O paciente parece ser capaz
de perceber de alguma forma o que se passa com o analista, mos-
trando inclusive um talento até então desconhecido que o torna
capaz de “interpretar” a conduta daquele. Nessas horas, afirma
Balint, o terapeuta “sente o fenômeno como se o paciente pudes-
se vê-lo por dentro, retirando daí coisas a seu respeito”.77 Se em
momentos como esses ele não responder como o paciente espera
que o faça, não surgirá na transferência, como seria esperável no
nível edipiano, nenhuma reação de ódio, contentamento ou crí-
tica. O que se observa não é nada mais do que um sentimento de
vazio, em que tudo é aceito sem maiores resistências, mas nada
faz qualquer sentido. Outra possibilidade de reação à ausência de
sintonia por parte do analista, além desta aceitação aparente-
mente sem vida de tudo o que é oferecido, pode ser a manifesta-
ção de algumas angústias persecutórias.
Assim, neste nível da falha básica, quaisquer frustrações pas-
sam a ser sentidas pelos pacientes como se elas lhes tivessem sido
infligidas intencionalmente, isto é, passam a constituir testemu-
nhos incontestáveis dos sentimentos maus ou hostis do entorno.
Quanto às coisas boas, elas parecem ser sempre mero fruto do
acaso. O que é espantoso é que tudo isso é aceito como um fato
doloroso, que surpreendentemente mobiliza pouca aversão e
quase nenhuma disposição de lutar; além disso, dificilmente se
observa o surgimento de qualquer tipo de desespero. Essa estra-
nha mistura de sofrimento profundo, ausência de vontade de
luta e inabalável determinação de avançar constitui um impor-
tante sinal diagnóstico de que se atingiu o nível da falha básica e
de que é preciso recorrer a processos terapêuticos adequados para
lidar com ela. A reação dos analistas nestes casos também é carac-
77 Ibid. p. 17.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 61

terística: todas as coisas lhe tocam muito mais do que o normal e


torna-se um tanto difícil para ele manter sua atitude habitual de
passividade objetiva e simpática, em função do risco constante
de envolvimento emocional.
Outro grupo importante de fenômenos sinalizadores desse
tipo situa-se em torno da apreciação ou gratidão pelo trabalho do
analista durante o tratamento. Se no nível edipiano esses dois
sentimentos parecem ser poderosos aliados em períodos difíceis
do processo analítico, no nível da falha básica nunca é possível
ter certeza de que o paciente se lembrará da habilidade e da com-
preensão do analista no passado. Um dos motivos para mais essa
profunda modificação é que neste nível os pacientes simples-
mente sentem que lhes está sendo dado aquilo de que estão pre-
cisando. Se o analista fornecer o necessário, isso é dado como cer-
to, podendo originar-se daí a produção de um número cada vez
maior de demandas, em uma espiral caracterizada pela enorme
voracidade do paciente.
Nenhum desses eventos pertencentes, essencialmente, ao
campo mais elementar da psicologia bipessoal apresenta a estru-
tura de um conflito. Este é um dos principais motivos pelos quais
Balint propõe que os chamemos de básicos. Já o termo “falha” é
utilizado exatamente por ser a palavra a qual recorrem muitos de
seus pacientes para descrever o que se passa nessas circunstâncias.
Segundo ele, “o paciente diz que sente que existe uma falha den-
tro de si, que precisa ser corrigida”.78 Cabe salientar que ela é sen-
tida precisamente como uma falha – e não como um complexo,
conflito ou situação, como dizíamos acima – provocada porque
alguém falhou ou se descuidou dele. Essa área é invariavelmente
cercada de uma grande angústia, que se expressa por meio de
demandas desesperadas de que agora o analista também não ve-
nha a falhar. Embora altamente dinâmica, a força que se origina
dessa falha não assume a forma de um conflito – fruto de um
78 Ibid. p. 19.
62 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

represamento para o qual seria necessário encontrar um escoa-


douro – mas é vivida como uma deficiência, como algo de errado
que está faltando agora, assim como durante toda a vida do paci-
ente. Como bem sabemos, necessidades pulsionais podem ser
satisfeitas, ainda que parcialmente, e conflitos também podem
ser minimamente resolvidos. Mas uma falha básica talvez só pos-
sa ser suprida se os ingredientes que faltaram puderem ser agora
encontrados e oferecidos, e mesmo assim apenas em quantidades
suficientes para preencher o defeito, de modo a transformá-lo
em uma simples e indolor cicatriz.
O adjetivo “básica” significa ainda que o autor se refere não
apenas a condições mais simples do que as edipianas, mas tam-
bém que a influência dessa falha ou eficiência estende-se de ma-
neira ampla quanto aos seus efeitos. Provavelmente ela perpassa
toda a estrutura somatopsíquica da pessoa, envolvendo em graus
diferenciados mente e corpo. Assim, o conceito de falha básica
favorece a compreensão tanto das doenças clínicas comuns como
também das diversas neuroses, psicoses, transtornos de caráter e
problemas psicossomáticos, enquanto sintomas de uma mesma
entidade etiológica. Como vimos antes, a discrepância entre as
necessidades biopsíquicas de um indivíduo e os cuidados materi-
al, psicológico ou afetivo disponibilizados em momentos rele-
vantes pelo entorno (no decorrer de fases precoces de sua forma-
ção) cria uma situação de deficiência cujas consequências poste-
riores parecem ser apenas em parte reversíveis. As causas de tais
discrepâncias podem ser congênitas ou ambientais e, neste últi-
mo caso, provêm de um cuidado insuficiente, deficiente, aleató-
rio, altamente angustiado, superprotetor, severo, rígido, incon-
sistente, superestimulante ou simplesmente indiferente.
O que a teoria balintiana enfatiza é a falta de “adaptação”
entre a criança e as pessoas que representam seu entorno. Inci-
dentalmente muitos processos de análise começam com uma fal-
ta de “adaptação” semelhante entre o analista – com uma técnica
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 63

provavelmente correta em outras ocasiões – e determinadas


necessidades do paciente, o que muito provavelmente parece ser
a causa fundamental de dificuldades e fracassos dos analistas em
suas práticas clínicas. Daí o destaque dado aos processos que se
passam na área da falha básica, que têm sua origem em uma rela-
ção objetal muito primitiva e peculiar, fundamentalmente dife-
rente das relações observadas entre adultos. Ainda que se trate de
uma relação bipessoal, não devemos esquecer que apenas um dos
parceiros interessa e que seus desejos são os únicos que contam e
precisam ser atendidos. O outro, embora pareça extremamente
poderoso, só interessa na medida em que pode gratificar ou frus-
trar os desejos do primeiro; seus próprios interesses e desejos sim-
plesmente não existem. Considerando que o aparecimento dessa
situação e sua possível elaboração no decurso de um processo
analítico dependem basicamente da experiência da regressão e da
forma pela qual o analista lida com ela, passaremos agora à dis-
cussão desse conceito, um dos mais fundamentais na obra balin-
tiana. Em conjunto com ele, trataremos também da noção de
new beginning – que traduzimos um pouco literalmente como
“novo começo” – tentando mostrar como essa situação é fruto de
uma positivação da regressão na análise.

REGRESSÃO E NOVO COMEÇO


O tema da regressão é fundamental para situar o lugar singular
ocupado por Balint entre Freud e Ferenczi e permite ilustrar sua
capacidade de ultrapassar as contradições herdadas desta dupla
filiação. Do primeiro ele retém quatro funções da regressão:
mecanismo de defesa, forma de resistência, fator importante do
trabalho analítico e mecanismo patológico. Mas enquanto em
Freud a regressão permanece fundamentalmente intrapsíquica,
em Balint ela será vinculada à teoria da relação de objeto e à psico-
logia a duas pessoas, tanto no campo teórico quanto na prática
64 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

psicanalítica. Assim a regressão perde o caráter pejorativo que ti-


nha adquirido na obra de Freud em que, à exceção do caso Dora,
ela se destacava justamente a partir de seus aspectos negativos,
quais sejam: “enquanto forma temível da resistência, em seguida,
como sintoma da compulsão à repetição e, enfim, como manifes-
tação clínica mais importante da pulsão de morte”.79 A ideia aqui
não é negar essas teses freudianas, mas simplesmente tentar pro-
blematizá-las, no sentido de criar outras possibilidades para lidar
com fenômenos característicos dos chamados “casos difíceis”
com os quais os analistas se deparam em sua prática.
Esta perspectiva tem consequências importantes no plano da
técnica psicanalítica. A partir dela, a questão da possibilidade de
se responder ao paciente regredido em análise – que está na ori-
gem de um desacordo histórico jamais resolvido entre Freud e
Ferenczi,80 o primeiro mostrando-se bastante cético e o segundo
muito otimista com relação ao assunto – pode ser retomada so-
bre novas bases. Ainda que indubitavelmente Balint mostre-se
mais próximo do ponto de vista ferencziano, trata-se agora de
suspender o tempo clássico da interpretação para permitir o
retorno do paciente a uma relação primitiva, sem chegar com
isso a recorrer à “técnica ativa” ou à inusitada “análise mútua” de
Ferenczi. Podendo criar um clima relacional de segurança – uma
atmosfera sincera e ingênua, que discutiremos melhor logo adiante –
e aceitar a regressão, o analista permite ao paciente vivê-la sem
perigo. Para cumprir com essa finalidade, ele deve aceitar repre-
sentar o papel de um objeto primário durante o tempo que for
necessário, colocando-se no setting sem oferecer resistência. Des-
ta forma, o analista permite que o paciente experimente com ele

79 Ricaud MM. Op. cit. p. 217.


80 Sobre isso ver Freud S. Análisis terminable e interminable (1937). In: Obras completas.

Buenos Aires: Amorrortu, 1989, vol. XXIII, op. cit. p. 211-2254 e Ferenczi S. O problema
do fim da análise (1928). In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, vol. IV p.
15-24.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 65

uma espécie de interpenetração harmoniosa, como aquela que é


vivida com as substâncias primárias no período primitivo das
relações do sujeito com seu ambiente.
No fundo desta discussão também está colocado o problema
técnico da comunicação com o paciente regredido a este nível
das relações objetais, que constituem a área da falha básica. Nela,
como mostrávamos anteriormente, a linguagem adulta conven-
cional parece não surtir os efeitos esperados, por não poder ser
compreendida. Trata-se, neste caso, de “atravessar o abismo” que
separa o adulto no analista da criança no paciente. Como na área
da falha básica as expressões não verbais (comportamentos, repe-
tições ou acting outs) adquirem a mesma importância das comu-
nicações verbalizadas, uma das principais tarefas do analista é a
de traduzir para o paciente seus comportamentos primitivos que
ainda prescindiam da linguagem, não apenas como um intérpre-
te, mas como o que Balint chama de “informante”, ajudando o
paciente a se dar conta do que vinha fazendo na situação analíti-
ca. “É trabalho de o informante chamar a atenção para as partes
relevantes de determinada conduta, descrevendo-as de acordo
com a importância, em linguagem inteligível. Esta dupla tarefa –
de informante e intérprete – é inevitável”.81
Em geral, pode-se observar que, diante do fenômeno da regres-
são, os analistas em geral recorrem a uma linguagem cuja forma e
natureza variam de acordo com a sua filiação teórica no campo psi-
canalítico. Os que se baseiam na técnica tradicional freudiana ten-
dem a interpretar em linguagem adulta tanto as experiências edipia-
nas quanto as pré-edipianas, atribuindo os fenômenos pertencentes
à falha básica a angústia de castração ou a inveja do pênis, as quais
constituem duas das referências transcendentes de base da clínica
ortodoxa. Já o grupo kleiniano adota uma técnica e uma linguagem
próprias, particularmente para descrever o que se passa nos níveis
81 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 88.
66 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

mais primitivos. Tal grupo de analistas acredita que, nessas experiên-


cias, o paciente relaciona-se com objetos parciais; neste sentido, seu
vocabulário recorre frequentemente a expressões como “conteúdos
no interior do corpo” e a verbos do tipo “dividir”, “introjetar", “pro-
jetar”, “perseguir” e “prejudicar”. Essa linguagem, considerada por
Balint um tanto forçada, é utilizada para interpretar tudo o que se
passa na transferência, o que acaba produzindo “constantes idealiza-
ções do analista e de sua técnica e uma notável relutância quanto à
aceitação de fracassos terapêuticos”.82
O terceiro grupo – composto por aqueles psicanalistas influ-
enciados principalmente pelas ideias de Ferenczi (dentre os quais
o próprio Balint) e Winnicott quanto à regressão – lida com os
fenômenos encontrados no nível da falha básica por meio do
manejo ou do cuidado, para além do entendimento e da inter-
pretação. Os termos “manejo” e “cuidado” evocam atitudes
como as de assistir, proteger, mediar, cuidar, sustentar fisicamen-
te pacientes que regridem a um estado de dependência na análi-
se. A teoria que informa este tipo de abordagem da técnica supõe
que se deva criar uma atmosfera adequada, na qual as interpreta-
ções possam tornar-se compreensíveis, alcançando verdadeira-
mente o eu do paciente. Como a partir desta técnica o paciente
pode criar demandas infindáveis, que podem levar à impossibili-
dade de continuação do processo analítico ainda que implique
em progressos ocasionais, Balint dedica-se atentamente à avalia-
ção dos problemas teóricos e técnicos inerentes ao tema do ma-
nejo terapêutico. Com esse objetivo, o autor discute as formas
malignas e benignas da regressão.
Nosso psicanalista introduz esta discussão questionando o
uso freudiano do termo regressão a partir de um ponto de vista
histórico. Como sabemos, Freud distinguia os aspectos topográ-
fico, temporal e formal da regressão, considerando este último
82 Stewart H. Op. cit. p. 53.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 67

como o mais relevante, principalmente quando se trata da regres-


são terapêutica. Na verdade, Freud sempre se mostrou bastante
cauteloso quanto à possibilidade de lidar com os fenômenos
regressivos em análise por qualquer outro viés que não o da inter-
pretação. Essa atitude mantinha a atmosfera de privação e de
abstinência no decurso do processo terapêutico e, portanto, não
parecia atender às principais demandas formuladas pelo pacien-
te. Ferenczi, ao contrário, tendo obtido sucessos terapêuticos oca-
sionais e mostrando-se impressionado com as respostas de alguns
analisandos, continuava seus experimentos em análise com a gra-
tificação dos anseios do paciente. Sua hipótese era a de que a
gênese das patologias psíquicas encontrava-se em situações trau-
máticas da infância, ou, mais precisamente, no contexto da con-
fusão de línguas entre adultos e crianças. Isso o levava a acreditar
que a situação analítica recriava as necessidades e demandas do
passado, provenientes da situação traumática original, na atuali-
dade da relação com o analista, que permanecia em um estado de
distanciamento simpático com relação a seu paciente. Daí Ferenc-
zi ter ensaiado numerosas técnicas que pudessem auxiliar o sujei-
to a lidar com essas situações regressivas. Com isso, sua pesquisa
em psicoterapia acabou tornando-se o primeiro estudo intensivo
das relações paciente – terapeuta, que teve como consequência
direta a descoberta da técnica de interpretação da contratransfe-
rência. Freud sempre se mostrou bastante cético quanto ao su-
cesso dessas técnicas, supondo que fosse impossível satisfazer in-
condicionalmente as demandas do paciente regredido sem tor-
ná-lo altamente dependente do analista.
Partindo de sua própria experiência clínica com manifesta-
ções da ordem da falha básica, muitas vezes interpretadas por
outros analistas como repetições ou acting outs, Balint recorre ao
termo regressão “para demonstrar, de uma forma um tanto livre,
a emergência, em resposta ao tratamento analítico, de formas
primitivas de conduta e atitudes, depois de se terem instalado fir-
68 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

memente formas mais maduras”.83 A regressão assim definida


diferencia-se, portanto, de outros estados clínicos que a ela se
assemelham, como o recuo diante do analista ou do ambiente, a
absorção na área da criação e estados de desintegração. Nestes
termos, talvez a questão decisiva quanto a um resultado terapêu-
tico favorável diga respeito apenas a maneira como se deu o tra-
balho analítico que precede esses incidentes e depois os elabora
de maneira mais ou menos apropriada, o que de certa forma
diminuiria a importância desses eventos clínicos. Apesar disso, o
psicanalista húngaro insiste em discutir exemplos em que algu-
mas formas de gratificação foram aceitas como apropriadas pelo
analista – que vão desde a concordância com sessões extras até a
permissão de ser tocado pelo paciente – indicando as mudanças
que se seguiam a esses atos como uma espécie de abertura para
algo novo. Na verdade, as gratificações possibilitavam aos paci-
entes formas novas, mais livres e realistas, de amar e odiar os ob-
jetos com os quais eles se relacionam. Essas experiências ou “no-
vos começos”, como foram denominados, caracterizam-se por
uma atmosfera analítica particular, que Balint chamou de arglos
– palavra alemã que significa aproximadamente sincera, inocen-
te, franca ou inofensiva –, atmosfera importante e necessária para
que certas gratificações em análise possam ser permitidas.
Segundo ele, esta atmosfera franca e as experiências de novo
começo seriam muito parecidas com o que se passa na relação de
amor objetal primário, ainda que caracterizando uma fase anterior
ao aparecimento dos objetos primários propriamente delimitados.
Esse é o período em que o ambiente ainda não se diferenciou de
maneira mais definida, o que o leva a ser concebido como uma
mistura interpenetrante e harmoniosa de substâncias primárias,
conforme vimos anteriormente. Essa situação é exemplificada
pela relação que um indivíduo mantém com o ar que respira e
que, diante de qualquer interferência em seu suprimento, leva ao

83 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 120.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 69

aparecimento de sintomas impressionantes e ruidosos de pertur-


bação “como acontece com a criança pequena que não foi satisfei-
ta ou com o paciente, durante a primeira fase de novo come-
ço”.84 Com o termo substância primária, portanto, Balint se
refere aos elementos básicos tão valorizados pela filosofia pré-
socrática, como a água, a terra, o fogo e o ar. Com certeza, é do
traço de indestrutibilidade comum a esses quatro elementos que
o analista deve tentar aproximar o seu papel durante certos perío-
dos do novo começo. Ele deve ser indestrutível em sua presença
asseguradora, não oferecendo resistências para que o paciente
possa viver com ele uma espécie de intromistura harmoniosa.
De acordo com Stewart, o que Balint estaria procurando
mostrar por meio deste quadro é que o analista não deveria ten-
tar desfazer por meios interpretativos “nenhuma identificação
projetiva ou introjetiva que possa estar presente nesta situação
transferencial na qual há uma relativa in-diferenciação entre su-
jeito e objeto”.85 Ainda assim, ele também teria enfatizado insis-
tentemente que a experiência de gratificação não substituiria a
interpretação, mas apenas seria acrescentada a ela. A questão fun-
damental na verdade é que a interpretação só seja formulada
após, e não durante, a experiência de gratificação, pois caso con-
trário esta última e o que ela simboliza seriam destruídos pela
necessidade de que o paciente se atenha à interpretação. Outros
analistas, como Winnicott, ao postularem a função materna de
holding, teriam notado exatamente o mesmo.86
Todos os aspectos mencionados nos levam a pensar na expe-
riência regressiva apenas em suas formas benignas. No entanto,
ela também apresenta um lado negativo. Se em alguns casos a
regressão é seguida de um novo começo, a partir do qual os paci-
84 Idem, p. 127.
85 Stewart H. Op. cit. p. 56.
86 Sobre isso ver, por exemplo, Winnicott DW. Distúrbios psiquiátricos e processos de

maturação infantil. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.
p. 207-17.
70 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

entes emergem espontaneamente de seus mundos primitivos


sentindo-se melhor, em outros, os pacientes parecem não estar
nunca suficientemente satisfeitos com a gratificação e cada dese-
jo primitivo atendido parece ser imediatamente sucedido por
um novo, tão urgente quanto o anterior. Isso pode levar a estados
aditivos que muitas vezes tornam-se bastante difíceis ou até mes-
mo impossíveis de manejar e tratar – como supunha Freud.
Diante disso, Balint considera que no primeiro grupo de casos
estamos diante de pacientes regredidos, que esperam do analista
apenas um consentimento explícito para recorrer ao mundo
externo, de modo a entrar em contato com seus próprios proble-
mas internos. No outro, a regressão tem como objetivo a gratifi-
cação dos impulsos pulsionais do paciente mediante uma ação
do mundo externo, ou seja, do analista. Tal gratificação por
eventos ou ações pressupõe um mundo de objetos totais ou par-
ciais bem desenvolvidos, o que significa que a regressão não foi
muito além do nível narcisista, fálico ou pré-edipiano e, dada a
natureza excessivamente apaixonada de suas demandas, não
pode resultar em um novo começo genuíno. Este tipo de regres-
são, com finalidade de gratificação, Balint o classifica como ma-
ligno, enquanto aquele, cujo alvo é o reconhecimento, é classifi-
cado como benigno.
A regressão benigna, em favor do reconhecimento, “pressu-
põe um entorno que aceite e consinta em sustentar e carregar o
paciente, como a terra ou a água sustentam e carregam um ho-
mem que apóia seu peso nelas”.87 Desse entorno formado por
objetos ou substâncias primárias, em contraste com os objetos
comuns, não se espera nenhuma ação, mas apenas que ele neces-
sariamente esteja ali, consentindo em ser usado de modo explíci-
to, pois, caso contrário, não haveria nenhuma mudança. Sempre
que se trata dessas situações clínicas, a substância-analista não

87 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 134.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 71

deve resistir, mas consentir para não dar origem a um excesso de


atrito. Ao aceitar sustentar e transportar o sujeito durante algum
tempo, provando ser mais ou menos indestrutível, o terapeuta
permite o desenvolvimento de uma espécie de mistura sem limi-
tes nítidos com o paciente que é experimentada de uma maneira
bastante satisfatória por este. Tudo isso implica em consentimen-
to, participação, envolvimento, compreensão e tolerância, mas
não necessariamente em ação.
A criação e a manutenção dessa atmosfera arglos primitiva na
situação analítica permitem ainda que determinados eventos
possam ser experienciados pelo paciente, o que em muitos casos
é de vital importância para o progresso do tratamento, já que
com ela é possível prosseguir sem se sentir abandonado, perdido
ou incapaz de se mover no processo de transformação. A expe-
riência da regressão que visa ao reconhecimento nunca apresenta
as qualidades de desespero e paixão que caracterizam a forma
maligna de regressão, cuja finalidade é a gratificação, comumen-
te encontrada em casos de histeria grave. As formas desesperadas
de adesividade, frequentemente presentes no tratamento desses
casos, mostram que uma angústia intensa parece bloquear o
caminho para o desenvolvimento de uma atmosfera sincera e
franca, mutuamente confiante, que é fundamental para um ver-
dadeiro novo começo. Na regressão maligna, portanto, como a
confiança mútua encontra-se precariamente equilibrada, a at-
mosfera insuspeita é interrompida com frequência, dando lugar,
muitas vezes, a sintomas como a ânsia desesperada de se agarrar a
algo. Nela também ocorrem diversas tentativas malsucedidas de
atingir um novo começo, com a ameaça constante de que surja
uma espiral interminável de demandas ou necessidades excessi-
vamente intensas, e por isso suspeitas. Balint não deixa de obser-
var que em muitos casos de regressão terapêutica os analistas
notam uma mistura dos tipos malignos e benignos, embora
geralmente um deles prevaleça.
72 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Com o intuito de formular três critérios básicos a partir dos


quais seria possível diferenciar os dois tipos de regressão, Balint
mostra-nos primeiramente que, enquanto a regressão maligna
ocorre em geral nas fases iniciais do processo analítico, a benigna
tende a ocorrer no seu período final. Em segundo lugar, se a
regressão maligna demanda alguma gratificação por parte do
analista, a de tipo benigno pede apenas que ele esteja ali com sua
presença asseguradora. Por último, na regressão maligna, a at-
mosfera como é experimentada na contratransferência é geral-
mente intensa e apaixonada enquanto, na regressão benigna, ela
é sempre calma e confiante.
O que se pode notar claramente a partir dessas observações é
que a forma tomada pela regressão no decorrer do percurso
transferencial não depende apenas do paciente, de sua personali-
dade ou de sua doença, mas também, e talvez principalmente, da
maneira pela qual o analista, na posição de objeto, responde a
ela. Nessas condições, trata-se portanto de enfatizar que a regres-
são não é apenas um processo intrapsíquico. Ela é, antes de tudo,
uma experiência intersubjetiva na qual a resposta do analista ao
paciente regredido é de extrema importância. Assim, se os pa-
drões compulsivos de relação objetal de um paciente originam-se
de uma reação à falha básica, as interpretações têm um poder
incomparavelmente menor que no caso de outros tipos de con-
flito ou complexo. Em situações como estas, agentes terapêuticos
adicionais precisam ser considerados, já que o mais importante é
ajudar o paciente “a desenvolver uma relação primitiva na situa-
ção analítica que corresponda ao seu padrão compulsivo, conser-
vando-a em uma paz não perturbada até que descubra novas
possibilidades de relações objetais, sinta-as e seja por elas senti-
do”.88 Desta forma o analista realizaria uma das mais importan-
tes tarefas necessárias ao tratamento, que é criar condições nas

88 Idem, p. 152-53.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 73

quais a falha básica possa cicatrizar, até torná-la, quando possível,


inativa.
Para se alcançar esse objetivo na análise é essencial, antes de
qualquer coisa, que o analista evite interpretar tudo primei-
ramente como transferência, o que faria dele um objeto
todo-poderoso, forçando o paciente a regredir para um mundo
ocnofílico. Em segundo lugar, é preciso que ele evite se tornar
ou agir como um objeto precisamente definido na medida em
que isso impede que o paciente relacione-se com uma substân-
cia primária indefinida, tolerante e disponível para identifica-
ções projetivas ou introjetivas. Finalmente, é fundamental tam-
bém que o analista não se mostre onipotente, mesmo que o
paciente espere isso dele em vários momentos da análise. Uma
atitude de onipotência salvacionista diante de um analisando
regredido poderia gerar dificuldades enormes e obstáculos
insuperáveis para o trabalho analítico. Por isso, a atitude mais
indicada é a de discrição, moderação e reserva que caracterizam
um analista “não importuno”, na maior parte do tempo modes-
to e comedido em suas ações.
Entretanto, como já sabemos muito bem, Balint nunca dei-
xa de enfatizar constantemente que a aceitação de experiências
de atuação ou regressão sem interpretações rápidas e o uso das
relações objetais como agentes terapêuticos não significam que a
interpretação deva ser completamente negligenciada. Na verda-
de, como salientávamos antes, o que se pretende é que as inter-
pretações que facilitem uma compreensão interna da regressão
sejam oferecidas apenas após o momento em que o paciente
emergir do estado regressivo. A experiência apropriada e intensa
de comunicações não verbais deveria, em muitos casos, preceder
as expressões verbais que a delimitam com maior precisão, e que
só devem ser oferecidas ao paciente quando este realmente preci-
sar delas. Assim, o analista favorece a regressão a um domínio
psíquico sem objetos externos organizados, no qual a interpreta-
74 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

ção, em função da atenção que exige, pode ser sentida como um


objeto intruso que destrói as possibilidades de criação. Como os
objetos nessa área ainda não estão organizados, é preciso respeitar
o tempo necessário para a sua criação, compreendendo que mui-
tas vezes ele pode ser longo e não pode ser perturbado por nada
que venha de fora. Essa é uma das razões pelas quais interpreta-
ções analíticas usualmente comuns tornam-se inadmissíveis para
um paciente regredido: “interpretações são, de fato, pensamen-
tos ou objetos completos, ‘organizados’, cujas interações com os
conteúdos nebulosos, como os devaneios ainda ‘inorganizados’
da área de criação, podem provocar uma devastação ou uma or-
ganização pouco natural e prematura”.89
Como já deve ter ficado claro até aqui, o favorecimento de
uma regressão benigna possibilitado pela atmosfera ingênua que
leva ao reconhecimento oferece ao paciente regredido a oportu-
nidade de um verdadeiro novo começo. Este conceito de new
beginning está, portanto, diretamente vinculado ao sentido das
regressões em análise e, por esse motivo, vale a pena nos deter-
mos brevemente nele para avaliar a amplitude de sua importân-
cia no pensamento clínico de Balint.
Autores como Moreau Ricaud fazem questão de delimitar
com rigor sua especificidade, aproximando-o do conceito de
“repetição” ou “retomada”, como elaborado pelo filósofo existen-
cialista dinamarquês Sören Kierkegaard.90 Para ele existem dife-
renças sutis entre esta “repetição” e uma simples rememoração, já
que elas constituem um mesmo movimento só que em direções
opostas. Enquanto a rememoração visa ao passado, à repetição,
no sentido em que o filósofo a compreende, constitui um recor-
dar voltado para o futuro, que se parece bastante com o novo
começo que Balint tem em mente. Segundo o psicanalista hún-
89 Idem, p. 162.
90 Sobre isso ver Kierkegaard S. La reprise. Paris: Flammarion, 1990, citado por Ricaud MM.

op. cit. p. 91 (nota).


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 75

garo, o novo começo que se segue a uma regressão não deve ser
compreendido apenas como o reencontro com um estado har-
monioso anterior, mas como uma possibilidade de lidar com essa
experiência visando criar novas alternativas de relação consigo
próprio e com o mundo.91
A gênese do conceito de novo começo, na obra de Balint,
encontra-se nos seus trabalhos dos anos 1930 sobre o amor pri-
mário, ao qual ele se articula a partir, e através, do movimento de
regressão. Sua primeira menção ao termo aparece em uma comu-
nicação à Sociedade Psicanalítica Alemã, em 1932, inspirada no
que chamaríamos de uma “biologia” freudo-ferencziana e intitu-
lada “Paralelos psicosexuais da lei biogenética fundamental”. Lá
ele afirmava que, “para escapar da morte e continuar sua existên-
cia, todos os organismos devem sempre começar de novo”,92 isto
é, operar novos começos. Compondo esta tese biológica com as
hipóteses de Ferenczi em Thalassa, ele afirma que, na situação
analítica, temos acesso a um fenômeno semelhante ou familiar
sempre que procuramos ajudar um paciente com uma vida que
se tornou insuportável a começar de novo, livrando-o das formas
de reação rígidas com as quais ele agia até então.
Assim, o novo começo possibilitaria a produção de mudan-
ças em um caráter que, até então, se mostrava muito rígido na
medida em que era determinado por condições excessivamente
limitadas de relação objetal. Cabe salientar que essa é uma das
principais hipóteses clínicas de Balint, estabelecida pelo menos
desde o início dos anos 1930. Ela está relacionada com a possibi-

91 Este conceito de repetição, aliás, serviria também para compreender a própria apreensão

freudiana dessa situação na transferência, entendida como repetição diferencial e não


como repetição do mesmo. Infelizmente, não poderemos desenvolver aqui uma discussão
sobre a “repetição diferencial” em Freud, já que ela exigiria um longo percurso que nos
desviaria de nosso tema central. Sobre isso ver Garcia-Roza L A. Acaso e repetição em
psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
92 Balint M. Psychosexual parallels to the fundamental law of biogenetics. In: Primary love ...,

op. cit. p. 40.


76 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

lidade de redução no nível de angústia do paciente, em conjunto


com a ampliação de sua capacidade de amar, provocada, justa-
mente, pelo novo começo. Como uma ampliação dessa ordem é
considerada o objetivo fundamental de uma análise, o novo
começo é postulado aqui como uma possibilidade que se abre ao
final do tratamento, em um último estágio de elaboração das
resistências. “A busca (de satisfação por parte do paciente) após
um novo começo, livre de ansiedade, sempre traz com ela uma
extensão da capacidade para amar e se divertir. Daqui em diante
estas funções também podem ser exercidas, e exercidas com pra-
zer, o que até então era impossível por causa da ansiedade obstru-
tiva”.93 Como se pode notar, a tese defendida pelo nosso autor é a
de que as pessoas que procuram uma análise querem livrar-se das
várias demandas opressivas provenientes de seu caráter. Sendo
assim, a tarefa terapêutica fundamental de um processo analítico
seria livrar o sujeito de suas diversas condições compulsórias de
amar e odiar, que resultam de equívocos ocorridos no seu proces-
so de criação quando criança. O objetivo, neste caso, é reverter o
efeito desses equívocos e ajustar de maneira bastante flexível a
relação do sujeito com a realidade, preservando ao máximo sua
liberdade interna.
Essa concepção clínica possibilita uma interpretação bastan-
te ampla e ao mesmo tempo rigorosa do mecanismo de regres-
são. Ela não pode mais ser vista como um simples evento que
promove um desvio definitivo ou absoluto de uma posição libi-
dinal para outra, mas passa a ser entendida como um processo
dinâmico de toda a vida, uma flutuação que vai e vem forçada
por perigos e angústias que bloqueiam o pleno exercício da geni-
talidade, e provocam uma incapacidade para experimentar o pra-
zer final. Vividas na situação analítica, nas condições favoráveis
proporcionadas pelo analista, essas experiências tornam-se su-

93 Balint M. Character analysis and new beginning. In: Primary love..., op. cit. p. 166.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 77

portáveis porque podem ser reelaboradas em um processo de


regressão que oferece novos modos de descarga pré-genitais para
a excitação genital, livres de angústia. “Se a pessoa pode final-
mente suportar um quantum moderado de excitação e se a soma
de ansiedade liberada pela excitação é nenhuma ou pequena,
temos a chamada pessoa saudável com traços mais ou menos
rígidos de caráter”.94
Porém, a suposição de que o novo começo seria uma caracte-
rística própria aos períodos finais do tratamento será rediscutida
por Balint, três anos mais tarde, e colocada em questão. Segundo
o autor, não há dúvida de que, em alguns casos, pode-se observar
que, na fase final do tratamento, certos pacientes começam a
expressar anseios pulsionais infantis há muito esquecidos e a
demandar sua gratificação pelo ambiente. A princípio, tais anseios
são apenas levemente indicados, e seu surgimento frequentemente
provoca resistência e até uma angústia intensa. Só após a supera-
ção lenta e gradual de inúmeras dificuldades é que eles são admi-
tidos abertamente, sendo que sua gratificação só será experimen-
tada com prazer ainda mais tarde. Como já vimos, aos fenôme-
nos deste tipo Balint deu o nome de novo começo, afirmando
que eles ocorrem pouco antes do final de uma análise suficiente-
mente profunda e constituem um mecanismo essencial do pro-
cesso de cura. Entretanto, em seu artigo sobre “O objetivo final
do tratamento analítico”, ele rediscute essa tese a partir da cons-
tatação de que um único novo começo em um processo de análi-
se dificilmente seria suficiente. Por outro lado, o paciente não
precisa expressar novamente todos os seus anseios pulsionais pri-
mitivos considerados importantes para que o tratamento chegue
ao fim. Assim, para que o novo começo pudesse ser tomado
como critério para o final da análise, tornava-se necessário exa-
miná-lo mais de perto.

94 Idem, p. 173.
78 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Uma de suas principais características é que ele sempre se


dirige para os objetos, ou seja, ele implica em um reencaminha-
mento da libido para novas modalidades de relação objetal. As
atividades e as fantasias experimentadas no período de novo
começo são sempre as mais profundamente escondidas na infân-
cia primitiva do paciente e, embora se manifestem inicialmente
de maneira tímida, acabam por desembocar em um modo de
relação passional ao qual os sujeitos tendem a se agarrar em fun-
ção do prazer que proporcionam. Essa situação, muitas vezes, é
perigosa para a continuidade do tratamento, pois, como o paci-
ente tende a se sentir muito bem nesta fase, ele pode utilizar-se
dela para conseguir o consentimento do analista para encerrar
sua análise. O problema é que este estado de felicidade passional,
semelhante aos vividos em experiências de drogadição, geral-
mente não dura muito tempo e tende a degenerar em demandas
cada vez maiores que não podem ser satisfeitas por nenhum
objeto real. O resultado disso é uma intensificação do narcisis-
mo, acompanhada de um orgulho presunçoso e de um egoísmo
exagerado, disfarçados por uma polidez superficial e falsa modés-
tia. No entanto, se analista e analisando a suportarem, essa fase
apaixonada passa e, no seu lugar, surge uma relação objetal ver-
dadeira e ajustada a uma liberdade mais plena. Resumindo, “pri-
meiro há uma inequívoca relação objetal primitivo-infantil, e
esta – se não for corretamente compreendida e tratada – acaba
em demandas irrealizáveis e num estado narcísico bastante desa-
gradável para todo o ambiente (como é o caso com uma criança
mimada)”.95 Mas, caso sejam corretamente manejadas, essas ex-
periências acabam dando lugar a relações pouco ou nada confli-
tuosas, tanto para o sujeito quanto para o ambiente.
Com essas articulações, a teoria balintiana, mais uma vez,
nos leva a pensar que não são determinados componentes pul-

95 Balint M. The final goal of psycho-analytic treatment. In: Primary love ..., op. cit. p. 193.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 79

sionais em particular, mas as relações objetais primárias que estão


propriamente em jogo no novo começo. O que ela destaca é que
o processo de adoecimento psíquico é fruto da falta de compre-
ensão na infância por parte daqueles que são responsáveis pela
criação de uma criança, negando a ela certas gratificações neces-
sárias e impondo-lhe outras irrelevantes, supérfluas ou até mes-
mo prejudiciais. Algumas das crianças que passaram por essas
experiências conseguem tornar-se adultos pouco prejudicados
por tais relações de objeto. Elas superam os seus conflitos toman-
do consciência do que se passou, o que tem como efeito a am-
pliação de sua capacidade de sentir prazer por estar no mundo.
Nesses casos, o final de uma análise tende a não ser muito marca-
do pelas experiências de novo começo, já que o processo parece
terminar lenta e gradualmente, de um modo quase imperceptí-
vel. Outros sujeitos, no entanto, que foram levados a sofrer seve-
ramente com a “confusão de línguas”96 e que tiveram sua capaci-
dade para amar completamente atrofiada pela falta de compre-
ensão com que foram criados, reagem de uma maneira bastante
peculiar à regressão a essas experiências em análise. Com estes
pacientes, a ajuda do analista no período de novo começo tor-
na-se de extrema importância. Certamente interpretações corre-
tas são relevantes neste momento, na medida em que é possível
mostrar por meio delas a compreensão que faltou ao paciente na
época do trauma. Entretanto, afirma Balint, o mais importante é
“prestar atenção aos tímidos esforços, frequentemente indicados
de maneira muito delicada, no sentido de um Novo Começo da
relação objetal para não afugentá-los”.97 É preciso sempre lem-
brar, complementa o autor, que o início de um investimento

96 Sobre isso ver Ferenczi S. Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: Obras

completas, vol. IV, op. cit. p. 97-108. Neste artigo Ferenczi trata justamente dos efeitos
possivelmente traumáticos provenientes do confronto entre a linguagem da ternura com a
qual operam as crianças e a linguagem da paixão empregada pelos adultos.
97 Balint M. The final goal of the psycho-analytic treatment, op. cit. p. 198.
80 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

objetal pela libido persegue objetivos passivos e só pode chegar a


se desenvolver a partir de um comportamento amoroso e sensível
por parte do objeto. Mesmo mais tarde, ainda é preciso ser bas-
tante indulgente com estas relações recentemente começadas
para que elas possam, finalmente, transformar-se em um amor
ativo mais estável.
Quando o analista consegue ser bem-sucedido nessa tare-
fa, o paciente gradualmente abandona a atitude suspeita com
relação ao mundo dos objetos, o que proporciona a emergên-
cia de um tipo bastante particular de relação objetal, mais
arcaica, primitiva ou passiva. Nessas condições, é importante
notar que, apesar da expectativa incondicional de ser amado,
sem a obrigação de dar nada em troca para obter as gratifica-
ções e o interesse exigidos, tais gratificações, veementemente
solicitadas, nunca ultrapassam o nível do pré-prazer. Ainda
que naturalmente esses anseios nunca possam ser completa-
mente satisfeitos na situação analítica, faz-se necessário reco-
nhecê-los e compreendê-los para que o paciente possa desen-
volver uma capacidade de amar mais amadurecida, a partir
desse novo começo proporcionado pelas relações objetais
mais primitivas. Esse desenvolvimento caminha em paralelo e
depende fundamentalmente de que o paciente amplie de ma-
neira gradual a sua consideração pelos objetos. Com isso ele
desenvolve, ao mesmo tempo, sua capacidade de suportar e
lidar com a realidade deles, empenhando-se em chegar a um
compromisso aceitável entre as demandas provenientes dos
objetos e as suas.
Caso esse processo possa desenrolar-se em uma atmosfera
adequada, uma experiência surpreendentemente uniforme passa
a dominar o processo analítico, que pode ou não estar próximo
do seu fim. Vejamos como Balint a descreve: “o paciente sente
que está passando por um renascimento para uma nova vida, que
chegou ao fim de um túnel escuro, que novamente vê a luz após
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 81

uma longa jornada, que lhe foi dada uma nova vida; ele experi-
menta um sentimento de grande liberdade como se uma carga
pesada lhe tivesse sido retirada etc.”98 Tal experiência profunda-
mente comovente passa-se em um clima semelhante ao de uma
despedida de algo muito querido e precioso, em que são inevitá-
veis certo pesar e algum luto. Mas esse sofrimento sincero e pro-
fundo é ao mesmo tempo mitigado pela sensação de segurança
que provém das novas possibilidades de felicidade real recente-
mente conquistadas pelo sujeito. O que temos aqui, continua o
nosso autor, é uma espécie de luta de uma parte da personalidade
com outra, que resulta em um estado semelhante ao depressivo,
que antecede qualquer período de novo começo. Esse estado
depressivo “terapêutico” difere consideravelmente de outras for-
mas de depressão encontradas na clínica psicanalítica que ten-
dem ao aniquilamento do sujeito. “Nesta forma benigna de de-
pressão, o paciente, com sua coragem novamente conquistada,
permite a si próprio experimentar o renascimento atual de anti-
gas relações objetais primitivas”.99 Ele as admite não apenas co-
mo meras possibilidades, mas como anseios e sentimentos atuais,
mesmo sabendo que a situação analítica só lhe proporcionará
gratificações bastante parciais e por um período muito limitado.
Ainda assim, ele não reprime nem se fecha diante da ternura um
tanto dolorosa desses desejos.
Infelizmente, não são todos os que podem chegar a se
decidir por um novo começo. Algumas pessoas não deixam de
exigir do mundo compensações insistentemente renovadas
pelos erros cometidos, mesmo sabendo o quão obsessivas e
irreais são essas demandas: elas querem apenas ser amadas sem
amar em troca e exigem o reconhecimento que consideram
apropriado, sem nunca chegar a reconhecer propriamente o
98 Balint M. On the termination of analysis. In: Primary love..., op. cit. p. 238.
99 Balint M. New beginning and the paranoid and the depressive syndromes. In: Primary

love... op. cit. p. 255.


82 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

outro. Essa experiência, repetindo-se na relação transferen-


cial, leva inevitavelmente à configuração dos limites terapêu-
ticos do analista. Cabe salientar que, nessas circunstâncias, é a
capacidade que os pacientes têm de adquirir alguma habilida-
de para começar novamente suas relações amorosas, ou seja,
sua disponibilidade para amar de uma nova forma, que pro-
porcionará algum remanejamento subjetivo. Quanto aos que
não se mostram dispostos a isso, ainda que não saibamos mui-
to bem como podemos ajudá-los, Balint nos recomenda que
lembremos daquilo que dizia Ferenczi: enquanto um paciente
tem vontade de continuar o tratamento, é preciso encontrar
um caminho para ajudá-lo.
O que essas reflexões balintianas sobre a técnica psicanalítica
nos mostram é que manter uma atmosfera mutuamente confian-
te entre paciente e analista requer muito tato e uma cuidadosa
habilidade, pois há sempre o risco de se cair no precipício dos es-
tados viciosos. Assim, se o analista for apressadamente indulgen-
te, os pacientes podem desenvolver uma voracidade insaciável e
compulsiva – já que qualquer frustração passa a ser vivida com
um horror insuportável – na qual o que quer que seja obtido é
sempre experimentado como insuficiente. No entanto, quando
se consegue evitar essa situação, os períodos de novo começo
mostram-se bastante frutíferos, como tivemos a oportunidade de
ver. Nesses casos, estruturas egoicas rígidas, traços de caráter,
mecanismos defensivos, padrões de comportamento fossilizados
e formas eternamente repetitivas de relação objetal tornam-se
analisáveis ou elaboráveis, tanto para o analista quanto para o
paciente, dando a este a oportunidade de uma vida mais flexível e
livre de maiores angústias, após o final da análise.
Para além das razões biológicas, que, como tivemos a opor-
tunidade de indicar, puderam servir como uma metáfora empre-
gada pelo psicanalista húngaro para descrever toda essa experiên-
cia, a denominação de novo começo utilizada para retratá-los
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 83

tem motivações psicológicas bastante claras. Segundo Balint,


“este processo absolutamente dramático e, às vezes, surpreenden-
te possibilita ao paciente abandonar, ainda que muito cautelosa-
mente, pouco a pouco, os modos de relação objetal automáticos
aos quais ele estava habituado ou, em outras palavras, suas até
então imutáveis e inevitáveis modalidades de amar ou odiar”.100
Simultaneamente, ocorrem tímidas tentativas de se colocar dian-
te de novos caminhos que, no entanto, provam não ser mais do
que os antigos caminhos que, à sua época, foram corrompidos
pela ação frustrante, desinteressada ou meramente indiferente do
ambiente primitivo. Essa má experiência, traumática em sua ori-
gem e tendendo a se repetir de maneira recorrente, na verdade,
foi a responsável pelo início das maneiras doentias de amar e
odiar. Durante a análise, na segurança proporcionada pela rela-
ção transferencial, o sujeito parece abandonar temporariamente
suas defesas para regredir a um estado ainda não defendido, ingê-
nuo, ou melhor, pré-traumático, e começar novamente a amar e
odiar de um modo primitivo, que é rapidamente seguido pelo
desenvolvimento de modalidades relacionais mais satisfatórias
por serem pouco conflituosas. Nesse sentido, quanto mais o pa-
ciente estiver apto a se despir de suas formas adquiridas de rela-
ção objetal, mais ele se sentirá capacitado para um novo começo
em suas relações amorosas, e maior será a probabilidade de que
estas se desenrolem de maneira promissora.

O FENÔMENO DOS GRUPOS BALINT


Ultrapassadas estas etapas relacionadas com discussões mais teó-
ricas da obra do nosso psicanalista, não poderíamos deixar de
tecer aqui alguns comentários, ainda que breves, sobre o fenôme-
no que transformou definitivamente Michael Balint em um no-
me mundialmente famoso. Esse fenômeno levou o seu nome
100 Idem, p. 247.
84 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

para fora do campo psicanalítico estrito senso e o integrou ao


domínio das práticas em que se estabelecem relações clínicas mais
amplas entre médicos e pacientes. A partir da formação de grupos
de discussões sobre este tema, os chamados grupos Balint torna-
ram-se, sem qualquer sombra de dúvida, a contribuição mais co-
nhecida do autor para a história das teorizações sobre as relações
humanas, ainda que, do nosso ponto de vista, os conceitos nela
formulados não tenham sido os mais importantes de sua obra.
Desta área de estudos destacaríamos, talvez como uma exceção,
sua concepção sobre a origem das doenças comuns que, como já
mencionamos antes, tornou-se uma contribuição importante na
medida em que deu origem ao conceito de falha básica.
Mas, o que seriam exatamente esses grupos que nasceram
aproximadamente no final dos anos 1940? Neles, médicos prati-
cantes de clínica geral, em número de oito a dez, se reúnem uma
vez por semana sob a direção de um líder de formação psicanalí-
tica, com o intuito de refletir sobre alguns casos clínicos cotidia-
nos ao encargo de um de seus membros. Sem o auxílio de notas
ou dossiês, um dos médicos expõe a história de um de seus paci-
entes e as dificuldades encontradas no encaminhamento do caso.
Seus colegas tentam, então, encontrar as soluções com ele, aju-
dando-o a compreender as razões dos bloqueios surgidos na rela-
ção com o doente que poderiam ter impedido uma ação terapêu-
tica mais eficaz. Para resgatar o que se passaria entre esse médico e
esse doente, cada um apresenta suas opiniões, impressões e inter-
rogações. O líder pontua algumas fases em uma tentativa de
compreensão da evolução desta relação médico–doente e procu-
ra esclarecer alguns pontos importantes que não teriam sido no-
tados pelo relator do caso. Além disso, ele também aponta certos
comportamentos automáticos que o médico poderia estar repe-
tindo sem o saber.
Segundo Ricaud, na origem desses grupos estariam as pri-
meiras experiências de controle analítico da associação húnga-
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 85

ra, da qual Balint fazia parte, e que haviam dado às noções de


transferência e contratransferência, sobretudo, um alcance
decisivo para a compreensão do progresso no tratamento psi-
canalítico. A autora faz uma analogia entre o que se passa nos
grupos Balint e a estrutura de um sonho do ponto de vista de
Freud. Neste sentido, a sessão de grupo seria assimilável ao
modelo freudiano da interpretação dos sonhos, já que a histó-
ria do caso relatado estaria no lugar do texto manifesto, as
intervenções dos participantes seriam equivalentes às associa-
ções livres de um paciente e o líder funcionaria como um in-
térprete que desvela o sentido latente. Assim, esses grupos te-
riam como finalidade implícita modificar, ao menos em parte,
a personalidade do médico no cotidiano de seu trabalho, isto
é, transformar a região do seu eu profissional por intermédio
de uma descontração geral de sua personalidade. Nestes ter-
mos, o grupo teria “uma função terapêutica, mesmo que o pro-
cesso só pretenda obter uma modificação limitada, ainda que
considerável, da personalidade do médico e que muitos dos
usuários destes grupos neguem essa função”.101 Pode-se notar
que os grupos Balint introduzem uma mudança de perspecti-
va na formação do médico, já que lhe oferece, justamente,
uma possibilidade de mudança de posição subjetiva. Ele não
seria mais aquele que se deixa influenciar apenas pelo que vê,
passando a dar atenção àquilo que escuta. Portanto, o médico
é levado a considerar uma outra lógica, que inclui aspectos or-
dinariamente descartados do campo clínico, como, por exem-
plo, valorizar o que se passa após a consulta com seu paciente.
Esta nova perspectiva, na visão de Faure, implica na modifi-
cação oportuna da estrutura médica tradicional no que tange à
sua prática. Ela leva ao abandono do modelo científico estrito
mais tradicional, cujo protótipo é fornecido pela medicina hos-
pitalar, em proveito de uma medicina da pessoa como um todo,

101 Ricaud MM. Op. cit. p. 167 (grifado no original).


86 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

apoiada sobre a descoberta de que o médico é o remédio mais


frequentemente utilizado em clínica geral. Se pudermos supor
que a busca obstinada e fecunda de Michael Balint no domínio
da psicanálise tinha como motivação principal estender os limi-
tes que ele encontrava em sua prática, compreenderemos o senti-
do de seu retorno ao material recalcado pela medicina, “esta prá-
tica médica não científica, em que os limites do não saber deixam
o médico diante da demanda de um homem que se diz doen-
te”.102 O objetivo de sensibilizar os médicos para essa problemá-
tica, esclarecendo-os sobre a necessidade de um diagnóstico
aprofundado, fora do domínio de sua formação universitária de
base, fazia parte de uma proposta política mais ampla, qual seja, a
de modificar radicalmente a estrutura médica convencional.
As teses que visam sustentar essa proposta ganham uma fun-
damentação mais precisa em 1957, com a publicação do princi-
pal trabalho de Balint sobre o tema, e certamente o mais divulga-
do de sua obra, intitulado O médico, seu paciente e a doença. Nele,
podemos encontrar algumas das noções-chave que nos auxiliam
a compreender melhor a visão balintiana sobre a relação entre
esses três elementos. Uma delas é a importante noção de líder do
grupo. Sendo ou não médico, o líder não é um “mentor superior
que sabe o que é bom e conveniente para o clínico geral”,103 da
mesma forma que um supervisor em psicanálise não é quem diri-
ge a terapia de um colega; sua função é paradoxalmente um pou-
co mais complexa: ele dirige o grupo de maneira a criar uma
atmosfera propícia à formação, o que supõe de sua parte uma pre-
sença razoavelmente discreta, que não comprometa a liberdade
da palavra dos participantes. Suas tarefas básicas são as de formu-
lar as regras do jogo e observar o funcionamento do grupo
seguindo um certo número de regras analíticas: atenção flutuan-
te, neutralidade benevolente, abstinência e interpretação do gru-

102 Faure F. Op. cit. p. 51.


103 Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Op. cit. p. 279.
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 87

po. De acordo com sua personalidade, o líder pode dar uma co-
loração mais ou menos rigorosa à liderança. No entanto, Balint
ressalta que, para que os objetivos do grupo possam ser realmen-
te alcançados, é necessário que o líder seja democrático e que te-
nha ultrapassado certos conflitos. Ele deve ser capaz de coorde-
nar o trabalho em equipe, interpretar quando necessário, manter
o grupo numa certa tensão e evitar que ele degenere em uma es-
pécie de sociedade de admiração mútua.
Sendo assim, um conhecimento de dinâmica de grupo pare-
ce necessário para que se percebam as tensões no grupo, zelando
por sua coesão e controlando as eventuais crises. Neste sentido,
torna-se importante que um líder tenha passado por uma análi-
se, pois, se ele pretende sensibilizar os médicos para as manifesta-
ções do inconsciente, ele mesmo deve estar familiarizado com
seu próprio inconsciente. Aliás, é fácil notar que Balint define as
condições fundamentais para o funcionamento do grupo em ter-
mos idênticos, ou pelo menos bastante próximos, aos utilizados
em uma cura psicanalítica. Eles se resumem em uma “criar uma
atmosfera”104 de tal forma que cada membro do grupo (incluído
o próprio líder) possa suportar o choque da difícil e desagradável
tomada de consciência sobre os seus limites.
Nesses termos, o líder ensina pela sua maneira de escutar e
respeitar as identificações dos membros entre eles, possibilitando
que cada um se exprima ao seu modo no momento que lhe pare-
ce adequado. Ainda que investido transferencialmente de sua
função, ele evita que o grupo transforme-se em um empreendi-
mento abertamente terapêutico, o que poderia ocasionar a perda
de seus principais objetivos. Para isso, procura fazer com que as
atenções não se concentrem excessivamente nele, evitando inter-
pretações constantes ou um silêncio supostamente analítico, o
que produziria o mesmo efeito. Resumindo, “o líder deve criar
uma equipe de formação-pesquisa a mais igualitária possível
104 Balint M. Op. cit. p. 264.
88 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

entre médicos e psicanalista”.105 O que ele prioriza não é a análise


da transferência ou da contratransferência entre ele e os mem-
bros do grupo, mas a própria consulta médica, estudando a pos-
teriori a transferência/contratransferência entre o médico partici-
pante e seu paciente.
A hipótese balintiana mais ampla sobre a situação médica é a
de que, quando um paciente consulta um clínico, ele lhe oferece
problemas somáticos e psíquicos que deverão ser decifrados, ain-
da que se deva evitar um diagnóstico imediato. Como o paciente
pode oferecer várias possibilidades clínicas, faz-se necessário um
certo tempo, que não poderia ser encurtado por um diagnóstico
precipitado. Na dúvida, Balint recomenda não se apressar e ape-
nas escutar. Neste primeiro tempo do encontro, o da doença não
organizada, o médico deve formular uma ideia precisa do que
afeta o paciente e chegar com ele a um acordo sobre a natureza do
problema do qual ele se queixa. Aí está incluída a hipótese de que
o próprio paciente venha a fazer um diagnóstico de sua doença,
com o qual o médico pode aprender bastante – como se o paci-
ente pudesse funcionar como um médico de si mesmo. O profis-
sional de medicina precisa, nestes casos, da maior disponibilida-
de de espírito possível para descobrir que “toda doença é também
o ‘veículo’ de um pedido de amor e de atenção”.106
Outra noção importante da “medicina” balintiana é a do
“médico como medicamento”, cuja eficácia própria jamais tinha
sido teorizada de maneira rigorosa, até que, sob a influência da
teoria freudiana a propósito da transferência, alguns trabalhos
passaram a investigar o chamado “efeito placebo”. Descobrir a
farmacologia do remédio-médico implica em uma variedade de
modos de administração e posologias que não se reduzem a uma
conversa prolongada. Essa era possivelmente a única forma de
descobrir os princípios farmacológicos de base a respeito desse
105 Ricaud MM. Op. cit. p. 180.
106 Balint M. Op. cit. p. 240 (grifado do original).
A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 89

velho medicamento, cujas virtudes terapêuticas vinham sendo


ocultadas naqueles tempos pelos progressos da tecnologia médi-
ca. A redescoberta do médico–medicamento parece ser uma
consequência direta das ideias de Balint sobre as relações preco-
ces do sujeito com o seu entorno. Nesse sentido o médico–medi-
camento não é apenas um objeto oral, consumido por incorpo-
ração, mas é “uma qualidade de acolhimento, uma situação na
qual nos sentimos bem, são palavras e contatos físicos, em suma,
todo um ambiente no qual o paciente se encontra imerso por
ocasião dos encontros com o médico”.107 Isso não significa mais
propriamente que o médico perca os contornos de um objeto
definido e se aproxime mais das substâncias primárias tais como
elas surgem no mundo perceptivo do recém-nascido. Esse seria
apenas o caso de algumas experiências-limite, entendidas como
linhas de situações regressivas. O importante é que essa possibili-
dade exista e que o paciente possa sentir-se cuidado em um plano
diferente do da biologia científica e racional.
Já a noção de “conluio no anonimato” refere-se às situações
em que o paciente é atendido por vários médicos sem que ne-
nhum deles seja verdadeiramente responsável pelas decisões to-
madas. Balint considera esse nomadismo médico como uma fal-
ta de confiança da parte do médico, provocada por problemas na
escuta que ele dedica ao seu paciente. Quanto ao “furor terapêu-
tico”, o autor procura lembrar que talvez não seja necessário erra-
dicar todos os sintomas de um paciente, mas, quem sabe, apenas
ensiná-lo a conviver com sua doença ou a tratar globalmente as
condições que a provocaram. Em conformidade com essas for-
mulações surge a noção de “diagnóstico global” ou “aprofunda-
do”, como resultado da concepção de uma medicina da pessoa
como um todo, e não mais do simples diagnóstico sintomático.
Esse diagnóstico aprofundado só é possível em uma relação de

107 Gelly R. Aspectos teóricos do movimento Balint. In: A experiência Balint. Op. cit. p. 29.
90 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

confiança duradoura, na qual médico e paciente associam-se em


busca da cura como um interesse comum. Essa associação fez com
que Balint sugerisse a metáfora da “companhia de investimento
mútuo”, uma relação de confiança entre dois parceiros que pode
durar por toda a vida, servindo como uma verdadeira fonte de co-
nhecimento tanto para o médico como para o paciente.
A noção de “função apostólica”108 recebeu uma atenção e
um exame mais detalhados em função do lugar que ela ocupa na
formação do médico. Essa expressão, proveniente do grego apos-
tolos, implica em uma missão que se aproxima do sacerdócio.
Para o psicanalista húngaro, há nela uma ambiguidade, posto
que se trata de uma função ao mesmo tempo negativa e positiva:
sinônimo de bom-senso, ela acaba revelando-se uma referência
frágil e pouco digna de crença. Ainda assim, um dos meios essen-
ciais para melhorar a compreensão do médico seria torná-lo
consciente da pressão que tal função exerce sobre ele, evitando
que a exercitasse de uma maneira automática em todos os casos.
O que se observa é que o médico se comporta diante de seus
pacientes como se ele possuísse um saber “revelado” sobre a ma-
neira como eles deveriam agir para serem curados e como se ti-
vesse o dever sagrado de converter todos os incrédulos e ignoran-
tes ao seu modo de pensar, suas crenças e valores. Desempenhan-
do seu trabalho como uma missão religiosa, nos moldes católi-
cos, o médico presta um testemunho de sua fidelidade ao ensino
tradicional, que ele passa a transmitir fervorosamente não apenas
a seus alunos, mas também aos pacientes (daí o título de doutor,
do latim docere, aquele que ensina). Nessas condições, o “zelo
apostólico” deve ser compreendido como um conjunto de ações
que exercem uma influência sobre o outro, tendo como objetivo
a sua saúde.

108 Idem, p. 185-06.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 91

É propriamente este ardor, colocado a serviço da causa da


saúde, que dá à função apostólica seus aspectos positivos e nega-
tivos: por um lado, o paciente é convencido a se cuidar ou a acei-
tar sua doença e conviver com ela, mas, por outro lado, estando
absolutamente certo de sua razão, o médico deixa de escutar seus
pacientes e passa a fazer sermões, visando convencê-los de certos
problemas. Por vezes o trabalho de conversão é bem-sucedido e
tudo termina bem; em outras ocasiões, o paciente não se cura, e o
médico, suportando mal esse fracasso, imputa-o ao doente.
Balint destaca que, em determinados médicos, este zelo apostóli-
co é tão grande que eles acabam abandonando o grupo de forma-
ção. Nas suas palavras, “desde o princípio pregavam seus pró-
prios e bem provados métodos e ao mesmo tempo mostravam-se
incapazes de escutar e menos ainda de considerar seriamente
outros métodos que não fossem os próprios”.109 Essa atitude os
leva inevitavelmente a entrar em competição com o líder, repre-
sentante dos objetivos do seminário, o que por sua vez gera uma
atmosfera tensa e difícil. Após algumas tentativas fracassadas de
converter o grupo às suas crenças, eles acabam se retirando insa-
tisfeitos e excessivamente críticos. Sua fé na medicina e sua into-
lerância levaram Balint a classificá-los na categoria dos chamados
médicos “superiores”: clínicos solidamente estabelecidos, experi-
mentados, gozando de boa reputação entre os pacientes e os
colegas e, por essas razões, pouco inclinados a se conscientizarem
das pressões exercidas pela função apostólica que neles assumia o
papel de uma segunda natureza.
Dentre essas diversas contribuições dos grupos Balint, não
poderíamos deixar de mencionar mais uma vez sua abordagem
bastante particular sobre a doença orgânica, à qual já fizemos
menção nas passagens em que discutimos a noção de falha básica.
Assim como Freud pôde mostrar que os neuróticos adultos regre-

109 Idem, p. 274.


92 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

diam ao ponto de fixação de sua libido em uma neurose infantil,


Balint formulou de maneira semelhante a hipótese de um desen-
volvimento em dois tempos da doença orgânica. A doença atual
pode reenviar a uma “doença de base”, cuja representação enquan-
to “defeito fundamental” ou falha básica encontra sua origem em
vestígios das experiências físicas e psíquicas mais precoces do indi-
víduo.110 Essa doença de base não poderia ser considerada curável,
mas apenas cicatrizável. Conhecê-la é conhecer seus limites, aos
quais só resta adaptar-se da melhor forma possível. Considerando
os casos de pacientes que “não têm nada” organicamente, mas que
“sofrem de alguma coisa”, fazia-se necessário que os médicos esti-
vessem preparados para lidar e compreender estas conversões so-
máticas, essas queixas subjetivas ou esse mal-estar neurótico, em
vez de tentar converter os pacientes às suas crenças pessoais sobre a
saúde e a doença. Diante disso, a formação proposta pelo grupo
Balint deveria oferecer ao médico, para além de suas atribuições
tradicionais, a possibilidade de assumir a responsabilidade de uma
pequena psicoterapia. Para que isso seja possível, isto é, para que o
médico imprima na sua formação uma ligeira, mas indispensável,
transformação, a condição principal é a de que ele se torne consci-
ente do papel que representa enquanto medicamento. Essa con-
cepção de médico–medicamento, à qual fizemos uma breve refe-
rência anteriormente é, na verdade, uma das mais importantes
dentre as inúmeras descobertas dos seminários de formação e pes-
quisa para os clínicos. Com ela, Balint estaria procurando mostrar
que em medicina, como em psicanálise, o remédio que faz evoluir,
suportar e, até mesmo, curar o paciente também seria a transferên-
cia.
Antes de concluir essa discussão, é importante lembrar ainda
de outro resultado importante dos seminários Balint, que foi ter

110 Cf. o capítulo XIX sobre “O paciente e sua doença”. In: O médico, seu paciente e a doença.

Op. cit. p. 219-32.


A Obra de Balint – Conceitos Fundamentais 93

resgatado o aspecto positivo dos sentimentos do médico. Dife-


rentemente da concepção positivista ou cartesiana, segundo a
qual os médicos deveriam manter um controle quase que absolu-
to sobre as suas emoções, conservando uma atitude imperturba-
velmente objetiva e compreensiva, a abordagem do mecanismo
de contratransferência permite que elas sejam consideradas
como pertencentes de pleno direito às relações médico-paciente.
“Se sentimentos ou emoções, quaisquer que sejam, são suscita-
dos no médico durante o tratamento de um paciente, eles devem
igualmente ser avaliados como um sintoma importante da doen-
ça do paciente”.111 Levar em consideração as emoções não deve,
entretanto, servir de pretexto para qualquer tipo de ação, e é pre-
cisamente esta tarefa de mestria sobre os sentimentos que exige
da parte do profissional um aprendizado considerável. Se, para
não prejudicar e ser eficaz junto ao paciente, o médico deve não
apenas dispor de conhecimentos mas também de um savoir-fai-
re, se para ajudar o outro sua personalidade é um instrumento de
grande importância, faz-se necessário que ela seja suficientemen-
te livre, bem integrada e flexível. Até então, o único instrumento
disponível para se chegar a esse resultado parecia ser a cura analí-
tica. Nessas condições, o seminário de discussão oferecido pelos
grupos Balint apresentava-se como outra alternativa. Por meio
da criação de uma atmosfera asseguradora, o grupo torna-se um
espaço indulgente no qual se ousa confiar, discutir erros ou difi-
culdades, em benefício de uma relação mais espontânea e de uma
implicação pessoal, com o auxílio de uma audiência ao mesmo
tempo simpática e crítica.
Após esse percurso pelos principais conceitos construídos ao
longo da obra de Balint, passemos agora a uma breve discussão a
propósito da atualidade de seu pensamento para a teoria psicana-
lítica contemporânea.
111 Balint M. Techniques psychothérapeutiques en médicine. Paris: Payot, 1966, p.85, citado por

Ricaud MM. Op. cit. p. 187.


Atualidade do
Pensamento de III
Michael Balint

J á vimos que, no decorrer do desenvolvimento de seus estudos


no campo psicanalítico, Balint parece não ter verdadeira-
mente criado o que se poderia chamar de uma escola de psicaná-
lise, ao menos no sentido doutrinário da expressão. Sua influên-
cia ao redor do mundo, psicanalítico ou não, parece ter se espra-
iado fundamentalmente no domínio da prática dos grupos de
discussão das relações entre médicos e pacientes, o que podería-
mos considerar como uma influência que se expandiu pelo cam-
po mais amplo das relações objetais aplicadas. Isso não significa,
no entanto, que o exercício de uma prática como a de Balint no
contexto dos grupos não tenha influenciado sua teoria. O con-
ceito fundamental de falha básica, como vimos, tornou-se um
dos eixos centrais de seu pensamento e parece ter sido extraído
quase que diretamente daquela prática. Ocorre que, se passa-
mos os olhos pela produção atual daqueles que tomam sua obra
como referência, notamos que os escritos desses discípulos vol-
tam-se, quase na sua totalidade, para a discussão do assunto
“Grupos Balint”. Problemas a ele correlacionados, como as rela-
ções médicas com casos clínicos em diferentes contextos, princi-
palmente no hospitalar, também costumam ser mencionados
com frequência.
O que dizer, então, da influência do pensamento de Balint
na teoria psicanalítica estrita, como diríamos, atual? Pouco nos
resta, se considerarmos o que se tem escrito sobre sua obra no
campo das relações objetais puras em psicanálise. Pouquíssimos
são os autores que se referem diretamente a sua teoria, embora,
de forma um tanto paradoxal, possamos notar o retorno bastante
frequente da obra e dos conceitos fundamentalmente técnicos de 95
96 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Ferenczi em muitas discussões que se passam atualmente no


domínio da clínica psicanalítica. Mas, por que Ferenczi e não
Balint? No mínimo pelo fato de o primeiro ter tornado-se um
autor que, na atualidade, poderíamos chamar de clássico, apesar
de em sua época ter sido considerado um enfant terrible, de cu-
nho iconoclasta, e cujas ousadias teórico-clínicas chegaram mes-
mo a assustar até o próprio Freud. Não que Ferenczi não conti-
nue ainda a ser ousado nos dias atuais, mas mencionar seu nome
hoje é referir-se a alguém que, com sua ousadia, acabou tornan-
do-se, antes de qualquer coisa, a referência máxima da chamada
Escola de Budapeste ou Escola húngara. Além disso, Ferenczi
teve também uma grande influência em autores importantes das
Escolas inglesa e francesa. Analistas do porte de Winnicott e
Lacan, para citar apenas dois, não deixaram de fazer menção às
suas formulações no decorrer de seus trabalhos, e sabemos que
ambos – principalmente o último no que se refere a uma doutri-
na – são responsáveis por escolas extremamente fortes na psica-
nálise contemporânea, ainda que bastante distantes uma da
outra.112 Portanto, Ferenczi tornou-se um referencial seguro ao
qual recorrer sempre que se pensa em inovar não apenas na teo-
ria, mas principalmente no campo da prática psicanalítica.
No entanto, além disso, vale lembrar que o nome de Ferenc-
zi só se transformou em um marco na história da psicanálise por-
que ele enfrentava desafios clínicos, com os quais os analistas se
viram mais confrontados a cada dia. Os problemas da prática re-
lacionados com os chamados “casos difíceis”, que sempre cha-
maram a atenção do aguçado olhar clínico ferencziano, parecem
ter tornado-se cada vez mais frequentes em nossos dias. Isso pelo
fato de os esquemas teóricos e clínicos, dos quais a psicanálise
dispunha desde os seus primórdios até a primeira metade do
século passado, terem se tornado insuficientes diante da singula-
112 Sobre isso ver Bercherie P. Examen des fondements de la psychanalyse. Paris: L’Harmattan,

2004 e De Ferenczi à Winnicott. Paris: L’Harmattan, 2004.


Atualidade do Pensamento de Michael Balint 97

ridade das formas de subjetivação e de sofrimento psicossomáti-


co, os quais pareciam não mais se encaixar na grade conceitual
previamente estabelecida. Referimo-nos aqui aos aportes clínicos
tanto da teoria kleiniana como da lacaniana, que, mesmo que
não tenham se esgotado, parecem dar certos sinais de esterilida-
de, exigindo avanços e atualizações. Principalmente diante de
um mundo que não para de produzir modalidades de sofrimento
cada vez mais complexas e inusitadas.
Nessas condições, a alternativa balintiana, na esteira de
Ferenczi, parece se impor como uma possibilidade ainda não
suficientemente explorada para lidar com casos clínicos que
escapam de forma evidente a um enfoque pautado em uma
perspectiva estrutural da clínica. Para ilustrar a importância
dessa alternativa no movimento psicanalítico contemporâ-
neo, cabe aqui uma breve discussão sobre os diferentes apor-
tes técnicos derivados de algumas das principais correntes
teóricas em voga na atualidade da psicanálise. Com ela, pre-
tendemos mostrar não apenas o quão atuais ainda são as pro-
postas de Balint, mas, ao mesmo tempo, indicar alguns dos
principais impasses para os quais ela parece apontar. É preci-
so lembrar ainda que, por mais que a nossa intenção seja a de
discutir a importância atual da teoria de Balint, essa discus-
são passa inevitavelmente por uma abordagem histórica do
movimento psicanalítico da qual derivam todos os proble-
mas da atualidade da psicanálise.113
Voltemos então, primeiramente, ao tema das controvérsias
no seio da Escola inglesa em meados dos anos 1940, ao qual fa-
zíamos referência no princípio deste trabalho, com o intuito de
delimitarmos melhor a posição de Balint naquela época. Acom-
113 Sobre isso ver Souza O. Aspectos do encaminhamento da questão da cientificidade da

psicanálise no movimento psicanalítico. In: Pacheco Filho R., Coelho Jr N, Debieux


Rosa M. (Eds.) Ciência, pesquisa, representação e realidade em Psicanálise. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2000 e Notas sobre algumas diferenças na valorização dos afetos nas
teorias psicanalíticas. In: Bezerra Jr B, Plastino CA. Corpo, afeto, linguagem: a questão do
sentido hoje. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001.
98 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

panhando aquelas controvérsias, torna-se possível perceber as


diferenças entre kleinianos e anna-freudianos com relação ao
tema do surgimento da fantasia, assunto de importância capital
no que diz respeito às divergências não apenas no âmbito da teo-
ria, mas também no campo da clínica. Nota-se basicamente que
o grupo de M. Klein procurava justificar a concepção de uma
intersubjetividade primitiva, aberta para a alteridade desde os
períodos mais precoces da vida do bebê, por meio de mecanis-
mos altamente complexos. Com isso, os kleinianos procuravam
formular críticas ao solipsismo subjetivo presente em algumas
concepções freudianas sobre os primórdios da vida psíquica. Já o
grupo ligado a Anna Freud, insistia na manutenção de uma lei-
tura mais rígida e ortodoxa das noções freudianas, afirmando
que as experiências precoces se restringiriam a processos psíqui-
cos simples e pouco numerosos, vinculados ao funcionamento
primário do princípio do prazer.114 Certamente, o aspecto que se
destaca nesse ponto de vista é a prevalência do caráter autoeróti-
co e narcísico nos primórdios da organização libidinal infantil, o
que inevitavelmente levava à impossibilidade de admitir qual-
quer tipo de relação alteritária com o entorno naquele momento
do processo de amadurecimento físico e psíquico.
Foi justamente quanto a este tema da alteridade e as questões
que ele suscitava que Balint e outros teóricos das relações de obje-
to, como Fairbairn115 e Winnicott,116 procuraram colocar-se em
suas discussões com os kleinianos. Se a obra de Klein representa-
va uma revisão da teoria pulsional freudiana, às vezes pouco
notada em seus efeitos mais radicais, a teoria balintiana, desde
pelo menos 1935, como vimos antes, já formulava críticas muito
mais explícitas aos aspectos energéticos e biológicos da teoria
pulsional clássica. Mesmo reconhecendo o arrojo kleiniano ao
114 Cf. King P, Steiner R. Les controverses Anna Freud-Melanie Klein. Op. cit. p. 278.
115 Cf. Grotstein JS, Rinsley DB. Fairbairn and the origins of object relations. London: Free

Association Books. 1994.


116 Cf. Rodman FR. Winnicott: – life and work. Cambridge: Perseus, 2003.
Atualidade do Pensamento de Michael Balint 99

insistir na necessidade de repensar as relações objetais mais pri-


mitivas do bebê, Balint a considerava uma tentativa artificial de
adaptação da teoria pulsional ortodoxa às evidências clínicas das
primeiríssimas relações objetais. De acordo com Octavio Souza,
“diferentemente de M. Klein que preferiu redefinir o conceito de
pulsão em termos expressivos, os psicanalistas da relação de obje-
to preferiram propor como característica mínima do psíquico
uma dimensão não pulsional da experiência, anterior à experiên-
cia pulsional, dimensão esta que se constituía como terreno sobre
o qual todo o psiquismo se enraíza. Para Balint este terreno é o do
amor primário”.117
Como esclarecíamos anteriormente, criticando a teoria das
fases pulsionais de Abraham – que se impunham como referên-
cia fundamental para a abordagem psicanalítica da organização
libidinal pré-edipiana por volta dos anos 1920 –, Balint procura-
va mostrar a necessidade de se abordar de maneira independente
o desenvolvimento das pulsões e o desenvolvimento amoroso das
relações objetais. Sua argumentação básica era a de que não bas-
tava considerar apenas as modificações nas fontes e nos objetivos
pulsionais para que se pudesse explicar as mudanças qualitativas
nas relações de objeto do infante. Apoiado na tradição húngara,
constituída a partir da teoria ferencziana, ele afirmava que as ati-
vidades libidinais mais precoces não eram propriamente pulsio-
nais, mas marcadas de modo prioritário por um investimento de
ternura na figura materna. Assim, diferentemente dos anna-freu-
dianos e dos kleinianos, o bebê balintiano não é narcísico, autoe-
rótico, nem muito menos sádico. Ele é dotado de uma capacida-
de primária de amor objetal, a despeito de a criança neste mo-
mento ainda não possuir nenhuma representação de objeto.

117 Souza. O. Aspectos do encaminhamento da questão da cientificidade da psicanálise no

movimento psicanalítico. Op. cit. p. 223-24.


100 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

Nota-se, portanto, que a dificuldade fundamental com a


qual Balint se deparava, ao defender, quase que obstinadamente,
a sua posição neste debate, era a de caracterizar uma relação não
mediada por representações de objeto (do outro) como uma
abertura para a alteridade. O que ele recusa são os termos clássi-
cos da teoria abrahamiana, que caracterizavam a organização
pulsional oral pela via de um autoerotismo sem objeto e do nar-
cisismo primário. Como vimos, ele supõe não apenas que todo
narcisismo é secundário, mas também que a relação mãe–bebê
sempre se caracteriza primeiramente pelo amor. Nessas condi-
ções, não seria pertinente pensar as relações precoces com o en-
torno apenas nos termos de uma descarga de tensão pulsional
presente na experiência de satisfação. Balint insiste em ressaltar a
existência de uma relação com o outro fora do campo da repre-
sentação, a partir do alto valor psíquico que atribui à qualidade
dos cuidados maternos. Haveria, então, uma sintonia fina entre a
mãe e o bebê que, ultrapassando o plano da satisfação pulsional,
introduziria esta dimensão de alteridade que ele pretende destacar.
Não há dúvida de que os kleinianos, ao insistirem na im-
portância das fantasias precoces, também destacam uma di-
mensão de fundação do psiquismo pautada na experiência da
alteridade, que, de certa forma, parece aproximar-se daquela
que Balint chamava de amor primário. No entanto, o estatuto
dessa mesma experiência difere em cada uma dessas aborda-
gens. Se, para os primeiros, a fantasia, enquanto experiência
psíquica inaugural, se constitui na relação com o outro conce-
bido como um objeto parcial – o que faz da intersubjetividade
o domínio prioritário de constituição do universo psíquico –,
na teoria balintiana tudo se passa em termos de dependência
amorosa. Nesses termos, o bebê não precisa ter uma represen-
tação sensória da existência do outro para que a dimensão da
alteridade venha a se instaurar; para isso, basta que ele entre
em algum grau de sintonia com a presença do outro, estabele-
Atualidade do Pensamento de Michael Balint 101

cendo com ele uma relação de dependência, o que inevitavel-


mente tem como efeito a constituição de uma organização
psíquica primária.
Mas não seria essa organização primária um produto direto e
exclusivo da satisfação pulsional? – poderiam indagar alguns.
Não, responderia Balint. Essa organização, ainda bastante primi-
tiva, já é consequência direta de uma relação amorosa, que se
constitui fundamentalmente a partir dos cuidados que a figura
materna dispõe-se a dispensar à criança. “Menos sadismo e mais
amor”,118 ele costumava defender. Se for assim, como fica a fa-
mosa pulsão de morte, que se costuma dar o estatuto de conceito
fundamental da psicanálise em certas teorias atuais? – poderiam
perguntar outros. No que diz respeito à origem do sujeito, ela
não tem uma participação decisiva, diria o autor. Evidentemente
sua concepção do nascimento do psiquismo não lhe atribui o
papel conceitual de um fundamento, sem o qual a gênese da sub-
jetivação se tornaria impensável. De acordo com a teoria que ele
nos propõe, as frustrações pulsionais não têm de ser necessaria-
mente traduzidas como privações infligidas ao sujeito por um
objeto mau, como querem os kleinianos, que fazem do espaço da
experiência alteritária primordial uma espécie de casa do terror.
Como já tivemos a oportunidade de ver, caso o ambiente seja
minimamente acolhedor e dê suporte para que as primeiras ex-
periências traumáticas possam ser superadas, tais frustrações não
terão efeitos necessariamente desintegradores ou prejudiciais.
Ainda que essas experiências estejam na origem da falha básica,
que, como também já pudemos avaliar, pode afetar de maneira
mais ou menos extensa a estrutura do ego, elas nunca são vividas
como persecutórias, já que a diferenciação entre o ego e o mundo
externo ainda não ocorreu.

118 Balint M. The final goal of psycho-analytic treatment. In: Primary love..., op. cit. p. 199.
102 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

É importante destacar que Balint não se encontra completa-


mente só ao sustentar essas posições quanto à importância do
amor do outro nos primórdios do processo de subjetivação. Tais
posições parecem aproximar-se bastante das de Winnicott, ainda
que este não faça muitas referências a Balint. No que se refere à
experiência originária, Winnicott prioriza a operação de identifi-
cação primária, e não a relação de objeto. Sendo assim, o autor
destaca a experiência do ser como um antecedente necessário a
qualquer fazer de ordem pulsional.119 Nesse sentido, na relação
primária com o seio materno, a criança se identificaria com ele
antes mesmo de qualquer diferenciação entre sujeito e objeto,
que estaria na raiz do eu precoce. Nesse caso, não haveria possibi-
lidade de ser senão junto com outro, ainda não diferenciado, e só
a partir dessa experiência é que se poderia pensar no advento
posterior de um eu mais propriamente delimitado.
Não há dúvida de que essa descrição das origens se aproxima
bastante do ponto de vista defendido por Balint, já que se susten-
ta na dimensão não pulsional da experiência – a qual está na
gênese da diferenciação entre os mundos interno e externo. No
entanto, a insistência na teoria do amor primário, enquanto sin-
tonia entre sujeito e objeto, poderia levar Balint a supor a exis-
tência de um sujeito dado que antecederia de certa forma a rela-
ção objetal. Nessas condições, a teoria winnicottiana parece apre-
sentar-se como uma solução para esse possível impasse, ainda
que o próprio Balint tenha tentado resolvê-lo ao conceber a com-
plexa hipótese da intromistura harmoniosa de substâncias, como
vimos anteriormente. Segundo Souza, “a concepção de Winni-
cott de uma dimensão pré-subjetiva da experiência, anterior à
diferenciação eu/não eu, sustentada pela identificação primária,
permite conceber de um modo mais simples aquilo que Balint

119 Sobre isso ver Winnicott DW. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de

Janeiro: Francisco Alves, 1978.


Atualidade do Pensamento de Michael Balint 103

pretendia, ou seja, atribuir à alteridade um papel constitutivo


para o psíquico sem a necessidade de mecanismos muito complexos
logo no início da vida, como era o caso das teorizações kleinianas”.120
Apesar dessas pequenas diferenças e dificuldades, Balint, assim
como Winnicott, não deixou de derivar as consequências clínicas
fundamentais dessa dimensão primária, não pulsional, da depen-
dência infantil. Tais consequências referem-se diretamente à ques-
tão da posição do analista na dinâmica transferencial, a qual, nos
parece, ainda, uma das mais cruciais no campo da psicanálise na
atualidade. Se considerarmos a presença cada vez mais frequente
na clínica psicanalítica de pacientes cuja organização psíquica não
se deixa aprisionar em quadros clínicos rigidamente estruturados –
como nas formas puras de neurose, psicose ou perversão, que
foram estabelecidas como as linhas mestras da chamada clínica
estrutural –, torna-se extremamente relevante reconsiderar os
parâmetros da técnica a ser empregada nesses casos. Do contrário,
continuaremos a procurar justificar nossos fracassos terapêuticos
com a precária definição dos “pacientes inanalisáveis”. Se tudo isso
faz algum sentido, ou seja, se levarmos em conta a importância dos
aspectos primitivos da subjetivação, destacados principalmente
pelos aportes balintiano e winnicottiano, não se trata mais de
interpretar pura e simplesmente os sintomas, de acordo com o
modelo clássico de condução de uma análise com pacientes fun-
damentalmente neuróticos. Assim, sem desconsiderar a importân-
cia da interpretação, como Balint bem lembrava, trata-se de vol-
tarmos nossa atenção teórica e técnica para as qualidades do setting
e das relações analíticas e fazer delas espaços de acolhimento das
manifestações regressivas, não exclusivamente neuróticas, dos su-
jeitos. Isso permite resgatar na teoria balintiana algumas indica-
ções importantes a respeito da importância de se oferecer para os
pacientes um continente possível para essas partes normalmente

120 Souza. O. Op. cit. p. 228.


104 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

excluídas do processo analítico não apenas no que se refere à expe-


riência originária, como também naquilo que diz respeito à possi-
bilidade, sempre renovada, de novos começos.
Em continuidade com essa discussão, valeria a pena nos deter-
mos um pouco mais no conceito de pulsão de morte, já mencio-
nado rapidamente, pela importância que ele adquiriu na atualida-
de. Sabemos que a leitura kleiniana desse conceito passa necessari-
amente pela interpretação de Abraham. O destaque atribuído por
sua teorização à voracidade dos investimentos pulsionais orais pre-
coces desdobra-se na obra de Melanie Klein, em uma valorização
talvez excessiva dos aspectos sádicos e agressivos da pulsão. Isso
implica em um remanejamento da metapsicologia freudiana, que
se expressa, por exemplo, na elaboração kleiniana das posições
esquizoparanoide e depressiva. Com esta teoria das posições, a
finalidade geral de descarga da tensão é abandonada em benefício
de uma reelaboração das finalidades específicas dos estágios pul-
sionais. Nessas condições, o movimento pulsional visa diretamen-
te ao outro, e não meramente à descarga, o que faz com que a sig-
nificação seja produto da sensibilidade subjetiva do outro (projeti-
va ou real) e da posição adotada com relação a ela. Com isso, o
objeto deixa de ser apenas uma coisa utilizada na redução da ten-
são e passa a ser um sujeito dotado de intencionalidade específica,
boa ou má, a qual não poderia mais ser desconsiderada. A partir
daí, a interpretação kleiniana das primeiras relações com o outro
passou a ressaltar os traços de voracidade fundamentalmente sádi-
ca que nela estariam inexoravelmente presentes.121
Tal visão dos fatos também não deixa de ter consequências
interessantes no plano da clínica. Ao considerar que o outro das
primeiras experiências subjetivas é basicamente constituído pela
voracidade pulsional, e que esse traço da experiência inaugural

121 Cf. Meltzer D. O desenvolvimento kleiniano II – Desenvolvimento clínico de Melanie

Klein. São Paulo: Escuta, 1990.


Atualidade do Pensamento de Michael Balint 105

deverá ser elaborado progressivamente pelos mecanismos da


posição depressiva, Klein acredita que as intervenções do analista
têm como objetivo primordial operar a passagem de uma moda-
lidade de estrutura relacional (esquizoparanoide) para outra (de-
pressiva). Separado do outro desde as origens e mantendo com
ele um tipo de relação constitutivamente ilusória, o sujeito revive
no processo analítico essa dimensão da ilusão como uma expe-
riência que, adequadamente interpretada, poderá, então, ser ul-
trapassada. Como nos mostra Souza, “uma vez que o tratamento
analítico é pensado em termos equiparáveis ao caminho da supe-
ração das ilusões, a interpretação do discurso do analisando será
sempre o seu principal instrumento, uma vez que a interpretação
visa o desconhecimento que está na raiz da ilusão”.122
Como bem sabemos, entre os teóricos das relações objetais,
Balint, muito provavelmente em função daquilo que herdou da
Escola de Budapeste, parece ter sido um dos primeiros teóricos a
criticar de maneira mais sistemática a ênfase na voracidade pul-
sional como dimensão prioritária para o entendimento das expe-
riências originárias. Segundo ele, os londrinos teriam valorizado
excessivamente as reações veementes e ruidosas às frustrações,
passando ao largo do que aconteceria na quietude e na tranquili-
dade de uma atmosfera harmoniosa. Do seu ponto de vista, a
harmonia e a tranquilidade negligenciadas por muitos analistas
não decorreriam única e exclusivamente das experiências de
satisfação pulsional, nem poderiam ser confundidas com a pre-
sença, via representação, do objeto bom, como queriam os klei-
nianos. Na verdade, o que deveria ser destacado seriam as condi-
ções de ocorrência de inúmeras experiências relacionais entre a
mãe e o bebê, plenas de positividade, na medida em que propor-
cionam ao segundo a construção de um continente. Este “enve-

122 Souza O. Notas sobre algumas diferenças na valorização dos afetos nas teorias
psicanalíticas. Op. cit. p. 293.
106 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

lope psíquico”123 que tornará possível qualquer busca desejante


futura não se encontra necessariamente condicionado pela satis-
fação pulsional, mesmo que ela faça parte do seu processo de
constituição.
Valorizando, portanto, os aspectos qualitativos dos cuidados
proporcionados pela mãe à criança, Balint e os teóricos das relações
de objeto acabam por restringir o alcance das teorias pulsionais, rela-
tivizando ao mesmo tempo a posição altamente privilegiada que
alguns atribuíam à voracidade na constituição do psiquismo. Isso
não implica necessariamente no abandono definitivo do conceito
de pulsão, que de certa forma ainda preserva o caráter de redução
das tensões nas fontes erógenas que lhe era atribuído pela metapsi-
cologia freudiana. Ainda de acordo com Souza,124 o que ocorre é
que o gradiente prazer–desprazer ligado ao objetivo de descarga das
excitações, que rege o funcionamento pulsional, passa a ser conside-
rado insuficiente para dar conta da complexidade das relações pre-
coces do sujeito com o entorno, deixando assim de abranger a tota-
lidade da experiência originária de subjetivação. Não apenas para
Balint, como também para Winnicott, torna-se prioritário conceber
experiências não pulsionais como o amor ou a identificação primá-
ria, que, para além da pura satisfação instintiva, se oferecem como
condições fundamentais da abertura primitiva para o universo da
alteridade. Essa dimensão primária da experiência é perpassada por
manifestações afetivas como a ternura, o apego, a tranquilidade e o
bem- estar. Evidentemente, situações frustrantes impedem inevita-
velmente a manifestação de tais sentimentos. Ainda assim, o que
surge são reações passionais até certo ponto desintegradoras, mas
praticamente nunca algo como a voracidade.
A maneira de abordar estas experiências de frustração pulsio-
nal é absolutamente diferente nas teorias da relação de objeto.
Para os teóricos eminentemente pulsionais, é inevitável que elas
123 Cf. Anzieu D. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.
124 Souza O. Notas sobre algumas diferenças na valorização dos afetos nas teorias
psicanalíticas. Op. cit. p. 294.
Atualidade do Pensamento de Michael Balint 107

deem origem a objetos que privam e perseguem o bebê de ma-


neira voraz, e isso independe absolutamente da intensidade com
a qual tais experiências são vividas. Pois é justamente a dimensão
intensiva dessas experiências que adquirem uma enorme impor-
tância na abordagem teórica relacional-objetal. Primeiramente,
caso o entorno seja acolhedor e aja como um filtro que ameniza
seus traços traumáticos mais prementes, elas não provocarão
maiores danos. Em caso contrário, como a origem não é marcada
pela separação entre sujeito e objeto, mas pelas misturas interpe-
netrantes – em uma atmosfera de harmonia entre substâncias no
caso de Balint ou proporcionando mecanismos identificatórios
no caso winnicottiano –, a frustração poderá provocar uma falha
na estruturação ou uma desagregação subjetiva, mas nunca dá
origem à perseguição.
Avaliando essas considerações do ponto de vista da clínica
psicanalítica, nos deparamos aqui, mais uma vez, com questões
técnicas que consideramos de altíssima relevância no panorama
da atualidade da psicanálise. A cada dia, mais acentuadamente
afetados pela diversidade nas manifestações do sofrimento sub-
jetivo, provocado por circunstâncias específicas da contemporanei-
dade, os analistas não podem continuar a se apegar a modelos ou
padrões doutrinários rígidos nos quais pautam suas intervenções.
Considerando os aspectos conceituais mencionados, estamos
diante de duas reações passionais e modalidades de dor psíquica
distintas, que exigem respostas diferentes por parte dos analistas.
Em termos que consideraríamos mais clássicos, a compreensão
do sofrimento psíquico pela via do sentimento de angústia perse-
cutória tende a solicitar uma intervenção interpretativa que fun-
cione como um operador de mediação entre o sujeito e o objeto
mau que o persegue, o que em última instância possibilitaria a
elaboração do conflito por uma via propriamente edipiana. Já
quando consideramos a reação às frustrações a partir da hipótese
de uma desintegração subjetiva nos termos da falha básica, vivifi-
cada em uma experiência que se expressa pelo horror, torna-se
108 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

necessário, como Balint não se cansou de nos mostrar, que o ana-


lista assuma a posição de uma presença que, em razão de sua per-
manência, assegure ao sujeito a esperança confiante de que ele
possa começar novamente a se reintegrar.
Nota-se que, nessas condições, a ênfase atribuída às qualida-
des afetivas que estão em jogo nos primeiros momentos de confi-
guração das experiências alteritárias – tanto no que diz respeito
ao campo das psicopatologias não estruturais quanto aos pró-
prios quadros neuróticos mais puros – constitui o centro das
atenções teórica e técnica das teorias relacionais objetais. Daí
decorre um tipo de clínica na qual “em vez de troca de modalida-
de de estruturação subjetiva e de superação da ilusão, trata-se,
muito mais, de aquisição de estruturas que não se formaram por
falha do meio ambiente, de aquisição da própria capacidade de se
iludir”.125 Nesse sentido, as formações do inconsciente que ma-
nifestam um desejo desconhecido e as interpretações, enquanto
instrumento de redução da dimensão de desconhecimento e ilu-
são que a ele se sobrepõem, perdem o valor quase exclusivo de
domínio por excelência da experiência psicanalítica. Junto a elas
surge como altamente relevante um espaço no qual a regressão
transferencial, o holding e a relação de confiança com o analista
mostram-se, ao menos momentaneamente, no que diz respeito
às organizações psíquicas neuróticas, mais importantes. Assim,
fica bem clara portanto nas teorias relacionais–objetais a proxi-
midade entre as qualidades afetivas da intervenção no setting ana-
lítico e as experiências de tranquilidade e harmonia, valorizadas
nos períodos mais primitivos de constituição da subjetividade.
No horizonte desta argumentação desponta a tese de que
existiria um tipo de transferência produtiva em análise que não
passaria pelo viés da resistência e que remeteria necessariamente
ao exame das condições de produção de sentido nos processos de
subjetivação. Nestes termos, torna-se possível pensar em expe-
125 Idem, p. 295 (grifado no original).
Atualidade do Pensamento de Michael Balint 109

riências não simbolizáveis que, além de ser um desafio para aque-


les que defendem a primazia absoluta do registro simbólico na
constituição do psiquismo, constituem-se na verdade como con-
dições de sua possibilidade. Dessas experiências, próximas inega-
velmente da continuidade afetiva dos momentos de tranquilida-
de e quietude vividos nos estágios mais precoces da subjetivida-
de, a psicanálise procuraria dar conta por meio do oferecimento
de um espaço transferencial que, ao se mostrar apropriado à
constituição de uma atmosfera de ilusão criativa, poderia ser vi-
venciado como mais constante e seguro.
É assim que se torna possível afirmar que teorias como a que
Balint formulou procuram enfatizar, principalmente, as condições
matriciais de possibilidade do exercício simbólico, ao teorizar em
termos de fundamento aquilo que oferece ao sujeito uma dimensão
imaginária da qual ele possa partir em sua viagem para constituição
de si mesmo. As qualidades afetivas que cercam tais condições esten-
dem-se no tempo e no espaço, criando uma possibilidade de ilusão,
não necessariamente simbolizável, na medida em que não necessita
ser transposta ou sequer questionada. Isso pelo fato de a ilusão ter
tornado-se ela mesma o espaço no qual o registro simbólico pode
emergir. Não se trata, portanto, de um circuito de demandas que, a
partir de interpretações adequadas, cederiam lugar à verdade do
desejo do sujeito por vir. Trata-se, muito mais, de uma espécie de
necessidade psíquica, vital ainda que não fisiológica, relacionada
com os cuidados que, como Balint mostrava muito bem, devem ser
sempre incondicionalmente assegurados e atendidos sem que seja
necessária qualquer solicitação nesse sentido.
Destacar a relevância desses fatos é também ressaltar a necessi-
dade da integração subjetiva que está na base da continuidade do
ser. Atender a essa necessidade significa não exigir nem ameaçar,
mas simplesmente sustentar. Talvez o grande temor de Balint fosse
realmente o de que as teorias psicanalíticas, em função de sua insen-
sibilidade quanto a essas questões, se tornassem formulações precá-
110 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

rias e insuficientes para dar conta de experiências cada vez mais avas-
saladoramente disruptivas e desintegradoras para os sujeitos. Daí
também a sua insistência quase obsessiva na importância do apego,
do asseguramento e da tranquilidade na situação analítica, como
mecanismos facilitadores de uma constituição subjetiva descentra-
da, embora integrada no seu descentramento. Trata-se, portanto, de
oferecer uma dimensão de continuidade fluida em um universo de
descontinuidades cada vez mais ameaçadoras.
Diante de tudo isso, uma última palavra sobre a interpreta-
ção balintiana da regressão, do novo começo e da falha básica nos
parece se impor antes de concluirmos todo este percurso que vi-
mos traçando até aqui. Como vimos antes, o abismo diante do
qual certos pacientes se veem colocados no decorrer de um trata-
mento analítico pode ser suplantado, caso alcancemos o objetivo
de oferecer a ele a oportunidade de transformar seu enorme res-
sentimento em um pesar de teor afirmativo. Nesses casos, a
agressividade dirigida contra uma vida “que não vale a pena ser
vivida se algo os priva de seu ódio” não dispõe, estranhamente,
de nenhum objeto para o qual se dirigir: este algo, na verdade,
não é ninguém, e tal ódio não responde efetivamente a uma frus-
tração determinada, relativa a um objeto específico, mas torna-se
uma experiência genérica que arruína a vida do paciente. Esta
agressividade sem objeto adquire uma tonalidade impessoal, na
qual o sujeito se vê tomado sem qualquer defesa aparente. No
entanto, o que Balint acreditava poder mostrar era que esta inca-
pacidade do paciente de admitir a realidade não era senão a pró-
pria realidade de uma vida assim. Em termos fenomenológicos,
como nos mostra Faure, “sua vida é a apreensão factícia de sua indivi-
duação enquanto ente vivo e apreendendo-se como sofredor. Assim se dá
enfim o desvelamento ontológico da falha básica”.126

126 Faure F. La doctrine de Michael Balint. Op. cit. p. 255.


Atualidade do Pensamento de Michael Balint 111

Em condições como essas, a questão que instigava a teoria


balintiana sobre a técnica era a de descobrir o processo por meio
do qual esse intenso ressentimento poderia vir a ganhar alguma
positividade. Com a metáfora que descrevia a análise como uma
situação terapêutica que mantinha o paciente em estado de aco-
lhimento, Balint a idealizava como uma “relação mutuamente
satisfatória”. E como o acesso a uma capacidade plena de amar
supõe a transformação do objeto de amor em um parceiro coo-
perativo, essa proposição muito provavelmente valia para a situa-
ção analítica nos dois sentidos presentes na ideia de relação. Cer-
tamente a intenção terapêutica do analista ao controlar sua con-
tratransferência visa tornar o paciente regredido um parceiro
cooperativo, dando-lhe acesso à zona edipiana; mas isso é, tam-
bém, o que o próprio paciente busca na transferência quando
tenta transformar o objeto de amor em um parceiro que igual-
mente coopera com o trabalho. É justamente nesse sentido que a
regressão benigna, e portanto terapêutica, tinha como objetivo
alcançar o reconhecimento por um parceiro cuja qualidade es-
sencial era a de tornar-se um colaborador nesse reconhecimento.
Para compreender de maneira adequada o movimento do paci-
ente, convém ter em mente que aqui o objeto de amor, ou me-
lhor, o objeto substitutivo investido, é objeto, ou ainda pré-obje-
to de amor primário. Portanto, todas as qualidades do amor pri-
mário intervêm nesses casos como condições da satisfação mú-
tua. Não há dúvida de que seria pertinente supor que tal trans-
formação exigiria do parceiro tamanha abnegação e incondicio-
nalidade que a tornariam simplesmente impossível. Ainda assim,
não era isso que pensava Balint.
Sem querer aqui sondar as motivações terapêuticas profun-
das que o moviam, posto que não temos informações mais preci-
sas quanto a isso, ainda assim poderíamos arriscar uma hipótese a
partir de sua própria teoria. Talvez sua convicção estivesse funda-
da em uma observação bastante próxima do que discutíamos
112 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

antes, ou seja, a de que a exigência desmedida típica do amor pri-


mário só pede uma compreensão da necessidade psíquica por
parte do objeto ou do substituto ao qual ela se dirige. Dito de
outro modo, o que o paciente parece solicitar é que a percepção
dessa necessidade seja vivida pelo outro, mas não comunicada ou
dita em termos de uma dialética de interesses. Esta cooperação
necessária e exigida é, em última instância, somente uma tolerân-
cia ao silêncio experienciado em conjunto. Mas qual seria mais
exatamente a importância maior de uma experiência como essa?
A esse tipo de questão, o psicanalista húngaro certamente res-
ponderia sublinhando a necessidade de que um período de luto
na análise pudesse seguir seu curso natural, o qual, com alguns
pacientes, pode levar um tempo desesperadamente longo. “Em-
bora esse processo não possa ser acelerado, é muito importante
que seja testemunhado; como ele pertence à área da falha básica,
aparentemente seria impossível alguém poder acompanhar esse
luto; isso só poderia ser feito dentro de uma relação bipessoal,
como é a situação analítica”.127 Na medida em que a regressão é
uma repetição da ruptura na interpenetração harmônica entre
substâncias pela emergência traumática dos objetos, o parceiro é
inevitavelmente investido nessas condições como o representan-
te indispensável dos pré-objetos em vias de emergir. E, sem dúvi-
da alguma, o silêncio necessariamente pertence a essa situação
que se repete.
Esta tolerância do silêncio vivido em conjunto contém nela
um outro sentido. De acordo com Faure, “aquele que permite o
ser-em-conjunto pode cooperar fundamentalmente como parcei-
ro porque ele presentifica a alteridade como outro, no que ele é um
indivíduo”.128 Ao considerar que o terapeuta possa exercer a fun-
ção de um objeto primário, Balint tem em conta que ele também
existe enquanto um ser que operou na área da falha básica uma
127 Balint M. A falha básica. Op. cit. p. 168.
128 Faure F. Op. cit. p. 256 (grifado no original).
Atualidade do Pensamento de Michael Balint 113

individuação que o expôs, em um grau mais ou menos intenso,


virtual ou real, ao traumatismo da ruptura de uma harmonia ori-
ginária. Nessas circunstâncias, a necessidade do testemunho
resulta da natureza mesma do luto próprio à falha básica. Temos
aqui portanto um “processo de identificação” que poderíamos
considerar atípico, na medida em que ele não se passa entre pes-
soas que já pertencem ao mundo dos objetos propriamente con-
figurados. Neste luto, a identificação tem por essência particular
uma operação que se dá sobre o efeito do traumatismo que levou
à ruptura da harmonia primitiva: “sobre o Si, quer dizer, sobre o
precursor do Eu apreendendo-se enquanto separado e nisso se
apresentando existencialmente como o proto–Outro“.129
Este luto singular, como já indicamos no decorrer deste tra-
balho, difere em seus fundamentos daquele provocado pela per-
da real de uma pessoa amada ou do que é experimentado quando
um objeto interno é danificado ou destruído, como na melanco-
lia. Ele não se constitui verdadeiramente como uma perda, no
sentido negativo do termo, mas como uma sombra pacificadora
e criativa, que implica no abandono definitivo de qualquer espe-
rança quanto a um ideal do eu sem falhas. Esta sombra que se
estende sobre toda a vida, implica inevitavelmente na admissão
da dimensão de mortalidade própria ao homem, mas ao mesmo
tempo afirma a vida com sua potência fundamental de novo co-
meço.
Esse é, sem dúvida, o segredo da singularidade deste luto,
que exige efetivamente um abandono da imagem narcísica de si
mesmo em termos de uma totalidade absoluta. Mas, ao mesmo
tempo, ele descobre na regressão, na aparência do retorno à mor-
te e no silêncio a potência de um novo começo, agora possível.
Assim, o poder do silêncio funda o sujeito em um estar-só-com o
outro, na medida em que ele só se constitui propriamente nessa
situação. E, nessa “solidão”, torna-se então possível criar algo que
129 Ibid. (grifado no original).
114 Michael Balint – A Originalidade de uma Trajetória Psicanalítica

o próprio sujeito possa reconhecer como a sua necessidade de


estar vivo, para se adaptar ao real e fazer face às formas de vida
que, enquanto indivíduo no mundo, lhe são dadas a desfrutar.
Neste sentido, para concluir, diríamos que o que Michael Balint
procurou nos ensinar foi que o luto da falha básica não é uma
verdadeira renúncia, mas, fundamentalmente, o reconhecimen-
to de um sentido novo dado à vida. Talvez seja sobre isso que a
totalidade de sua obra tenha buscado prestar um testemunho. E
isso, sem dúvida alguma, ele conseguiu: afirmar a vida.
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