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Essa Entente
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Victor Mota
A MULHER QUE NÃO CONSEGUIA ANDAR
1.
Foi preciso uma série de passos atrás para que Marisa pudesse andar. Dito de outro
modo, foi preciso muito exercício. De sangue circulando e a plenos pulmões,
levantou-se da cadeira, respondendo ao som retumbante de uma criança que a
chamava, ao longe. Marisa acreditava que, sentando-se virada a ocidente, mais cedo
ou mais tarde se levantaria. Sim, Marisa acreditava, como quem acredita em Deus
que, se estive virada para a América, um dia haveria de andar, tal como acreditava no
Bom Deus. A pouco e pouco, seria visitada na sua casa à beira-mar pelos seus cinco
netos, que jogavam à bola no pátio e apanhavam flores para lhe oferecer. Assim, à
medida que a voz de um deles, mais certamente da pequena Joana, se aproximava,
Marisa saiu da sua letargia e tomou vontade de andar.
2.
Muitos editores nem que lhe ofereça ouro aceitam. Tem de ser sarrabulho. Papas.
Foi assim que Guilherme passou as passas do Algarve para fazer chegar a sua
primeira trilha sonora de uma séria série de televisão, enquanto o seu amigo Harry se
encarregava do guião. Entretanto, Rui Carvalho entregava a sua primeira coleção de
poemas a um relutante editor que não tinha dinheiro sequer para matar as saudades de
tipografias. Enquanto isso, o tio das Pampas, aos 46 anos conseguiu arranjar uma
turma para o ouvir, dava duas horas por dia e tinha o resto do tempo para ler e
escrever. Não podia haver melhor vida!...
3.
Em Cardiff, como mais acima em Bergen, alunos ageitavam-se nas suas diversas
disciplinas para fazer estudos graduados ou pós-graduados em Lisboa, Coimbra e
Porto, quando se desenrolavam as Olimpíadas da Matemática. Enquanto isso, o
exército português tomava as Selvagens aos espanhóis, obrigando-os a descer em
direcção a Cabo Verde, onde o Capitão Oceano os esperava com sua armada de
Harleys.
4.
Nada do que escrevesse parecia resultar. Ainda bem. Talvez pudesse continuar. As
palavras de Forjaz de Melo, director da TVI, continuavam a inspirar-me. Nada de
especialmente especulativo me esperava no dia seguinte, talvez menos de mim e mais
dos outros. Eram três da manhã, não estava na minha oficina, estava tranquilamente a
meio do mundo. Nada de especial, o banal parecia-me extraordinário pela primeira
vez.
6.
Depois da minha excursão de variados anos, percebi que não tinha saído dos meus 14
anos, estava a morrer a ainda na idade da adolescência, a melhor e mais revoltosa
idade, onde os orgasmos não são líquidos.
7.
Saudades da confusão e sossego de Lisboa, dos artistas com calças às cores vivas,
tensos de inspiração, alegres de sossego. Quantas cidades em ti habitam?
8.
A minha casa, a cidade, o mundo, as viagens que não faço, os banhos que tomo, a
intersubjectividade, o sol clareando a alma, os olhos cegos de amor e gozo, a saudade
que arremata o estado cosmopolita. A frequência certa na rádio, para além de muitas
reticências eivadas de particularismos corporais, a imperfeita perfeição da paisagem e
do cego ego que nela se articula com a ligação para cima, onde se ajuntam telhas. A
bola roda.
9.
Há uma íntima fracção de tempo, uma concreta objecção diante do écrã, o mundo
todo aqui, na minha cabeça e na dos outros. Escrevo como terápica sabedoria, não sei
se Ernesto Sabato me ouvirá, agora que nem sei se pertence a este mundo. Rubores de
consciência face a um amigo percorrem-me a espinal-medula da alma, enquanto
regresso aos mesmos metros e ao mesmo solo onde há camadas de consciência, para
além de Deus a minha alma espartilha-se, o meu espírito tenta juntar os bocados.
Descubro que ser teólogo também é duvidar da divindade, pois esta se deixa,
enquanto parte de nós mesmos, sujeita à dúvida para que seja mais forte noutro
tempo. Esforço-me por ser mal intencionado, mas não dá resultado algum, apenas
sinto a perspectiva dos outros, enquanto, depois de descrever o mundo através de
mim mesmo, dando a minha perspectiva, evito que isto seja um diário, e que a sede
ética tome conta de mim...
10.