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Rodrigo Kamimura
Arquiteto e urbanista, doutorando pelo Instituto de Arquitetura e
Urbanismo de São Carlos, Universidade de São Paulo (IAU-USP),
Av. Trabalhador São-Carlense, 400, Centro, CEP 13566-590, São
Carlos, SP, (21) 98229-0350, rodrigokamimura@yahoo.com.br
Nenhuma conclusão é inabalável, nenhuma passagem é rígida. (FERRO; LEFÈVRE, 2006, p. 36)
17 1[2013 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp
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Apresentação - Entrevista com Sérgio Ferro
Figura 1: Sérgio Ferro no social do trabalho e da separação entre trabalho constantemente a praxis arquitetônica, que deveria,
IAU/USP, outubro de 2012.
Fonte: foto de Paulo Cenevi-
intelectual e trabalho manual. analogamente, subsidiar a constante reavaliação das
va, Laboratório Midimagem, opções tomadas. “É com a consciência clara desta
IAU-USP.
Como resultado, desenvolveram seus projetos a situação-no-conflito que devemos atuar. A lógica
partir de indagações éticas, funcionais e construtivas, absoluta não pode ser nossa característica: mais
mais do que meramente formais. O sistema de que soluções reais, são problemas que levantamos”
abóbodas de tijolos, por exemplo – aprimorado em (FERRO; LEFÈVRE, 2006, p. 34).
diversas obras realizadas pelo grupo –, maximizava
o aproveitamento do concreto como material, Sob os ventos reformistas do pré-64 – e mesmo
explorava a lógica de distribuição e solicitação dos ainda em meio à nebulosa situação do pós-golpe –,
esforços na estrutura, contribuía para a organização as experiências realizadas para clientes particulares,
das etapas de trabalho e abrigava obra, operários e constituíram-se como arquitetura de laboratório
materiais com maior praticidade. Mais do que isso, (nas palavras do próprio Sérgio à época): visavam,
Ferro, Lefèvre e Império mantiveram o seu foco sobre a partir de soluções específicas, mostrar-se como
as relações de produção no canteiro, valorizando propostas concretas maiores em consonância
a horizontalidade do diálogo entre arquitetos e com uma “poética da economia”, “numa atitude
operários, o trabalho colaborativo, a interlocução de espera e estímulo de transformações sociais
entre conhecimentos técnico e prático. profundas” (FERRO; IMPÉRIO; LEFÈVRE, 2006, p.
39). Com o estreitamento político do final daquela
Concomitantemente à produção arquitetônica, os década, no entanto, Ferro e Império acabaram por
três arquitetos manifestam-se também textualmente, afastar-se progressivamente da prática arquitetônica
como no artigo Proposta inicial para um debate, tal qual a haviam ensaiado, legado ao qual Lefèvre
escrito por Ferro e Lefèvre para o caderno Encontros pôde ainda esboçar certa continuidade ao longo
GFAU, em 1963, e na coletânea de textos e projetos dos anos setenta; sendo que Ferro e Lefèvre,
publicada pela revista Acrópole, em 1965, já com a particularmente, participaram ainda em movimentos
participação de Império. Nestes escritos, enfatizam de resistência armada contra o regime militar, sendo
a necessidade da atividade crítica informando posteriormente presos e afastados da docência na
17 1[2013 transcrição
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Apresentação - Entrevista com Sérgio Ferro
FAU/USP. Em 1971, Sérgio Ferro se exila na França, 1964: o autoritarismo, se não interrompe, à primeira
onde vive até hoje. vista, os processos culturais em curso, pode alterar
o sinal que os precede: o quanto de “democrático”
Para elaborar o questionário desta entrevista, ou “progressista” pode haver no desenvolvimento
inserimos nossas preocupações na conjuntura política das forças produtivas per se, ou o quão “libertário”
e cultural do imediato pós-Brasília, e dos importantes pode ser de fato a coletivização dos mesmos, é algo
fatores que puderam ser extraídos desta experiência que ainda demanda reflexão. O que se sugere é que
que diz respeito não apenas à cultura nacional, mas há, aí, o embaraço e a apropriação de significados
à arquitetura moderna como um todo. O gigantismo atribuídos a diferentes opções políticas, da direita
da nova capital e a voracidade das transformações à esquerda, de coloração nacionalista ou não; um
sociais decorrentes daquele momento de aceleração imbróglio que podemos facilmente identificar na
econômica – os “50 anos em 5” de Juscelino conjuntura histórica imediata do pós-golpe, e em
Kubitscheck – mostraram, através da experiência seu subsequente e gradativo aprofundamento.
direta, as graves consequências sociais e urbanas
que deveriam passar a integrar a pauta dos debates As “metades” da década de 1960 parecem, assim,
promovidos por arquitetos e urbanistas. se complementar: na primeira, pré-64, as opções
se mostram com maior transparência, ao contrário
Mas há, também, outra condicionante (que não do embaralhamento que perpassa a segunda. O
deixa de estar relacionada à anterior): um crescente que nos remete, voltando ao nosso enfoque, ao
sentimento de crise institucional em largo espectro, problema da profissão do arquiteto e urbanista,
que repercute tanto na Europa quanto em terras sua relação intrínseca com o desenvolvimento
americanas, relacionados à série de acontecimentos social, sua inserção no mercado, a postura diante
do segundo pós-guerra. Crise que envolve fenômenos das encomendas que lhe são feitas. Remete ao
tão díspares quanto as Revoluções Chinesa (1949) e difícil casamento entre o plano político e o plano
Cubana (1959), o existencialismo e o estruturalismo cultural, à sua própria conformação e entrelaçamento
europeus, ou ainda a realização do 20º Congresso contraditórios, às difíceis opções tomadas por seus
do Partido Comunista da URSS (1956). E envolve atores, e suas decorrências.
também uma profunda revisão crítica do marxismo
internacional e, no plano local, polêmicas internas É nesse sentido que consideramos de fundamental
ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). importância o depoimento de Sérgio Ferro, cuja
obra teórica e prática contribui para que possamos
Finalmente, ressaltamos também a discussão lançar um olhar mais atento sobre este momento
considerando-se o confuso processo histórico de singular da arquitetura brasileira.
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