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transcrição Apresentação - Entrevista com Sérgio Ferro

Rodrigo Kamimura
Arquiteto e urbanista, doutorando pelo Instituto de Arquitetura e
Urbanismo de São Carlos, Universidade de São Paulo (IAU-USP),
Av. Trabalhador São-Carlense, 400, Centro, CEP 13566-590, São
Carlos, SP, (21) 98229-0350, rodrigokamimura@yahoo.com.br

Nenhuma conclusão é inabalável, nenhuma passagem é rígida. (FERRO; LEFÈVRE, 2006, p. 36)

A proveitamos a vinda de Sérgio Ferro ao Brasil para


a realização desta entrevista, em outubro de 2012.
vanguardismo do “Cinema Novo”. Ainda durante
a faculdade, Ferro e Lefèvre já recebiam as primeiras
O motivo da vinda de Sérgio foi a realização da encomendas profissionais, tendo inclusive elaborado
disciplina “Apontamentos sobre história da arte projetos para a nova capital federal, como os edifícios
e da arquitetura: Renascimento, Modernismo e “Goiás” e “São Paulo” (1960). Anos mais tarde,
Brasil”, promovida pelo Instituto de Arquitetura e em 1965, Ferro, Lefèvre e Império estabelecem
Urbanismo de São Carlos da Universidade de São escritório próprio na Rua Marquês de Paranaguá,
Paulo (IAU/USP). Na ocasião, o arquiteto, pintor e lugar que se torna ponto de encontro de artistas,
professor pôde discorrer sobre temas pertinentes intelectuais e futuros militantes.
à pintura e à arquitetura, desde o Renascimento
italiano, passando pelo modernismo, até o período Trabalhando e escrevendo ora individualmente, ora
contemporâneo. A perspectiva de Sérgio é clara: em grupo, o trio busca, através de sua obra, propor
analisar a obra de arte a partir das complexas não só uma reflexão, mas também um projeto de
relações sociais que envolvem o seu processo de ação, com relação aos caminhos do desenvolvimento
produção, a divisão social do trabalho, e também o nacional que se encontram em aberto naquele
caráter emancipador inerente à atividade artística, momento. Como um primeiro exemplo, nesse
manifestação suprema do trabalho livre. sentido, podemos citar o projeto de Ferro para a
residência do historiador Boris Fausto, construída em
Nesta entrevista, voltamos nosso interesse para 1961 no Butantã. A montagem de peças leves pré-
as questões históricas envolvendo arquitetura, fabricadas adaptadas a uma modulação estrutural
política e sociedade durante a década de 1960 rígida demonstra a preocupação com a racionalização
no Brasil – mais especificamente na cidade de São da construção e a utilização de uma linguagem
1 Agradeço especialmente a Paulo 1. Dentro deste contexto, a atuação de Ferro simples e funcional. Já a residência de Bernardo
Ediane Ferro pela viabiliza-
é rica em significados, fomentando um intrigante Issler, do mesmo ano, revela uma preocupação
ção desta entrevista, que é
subsídio para nossa tese de questionamento do papel desempenhado pelo que viria a ser central principalmente para Ferro e
doutorado no IAU/USP. O
arquiteto e urbanista em meio à particular conjuntura Lefèvre: a otimização de sistemas construtivos de
trabalho, em desenvolvimen-
to e com supervisão da profª. política e econômica pela qual passava o país, às baixa tecnologia com emprego de mão-de-obra
assocª. Cibele Saliba Rizek,
voltas com o fatídico golpe de 1964. intensiva. A partir destas e de outras experiências,
conta ainda com o apoio da
Fundação de Amparo à Pes- Ferro, Lefèvre e Império puderam empreender um
quisa do Estado de São Paulo
Formado em 1961 pela FAU/USP, Ferro, junto rigoroso e contínuo questionamento que extravaza
(FAPESP).
aos colegas de faculdade Rodrigo Lefèvre e Flávio os limites tradicionais da prática arquitetônica, ao
Império, foi responsável pela produção arquitetônica confrontar as violentas condições de exploração
que ficaria posteriormente conhecida pela alcunha presentes nos canteiros de obras, e também o papel-
de “Arquitetura Nova” – título do texto que Ferro chave desempenhado pela figura do arquiteto – e
escreveria posteriormente para a revista Teoria a da própria arquitetura como disciplina – para a
e Prática, em 1967, e referência evidente ao manutenção e legitimação da dominação, da divisão

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Apresentação - Entrevista com Sérgio Ferro

Figura 1: Sérgio Ferro no social do trabalho e da separação entre trabalho constantemente a praxis arquitetônica, que deveria,
IAU/USP, outubro de 2012.
Fonte: foto de Paulo Cenevi-
intelectual e trabalho manual. analogamente, subsidiar a constante reavaliação das
va, Laboratório Midimagem, opções tomadas. “É com a consciência clara desta
IAU-USP.
Como resultado, desenvolveram seus projetos a situação-no-conflito que devemos atuar. A lógica
partir de indagações éticas, funcionais e construtivas, absoluta não pode ser nossa característica: mais
mais do que meramente formais. O sistema de que soluções reais, são problemas que levantamos”
abóbodas de tijolos, por exemplo – aprimorado em (FERRO; LEFÈVRE, 2006, p. 34).
diversas obras realizadas pelo grupo –, maximizava
o aproveitamento do concreto como material, Sob os ventos reformistas do pré-64 – e mesmo
explorava a lógica de distribuição e solicitação dos ainda em meio à nebulosa situação do pós-golpe –,
esforços na estrutura, contribuía para a organização as experiências realizadas para clientes particulares,
das etapas de trabalho e abrigava obra, operários e constituíram-se como arquitetura de laboratório
materiais com maior praticidade. Mais do que isso, (nas palavras do próprio Sérgio à época): visavam,
Ferro, Lefèvre e Império mantiveram o seu foco sobre a partir de soluções específicas, mostrar-se como
as relações de produção no canteiro, valorizando propostas concretas maiores em consonância
a horizontalidade do diálogo entre arquitetos e com uma “poética da economia”, “numa atitude
operários, o trabalho colaborativo, a interlocução de espera e estímulo de transformações sociais
entre conhecimentos técnico e prático. profundas” (FERRO; IMPÉRIO; LEFÈVRE, 2006, p.
39). Com o estreitamento político do final daquela
Concomitantemente à produção arquitetônica, os década, no entanto, Ferro e Império acabaram por
três arquitetos manifestam-se também textualmente, afastar-se progressivamente da prática arquitetônica
como no artigo Proposta inicial para um debate, tal qual a haviam ensaiado, legado ao qual Lefèvre
escrito por Ferro e Lefèvre para o caderno Encontros pôde ainda esboçar certa continuidade ao longo
GFAU, em 1963, e na coletânea de textos e projetos dos anos setenta; sendo que Ferro e Lefèvre,
publicada pela revista Acrópole, em 1965, já com a particularmente, participaram ainda em movimentos
participação de Império. Nestes escritos, enfatizam de resistência armada contra o regime militar, sendo
a necessidade da atividade crítica informando posteriormente presos e afastados da docência na

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Apresentação - Entrevista com Sérgio Ferro

FAU/USP. Em 1971, Sérgio Ferro se exila na França, 1964: o autoritarismo, se não interrompe, à primeira
onde vive até hoje. vista, os processos culturais em curso, pode alterar
o sinal que os precede: o quanto de “democrático”
Para elaborar o questionário desta entrevista, ou “progressista” pode haver no desenvolvimento
inserimos nossas preocupações na conjuntura política das forças produtivas per se, ou o quão “libertário”
e cultural do imediato pós-Brasília, e dos importantes pode ser de fato a coletivização dos mesmos, é algo
fatores que puderam ser extraídos desta experiência que ainda demanda reflexão. O que se sugere é que
que diz respeito não apenas à cultura nacional, mas há, aí, o embaraço e a apropriação de significados
à arquitetura moderna como um todo. O gigantismo atribuídos a diferentes opções políticas, da direita
da nova capital e a voracidade das transformações à esquerda, de coloração nacionalista ou não; um
sociais decorrentes daquele momento de aceleração imbróglio que podemos facilmente identificar na
econômica – os “50 anos em 5” de Juscelino conjuntura histórica imediata do pós-golpe, e em
Kubitscheck – mostraram, através da experiência seu subsequente e gradativo aprofundamento.
direta, as graves consequências sociais e urbanas
que deveriam passar a integrar a pauta dos debates As “metades” da década de 1960 parecem, assim,
promovidos por arquitetos e urbanistas. se complementar: na primeira, pré-64, as opções
se mostram com maior transparência, ao contrário
Mas há, também, outra condicionante (que não do embaralhamento que perpassa a segunda. O
deixa de estar relacionada à anterior): um crescente que nos remete, voltando ao nosso enfoque, ao
sentimento de crise institucional em largo espectro, problema da profissão do arquiteto e urbanista,
que repercute tanto na Europa quanto em terras sua relação intrínseca com o desenvolvimento
americanas, relacionados à série de acontecimentos social, sua inserção no mercado, a postura diante
do segundo pós-guerra. Crise que envolve fenômenos das encomendas que lhe são feitas. Remete ao
tão díspares quanto as Revoluções Chinesa (1949) e difícil casamento entre o plano político e o plano
Cubana (1959), o existencialismo e o estruturalismo cultural, à sua própria conformação e entrelaçamento
europeus, ou ainda a realização do 20º Congresso contraditórios, às difíceis opções tomadas por seus
do Partido Comunista da URSS (1956). E envolve atores, e suas decorrências.
também uma profunda revisão crítica do marxismo
internacional e, no plano local, polêmicas internas É nesse sentido que consideramos de fundamental
ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). importância o depoimento de Sérgio Ferro, cuja
obra teórica e prática contribui para que possamos
Finalmente, ressaltamos também a discussão lançar um olhar mais atento sobre este momento
considerando-se o confuso processo histórico de singular da arquitetura brasileira.

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