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Para uma filosofia empírica, e não simples-

mente empirista, a pesquisa oferece o único mo-


do de desenterrar seus conceitos e de em seguida
experimentá-los, antes de propor-lhes uma ver-
são que possa ser submetida à crítica de seus pa-
res. Entretanto, ainda que o gênero da pesquisa
se beneficie, na filosofia, de um prestígio notório
e intimidador, é muito raro que um autor queira
organizá-lo com a participação de seus leitores.
Mas é exatamente isso o que pretendo fazer ao
publicar o livro Enquête sur les modes d’existence
1
Bruno Latour, – une anthropologie des Modernes,1 baseado em
Enquête sur les um site virtual que possibilita aos visitantes – que
modes d’existence,
une anthropologie nesse meio-tempo tornaram-se copesquisadores –
des Modernes. Pa- examinar-lhe os argumentos antes de sugerir ou-
ris: La Découverte, tros campos, outras provas, outros relatórios. Por
2012.
meio desse dispositivo, proponho aos pesquisa-
dores ajudarem-me a encontrar o fio da experiên-
cia, ficando atentos a vários regimes de verdades
que eu chamo de modos de existência, de acordo
com o peculiar livro epônimo de Etienne Souriau,
2
Etienne Souriau, recentemente reeditado.2 É o desdobramento des-
Les différents mo- ses métodos que me permite propor aos Moder-
des d’existence. Se-
guido de “L’Œuvre
nos – a abrangência deste termo deve ser, eviden-
a faire” (com uma temente, esclarecida – uma descrição mais realista
introdução intitu- do que aquela que apresenta o advento da Razão
lada “Le sphinx
de l’œuvre”, de
ocidental, ou aquela autorizada por sua crítica.
Isabelle Stengers Minha hipótese é a de que nas áreas empíricas
e Bruno Latour). que até agora venho rastreando, cada um desses
Paris: PUF, 2009 métodos permite respeitar uma certa tonalidade
(1a ed., 1943).
da experiência, da condição particular de felici-
dade e de infelicidade em cada caso, e, sobretudo
– e é aí que as coisas se complicam –, eles permi- Se eu voltar ao passado, ao passado conscien-
tem respeitar uma ontologia específica. Na reali- te – e irei poupar o leitor das tribulações de meu
dade, cada método exige que encontremos seres inconsciente –, deveria começar pela convergência
distintos, aos quais é preciso se dirigir em suas entre Charles Péguy e Rudolf Bultmann. Nos me-
próprias línguas. A clássica questão da filosofia ses de setembro, apesar das importantes colheitas
“qual é o ser da técnica, da ciência, da religião, para o comércio de vinho, meus pais me levavam
etc?” tornar-se-á, então: “quais são os seres da em peregrinação a Orléans, às “jornadas Péguy”.
técnica, da ciência, da religião, e de que manei- Se fui tão profundamente influenciado pela leitu-
ra os Modernos tentaram abordá-los?”. Porém, ra de Clio é porque fusionei as lições desse grande
como justificar a multiplicação desses métodos, hermeneuta, Clio, a musa, com a exegese bíbli-
3
Charles Péguy,
quando a civilização que se pretende estudar pen- Œuvres en prose ca, em que descobri com grande paixão uma me-
sa a si mesma a partir de duas únicas categorias 1909-1914. Paris: ticulosa, devota e fértil erudição.3 Por sorte, eu,
apenas, objeto e sujeito (é verdade que com mil Gallimard, La que naquela época era um militante católico, tive
Pléïade, 1961.
combinações diferentes)? como professor de filosofia, na Universidade de
Quando meus leitores dizem que não enten- Dijon, de 1966 a 1973, André Malet, pastor pro-
dem por que continuei a trocar de campo, e que 4
Rudolf Bult- testante e tradutor de Bultmann.4 Em suas mãos,
não veem a lógica do conjunto de meus estudos mann, L’histoire de que eram tão brilhantes quanto o pergaminho, o
la tradition synop-
– o que os leva a procurarem meus livros em dife- tique (traduzida texto bíblico ficou finalmente compreensível, re-
rentes prateleiras nas livrarias (e isso quando eles por André Malet). velando-se como um longo processo de transfor-
os encontram, ou melhor, se é que os procuram!) Paris: Seuil, 1971. mações, invenções, glosas, racionalizações diver-
–, o comentário me faz rir porque não conheço sas, cujo conjunto tramava uma malha de inter-
nenhum outro autor que tenha seguido de forma pretações que, cada uma a seu modo, tratavam
tão obstinada um mesmo projeto de pesquisa, dia novamente – e esse é o ponto essencial – a questão
após dia, durante vinte e cinco anos, preenchendo da fidelidade ou da traição: invenção falsa ou fiel,
o mesmo questionário e respondendo às mesmas repetição ímpia ou surpreendente redescoberta?
perguntas. É aí que pode ser útil esclarecer como Passávamos muito tempo fora da universidade,
cheguei até essa inusitada forma de antropologia comparando, por exemplo, as variadas narrati-
filosófica: não para contar minha vida – se um vas de ressurreição: elas deveriam ser lidas como
sistema é sólido, não há necessidade de se preocu- narrativas informativas – de fato, o túmulo está
par com o seu autor –, mas principalmente para vazio – ou como narrativas de transformação – o
traçar a biografia desse argumento, baseando-o anjo com o dedo em riste ensina, por meio des-
em sua história. Ninguém se surpreenderia com sa narrativa, como as Escrituras devem ser lidas,
o nascimento empírico de uma filosofia empíri- como se o que elas dissessem pudesse ressuscitar
ca. Neste artigo, eu gostaria de entregar-me ao aquele a quem elas eram dirigidas?
exercício contraditório de narrar a caótica apa- Porque escaparam de uma forma inexplicá-
rição de um argumento sistemático cuja persis- vel da transcendência e da imobilidade, porque se
tência por quase trinta anos deixa a mim mesmo tornaram localizados, históricos, situados, artifi-
admirado. ciais, sim, inventados e constantemente reinven-
tados a cada novo turno, levantando a questão de com a condição – e é isso o que eu ia reservar
suas veracidades, esses textos se tornaram ativos para mais tarde – de que se saiba distinguir de
e acessíveis. A essa opressiva responsabilidade outro modo a verdade, a informação pura e per-
do leitor, evocada de forma tão maravilhosa em feita (que eu ainda não chamava de informação
Clio, Bultmann oferecia uma descrição científica. Duplo Clique, já que naquela época os mouses
Curiosamente, do meu ponto de vista, a descons- dos computadores ainda não faziam coçar nossas
trução sistemática, pela exegese, de todas as cer- mãos)... Um longo combate contra a erradicação
tezas dogmáticas, longe de enfraquecer o valor de das mediações ia começar.
verdade que as sucessivas glosas não paravam de Como ainda era possível escapar do serviço
retomar, tornaram possível, por fim, que se ques- militar cumprindo “sua colaboração”, troquei a
tionasse a verdade religiosa; mas apenas com a escola Gray, em Haute Saône, pela escola técnica
condição de que se aceitasse a existência de um de Abidjan. Pode-se imaginar a lavagem cerebral
percurso de veridicção com suas próprias condi- por que passaria um graduado em filosofia, pro-
ções de felicidade, um percurso cujos traços per- vinciano, católico e burguês, que se vê transpor-
manecem na exegese e do qual Péguy, com seu es- tado para o caldeirão da África neocolonial – e,
tilo repetitivo, havia tentado recuperar a pertur- além disso, acompanhado de mulher e filho? No
badora tonalidade na virada do século xx. Abidijan dos anos 1973-1975, descubro ao mes-
Em uma tese defendida em 1975 e logo en- mo tempo as práticas mais predadoras do capita-
tregue à crítica afiada dos ratos, inferi esse argu- lismo, os métodos da etnografia e os enigmas da
mento na análise do evangelho de São Marcos antropologia. Esta última, particularmente, não
e do “santo” Charles Péguy (acrescentei ainda me abandonaria nunca mais: por que se utiliza a
outro santo, o poeta Saint John Perse, por ra- ideia de modernidade, de frente de modernização,
zões que, confesso, hoje escapam-me completa- de contraste entre o moderno e o pré-moderno,
mente...). Um pouco de Derrida, de Lévi-Strauss antes mesmo de se ter aplicado aos que se dizem
e muito de Deleuze ajudava a conferir a esse ar- civilizadores os próprios métodos de pesquisa
gumento um brilho da época que nem Péguy nem aplicados aos “outros” – os quais se pretende se-
Bultmann poderiam, evidentemente, proporcio- não civilizar completamente, pelo menos moder-
nar. Em minha análise, se os textos no túmulo nizar em certo grau?
vazio não transmitiam informação, eles faziam Por sorte, o campo proposto por meus colegas
muito mais ao indicar a possibilidade de outros do orstom (hoje ird, Institut de Recherche pour
5
Bruno Latour, regimes de vozes verídicas e verificáveis.5 O que le Développement [Instituto de Pesquisa para o
“La répétition de é certo é que eu saía desse período de formação Desenvolvimento]) refere-se justamente às usinas
Charles Péguy”,
em Péguy écrivain. armado de uma enorme mas muito paradoxal da Costa do Marfim e à inviável questão da mar-
Colloque du certeza no fato de que, quanto mais uma malha finização dos administradores: por que os patrões
centenaire. Paris: de textos fosse interpretada, transformada, arti- expatriados não providenciam administradores
Klincksieck, 1977,
pp. 75-100.
ficial, retomada, recosturada, repetida e reforma- africanos competentes o bastante para substituí-
da, e a cada vez de forma diferente, mais chan- -los? Imediatamente, sinto que se para responder
ce ela teria em manifestar sua verdade intrínseca, a essa pergunta eu tivesse utilizado o esquema de
uma disputa entre a modernização e o arcaísmo, a ele em São Diego, no Instituto Salk, que aca-
eu nada teria entendido. Mas também percebo a bava de ser inaugurado, caso eu conseguisse um
ausência de um esquema alternativo, pois não se financiamento. Eu precisava apenas de algumas
sabe descrever etnograficamente os significados páginas e poucas linhas para escrever o projeto
dos adjetivos “racional”, “eficaz”, “competen- de uma antropologia que iria oferecer aos que se
te”, “rentável”, todas essas qualidades – segundo dizem modernos e racionais uma descrição que
o que me atestam, com a desdenhosa confiança fosse, finalmente, etnograficamente estruturada.
dos expatriados – que parecem faltar aos admi- Lembro-me até hoje do ar estupefato do agente
nistradores marfinianos. Percebo que tais adjeti- consular encarregado de instruir-me sobre meu
vos de combate e de conquista não resultam de pedido de bolsa Fulbright, diante da confiança
qualquer descrição independente, são palavras de com que eu pretendia tornar a antropologia enfim
ordem ou gritos de guerra. Se se apressa em invo- simétrica! Eu achava completamente normal en-
car as dimensões culturais, os limites cognitivos, raizar a antropologia comparada em uma trajetó-
as “almas negras” e as “mentalidades africanas”, ria que ia de Abidjan a São Diego, passando pelas
é para não se ter o trabalho de refletir sobre uma velhas ruas pavimentadas de Baune, e percorren-
definição que seja suficientemente material e con- do três dos mais diferentes tipos de modernida-
creta. Existe aí uma flagrante assimetria: os bran- de. Direção: Estados Unidos; campo: laboratório
cos antropologizam os negros – sim, e com mui- científico. Em um desses cadernos guardados des-
ta eficiência –, mas eles mesmos não se deixam de os treze anos, escrevi em algumas linhas o pro-
antropologizar. Ou então eles o fazem de modo jeto de comparar os modos de verdade, primeiro
falsamente distante, “exótico”, prendendo-se aos indício de um livro que só viria a ser publicado
aspectos mais arcaicos de suas próprias socieda- quase quarenta anos mais tarde...
des – as festas municipais, a crença na astrologia, Pode-se imaginar minha surpresa ao desco-
as refeições de primeira comunhão –, e não ao brir, no laboratório Guillemin, em 1975, naquele
que me salta aos olhos (olhos que, na verdade, magnífico prédio de Louis Kahn com vista para
foram educados pela leitura coletiva do Anti-Édi- o Pacífico, que, curiosamente, o trabalho científi-
6
Gilles Deleuze po):6 as técnicas industriais, a economia, o “de- co assemelha-se à exegese que eu abandonara na
e Félix Guattari, senvolvimento”, a razão científica, etc., ou seja, Borgonha... Como bom etnógrafo, eu sabia que
L’Anti-Œdipe:
capitalisme et tudo o que constitui o coro estrutural dos impé- precisava desconfiar das ideias que flutuavam no
schizofrénie. Paris: rios em vias de expansão. ar, mas eu não acreditava que a sequência dos “re-
Minuit, 1972. Daí veio a ideia de aplicar os métodos das 7
Bruno Latour e gistros” de toda essa ideografia de instrumentos
Edição brasileira: Jocelyn de Noblet
O anti-Édipo:
ciências sociais – principalmente a etnografia – às imprimisse nessas famosas ideias uma força tão
(orgs.), Les
capitalismo e práticas mais modernas. Em 1975, a Califórnia “vues” de l’esprit. fértil.7 E, no entanto, naquela misteriosa fábrica
esquizofrenia, parecia ser o centro mais avançado da humani- Visualiation et de acontecimentos, tudo se esclareceria subita-
tradução de Luiz
B. L. Orlandi. São
dade, chamavam-na até mesmo de “cabeça pes- connaissance mente caso eu aceitasse acompanhar passo a pas-
scientifique. Paris:
Paulo: Editora 34, quisadora”. Um amigo cientista de Dijon, Roger Culture Technique,
so as transformações dos documentos aos quais
2011, 2a edição. Guillemin (antigamente, menino de coro de um 1985. os pesquisadores vestidos de branco destinavam
querido tio padre!), propôs que eu me juntasse um interesse ao mesmo tempo obsessivo e com-
pletamente descontraído. As coisas aconteciam 9
Bruno Latour naria o célebre trf9 –, dedicou-se, muito tranqui-
e Paolo Fabbri,
como se houvesse a possibilidade de incorporar “Pouvoir et devoir
lamente, a analisá-lo ao modo greimasiano, como
as ciências às frágeis e aparentemente impalpáveis dans un article de se se tratasse de um conto de fadas... Nas hábeis
tecnologias intelectuais. É verdade que eu recebia science exacte”, mãos de Paolo, a variada atuação dos atores não
Actes de la Recher-
ajuda, não só de Derrida, mas também de Fran- deveria mais ser confundida com a percepção de
che en Sciences
8
François Dagog- çois Dagognet, de quem o pequeno livro Écriture Sociales, 1977, base dos actantes. Então eu logo compreendi que
net, Ecriture et ico- et iconographie8 oferecia ao cão de caça que eu pp. 81-99. os personagens não humanos também tinham
nographie. Paris:
Vrin, 1974. era a pista que ele farejava com todo seu fôlego. aventuras que poderíamos acompanhar se aban-
Como foi que essa forma de materialidade donássemos a ilusão de que eles eram ontologica-
pôde desaparecer tão completamente da episto- mente diferentes dos seres humanos. O que vale
logia, assim como a exegese bíblica da predica- é apenas a agency, suas capacidades de atuação e
ção dos dogmas católicos? Como explicar que, os diversos papéis que lhes foram atribuídos.
mais uma vez, o apelo a uma abusiva transcen- Um mundo então se revelava, enquanto eu
dência tenha conseguido dissimular a malha de ainda não tinha terminado a investigação, e pres-
textos, de documentos, cujos reparos constantes tava-se – admiravelmente, deve-se reconhecer –
só poderiam produzir a verdade que se tentava, aos princípios de uma antropologia comparada:
inutilmente, consolidar em um fundamento mais os coletivos – eu ainda não utilizava essa defini-
sólido? Como a veracidade científica poderia es- ção – diferem-se pela atuação que eles atribuem
tar tão afastada da informação Duplo Clique, do aos actantes, pelos testes que eles destinam a seus
mesmo modo que esta da verdade religiosa – no personagens, mas nunca porque uns fossem rea-
caso de nos depararmos com três tipos de veri- listas, racionais, reais, e os outros simbólicos, ima-
dicção, cada uma totalmente distinta da outra, e ginários ou míticos. O poder da semiótica deri-
legítimas, a seu gênero e a seu modo? vava, justamente, de sua sublime e radical indife-
Como eu passava doze horas por dia no labo- rença ao realismo aparente dos sujeitos e dos ato-
ratório, costumava convidar todos os intelectuais res sociais: essa era a condição ideal para seguir a
de São Diego, para apresentar à sabedoria deles originalidade das ciências que foram aniquiladas
o enigma de uma antropologia científica que eu pela tarefa de imitar o mundo, corrompidas por
não sabia como decifrar. Por sorte, enquanto eu serem tantas vezes confundidas com a informa-
me colocava essas perguntas tão difíceis, descobri ção sobre lamentáveis “matters of fact” isolados
a semiótica, graças a Paolo Fabbri, e a etnome- de qualquer questão. Somente a semiótica dos es-
todologia, graças aos amigos da universidade, e, critos e das inscrições científicas, livre do realismo
posteriormente, a Steve Woolgar. comum, poderia implantar esse modo totalmente
Ainda me lembro da minha admiração quan- original de referência.
do Fabbri, com seu adorável sotaque italiano e Não é difícil compreender o motivo da minha
sua voz alta e aguda, apropriando-se de um texto excitação: eu sabia que esse fenômeno da circu-
que saía da maquinaria do laboratório – um texto lação da verdade científica ao longo das cadeias
cheio de diagramas e de fórmulas químicas sobre a das inscrições teria dificuldade em encontrar um
descoberta de um neuropeptídio, que logo se tor- lugar na filosofia, apesar do imenso prestígio atri-
buído à Ciência. Na verdade, o caminho das ins- trapassavam em muito as capacidades do etnó-
crições ignorava ao mesmo tempo o sujeito conhe- logo. O pesquisado sempre sabe mais do que o
cedor e o objeto conhecido; o modo de existência pesquisador.
do conhecimento científico parecia merecer um É por isso, aliás, que a filosofia de minha
habitat melhor do que o no man’s land entre as juventude me parecia tão indispensável: só ela foi
palavras e as coisas. Eu não imaginava que seria selvagem o suficiente para conseguir acompanhar,
necessário mover céu e terra para dar-lhe o lugar sem grande espanto, as elucubrações dos agentes.
que ele merecia, e que quarenta anos depois eu Era através da metafísica que se pretendia tornar-
ainda estaria nessa mesma missão, armado de pá -se um bom etnógrafo. A ideia de que o ator não
e picareta... fosse mais considerado um “idiota cultural” (“a
A paixão pela semiótica – cujas garras, aliás, cultural dope”) ressoava maravilhosamente com
foram afiadas tanto nos textos bíblicos quanto na o actante explorado pela semiótica. Felizmente,
literatura de ficção – teria levado-me a uma sim- protegido pela minha ignorância brutal da socio-
ples “textualização” da atividade científica, ca- logia, eu não poderia saber que Garfinkel seria
so eu não tivesse descoberto, paralelamente, nas tão radicalmente inassimilável pelas ciências so-
pesquisas de Garfinkel, uma forma muito distin- 11
Bruno Latour ciais, assim como Greimas pela epistemologia.
ta de romper com o realismo social tão comum e Steve Woolgar, Nada então me impedia de utilizar os termos “so-
Laboratory Life.
10
Harold Gar- na sociologia.10 O estranho Gênio do jargão da The Construc- cial” e até “construção social” para descrever as
finkel, Studies in etnometodologia vem da descoberta de que todo tion os Scientific aventuras dos seres não humanos que passavam
Ethnomethodo- Facts. Princeton:
logy. New Jersey: curso de ação, incluindo o mais comum, é cons- a povoar os coletivos.11 Eu não poderia saber que
Princeton Univer-
Prentice Hall, tantemente interrompido por um minúsculo hia- sityPress, 1986 (1a seria preciso um quarto de século para livrar-me
1967. tus que requer, de tempos em tempos, a retomada edição, 1979). do mal-entendido criado pelo uso da palavra “so-
inventiva do ator munido de seus próprios micro- cial” e de todas as complicações dele decorrentes,
métodos. O desajeitado laboratorista que eu era 12
Bruno Latour, para meu grande susto.12 Embora desde minha
multiplicava sem querer as experiências de “brea- Rassembling feliz infância em Beaune eu não houvesse tirado
the Social. An
ching” que revelavam, por contraste, a competên- Introduction to sequer um pé do mais sólido realismo, e apesar
cia que meus colegas de laboratório adquiriram Actor-Network de eu ter sido um dos primeiros a finalmente des-
com muita dificuldade. Eu me sentia desencora- Theory. Oxford: crever com precisão a materialidade das ciências,
Oxford University
jado pelo estilo de Garfinkel, mas compreendia Press, 2005.
vi-me de repente acusado de um crime aparen-
que sua proposta era fazer para todos os relató- temente abominável e que eu teria cometido por
rios (os accounts) o que eu já havia identificado pura inadvertência: o questionamento da objeti-
na exegese religiosa e o que eu estava descobrindo vidade científica pelo “relativismo”.
na bancada do laboratório na exegese de textos Em 1977, de volta à França à procura de cole-
científicos: nenhuma continuidade de um curso gas, fui parar na dgrst, na Rue de Varenne, com
de ação pode acontecer sem uma repetição inven- o resumo de um contrato para estudar a evolução
tiva que fornecesse ao ator social as capacidades da química biomolecular em que o autor, um cer-
reflexivas, as fontes de inovação, e até mesmo as to Michel Callon da Escola das Minas, explica-
sociologias e ontologias cujo desdobramento ul- va friamente que não iria submeter minha análise
à supervisão preliminar dos químicos, já que ele das na simples ideia de uma ação eficaz sobre a
pretendia explorar uma abordagem que fosse in- matéria: elas tinham a ver com a magia, com a
dependente da autoridade científica. Ah! Eu tinha religião, com a filosofia; elas tinham seu próprio
que conhecer o mais rápido possível aquele co- mundo; eram cheias de métodos, artimanhas, cál-
lega audacioso, intencionado em falar da ciência culos, metafísica, e até mesmo moral; e, descons-
com uma tal liberdade! Esse encontro vai ofere- truindo as fronteiras com os temas humanos, re-
cer-me uma sorte extraordinária, permitindo-me presentavam um imenso desafio para a descrição
trabalhar durante um quarto de século na calma 14
Bruno Latour, etnográfica ou sociológica.14 Mas, além disso, de
do csi, o Centro de Sociologia e de Inovação. “Mixing Humans uma forma ainda mais radical, elas povoaram o
with Non-Hu-
Graças a Michel Callon, eu seria apresentado mans, Sociology of coletivo com atores não humanos que, por um
aos estudos de campos industriais. Ora, os dispo- a Door-Opener”, tipo de delegação, eram relevantes aos atores hu-
sitivos técnicos que tivemos de traçar pelo viés das Social Problems, manos pela quantidade vertiginosa de habilidades
nº 35, 1988, pp.
inovações (a inovação estava em voga naquela épo- 298-310.
imprevistas. Na minha opinião e na de Callon, a
ca, e havia muito dinheiro destinado a estudar suas armadura técnica era o que havia de mais “so-
origens), apresentava-nos uma forma de realismo cial” em uma sociedade, uma vez que se voltasse
que as noções de eficiência ou de rentabilidade não à etimologia do adjetivo e se permitisse seguir to-
poderiam esgotar. No decurso de nossas pesquisas, das as associações necessárias à extensão de uma
reconstruímos o modo como os engenheiros deve- rede. Principalmente se a ela forem acrescentadas
riam ter desenhado todo um mundo para conse- as técnicas intelectuais que se aprendeu a seguir
guir sustentar suas inovações mais arriscadas por a partir das pesquisas de laboratórios, e que aca-
um pouco mais de tempo. Aí, novamente, eu me baram misturando-se em toda parte com as orga-
deparava com um curso de ação que nenhuma 15
Michel Callon, nizações técnicas.15 Às máquinas, devia-se acres-
continuidade, nenhuma grande necessidade, ne- “Pour une socio- centar os escritórios; às engrenagens, as técnicas
logie des contro-
nhuma causalidade um pouco sólida poderiam ex- verses techniques”, contáveis; à resistência dos materiais, as agências
plicar. Mas o hiatus peculiar às novas técnicas – Fundamenta Scien- de padronização.
por definição, é sempre uma questão de romper tiae, nº 2, 1981, E, no entanto, aos olhos de nossos colegas das
pp. 381-99.
com as práticas já existentes através da inovação ciências legitimamente chamadas “sociais”, o so-
– foi surpreendente na medida em que, no final, cial não parecia capaz de absorver essas múltiplas
quando tudo estava no lugar e o dispositivo estava 16
Michel Callon, e lábeis conexões que tínhamos designado “tra-
finalmente funcionando, houve um desvio por in- “Élements pour dução” por um empréstimo deliberado de Michel
termédio de um objeto com um status de fato mui- une sociologie de Serres.16 Seguíamos o curso de Serres todos os sá-
la traduction. La
to estranho, o objeto técnico cujo “modo de exis- domestication des bados, no esfumaçado anfiteatro – praticamente
tência” – e era a primeira vez que eu ouvia aquela coquilles Saint-Jac- um “estábulo” – da Sorbonne (ainda se fumava
13
Gilbert Simon- expressão – fora proposto por Gilbert Simondon.13 ques et des marins dentro das salas naquela época!), sempre aprovei-
don, Du Mode pêcheurs en baie
Assim como as ciências compreendidas em de Saint-Brieuc”, tando a audácia com a qual Serres desenvolvia es-
d’existence des
objets techniques. sua prática não podiam ser mantidas no estrei- L’année sociologi- sa “antropologia das ciências” fundada naquele
Paris: Aubier, to âmbito da epistemologia, as técnicas, sobre- que, nº 36, 1986, tão fértil princípio da exegese, segundo o qual a
1958. pp. 169-208.
tudo as mais modernas, não podiam ser manti- metalinguagem de um texto – poema, fábula, livro
de memórias, ou tratado científico, não importa- intuições sobre a fabricação técnica da sociedade:
18
Shirley Strum
va – só poderia ser encontrada no próprio texto, e Bruno Latour, o que caracteriza os seres humanos não é a emer-
bastava procurá-la. Bela lição metodológica para “The Meanings gência do social, mas o desvio, a tradução, a infle-
seguir os “próprios atores”, uma abordagem com- of Social: from xão de todos os cursos de ação em dispositivos téc-
Baboons to Hu-
patível tanto com a semiótica quanto com a etno- mans”, Informa- nicos cada vez mais complicados (mas não neces-
metodologia. Descrever, descrever e ainda descre- tion sur les Scien- sariamente mais complexos).18 Alguns anos depois
ver. A explicação e o contexto eram muito menos ces Sociales/Social de meu retorno desse trabalho de campo quenia-
Science Informa-
importantes do que reunir em uma limitada rede tion, nº 26, 1987,
no, em 1979, escrevemos o texto que fundou a teo-
de interpretações um texto de Tito-Lívio, um argu- pp. 783-802. ria do ator-rede, Unscrewing the great Leviathan,
mento de René Girard ou um teorema topológico. propondo uma teoria social bastante aberta para
Isso será explicado mais tarde, se houver tempo. 19
Michel Callon absorver as associações entre seres humanos e não
e Bruno Latour, humanos,19 sobretudo fazendo da mudança de es-
“Unscrewing the
A descoberta dos desvios e das delegações téc- Big Leviathan: cala a consequência de um emprego das técnicas
nicas acrescentava a minha lista um novo modo How Do Actors materiais bem como organizacionais. A performa-
cuja ontologia era muito mal explicada pela no- Macrostructure tividade do social pelas ciências, incluindo a ciên-
Reality”, Advances
ção de “materialidade”. Eu começava a me per- in Social Theory cia econômica, financeira, administrativa, abria-se,
guntar se não seria o caso de trocar definitivamen- and Methodology: assim, de forma mais ampla à pesquisa empírica.
te de filosofia, quando tive a sorte – sempre ela – Toward an Inte- Ao passar do social às associações, o analista
gration of Micro
de receber um telefonema de um antropólogo cali- and Macro Socio-
aproveitava-se, enfim, de uma liberdade de ma-
forniano convidando-me a participar do primeiro logies, K. Knorr nobra tão grande quanto a de seus informantes,
congresso que reunia os especialistas em macacos & A. Cicourel em vez de se fechar no estreito quadro da “dimen-
(orgs.). Londres:
Papio anubis, que passavam a ser estudados siste- Routledge, 1981,
são social” de fenômenos científicos, técnicos,
maticamente. Ela precisava de um observador das pp. 277-303. cujo conteúdo deveria escapar-lhe completamen-
controvérsias entre os cientistas. Trinta e cinco te. O que se pretendia observar eram as redes
anos depois, o choque do meu encontro com Shir- socio-técnicas em vias de expansão. Pusemo-nos
ley Strum, juntamente com a primatologia, com a a espalhar isso a torto e a direito; devíamos ter fi-
etnologia, com a savana do Quênia e, sobretudo, cado insuportáveis naquela ocasião; mas, enfim,
com os macacos, não se desfez. Em primeiro lu- éramos jovens, apaixonados, e, além disso, tínha-
gar, eu estava descobrindo que uma intensa vida mos razão! A história ia nos provar isso, quero
social – aquela das trupes dos babuínos que Shir- dizer, a história que a ecologia iria nos forçar, to-
ley já acompanhava havia sete anos e que ainda dos, seres humanos e não humanos, a considerar.
17
Shirley Strum,
“Agonistic Do- em 2012 continuava a acompanhar! – era perfei- Assim, pelo menos não seríamos pegos de surpre-
minance among tamente compatível com um uso extremamente li- sa; com as armas em punho, aguardamos esse no-
Baboons: an mitado de instrumentos técnicos.17 vo mundo, ou melhor, nós o aguardávamos como
Alternative View”,
International Jour- Se os babuínos manifestavam uma complexi- servos do Evangelho, com a lâmpada já acesa...
nal of Primatolo- dade social tão extraordinária, totalmente digna E, no entanto, por mais importante que ela
gy, nº 3, 1982, pp. de Garfinkel, eles só faziam uso de suas patas. Era fosse, não era essa invenção da “sociologia da
175-202.
isso que confirmava – a Callon e a mim – nossas tradução” que apreendi em minha longa convi-
vência com Strum e, logo depois, com seu marido, tanto inspirou Donna Haraway (que conheci em
David Western. Não, era a convivência com um 20
Donna Haraway, 1981).20 Acompanhando a pé os babuínos, Shir-
modo, completamente maravilhoso para mim, de Primate Visions. ley, no meio deles e tão invisível quanto a Atena
Gender, Race and
organismos vivos largados à suas próprias sortes. Nature in the grega no centro dos combates, explicava-me, em
É claro que eu conhecia os laboratórios, e eu co- World of Modern voz baixa, enquanto tomava notas, a impressio-
meçava a medir o que as experiências tinham de Science Londres: nante complexidade dessas sociedades. Passei a
Routledge and Ke-
artificial – no bom sentido do termo –; eu sabia gan Paul, 1989.
imaginar outras relações entre o percurso do co-
muito bem que a paisagem do campo nada tinha nhecimento e o do mundo conhecido. Mas para
de natural (sobretudo as videiras perfeitamente chegar até aí eu precisava de uma oportunidade
enfileiradas de minha Côte d’Or natal); mas co- para conhecer a “outra metafísica”, aquela de Ja-
mo eu iria qualificar o espaço criado pelas tru- mes e de Whitehead.
pes de babuínos que estavam sendo seguidos por Naquele momento, eu não tinha outras pala-
seus pesquisadores – seguidos, e não precedidos, vras para descrever a impressão causada por mi-
por eles, isso já diz tudo –; como não se descon- nha colaboração com Shirley e com os etnólogos,
certar com essas trupes de macacos cujo caminho a não ser irredução. Foi essa expressão que deu
era atravessado por gazelas saltitantes, manadas origem ao tema de um pequeno “tratado cientí-
de zebras e búfalos, e, de vez em quando, pelo 21
Bruno Latour, fico-político” publicado em 1984,21 uma curiosa
deslizar silencioso de um paquiderme? Não, não, Les microbes, filosofia sem leitores, uma mistura um pouco es-
guerre et paix,
aquilo não era a natureza, a selvageria, a célebre seguido de Irréduc- tranha de teoria de redes, de nietzscheísmo então
“wildlife”; na verdade, sim, era tudo aquilo, co- tions. Paris: vigente, e de luta contra a epistemologia, tudo is-
mo também eram muitas outras coisas; era o mo- A.-M. Métailié, so sob o fundo do fim da Guerra Fria. Com uma
1984 (reeditado
vimento dos fenômenos entregues a suas próprias em formato de
única intuição – a distinção entre as relações de
sortes, mas sem a presença intimidadora dos se- bolso pela editora força e as relações de razão faz com que tanto
res humanos, que foram deixados fora da cena. La Découverte, em a força quanto a razão sejam incompreensíveis –
2002).
E, no entanto, esses pesquisadores capazes de se- misturada a uma completa e totalmente desperce-
guir – e não dominar – seu objeto de estudo pro- bida contradição: a intenção de conferir a todas
duziam ciência, e muito boa ciência (que eu assi- as associações a mesma metalinguagem, em ter-
milava o mais rápido possível, dando aulas sobre mos de tradução, redes e enteléquias. Se eu sem-
a evolução das técnicas e da ecologia, na ucsd, pre senti simpatia por esse livro juvenil e mordaz
ao lado de Shirley, quase todos os anos de 1979 é porque agora sei que se trata de um modo par-
a 1992). As diferentes práticas de primatologia, ticular de existência – e não de uma filosofia irre-
dos macacos presos em cadeiras de tortura nos ducionista, como eu acreditava naquela época –,
laboratórios até os babuínos seguidos dia após esse modo que permite a implementação das re-
dia por doutorandos entusiasmados, passando des de associação heterogêneas e imprevistas, sem
pelos chimpanzés presos nos zoológicos, foi uma se deixar intimidar por outros domínios distin-
linda lição de filosofia: encontravam-se aí todas tos. No final, fiz bem em demonstrar sua eficácia
as possíveis posturas do observador e do objeto em um estudo histórico-semiótico sobre as desco-
observado, e compreendeu-se então a paixão que bertas de nosso compatriota Louis Pasteur. Como
modo, a análise das redes é indispensável para a estender as intuições da semiótica para além de
investigação (eu demonstraria isso a partir do ca- seu quadro original – os textos bíblicos e as ficções
22
Bruno La- so delicioso de um metrô automatizado),22 mas, literárias –, sem abrir mão de sua independência
tour, Aramis, como todos os modos, ela tende à hegemonia e à em relação ao realismo comum. Greimas, cuja
ou l’amour des
techniques. Paris: não compreensão dos outros. Até hoje, se me per- brilhante cabeça desaparecia por trás da fumaça
La Découverte, guntassem “qual é sua filosofia?” eu só saberia emanada de seu seminário, encorajava-nos nesse
1992. responder dizendo: “leia Irréductions”. (Não se projeto, sorrindo (o cigarro provavelmente deve
preocupem: nunca alguém me dirigiu tal pergun- tê-lo matado, assim como o fez com Françoise).
ta, uma vez que o tumulto das discussões sobre É aí que aperfeiçoamos uma pequena máqui-
o relativismo e a guerra das ciências transforma- na fundada na teoria da enunciação. Os textos de
ram-me, nesse meio-tempo, em um simples soció- ficção não precisam se preocupar com isso: uma
logo defensor de uma “construção social” segun- vez que a enunciação foi produzida nos quadros
do a qual “tudo está valendo”, tanto a ciência de referência de um texto – porque sempre se tra-
objetiva quanto a magia, a superstição e os discos ta de um texto –, os percursos narrativos são fá-
voadores...). ceis de ser seguidos. Ora, esse pode não ser o ca-
Para melhor entender como as coisas acaba- so de pelo menos dois regimes de enunciação: os
ram se ligando, dois outros encontros precisam instrumentos científicos e os dispositivos técnicos.
ser considerados – um pensamento parece ser o Para eles, certamente, a embreagem enunciativa,
resultado de encontros decisivos cujos efeitos se e especialmente a reembreagem, devem ser segui-
buscam na mais total solidão (sem a solidão, nada das com cuidado. Os personagens não figurativos
acontece; sem os encontros, tampouco). Logo de- de um texto científico podem muito bem viajar
pois de minha volta a Paris, Paolo Fabbri apresen- como os seres ficcionais, mas eles precisam vol-
tou-me a Françoise Bastide, fisiologista e semioti- 23
Bruno Latour e tar para trazer algo que se encontra nas mãos do
cista sem igual, com quem tive a sorte de trabalhar Françoise Bastide, enigmático enunciador, aquele cuja presença não
até sua morte prematura, em 1988. Françoise, “Essai de science tem importância em um texto de ficção, já que
fabrication”,
com toda a seriedade de uma celibatária e protes- Études françaises, ninguém pergunta a Flaubert se ele tem a certi-
tante, aplicava nos textos o mesmo e absoluto res- nº 19, 1983, dão de nascimento de Bovary.23 Einstein e seus pe-
peito que mostrara com relação aos rins, quando, pp. 111-33. quenos personagens relativistas nos serviram co-
indo contra a maré, estudou seu sutil funciona- mo teste que nos permitiu identificar a estranheza
mento, em um laboratório do Collège de France. 24
Bruno Latour, dessa ficção no caminho da verificação gradual.24
Especialista em textos científicos, ela sabia mui- “A Relativist Ac- Mas é com o objeto técnico que tivemos mais di-
count of Einstein’s
to bem (porque os tinha escrito) que a semiótica, Relativity”, Social ficuldade, porque ele explode o quadro textual.
apesar de pretender jamais se afastar dos textos, Studies of Science, Mas, no entanto, não é a materialidade que apre-
na verdade nunca deixou de confiar naquilo que nº 18, 1988, senta o problema; aí, também, trata-se do papel
pp. 3-44.
acontecia fora deles, na prática. O enigma era des- particular do enunciador capaz de se ausentar,
cobrir como abordar aquela prática sem cair nos porque o objeto permanece sem ele.
clichês sobre os indivíduos falantes compreendi- Na verdade, percebemos isso muito rápido,
dos em um contexto social e material. Era preciso a própria possibilidade dessa famosa embreagem
de planos enunciativos teve origem na técnica. opondo-se a esse Gênio do Mal da informação
A ausência de um narrador de carne e osso em Duplo Clique. De fato, ocorreram dois aconteci-
uma narrativa ficcional não é uma propriedade mentos distintos: por um lado, meu encontro com
semiótica da ficção mas do livro como objeto téc- Isabelle Stengers, e, por outro, o imprevisto suces-
nico; sem o livro, o narrador seria um contador so da teoria conhecida como ator-rede (em inglês
tão pouco ausente daquilo que enuncia quanto ant). Esse sucesso e as disputas que se seguiram
o manipulador de marionetes em um espetáculo atrasaram a publicação do outro projeto que até
de bunraku. Na verdade, Françoise e eu acreditá- então eu não parava de perseguir.
vamos que seria possível comparar os regimes de Devo a Stengers, que conheci em 1978, as cons-
enunciação – é o termo que eu costumava usar na- tantes interrupções que ela provocou em todas as
quela época –, passando de um regime a outro por explicações sociais – mesmo as que foram aperfei-
meio da atenção dedicada aos respectivos papéis çoadas pelo ator-rede – que eu e Callon continuá-
do enunciador, do receptor e do enunciado. Em vamos desenvolvendo. A todos meus progressos
1986, escrevi um primeiro texto ami, para Anjo, sócio-semióticos ela se opunha com um impetuoso
Máquina, Instrumento, tentando ordenar lado a “eu entendo, mas, de qualquer modo”, e, com um
lado três desses regimes de enunciação, utilizando movimento brusco e circular da mão direta – mo-
um vocabulário comum para estabelecer a compa- vimento que só ela sabia fazer –, exigia que algo
ração. (Levei vinte e seis anos para passar de ami fosse trazido à superfície na análise, algo que fosse
a eme e a aime.) Infelizmente, o curso foi inter- o mundo, mas apreendido de outra forma. Nem
rompido em 1988, com a morte de Françoise – já os micróbios de Pasteur, a acoplagem impalpável
que ela era a única pessoa que dominava a técnica de Aramis, o metrô automático, as famosas vieiras
25
Françoise Basti- semiótica para desenvolver esse modelo.25 de Michel Callon, nenhum desses, apesar de mui-
de, Una notte con Se os leitores pensam que o livro sobre os mo- to bem apresentados, atuantes e ágeis, precisos e
Saturno. Scritti se-
miotici sul discorso dos de existência foi publicado na sequência dos trôpegos, ofereciam aos olhos de Stengers uma ga-
scientifico. Roma: trabalhos de sociologia da ciência e da técnica, co- rantia satisfatória de que havíamos nos desprendi-
Meltemi, 2001. mo se depois dos trabalhos empíricos, com uma do do texto, do social, do simbólico. Para alcançar
idade já mais avançada, eu tivesse voltado para a esse objetivo, seria necessário apreender o mundo
filosofia, eles estão muito enganados. O livro que sem arrastar para dentro dele o tema humano e
nesse meio-tempo escrevi, Science in Action,26 foi sua obsessão pelo conhecimento compreendido
26
Bruno Latour, publicado em 1987, no momento em que eu es- como a relação entre as palavras e as coisas.
Science in Action. crevia a investigação sobre os diferentes regimes Estou quase certo de que foi em 1987, enquan-
How to Follow
Scientists and
de veridicção iniciada em 1986. Seguindo a circu- to conversávamos à borda da piscina de Treilles,
Engineers through lação responsável pela produção de fatos e pela que ela compartilhou comigo uma surpreendente
Society. Cam- construção de máquinas, Science in Action pode citação de Whitehead, que nessa época ainda era
bridge: Harvard
University Press,
ser lido como uma aplicação da teoria de redes, o menos conhecido do que Gabriel Tarde, sobre o
1987. que ele certamente não deixa de ser, mas também risco assumido pelas pedras – sim, pelas pedras
como um estudo de três regimes de verdade: a re- – para assegurar suas próprias existências; devia
ferência científica, os arranjos técnicos, ambos se tratar da famosa passagem da agulha de Cleó-
27
Alfred North patra em Charing Cross, em Concept of Natu- mo ontológico contra seu aniquilamento pelo es-
Whitehead, Con- re.27 Naquele mês de agosto, estendido sob o sol quema sujeito/objeto. Sobretudo o pequeno qua-
cept of Nature,
Cambridge, Cam- em uma ilha ao longo de Göteborg, na Suécia, eu dro – semiótico, teórico, filosófico, como se prefe-
bridge Univertity não conseguia parar de passar o dedo na superfí- rir chamá-lo – já não era contrário à implantação
Press, 1920. cie vermelha e rugosa daquelas pedras, para veri- de campos de pesquisa. Sem me contradizer, eu
ficar se Whitehead tinha mesmo razão... E então poderia ser ao mesmo tempo filósofo, antropólo-
tudo se esclareceu: o que eu tinha descoberto no go e sociólogo: tudo leva à pesquisa, tudo surge
Quênia, e o que eu havia deduzido de forma obs- dela. Assim começou a aventura que os leitores
cura sobre o princípio de irredução: existe um mo- desse livro são convidados a prolongar hoje, par-
do de existência completamente autônomo, mui- ticipando dessa pesquisa.
to mal compreendido pela noção de natureza, e
de mundo material, de exterioridade, de objeto. E Antes de concluir, talvez seja útil lembrar a in-
esse modo divide com todos os outros o seguinte fluência desses estudos sobre o esquema natureza/
traço essencial: o risco assumido para continuar a cultura, já que ainda estamos falando de antropo-
existir. Assim, o hiato que eu detectara muito ce- logia filosófica. Em nenhum momento esqueci o
do na exegese, que eu tinha encontrado no estudo choque da África, do neocolonialismo, do avan-
das inscrições científicas, no percurso desarticula- ço da frente de modernização. Como fazer uma
do dos cursos de ação, no surpreendente desvio antropologia que seja simétrica de verdade? En-
das técnicas, também aparecia ali, ali, a princípio, quanto permaneci em Melbourne, preparei uma
na aparente continuidade do estar-ali. Uma epifa- longa revisão do livro fundamental de Shapin e
nia que se ligava a todas as outras, e em particular Schaffer sobre Hobbes e Boyle, Leviathan and
àquela que eu tinha desenvolvido em Irréductions, 29
Steven Shapin the Air-Pump, que acabava de ser lançado.29 Gra-
a irrupção de coisas “irreduzíveis e em descanso”. e Simon Schaffer, ças ao trabalho sobre os regimes de enunciação,
Leviathan and
Não havia nada de inevitável, de definitivo, de ir- the Air-Pump, um resultado bastante significativo de antropo-
remediável nas tribulações do sujeito e do objeto. Hobbes, Boyle and logia simétrica foi encontrado: ao fornecer uma
Era possível pensar de forma diferente. the Experimental descrição enfim realista das ciências, ao mostrar
28
Publicado em Life. Princeton:
Bruno Latour, A partir de então, tudo se encaixou muito ra- Princeton Universi-
seus equipamentos, trazendo os canais de referên-
1998. Petite pidamente. Em junho de 1988, quando desci no ty Press, 1985. cia para o primeiro plano, foi possível destacar a
philosophie de avião que me levou a Melbourne para passar dois representação na natureza tanto do trabalho das
l’énonciation.
Eloqui de senso. preciosos meses de total solidão – a santa solidão ciências quanto do movimento dos seres abando-
Dialoghi semiotici –, em meio ao torpor causado pelo jetlag, conse- nados a suas próprias sortes, movimento este que
per Paolo Fabbri. gui mapear com um só gesto o quadro que iria in- Whitehead conseguiu finalmente me ensinar a res-
Orizzonti, compiti
e dialoghi della
vestigar mais sistematicamente.28 Tinha então 41 peitar. Torna-se então possível uma antropologia
semiotica. Saggi anos, três livros publicados, tudo poderia come- dos Modernos, e ela vai transformar o esquema
per Paolo Fabbri, çar. Faltava ainda algum regime ou método, mas natureza/cultura até então utilizado pelos antro-
P. Basso e L. Cor-
rain (orgs.). Milão:
o essencial havia sido feito, sobretudo o princípio pólogos como recurso indispensável, em um tó-
Costa & Nolan, de comparação a partir de uma metalinguagem pico que, ao contrário, deve ser explorado (mais
1988, pp. 71-94. que tem como único objetivo proteger o pluralis- uma vez, “the resource becomes the topic”).
O resultado não era insignificante, pois ele pela noção de “representação simbólica de um
tornou possível detectar o imenso abismo entre mundo material” abre um programa de pesquisa
a representação modernista da história – aquela mais fértil.
de uma frente de modernização – e a história real Entre a ciência do ser enquanto ser – a vene-
– aquela de um entrelaçamento entre seres huma- rável disciplina de ontologia –, e a ciência do ser
nos e não humanos cada vez mais íntimo e sem- enquanto outro – a antropologia –, novos laços
pre em maior escala. Mas, acima de tudo, abre- podem sem tecidos. Assim como as pessoas que
-se, com outros coletivos – termo que substitui, Descola considera naturalistas, os brancos, usuá-
daí em diante, aquele termo muito antropocêntri- rios frenéticos do esquema natureza/cultura, colo-
co de “sociedade” – uma comparação menos dis- 31
Philippe Desco- cam em prática algo muito diferente, o que compli-
torcida pela ideia de uma frente de modernização la, Par delà nature ca ainda mais, a meu ver, a descrição deles.31 O te-
et culture. Paris:
capaz de modernizar a longo prazo todo o pla- Gallimard, 2005.
ma não é insignificante, porque a invasão cada vez
neta. Não são os “outros” realmente modernos? mais urgente das questões ecológicas obriga a se
Pois bem: nunca fomos modernos, e eles nunca prestar mais atenção nas relações da cosmologia
serão. Outra história totalmente diferente espera com a ciência. O termo cosmologia, no singular,
por nós. Anunciada em 1991, a história do par- uma propriedade das ciências exatas, e o termo
lamento das coisas, vinte anos depois, só tem se cosmologias, no plural, utilizadas de forma um
30
Bruno Latour, tornado mais atual.30 Modernizar ou ecologizar, pouco casual pelos antropólogos para descrever as
Nous n’avons era preciso escolher. diversas visões do mundo, agora estão convergin-
jamais été
modernes. Essai Do meu ponto de vista, o principal interes- do para um gabinete que se tornou o novo mundo
d’anthropologie se em Nous n’avons jamais été modernes [Jamais político, aquele da cosmopolítica contemporânea.
symétrique. Paris: fomos modernos], versão negativa de um argu- No final, o mistério sobre o que foram os Mo-
La Découverte,
1991. Edição
mento para o qual apresento hoje a versão positi- dernos continua intacto. O que aconteceu com
brasileira: Jamais va, é que ele iniciou uma colaboração muito mais eles? Se não foi a natureza que eles descobriram
fomos modernos. estreita com os antropólogos, os verdadeiros, so- através das névoas de suas culturas, se não foi a
Ensaio de antro-
pologia simétrica,
bre o pluralismo ontológico dos coletivos. Não se razão que finalmente projetou a luz nessa escuri-
tradução de Carlos trata, com Philippe Descola, com Eduardo Vivei- dão de representações, o que aconteceu de fato?
Irineu da Costa. ros de Castro, Marylin Strathern, de comparar as O que eles descobriram? De quê eles são herdei-
São Paulo: Editora
culturas com o plano de fundo da natureza, mas ros? Para responder a essas perguntas da antro-
34, 2011 (1a edi-
ção, 1994). de contrastar cada vez mais energicamente as on- pologia filosófica, da ontologia regional, é pre-
tologias das quais apenas uma, a nossa, utiliza o ciso um método que forneça uma descrição sa-
esquema do mononaturalismo e do multicultura- tisfatória das situações que devem ser descritas.
lismo. De serva da filosofia, a antropologia passa Quantos sensores são necessários para fazer justi-
a ser, se não sua amante, pelo menos sua colega: ça aos valores disponibilizados pelos Modernos?
ao passar a ser local ou regional, a ontologia tor- É à identificação desses sensores que eu tenho me
nou-se proporcionalmente mais profunda. É que, dedicado, na esperança que esse breve retorno à
ao que parece, a ciência do ser tem mais de um origem da minha investigação estimule alguns lei-
truque na manga e o fim das restrições impostas tores a ajudar-me a realizá-la.

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