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Vladimir Safatle A esquerda que nao teme dizer seu nome TRES ESTRELAS Soberania popular ou ademocracia para além do Estado de Direito ‘Onmedo do caos, em misiea como 1a psicologia social 6 superdimensionado, rhxonor ApoRNO Mas 0 Estado demacritien excede os limites tradicionalmente avibuicow ao Fstado de Dieto, Experiments @eios que ainda ‘nig The esto incorporadas, 60 teatro de uma contestagio caje objeto iio se redux § conservagio de win pact> tacitamente estabelecid, nnas que se forma a partir de focos que © poder ke pode deminarint Quem diz isso ndo é um adepto da esquerda revolu- Clonéria que estaria & procura do melhor mamento para solaparas bases do Estado de Direito, Quem odiz éClande Lefort, em A invengio democrética, umn livro, 20 contrérto, lar- gamente dedicado a critica das sociedades buroerét antigo Leste Europeu. [Nessas frases esto sintetizadas algunas reflexes matores as no. sobre a yelagio intrincadla entre Justica ¢ Direito, Relagio que 7 Lefert, Chand. A trwaa demcfica, So Pal Brasilionse, 1983, 7. 6 0 Lultimamente tendenios a ignorar, como se tudo aquilo que ncon- focess ‘ margem do Estado de Direito fosse necessariamente. ilegele profundamente animado por premiseas antidemocrati« cas, Talvez(erhamtos perdido a capacidade de pensar quat osen- tido dessa democracia que “excede os limites tradicionalmente auibuidosao Estado de Divelto* — ann ponto de excesso quea esquerda soube mostrar, 20 longo da histéria contemporines, como motor fundamental das dindnnicas do politica, Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a de- mocracia como ponto de excesso em relacio ao Estado de Dizeito porque acredizamos que tudo 0 que se coloca fora do Estado de Direito s6 poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem esté fora do Estado de Direito parece secolocar em uma posigao soberana, posicio daqueles que poderiam no se anbmeter lei, mouificé-la continuamente 20 bel-prazer dos casuismos e circunstancias, Vemos ape nas dois candicatos @ ocupar tal posigaio:o criminoso que viola abertamente a lei que garante a seguiranca do Estado de Direito ou (€ af as coisas comecam a se complicas) 6 le- gislador que afirma gue, em situagdes de excecao ~ como ‘em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada ver. mais complicado distinguir estado de guerra ees ado de paz), de crise (mas sabemos hoje como ha sempre uma crise prave a espteita) ~ cortos dispositivos legais podem ser suspensos, No entanto, é possivel que exista um terceiro caso de excess em relacao ao Estado de Discito, um excesso muite 40 bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte arma «io, que encontramos em Forga de lei: “Quero logo reservar a possibilidade de uma Justica, ot de unsa lei, que 40 apenas exceda ou contradiga o Direito, mas que talvez nfo tenha relactio com 0 Diveito, ou mantenha com ele ama relagia tio estranha que pode tanto exigis’o Direito quanto exclu‘ Pode, pots, a Justica nilo apenas exceder o Direito, mas naan: tercom ele ama relago tao estranha que parece se colocar ‘em uma indiferenga soberana? Gostaria de insistir que jc solapare fragilizar a democracia, & possibilidade, longe co quea funda ea fortalece, uma ver que essa pessibilidade um outro nome para aquilo que normalmente chamamos de*soberania popular’ ESTADOS ILEGAIS Conhecemos situacdes nas quiais a Justica se dissocia do Direito. Trata-se de situagdes em que nos deparainos com tum “Estado ilegal". Mosmo a tradicko politica liberal admite, 40 menos desde Jolin Locke, 0 direito que todo cdadao tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impde um estado de terror, de censura, de suspenstio das garantias de integridade social. 8 Derrida, Jacq, Fog dell Sio Paulo: Martins Fontes 2309, 38 wo Nessas situag6ies, a democracia reconhece 0 dlireito & vio~ encia, jé que toda acio contnn uni gover ilegal é uma agdo legal. Vale a pena insistirnessa questo, Podemosdizerqueum dos prinefpios maiores que constituia tradigao de moderni- zagio politica da qual fazemos parte afirma que o disesio fun- damental de todo cidad&o é 0 direito a rebelido ¢ a resisténcia. Nao creio ser necessiio aqui fazer a génese da consciéncia da indissociabilidade entre dofesa do Estado livre e dizcito & vioféncia contra um Estado ilegel, No que diz respeito 20 Oci- dente, ébem provavel que sua consciéneia nasa da Reforma Proiestante, com annogtio deque os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematizacao e critica, ‘0 que exige a institucionalizagio da liberdade, )4 em Calvino encontramos uma affrmagao come: Os governanies de um povo deve envidar todo esforgo a fim deguesliberlade do povo pelo qual sio responséveis no des- ‘vanega de modo algum em suas mos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, oa enfraquecerem, devem ser considerados tvaidores da patria? fato que ele evita general forma dle um dircito geval deresistencia, No entanto, a nogéo ar tal consideragao sob a 19 Calving, Joo, A intiuig da reli ev 2009, p. 881, 001 i Paulo: alton Une, a calvinista mostra claramentea possibilidade de uma critica do poder feita ens nome de exigéncias de institucionalizagio da liberdacle, Essa eritica serd radi lizada por sevores do pensamento reformado, como Thomas Minzer ¢ alguns formadares puritanos ingleses. A pe resistoncia aparece como fundamento da vida social. 0 direito de sivdel lissa abercura do pensamento reformado ao problessa daresisténcia aleangaré o pensamento politico. Ela ser radi- calizada pela tadigio sevolucionéivia francesa (que no deixaré de sernfluenciada peloshuguenotes) Assim encontranemoso, antigo irda Declaraggio Universal dos Direitos doHomem eda Cidadio, de1789, em quese 16: "O objetivo de toda assaciagio politica éa conservacio dos direitos naturais e imprescritiveis dohomem. Tas direitos sfosa liverdade, a seguranga,a proprie- dade.a resistencia i opressio". O preiimbulo daConsticuigio francesa de 1958 ainda reconhece seu vinculo a tas principio. A Declavagdo dos Direitos do Homem e de Cidadio, de 1793, esvvita sob influéncia jacobina, apresenta, como direitos nnatutais eimprescritivis,aiberdade,aigualdade,a sepuranca e apropriedade. Seus its iltimos artigos (33,3433), noentanto, tratam daramente do direito’ resistencia, Depoisdeafirmar,n0 antigo 27, "que todo indivehuo que usurpea soberania sea assas- artigo 33: A resistencia & opressiio & consequéncia dos ‘outros direitos de homem. 4“ ig0 342 114 opresstio contra 0 corpo social quando apenas um de seus membros ¢ oprimido. Ha opressio contra cada membro quando o corpo social é oprimido. sartigo 35: Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreigho 6 pate o povo e paracada parte do povo,o mais sagrado dos direitos e 0 mais indispensivel dos deveres. ‘Ainda hoje, encontramos, no artigo 20, parigrato 4, da Constituigdo alema, a enunciacdo clara do “direito & resis ancia” (Recht zum Widerstand’), Da mesma forma, tal enunclagdo esté presente em varias constituicBesde Estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennessee, Carolina do Norte, entre outros).'" Rie um dado intevessante: a primeira Declaracio dos Direitos Humanos colocava o direito a resisténcia come um dos seuss quatro fundamentos. Jia Declavagiia feita pelas Na- {ges Unidas em 1948 evita enunciar direcamente tal direito, escolhendo uma formulagiio tangencial em seu preimbulo, Niele, lemos: *Considerando essencial que 0s direitos bu~ manos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que 0 10 Demaneia sinterndtic, iso demonstra come aqutles que procuram wansforimaros que partilpara da hua armada coo 0 reine mia ‘asi eo “Terrorstas”colucam-se aquémn de wm conceit substausie) dedenrocracia, Subreesse ponto,,ervcoa: Site, Vladimit.“Do diretose tusoda yielincia contra o sted aga” In: Sefate, Vadim Teles, son forgs.-0 gure diene aexcogia brane, Sao Pao Boitenspo, 2010 “4 | | rebeliao homem niio seja compelido, como tiltimo recurso, contra tirania ea opressio...". Ou seja, algo come: para que odin » de resistencia niio seja urns fato, convém respeitar os seguintes dircitos positivos. Essa enunciagio tangencial expe o mal-estar da politica contemporiinea em relago & assungfo clara do cardter de exeegtio da soberania popular. O carter de excegio fica evidente ao Iembrarmos que, se aquele que usuepa a soberania dos homens lives deve ser ppunido, 6 porque tal soberania precisa ser conservada cao auributo direto do pov cm qualquerde suas formas de expres sto, Com isso, a Revolugdo Francesa abre uma das questdes fundamentais para o pensamento politico moderno, a saber, como dar fornaa institucional para o poder instituinte proprio 4 soberania popular, pois, porque soberano, esse poder esté nasituagia de excesdo de secolocar ao mesmo tempo dentro le esté dentro porque, em condigdes normais, a ele se submete, ‘como todo poder soberano, pode suspender o ordenamemto jaridico a partir de sua vontade, ou seja, a partirdaconscién~ cla da inadequago entre a vontade populare a configuragao juidica atual. Essa suspensio, que no implica destruiglo do somes, €feita por meio de-uma certa *violacio politica dale, Antes de analisara natureza dessa viola fora do ordenamento juridico, 10, lambremos ainda que nao devemos compreender a ideia fundamental do direito 3 resistencia apenas comoo nticleo de cefe acon tra a dissolugio dos conjumtos liberais de valores (direito 4 propriedade, firmagio do individaatiamo etc), ssa estraté- gia liberal €equivocada. Na verdade, no interior do direito de resist@ncia, encontramos dela fndamental de que o blnpelo dda soberania popilar deve ser respondido pela detmonstragio sob nana da forga, Quiea democracia deva, por meio dessa questo, confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de“o problems do significado juridico de wma esfera de aco em si extvajuridica’, ou ainda, com a “existéneia de uma esfera da ago humana que escapa totalmente ao diseito™"" que ela deva, se confrontarcom usne esfera extrajuridica, mas nem por isso sfegal—eis algo claro. Devemos insistir aqui que, mesmo em sittagbes nas quis nao estamos dante de wm "Estado ilegal”, © problema da dissociagao entre Justiga ¢ Direito se coloca. UMA SOCIEDADE QUE TEM MEDO DA POLITICA Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violagio contra o Estado de Dieito ¢ inaceitivel. ‘Mas ¢ se, longe ser de um aparato monolitico, o Direito em sociedadeg democraticas for uma construg&o hereréclita, on quelleis de varios matizes convivem, formando um con- junto profundamente instivel e insegero? A Constituigito de 1988, por exemplo, nfo teve forsa pare mudar vésios 11 Agamben, Giorgi. Estado de ence. Sao Paul: Hoitempo, 1904, p24 46 | t | It I I t ispositivos lepais criados pela Constituigdo toraitiria de 1967. Ainda somos julgados por tais disposttivos. Nesse sentido, tado de Direito condighes para que exigéncias mais amplas de justiga se fagain sentir? Foi pensando om sitwagiies dessa uatuneza que Derrida afirmavi sex 0 Direito objeto possivel de uma desconstragio nilo seriam certas “violagées" do Es superestruturas que “oculian e ele que visa a expor a tem, 2o mesmo tempo, os interesse econdmices ¢ politicos forgas dominantes da socledade”.” Quem pode dizer tem sf consciéncia que tais forgas no agivam eager para da ccrinr, xeformar ¢ suspender o Dircito? Quem pode dizer em Si consciéneia que o embate social de forgas na deter- minagio do Direito termina necessariamente da manciva mais justa? Por isso, nonfum orfenamento juridlea pode falar em snome do povo. Ao contrisio, o ordenamente juridico de wins sociedade democrética reconbece sua propria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposigfo plena e permanenteda, soberania popular, A democracia admite, por essas razdes, ocariter “des- construtivel” do Direito, ¢ cla a admite pelo reconhecimento iolagio politica”, Pacifistas que sentam na frentede bases militares, 4 fim de impedir que armamentos sejam destozados (afvon tando assim a liberdade de cicculagio), ecalogistas que dagiiilo que poderiamos chamar de legalidade da" 1 Dervida, Jacques, opel, seguems navios cheios de lixo radicative a fim de impedir que ele seja despejaclo ino mar, trabathadores que faxem piquetes em frente a fabricas para criar situagoes que lhes, permitans negociar com mais forge exigencias de mefhoria, déecondigdes de trabalho, cidadtos que protegem imigeantes, sem-papéis, ocupagdes de prédios piblicos feitas em nome de novas formas de atuagao estatal, trabalhadores seme a que invaclem fazendas improdutivas, Antigona que enterra seu irmao: em todos esses casos, 0 Estado de Direito & que brado em nome de um embate em torno da justiga, No entanto, é gracas a ages como essas que din ampliados, que a nogo de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, com certeza nossa situacdo de exclusto social seria significativamente pier. Nesses momentos, encontramas 0 ponto de excesso da democracia em relagio ao Divito. ‘Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que nado é mais capar, de compreendé-los, é uma sociedade que pro- Los 0 cura reduzir a politica a um mero acordo referente as leis que temos¢ aos meios que dispomos para mudé-las (como sea forma atual da estrutura politica fossea melhor possivel se seleva em conta o que éo sistema politico brasileiro, pode- se claramente compreender o carater absurdo da colocagiia). No fundo, essa é ama sociedade que tem medo da poli tica e que gostaria de substituir a politica pela policia, A viola G40 politica nada tem a ver com a tentativa de destruigio fisica ow simbélica do aura, do opositor, como vemos na 48 statal contra setores descontentes da ropulagio la & antes, a forsa da urgencia de cwem golpes de Bstado. cexigtneias de justiga i Fi claro que se faz necessivio compreender melhor o que devemos chamrar aqui de "justica", Nao se trata de alguna forma de principio regulador posto, Certamente, a "justica” esth mais igada a experi@nicia material do bloqueio de reco: lecimento ¢ do sofsimento social em relagio as imposigdes prodazides pelas condigdes socioecondmnicas edisciplinares de nossas formas de vida, Hé de se perguntar qual a natu- 1624 do softimento social em questiio. No proximo capitulo, gostaria de fornecer uma interpretagdo para um regime de sofrimento social que tem forte importancia pelitica. Essa interpretagdo visa niio a reduair todus asdimensdesdo pro- Dlema, mas a fornecer uma dimensiio muitas exes negligen- ciada ¢incompreenciida De toda forma, notemos como a suspensiie da lei em nome do softimento sociel e do bloqueio de reconheci- ‘mento é qualitativamente distinta da suspens&c da lei feita por préticas toralitrias. A suspensio politica ¢a mancira de dizer que o Diteito se enfraquece quando 280 é mais Risso é feito a partirde outra espécie de “direito” (as aspas sdo de rigor) cm figura’, é capaz de reconhecer suas préprias limitagées. cujo fundamento, como dizia Lefert, “no marcado por um “excesso face a toda formulagie elutivada’, 0 que significa que sua formulagio comtém a exigencia de sua reformulagdo. & 36 assumindo esse excesso queademo- cracia pode existin Esse pomtode nxcesso em relagto ao ordenamento jut dico s6 conhece um limite: o limite de sua autodissolugio, Euma das maneiras de a soberanla popular se dissalver 6 por meio da estigmatizacao de partes da prépria populacio. Porexemplo, a nogdo de plebiscito tra sua legitimidade da ideia de que a soberania popular se manifesta como tata- lidade, Ou seja, totalidade da sociedade, que se organiza de zmiancira igualitéria, exprime sua vontade, Lets diserimina t6rlas contra grupos religiosos Facials, nacional ou sextais, no entanto, quebram a nogio de totalidade igualitdria da vida social, inaugurando uma légica de massacre de minorias, pela maioria, Por isso, tis lis nunca poderiam ser abjeto deum plebiscito, Um exemplo tragicamente interessante aqui fol dado pela Suiga, a0 aprovar por plebis ‘te uma lei que proibia a cons- trugio de minaretes em mesquitas muculmanas. Segundo os. helvéticos, esses minaretes representavam o desejo expan- sionisia ¢ beicista do Isl, Cartazes associando-os a miss foram espalhiadtos pelos Alpes. Com isso, a Suga quebrava a iddela de que todas as religides ¢ todos os crentes devem ter 0 mesmo tipo de tratamento pelo Estado (, se for para falar em. belicismo religioso, nenhuma reigizo passa no teste), Inacigu rava-se assim uma légice da soberania popular que se volta conta sua bas ou Se, contra a representago igualitéria da 50 sociedade. Quando tal repeesentagao desaparces, a soberania popula Feitn aressaiva, devemos insistirem quea esquerda no vita apenas uma maquina de destruigis social pode permitir que desaparega do horizonte de ago ama, exigéncia profunda de modernizagio politica que vise 4 instiruigdes, mas do proceso deci: xreforma, nfo apenas da sbrio e de partilha do poder. Agueles que exigem a criatividade politica em diregio a uma nido pode ser indiferente democracia rea. Ni deixa de ser dramético ver membros de ceria es certos de ques democracia exige instituigdes fortes: a democracia nilo exige um poder insti- sempre querda citando Tocquevill cuido forte e nfio deve depender de instituigdes qui funeionaram mal. Do ponto de vista institucienal, a demo~ totalmente diferente, de um poder insticuinte soberano & sempre presente, Ou seje, depence de um aprefimdamento da teansferéneia do poder para instincias de decistio popular tom nna plasticidade natural. Fla depende, e isso & que podem e devem ser convocadas de maneira continua, Estamos muito acostumados com a ideia de que a democracia realiza-se naturalmente como democrecia par- Tamentar, Iss0, no entanto, é falso, Una esquerda que nao tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parkamentar pela pulverizaglo de mecanismos de poder de participacao popu Jar diseta, Lembremos apenas que, com o desenvolvimento ” das novas midias, é cada vex. mais vidvel, do ponto de vista, material, corta “democracia digital” que perinita a imple mentagl Contra ideias desse porte, costumarn-seafirmar duas coi- ‘0 constante de mecanismos de consulta poplar. sas. A primeira ¢ a acusagio cléssica de assembletsmo ede Imobjlismo, Uma acusacio desse quitate chega aser hitariante Dado, por exemple, que o Congress Nacional brasileiro gasta até dez anos para votar certos projetos c implementar deci- ses, a pergunta que fica é: quem & mais imobilisea? A segunda acusagio, esta muito mais absurd, sem- pre feita pelos “defensores da democracia'", temerosos que uma democracia participativa soja, na verdade, uma forma de“totalitarismo plebiscivirio”. Até citagéies ao nazismo ¢ 20 fascismo sio evocadas nesse contexto, No entanto, elas, sio totalmente ridiculas, ou alguém imagina que Hitler fazia plebiscite popular para decidir como funcionariam os campos de conceniragio? Em uma democracia participativa,a propria nogio de lideranga ¢ condugdo (Fer) €comtestada, jf que as instancias de decisio passam, gradativamente, para as maos de um poder que no é nem 0 Executivo, nem o Legislative. Por isso, qualquer acusagdo de “chavismo” perdeo sentido quando oassunto éuma reflexto aprofundada sobrea modernizacio politica exigida pela superaca la democracte paslamentar. 0 verdadeiro desafio democratico consiste, desse modo, em instinacionalizar tal poder instinvinte,criando uma dindmica plebiscitésia de participagio popula, Tal dinamica 2 édosacreditada pelo pensamento conservador, pois ele pro- cura vender ideia inaereditével de que 0 aumento da participa cifo popular seri um vise @ democracia~ como se as formas atuais devepresentacae fossem tudo © que podemos esperar da vida democrética, Contra essa politica que tema nos tesignar as imperfeigbes da nossa democracia parlamentay, devemos dizer quea criatividade politica em diregao a sealizaco da democracia apenas comegou. Ha nnaito ainda porvi Como dizia Derrida, eis a azo pela qual sé podemos falar em democracia por vir, c nunca em democracia como algo gue se confunde com aconfiguragao atual do nosso Hstado de Direito, Contra os arautos do Estado democrético de Dik reito, que procuram nos resignar 2s imperfeigdes atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma demtocracia por vir, que s6 poderd ser alcangada se assumirmos, arealidade da saberania popular. Estas sto, pois, as chugs pernas de toda politica de esquerda que nfo teme dizer'sew nome: {gualizaviamo ¢ sobexania popula. Garanticos esses dois valores, por si mesma, 9 resto, como diz, Evangelho, vi PARA INTRODUZIR O NOVISSIMO DICIONARIO DOS LIDADE GALISTAS DA ILE Valea pena terminarestecapttulo discutindo uma sinuagdo, ecentea parvirda qual podenos reiletir sobre osusos atunis do "Bstado de Diveito”, Trata-se do golpe de fstado em Hon- duras, Foram visias as vor na embaixada brasileira ao presidente hondurenho deposto, criticas a decistio de dar asilo Manuel Zfaya,assiin como a decisdo de nvio reconhecer nem, © governo que o sucedea nem aquele que foi eeito depois “Ingeréncia indevida', “apoio a um cascunho de ditador", “subvengio a tentativa de desteuir 0 Estado democritico de Dizeito" foram apenas as acusagdes mais leves contra a atuacio brasileira, Segundo tais crticas, tudo se passou da seguinte forma ido pelo caudilhismo populista de Hugo Chavez, © presidente hondurenho decidira afrontar de mancica deliberada a Constituigfo ¢ as instituigges democrattcas de scu pais, tentando fazer passar um “golpe plebiscitério” que permitiria sta reeleigao. Contra tal atentado ao Estado: influenc democrati de Direito, o Congresso Nacional, juntamente com as Forgas Armadas, depuseram o presidente Zelaya, empossando o presidente do Congresso hondurenho até novas eleiges. Que esse novo gaverno teaha assassinado ¢ perseguide jornelistas ¢ opositores, fechado vidios ¢ ca~ nais de comunicagio que apoiavam o presidente deposto, reprimido violentamente manifestagdes, nada disso muda sua natureza demoeratica, pois tudo vale pata a defesa da “normalidade democrética", Seria interessante lembrar, no entanto, quea democracia seconhece claramente a possibilidade de issoviagio entre sa Justiga ¢ ordenamento juridico atual, ox soja, entre Direito ¢ Justica, Hla admite que eis atuais podem serinjusias e pas- siveis de modificagto por meio de mobilizagao popula, No caso de Hondusas, poderfamos perg:mtar quia demoerdtica é.uma fe} constitucional que eleva condigao de cléasula pétrea a impossibifidade de o pove modificar a maneira como ele prbprio 6 governado, Sea wontade po. pular é 0 poder instituinte de toda Constituigio demoeré- tica, tal lel equivale a dizer algo contraditéri como "nos, 6 povo, reconhecemos que nds, © povo, nilo poderemas mais decidir sobre a maneira por meio da qual nds, 0 povo, seremos governades" A questo relativa a Honduras diz muito azespeito da maneira como certos setores da vida nacional compreendemt © que 6, afinal, a democrceia, Digamos de modo elarosa ver dadeira democracia no é medida pela estabilidade de suas institnigdes ¢ suas regras. Afinal, quantas vezes a Franga (66 para ficar em um exemplo} mudou as regras de seu sistema leitoral ede seu sistema de partitha de poder? Quantas vezes aquele pais modificou o fumcionamento da institsisio presi dencial? Lemibremos conto mesmo a “estavel” Inglaterra de~ bate hoje modificagdes profuundas em seu proprio sistema, A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poderinstituinte popularde manifes- {ar-se¢ eriar novas regras e instituiges. No &s6 2m eleigbes que tal poder se manifesta. 144 uma plasticidade politica 35 propria vida democratica que s6 arautos do pensamento conservador compreendem como “i O plebiscito é simplesmente a esséneia furdarnental de toda vida democritica,¢ falar em “golpe plebiscitévio” é uma das, maiores aberragdes que se possa imaginar. O dia em que sseguranga jude um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, ento nossa nogio de democracia estard completamente esvaziada. Fla perder’ todo sex valor. De toda forma, & sintomético que bos parte daqueles gue se insungiram contra o plebiscito Londuzenlo nao tesa gritado "golpe de Estado” quando 0 governo de Fernando Henrique Cardoso passou, por nieio de compra de votos to Congresso Nacional, uma emenda constitucionel sprovando, arecleigao, Eles também fizeram questo de no lembrar ‘como muitos dos golpes militares na América Latina foram feitos sempre a partir da mesina acusagao de que o presi- dente estava colocando em risco a legalidade democritica. Foi assim no Chile de Salvador Allende, foi assim no Brasil de Joo Goulart (quando 0 Congressa Nacional declarou vazio o cargo de presidente, empossando, inicialmente, o presidente da Camara, Ranieri Mazzilli, que “governou" de 2.415 deabril de1964, antes de passar o governo aquele que {oi “eeito” pelo Congresso, o marechal Castello Branco}, Nao se trata aqui de usar tal problema juridico para apresentar uma defesa de Manuel Zelaya ou de seus patro- inadow +s, como Hugo Chavez. Talvez seja 0 caso de dizer 56 | t claramente que a alternativa chavista é apenas uma deriva populista ¢ bonapartista da esquerda, De fato, ¢ conceito de *populismo” existe e nao é apenas um dispositive de desquilificaco politica, embora muitas vezes seja usado apenas para isso, Populista 6 um governo profundamente personalists ¢ centralizaco euja figura do mancatério do Executive excarm o ideal de condugo, por isso, confunde-se coma figura de poder; é um governo incapax de permitiro descnvolvisnento de mecanismos de transferéneia do poder ademo- em dirogio & democracie direta, pois, nesse cas cracia direta € subordinada ao poder central. O populismo esquece que o verdadeino lider demacrético & aquele qu tem medo de expor sua propria efemeridade, sua propria contingéneia. 0 lider democratico € aquele que aos ensina como u cuntingencia pode habitar o cere do poder © exemplo hondurenho serve, na verdade, apenas para glosar una bela expresso que Theodor Adorno uma vez. cunhon para designar aqueles que se aferravam a leis 15 or isso i algo de pala cle mau gosto na afirmagto de que o Brasil conhocet, ence 3948 € 196, urns “replica populist. 6 mesmo wma hristoriografin reisionista, que visa a desqualicar 0 Gatco mauento oa isto brasilelra em que & participagan popular ft efeiva, pederia dizer algo dessa natureza, Nesse caso, nota-se como "populsta” nfo & rusade como desesigho analitca, mas como ina, Gostone qe alguns ny porulsias” ee que Joo Goulart enensnavn ideal de conduc quese confede com & csxplieasse, por exemplo, cnt que Duten ese e Fgura do poder estat claramente injustas, bradando-as quando setores da vida nacional procuravan anulé-tas: “legalistas da itegalidade’” A expressio, certamente, cabe para boa parte daqueles que crilicam a postura da diplomacia brasifeira no caso. Por fim, vale a pena fembrar que a nogio de soberania popular implica processo institucionalizado de tansfe~ racia de poderes em diregdo & democracia direta. Hle nao uma simples arma utilizada pelo Executive em situagies dle conflito de poderes, Sua melhor figura é 4 institucio- nalizag ser tomadas por meio da manifestagio direta da soberania popular Isso significa transferéacia de poder tanto do Legis- Jativo quanto do Executive. ‘o de decisSes que s6 poderiam, a partir de catio, Urn exeinplo valioso sto as declaragées de girerra. Na 4poca da Guesra do Aeganistio, enquuanta a maioria da popu lagtio eva contraria a iniciativa, o Parlamento espanhol apro- Ouseja, naquele momento, 6 Parlamento espanhol no representava povo~o mesmo povo que morreria devido as consequéncias da decisio do Parlamento. Em situagGes como esta, a decistio deveria pas sar para a democracia direta, ‘Outro exemplo ilustrative sto as questdes ligadas a decisdes de orgamento da Unitio, contragio de dividas em ‘you o envio de tropas aquele pa situagzo de grave crise (como caso da divida grega), que também deveriam passar para processos decisbrios ligados A democracia direta, Nesse caso, podemos pensar em uma 38 maneira de politizar a economia gracas a reeuperagio da nnagio de soberania popular. A Islandia tem algoa nos ensi- nar sobre isso, ‘Um dos primaivos patses atingidos pela crise econdmica de 2008, « Isléndia decidit: que © uso de dinheiro ptiblico para indenizat bancos seria objeto de plebiscite. resultado foi oapoio macigo ao cafote, Mesmo sabendo Cos vs preferiu realizar um prinefpio tal decisto, o pove islands bisico das lagio, é ela quem deve decidir 0 que fazer, e no um con juntd de tecnocratas que terdo sens empregos garantidos nos baricos, tampouco parlamentares cujas carapanhas sto Jberania popular: Se a conta vai para a popu financiadas por esses bancos. Como disse o presidente islandés, Olafur Ragnar Grimsson, “a Islandia é uma democracia, nfio nm sistema financeiro”. Alguns podertam contra-arguientar que é absurdo que decis6es de inegivel complexidade técnica pas- sem para a democracia direta. Bem, outros diciam apenas que quem paga a orquestea escolhe a mésica. lista uma boa mnaneira de se perguntar: afinel, no caso de nosso Fartamento cde nosso Executivo, quem paga a arquestea? ‘9 Do tempo das ideias | ‘Um bomem & uma coisa em que se aire fnas do ser humane, ‘Até que o ser bumano emerja das pawen OLE He knew that the prige of his intactness was incompleteness, scorn rrzcrRaLa Uma das questdes mais delicadas sobre a esquenda diz res- peito a stia mancira de lidar com o passado recente. Alain Radiou compreendeu bem que poderia enuncifla de uma maneira sucinta: 0 que significou o século xx? Ou seja, como compreender as experitncias de ruptura que marcaram a especificidade do século que passou? Longe de um simpfes problema histérico, al questio expdea maneiracomo nos vinculamos aos processos de efetivagio de uma ideta que, com certeza, ainda guarda seu comtetido de verdade, Porexemplo, ur dos mantras preferides do pensamento conservadoré a denimcia do século xx como aerada vioké cia brutal feita em nome das promessas de redengio da vida social. Come se houvesse uma linha necessiria einevitivel que inta da crsica da individualidade moderna ede reificagio 6 08 massacres de Pol Pot, sa que iia das lutas sindteais por justiga social aos gulags. Trata-se de impor, com isso, uma

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