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na Publicagao (CIP) Brasil) alogagao onais de Cat do Livro, SP, ra Brasileira Dados Internacl (cama 0 Paulo : Cortez, Orlandi, Eni Discurso e leitura —9. ed. — Sai 2012. / Eni Orlandi. Bibliografia ISBN 978-85-249-1883-4 I Titulo. 1. Andlise do discurso 2. Leitura = Aspectos socia cpp-401.41 12-01689 indices para catalogo sistematico: 1. Dis Alis curso : Andlise : Comunicagio : Linguagem 401-47 Digitalizada com CamScanner Sais 7 Apresentacdo Apolissemia da nocao de leitura Seria interessante, jé de inicio, distinguir os varios sen- tidos com que se toma a leitura. Leitura, vista em sua acepca4o mais ampla, pode ser entendida como “atribuicao de sentidos”. Daf ser utilizada indiferentemente tanto para a escrita como para a oralidade. Diante de um exemplar de linguagem, de qualquer natureza, tem-se a possibilidade da leitura. Pode-se falar, entao, em leitura tanto da fala cotidiana da balconista como do texto de Aristételes. Por outro lado, pode significar “concepgio” e é nesse sentido que é usada quando se diz “leitura de mundo”. Esta maneira de se usar a palavra leitura reflete a relagao com a nogao de ideologia, de forma mais ou menos geral e indife- renciada. No sentido mais restrito, académico, “leitura” pode sig- nificar a construgao de um aparato tedrico e metodolégico de aproximacao de um texto: sao as varias leituras de Saussure, as possiveis leituras de um texto de Platao etc. Digitalizada com CamScanner NI PULCINELLI ORLAND) Em um sentido ainda mais restritivo, em termos agora de escolaridade, pode-se vincular leitura a alfabetizacao (aprender a ler e escrever) e leitura pode adquirir entao o carater de estrita aprendizagem formal. Como se vé, poderfamos fazer uma longa enumeracio de sentidos que se podem atribuir 4 propria nocao de leitura. Evidentemente nos ocuparemos sé de alguns sentidos. Eo que delimita esses sentidos, como se poderd observar ao longo dos artigos que serao apresentados, é a ideia de inter- pretacao e de compreensao. E esse recorte que fazemos na perspectiva discursiva que dard uma direcao a nossa reflexao sobre leitura. Dito isso, vejamos o que se pode adiantar a esse respeito. Desde que se assuma uma perspectiva discursiva na reflexao sobre leitura, alguns fatos se impdem em sua im- portancia: a) odese pensar a producio da leitura e, logo, a possi- bilidade de encara-la como possivel de ser trabalha- da (se nao ensinada); b o de que a leitura, tanto quanto a escrita, faz parte do processo de instauracgao do(s) sentido(s); c) 0 de que o sujeito-leitor tem suas especificidades e sua historia; d) 0 de que tanto 0 sujeito quanto os sentidos sao de- terminados histérica e ideologicamente; e) © fato de que ha mtiltiplos e variados modos de leitura; f) finalmente, e de forma particular, a nogao de que a nossa vida intelectual est4 intimamente relacionada aos modbos e efeitos de leitura de cada época e seg mento social. Digitalizada com CamScanner DISCURSO E LEITURA 2: Sao esses os pontos de reflexao que mantenho no per- curso que aqui apresento no estudo da leitura. Talvez valha a pena, como introducao a essa coletanea de artigos, falar um pouco sobre o inicio de meu interesse. Com as consideragées a respeito de minhas préprias questées, poderia estar sendo titil aos que se dedicam ao ensino de leitura. O que me levou a tomar o fato de que a leitura é produ- zida, como ponto de partida para minha reflexao, foi a pro- blematizagao do conceito de legibilidade. O que torna um texto legivel? O que é um texto legivel? Percebi desde o inicio que a dita “legibilidade” do texto estava e nao estava no texto. Explico. Percebi que a legibili- dade do texto tinha pouco de “objetivo” e nao era apenas uma consequéncia direta, unilateral e automatica da escrita. Nao me parecia verdadeira a afirmagao: “um texto bem es- crito é legivel”. Eu me perguntava: bem escrito para quem? Legivel para quem? Estas questées, em si, jé relativizavam 0 que muitos colocavam como condigées da legibilidade: as qualidades do préprio texto. A meu ver, entretanto, é a natu- reza da relacao que alguém estabelece com 0 texto que esta na base da caracterizacao da legibilidade. Aquestao da legibilidade, para mim, é, além disso, uma questao de “graus” e nao de tudo ou nada. Uma questao de condicdes e nao de esséncia. Como tenho procurado mostrar, é uma questao de historia, no sentido amplo. Por outro lado, sempre me pareceu que a propria cate- gorizacao “este é um texto legivel” traz em si algo de “julga- mento” que tem mais a ver com quem a profere do que com o proprio texto. Ou seja, trata-se para mim jé de um argu- mento produzido na relacao entre o leitor eo autor, mediados pelo texto. Digitalizada com CamScanner ENI PULCINELLI ORLAND} Daf minha questo: 0 que joga realmente na legibilidade? Consequentemente, dai também o engano inicial: nao ha esse realmente que se pode responder inequivoca e defi- nitivamente. A questao da legibilidade — como as outras que tém como mével a linguagem — nao pode ser respondida com essa “positividade” e de modo absoluto. Aleitura, portanto, nao é uma questao de tudo ou nada, é uma questao de natureza, de condigdes, de modos de rela- cao, de trabalho, de producéo de sentidos, em uma palavra: de historicidade. HA um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituido no proprio ato da escrita. Em termos do que de- nominamos “formacées imaginérias” em anélise de discurso, trata-se aqui do leitor imagindrio, aquele que o autor imagi- na (destina) para seu texto e para quem ele se dirige. Tanto pode ser um seu “ctimplice” quanto um seu “adversério”. Assim, quando o leitor real, aquele que Ié 0 texto, se apropria do mesmo, jd encontra um leitor ai constitufdo com © qual ele tem de se relacionar necessariamente. Se se deseja falar em processo de interagao da leitura, eis ai um primeiro fundamento para o jogo interacional: a relagdo bsica que instaura o processo de leitura é 0 do jogo existente entre 0 leitor virtual e o leitor real. E uma relacao de confronto. O que, j4 em si, é uma critica aos que falam em interagdo do leitor com 0 texto. O leitor nao interage com 0 texto (relacdo sujeito/objeto), mas com outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor etc.). A relago, como diria A. Schaff (em sua critica ao fetichismo signico, 1966), sempre se da entre homens, sao relacées sociais; eu acrescentaria, historicas, a“ ae Pongue) mediadas por objetos (como 0 texto). jetalidade” do texto, no entanto, é fixar-se N@ Digitalizada com CamScanner DISCURSO E LEITURA u mediagao, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele, logo, sua significancia. Historicidade do texto, mas também historicidade da propria aco da leitura, da sua produgao. Dai nossa afirmagao de que a leitura é 0 momento critico da produgao da unidade textual, da sua realidade significante. E nesse momento que os interlocutores se identificam como interlocutores e, a0 fazé-lo, desencadeiam 0 processo de significagao do texto. Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo processo. Processo que se configura de formas muito diferentes, dependendo da relacao (distancia maior ou menor) que se estabelece entre o leitor virtual e o real. Mas nao é sé esta relacdo que pode indicar a dinamica do processo de leitura. Nesse sentido, a relacao entre os interlocutores constituiu um dos componentes do contexto, da situacao de leitura, mas nao é 0 tinico componente. Ha outros componentes igual- mente importantes. Entre eles podemos falar dos modos de leitura (possiveis, propostos ou pressupostos). Esses modos sao muito variaveis e certamente indicam diferentes formas de relaco dos leitores com 0 texto. Vejamos 0 que cada modo de leitura pode colocar como elemento organizador dessa relacao: a) relacao do texto com o autor: 0 que o autor quis dizer? b) relagao do texto com outros textos: em que este texto difere de tal texto? relacao do texto com seu referente: 0 que 0 texto diz de X? d) relacdo do texto com 0 leitor: 0 que vocé entendeu? °) Digitalizada com CamScanner NI PULCINELLI ORLAND} e) relagdo do texto com 0 para quem se 1é: (se for o pro- fessor). O que é mais significativo neste texto para o profes- sor Z? O que significa X para o professor Z? E, assim, indefinidamente, haverd modos diferentes de leitura, dependendo do contexto em que se da e de seus objetivos. De certa forma, é de suas condicdes de producao que estamos falando. Sem diivida, constitui parte integrante de toda essa contextualizacao a leitura a propria instauracao do autor e do leitor em sua relacdo como sujeitos, j4 que, como dissemos, sujeitos e sentidos sao elementos de um mesmo processo, 0 da significacao. Nos trabalhos que fazem parte dessa edigao, terei ocasiéo de falar mais demoradamente dessa relac&o (autor/leitor/ texto) e da instituigao dos sentidos. Gostaria aqui apenas de chamar a atengao para o fato de que a relacao entre eles nega a possibilidade de pensar-se: a) um autor onipotente, cujas intengdes controlassem todo percurso da significacao do texto; b) a transparéncia do texto, que diria por si toda (e apenas uma) significac4o; e, ainda; ¢) umleitor onisciente, cuja capacidade de compreensao dominasse as miltiplas determinacées de sentidos que jogam em um processo de leitura. Na tensa relacio entre paréfrase e polissemia, todos esses componentes das condigdes de producao da leitura ono como elementos tinicos, mas justamente em suas es relativas, E € essa relagdo de posicées historica ci lente determinadas —em que o simbélico (linguistico) Digitalizada com CamScanner DISCURSOELEITURA 3B € 0 imagindrio (ideol6gico) se juntam — que constitui as condigées de produgao da leitura. Resta lembrar, nessas consideragées introdutérias, um outro aspecto igualmente importante na produgao da leitura: a “incompletude”. Da nogao de incompletude podemos fazer derivar duas outras que a definem: o “implicito” e a “inter- textualidade”. Quando se lé, considera-se nao apenas o que esta dito, mas também o que esta implicito: aquilo que nao estd dito e que também esté significando. E 0 que nao esta dito pode ser de varias naturezas: 0 que nao esta dito mas que, de certa forma, sustenta o que esta dito; o que esté suposto para que se entenda o que est dito; aquilo a que o que esta dito se opée; outras maneiras diferentes de se dizer 0 que se disse e que significa com nuances distintas etc. De forma bastante resumida, podemos dizer que ha relagdes de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz eo que ele nao diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz eo que outros textos dizem. Essas relacGes de sentido atestam, pois, a intertextualidade, isto 6, a relacao de um texto com outros (existentes, possiveis, ou imaginérios). Os sentidos que podem ser lidos, entao, em um texto nao estado necessariamente ali, nele. O(s) sentido(s) de um texto passa(m) pela relagao dele com outros textos. Isso mostra como a leitura pode ser um processo bas- tante complexo e que envolve muito mais do que habilidades que se resolvem no imediatismo da agao de ler. Saber ler é saber 0 que 0 texto diz e o que ele nao diz, mas 0 constitui significativamente. Indo mais além, a propésito do que nao ¢ imediatamen- te visivel em um texto mas que o constitui, encontramos 0 que se chamam relacdes de forcas. Digitalizada com CamScanner eel RAND Pelas relagdes de forca, podemos dizer que o lugar social dos interlocutores (aquele do qual falam e leem) é parte constitutiva do processo de significagao. Assim, 0(s) sentido(s) ) determinado(s) pela posicao que ocupam de um texto est(40) eo emitem e 0 leem). | aqueles que © produzem (os qu mais nessas questOes, veremos que a as formacées ideoldgicas — repre- crigdo em uma formagao discursi- Jativamente e outras forma- vai produzir Se aprofundarmos relagao do discurso com sentadas nele pela sua ins: va determinada que se define rel cGes discursivas — é que, em ultima instancia, as suas diferentes leituras. a forma, é facil se perceber que hé uma complexi- | Dess er com a sig- dade de elementos muito distintos que tem a v nificagao de qualquer texto, incluindo-se até mesmo a exis- tancia de diversos tipos de discurso. Nao se 1é da mesma forma um texto literario e um texto cientifico, um conto de | fadas e um célculo matematico etc. Como vemos, falar em “legibilidade” de um texto pode ser um modo de simplificar de forma bastante redutora um processo em que entram determinagdes bem mais importan- tes: determinac6es de natureza histérica, social, linguistica, ideolégica etc. De forma geral, podemos dizer que a atribuicao de sentidos a um texto pode variar amplamente desde o que denominamos Ieitura parafrastica, que se caracteriza pelo reconhecimento (reprodugéo) de um sentido que se supoe ser 0 do texto (dado pelo autor), e 0 que denominamos lei- tura polissémica, que se define pela atribuigao de miltiplos sentidos ao texto. beieodenanan que tantoo reconhecimento quanto a atri- . ae los se inscrevem, ambos, na ideia de producao ura. rt Digitalizada com CamScanner DISCURSO E LEITURA, Aid Ninguém 1é num texto 0 que quer, do jeito que quer e para qualquer um. Tanto quanto a formulagao (emissao), a leitura (compreensao) também é regulada. No entanto, ler, como expomos em um dos nossos artigos neste volume, é saber que 0 sentido pode ser outro. Dessa forma, s6 a referéncia a histéria permite que se diga, de uma leitura, se ela compreendeu menos ou mais do que “devia”. Porque, sem dtivida, na multiplicidade de sen- tidos possiveis atribuiveis a um texto — Rimbaud diz que todo texto pode significar tudo —, ha uma determinagaéo histérica que faz. com que s6 alguns sentidos sejam “lidos” e outros nao. Entre o Homem ea Institui¢io, numa relagao em que o poder e a ideologia sao as constantes, os sentidos balangam entre uma permanéncia que as vezes parece irremediavel e uma fugacidade que se avizinha do impossivel. E ai ficamos. Campinas, junho de 1987. Eni Pulcinelli Orlandi Digitalizada com CamScanner SesieRa Leitura: questdo linguistica, pedagdgica ou social?* Método e reducao O titulo ja 6, em si, enganador, pois pressupée a separa- cdo categérica entre as disciplinas. Num mesmo fato — a leitura, por exemplo — os dominios de conhecimento (0 linguistico, o pedagégico e o social) estio integrados. A divi- s4o das disciplinas ja é, pois, resultado de uma forma de re- corte estabelecida pelo discurso cientifico. Essa 6a armadilha: —> Separar, para conhecer. | ~~ De minha parte, quero dizer que nao vou esperar o fim do trabalho para responder a questao proposta. Nao ser este 0 fio condutor da minha exposigao. A resposta, entao, éa de que a leitura é uma questao linguistica, pedagégica e social ao mesmo tempo. Embora cada especialista a encare em sua perspectiva, a postura critica est4 em nao absolutizar essa perspectiva pela qual observa 0 fato. Metaforicamente, «Publicado originalmente em Educagto & Sociedade, Sio Paulo, Cortez /Cedes, 1n. 22, p. 93-98, set./dez. 1986. Digitalizada com CamScanner . ENIPULCINELU ‘ORLAND} eu diria que é preciso nao esquecer que o mMicroscépio ng 06 a bactéria que se observa. Por outro lado, gostaria de colocar trés afirmagées que esto pressupostas a este estudo e que, no entanto, embora pressupostas devem, a rigor, ser colocadas em discussio1 1. Nao acredito que se deva restringir a reflexao da leitura ao seu cardter mais técnico. Isso conduz ao tratamento da leitura apenas em termos de estraté- gias pedagdgicas exageradamente imediatistas. Ea leitura deve ter, na escola, uma importante funcao no trabalho intelectual geral. Na Pperspectiva imedia- tista, as solucdes propostas colocam A disposicao do aluno apenas mais um artefato escolar pronunciada- mente instrumental. Visando a urgéncia de resulta- dos escolares, se passa Por cima de aspectos funda- mentais que atestam a histéria das telagdes com o conhecimento tal como ele se d4 em nossa sociedade, assim como sobre a histéria Particular de nossas instituigdes do saber e seus programas. Disso resulta uma primeira redugio para a qual eu cha- Maria a atencdo: 0 pedagogismo.O pedagogismo, para mim, € acreditar em solucdes pedagégicas desvinculando-as do a cardter s6cio-histérico mais amplo: para resolver a ques- ‘20 da leitura se propéem técnicas para que se dé conta, em algumas horas Semanais, dessa propalada incapacidade. 2. Vejamos agora a ciais na sua telag: ———— cutimos al ©Aprendizagem que we questao da distingao de classes so- 40 com a escola e a leitura. eS aspectos no Encontro sobre Linguagem, Interagio in : re Linguagem, ‘We realizamos no IEL, Unicamp, em 1980, Digitalizada com CamScanner DISCURSO ELEITURA 47 Ao contrario do feudalismo, que visava manter dife- rentes ordens sociais regularmente separadas, a dominagao burguesa desenvolve processos de interpenetragéo das classes dominadas estabelecendo (e atuando em) um terre- no de confrontos e de diferengas: essas diferengas sao ab- sorvidas para que haja universalizacio das relacées de dominagao. Odiscurso da burguesia se caracteriza pela proclamagao do ideal da igualdade, ao mesmo tempo em que organiza uma desigualdade real (Pécheux e Gadet, 1983). Se assim é, quando surge o projeto de uma escola demo- cratica, no interior da sociedade capitalista, devemos procu- rar determinar 0 que essa escola reinstala como diferenga, uma vez que a educacio é uma educacio de classe. Por isso, a afirmacdo de que é preciso se apossar da totalidade do conhecimento da classe dominante para que haja transfor- magao tem seu compromisso social. Mais exatamente, é uma afirmacao do discurso da classe média (Orlandi, 1987). Prop6e acesso a esse conhecimento, mas nao especifica quem pode e em que condicGes sociais isso pode acontecer. Esse acesso, segundo 0 que penso, nao é nem necessario, nem suficiente para uma transformagao que nao tenha direcao dada pela classe dominante. Além disso, nao é 0 acesso ao instrumento em si que muda as relagées sociais, mas 0 modo de sua apro- priacao, no qual estado atestadas as marcas de quem se apro- pria dele. Este é, pois, o segundo tipo de reducionismo: o da clas- se média. No discurso da classe média, ou se tem o conhecimento dominante ou se tem um menos abstrato, menos rigoroso, 0 da facilidade, rebaixado. Saber nenhum, portanto. Para mim Digitalizada com CamScanner 7 NI PULCINELLI ORLANDy ada. Ha formas de saber que nao é uma questo de tudo oun ciais distintas. Ha o saber sao diferentes e que tém fungGes so dominante e ha outros que sequer sao formulados. O fato de se atribuir diferentes estatutos epistémicos a essas formas de saber est ligado ao fato de que, uma vez que a sociedade é dividida, hd as formas legitimas e as que nao sao legitimas (que tém de se legitimar). Quando se adere ao conhecimento legitimo, através do discurso que propée 0 acesso necessario a ele, se desconhece a luta de classes, a luta pela validade das diferentes formas de saber e a questdo da resisténcia cultural. Dai, a meu ver, se dever reinvidicar politicamente 0 acesso as formas do conhecimento legitimo, mas, ao mesmo tempo, criar espaco para a elaboracao de outras formas de conhecimento que derivem do conhecimento efetivo do aprendiz em suas condig6es sociais concretas. Essas consideragdes remetem ao reducionismo social de classe média que acabamos de explicitar. Ou seja, a escola, Ou sga a= tal como existe, em referéncia a leitura, propde_de forma ia lé. homogénea que todo mundo leia como a classe mé« Para nao se submeter a esse reducionismo, deve-se Pro” curar uma forma de leitura que permita ao aluno trabalhar sua prépria histéria_de leituras, assim como a historia das leituras dos textos e a histéria da sua relagdo com a escola € com 0 conhecimento legitimo. 3. i ; mG fc afirmagao incide propriamente sobre © objeto especifico dessa exposigao: o que 6a leitura? ——— Do pont i i F tomar a nal de vista da linguistica imanente, se poderia "a como decodificagao e se proporiam técnicas Digitalizada com CamScanner DISCURSO E LEITURA 49 que derivassem do conhecimento linguistico estrito. Dir-se-ia, entdo, que o texto tem um sentido e o aluno deveria apreen- der esse sentido. —————_—- Na perspectiva da andlise de discurso, que é a que estou assumindo em relacdo 4 leitura, esta seria uma outra forma de reducionismo: o reducionismo linguistico. A visao oposta a esta forma de reducionismo nao vé na leitura do texto apenas a decodificacao, a apreensao de um sentido (informagao) que jé esté dado nele. Nao encara o texto apenas como produto, mas procura observar 0 proces- so de sua produgio e, logo, da sua significagdo. Correspon- dentementé, considera que oleitor nao apreende meramente um sentido que esta 14; 0 leitor atribui sentidos ao texto. Ou Seja: considera-se que a leitura é produzida e se procura de- terminar o proceso e ai condigdes de @ sua produgao. Dafse poder dizer que a leitura éo momento critico da constituigao_ Go teto, 0 momento pivlegido di do processo de intera-_ Go verbal, uma vez que é nele que se desencadeiao proces-_ so de significagao. No momento em que se realiza 0 proceso da leitura, se configura 0 espaco da discursividade em que se instaura um modo de significacao especifico. Ja falei, em outros trabalhos, sobre alguns componentes. das condigées de producao da leitura: os sujeitos (autor e leitor), a ideologia, os diferentes tipos de discurso, a distingao entre leitura parafréstica (que procura repetit 0 que 0 autor disse) ea polissémica (que atribui mtiltiplos sentidos ao texto), assim como tematizei a necessidade de se levar em conta as historias da leitura do texto eas hist6rias das leituras do leitor.* 2. Cf. neste volume: As histérias das leituras e A histéria do sujeito-leitor: uma questo para a leitura. Digitalizada com CamScanner x 50 ENIPULCINEL ORL Ay Linguagem verbal e nao verbal O que gostaria de acrescentar — e é estaa contribuigéo especifica que trago para esta discussio — é que o espacode leitura escolar exclui da sua consideragao 0 fato de que aluno convive em seu cotidiano com diferentes formas de linguagem. A relacao do aluno com 0 universo simbélico nao se da apenas por uma via — a verbal —, ele opera com todas as Pi —— ou SS formas de linguagem na sua relacao com 0 mundo. Se con-_ siderarmos a linguagem nao apenas como transmissao de_ informagdo, mas como mediadora (transformadora) entre 0 lidade natural e social, a leitura deve ser considerada no seu aspecto mais consequente, que nao é 0 de mera decodificagao, mas o da compreensao. Dessa forma, 0 processo de compreensao de um texto certamente nao excluia articulacao entre as varias linguagens que constituem o universo simbélico. Dito de outra maneira: o aluno traz, para a leitura, a sua experiéncia discursiva, que inclui sua relagdo com todas as formas de linguagem. Aescola, no entanto, evita, escru, ipulosamente, incluirem sua reflexao metodolégica e em sua pratica pedagégica a con” sideragao de outras formas de linguagem que nao a verbal e no ambito dessa, da mais valor a escrita que a oralidade. Isso representa a expresséio do maniquefsmo escolar, que vé em Outras formas de linguagem sua manifestagao rebaixada. Nao cane Be eee de compreensao do alunoe, no interior Yi ‘apacidade de compreender textos escritos. Caberia, pois, a questao: qual é a imagem de leitor que escola produz? Ss Como a: - BOpica, deep P eSeMAgGes Sao constitutivas da agio peda ” € Preciso saber como 6 representado esse aluno-leitor Digitalizada com CamScanner DISCURSO E LEITURA 1 Assim como se constr6i uma ideia do que seja a legibilidade, ha também a proposta de um leitor capaz dessa legibilida- de na escola. Uma vez que a escola tem procedido a um corte categ6- rico das praticas do aluno que nao se definem no espaco escolar, jé fica excluido 0 fato de que o aluno nao lé s6 na escola, mas também fora dela. Portanto, na definigao desse aluno-leitor, j4 temos duas determinacées negativas: exclui-se a sua relagéo com outras linguagens e exclui-se a sua pratica de leitura nao escolar. Entre as propriedades desse aluno-leitor podemos entao destacar a que o relaciona somente com a linguagem verbal eno interior da escola. Essa imagem do aluno é que tem sido o fundamento para as metodologias de leitura que sao pro- postas. E isso tem sérias consequéncias. O conhecimento recusado Na realidade, em linguagem (e, logo, em leitura) nao ha grau zero, assim como nao ha grau dez. Na dicotomia entre método de ensino e processo de aprendizagem, a escola se coloca como se o aluno nao tivesse jé instalado um processo de aprendizagem e ao propor, dentro de suas perspectivas e fungGes, um método de ensino, coloca o aluno no grau zero € o professor no grau dez. No entanto, assim como nao se para de “aprender” a ler num momento dado (grau dez), também nao ha possibilidade de se reconhecer um momento em que se comeca do nada (grau zero). Entao, o que a escola faz, ao supor o grau zero, é utilizar um conhecimento. prévio, que o aluno tem, sem explicitar essa utilizagdo. Dessa forma esse conhecimento é, ao mesmo tempo, suposto e recusado, Digitalizada com CamScanner | | 52 ENIPULCINELLI ORLA) ia, desvalorizado. Isto resulta em uma relacio coerciti 5, itive odo de ensino sobre 0 processo de aprendizagem pois, questionar essa imagem doaluno-le. ? Explicitando essas relaces que estio ou se do mét Aproposta 6, tor. De que forma supostas € recusadas. Aordem imposta pelo método d m— método este que se funda sobre presuncées itor — aponta sempre le ensino ao processo de aprendizage! econstréi a representagao do aluno-leit para anao relacao com 0 inesperado, 0 muiltiplo, o diferente. No entanto, esta relacao deveria fazer parte do processo de aprendizagem. Nao estamos com isso propondo que se en- tregue o projeto pedagdgico ao espontaneismo das relagoes ja estabelecidas pelo aluno. Mas tampouco aceitamos a im- posigao (onipotente) do controle total exercido pela autori- dade escolar. O que se propde é uma relacao dialética entre aprendize professor na construgao do objeto de conhecimen- to, no caso presente, a Jeitura. Assim como o aluno nao esté no grat nao estd no grau dez e a relacao entre eles pt zero, o professor ode ser fecunda para ambos. No que diz respeito as diferentes formas de linguage™ que constituem o universo simbélico desse alun ape = - ed de ser uma relagao supe ee le partida, a fonte de hipoteses para e ngar o processo do aprendiz. dine, oer ou pee musica, a pintura, a fotografia, ° imagen assirs oe formas de utilizagao do som € com : ficiais poderiam nos pa convivéncia com as linguagens art simbslco an ipontar para uma insergao no universo inguagens todas oe temos estabelecido.na escola. Essa sao alternativas. Elas se articulam. Fé 0, seria inte- erecusada, ssti- Digitalizada com CamScanner DISCURSOE LEITURA 33 essa articulagao que deveria ser explorada no ensino da lei- tura, quando temos como objetivo trabalhar a capacidade de compreensao do aluno. Do contrario, temos que torcer para que acontecam alu- nos bem-sucedidos que sejam capazes de apresentar uma leitura tipica de escola para o professor, e uma outra, que eles fazem dos seus jeitos, fora dela, e para seus mundos. Onde, historicamente, a linguagem verbal jé nao ocupa 0 centro. Referéncias bibliograficas ORLANDI, E. A leitura: de quem, para quem?. In: -Alingua- gem e seu funcionamento. 2. ed. Campinas: Pontes, 1987. PECHEUX, M.; GADET, F. La langue introuvable. Paris: Maspero, 1983. Digitalizada com CamScanner

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