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Vidas póstumas

- Senhor - disse o defunto -, talvez saiba que eu comandava um regimento de infantaria em


Eylau. Tive um papel importante no sucesso da célebre carga feita por Murat, a qual foi decisiva
para a vitória. Infelizmente para mim, minha morte é um fato histórico consignado
nas Vitórias e conquistas, onde é relatada em detalhe. (p. 22) (...)

Bom, meu senhor, os ferimentos que sofri provavelmente devem ter me causado tétano, ou me
levaram a uma crise análoga a uma doença chamada, creio eu, catalepsia. Senão, como conceber
que tenha sido, conforme o uso da guerra, despojado das minhas roupas e jogado na vala
comum com os soldados pela gente encarregada de enterrar os mortos? (p. 23) (...)

Quando proponho, eu, um mendigo, a mover uma ação contra um conde e uma condessa;
quando me ergo, eu, um morto, contra um atestado de óbito, um atestado de casamento e
certidões de nascimento, eles me despacham, conforme seu caráter, seja com aquele ar
friamente educado que sabem adotar para se livrar de um desgraçado, seja brutalmente, como
gente que acredita ter à frente um intrigante ou um louco. Estive enterrado  sob os mortos,
mas agora estou enterrado sob os vivos, sob certidões, sob fatos, sob a sociedade inteira, que
quer me fazer voltar para debaixo da terra! (p. 28) (...)

Grossas lágrimas jorraram dos olhos murchos do pobre soldado e rolaram por suas faces
enrugadas. Essas dificuldades deixaram-no prostrado. O mundo social e judiciário oprimia seu
peito como um pesadelo.
- Eu vou até o pé da coluna da praça Vendôme - exclamou - e lá gritarei: "Sou o coronel Chabert,
que derrotou o quadrado dos russos em Eylau!". O bronze me reconhecerá! [A coluna Vendôme
foi feita do bronze de mais de mil canhões tomados de russos e austríacos na Batalha de
Austerlitz] (p. 46). (Balzac, O coronel Chabert. Trad. Eduardo Brandão. Cia das Letras,
2012).

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