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Vozes do Cárcere.

Resenha: Capítulo 12 - Teatro da Estereotipia Feminina: a ordem das

domesticidades e do racismo institucional.

Numa tentativa de expor em base de que a subjetividade de mulheres encarceradas


é construída, o referido capítulo do artigo explana o crescimento do encarceramento de
mulheres no Brasil nas últimas duas décadas e também nos traz à provocação de como as
vozes de mulheres negras de alguma maneira foram apagadas ou diminuídas em
comparação aos dados estatísticos sobre o encarceramento. Percebe-se como é
demarcado o sujeito feminino nas narrativas explanadas: em um modelo universal de
humanidade baseado em experiência de mulheres brancas - quase que sem recortes de
raça (numa sociedade brasileira composta por diversas raças) ou quaisquer outros, como o
de identidade de gênero, por exemplo - simbolizada sobre a imagem de controle e opressão
da mulher (baseada num modelo universal) que é retroalimentado pelo próprio Sistema de
Justiça Criminal.

O que se provoca não é problematizar essas narrativas em si, mas compreender o


funcionamento e produção da dominação classista, sexista e racista do Sistema de Justiça
Criminal do ponto de vista de quem é dominada por esse, fazendo-se enxergar como
reagem a essa dominação.

Em um dos seus subtópicos, o artigo faz a menção à discrepância entre o percentual


de mulheres negras em relação às mulheres brancas no sistema prisional e à menção da
raça nas cartas analisadas (em que 29 autoras das cartas se declaram brancas ; 16,
pardas; 4 pretas; 2 negras; e 1 se autodeclara indígena) é interessante perceber que,
embora as estatísticas apontem que a maioria das mulheres em cárcere são negras, as
poucas cartas em que as protagonistas mencionam a raça a qual pertencem, na
esmagadora maioria se autodeclararam brancas. Sob essa ótica, o texto revela: para as
autoras das cartas, não é conveniente que se declare a raça que pertencem, sobretudo, se
forem negras, ou seja, ao escrever para um sistema que , majoritariamente, reproduz ideias
racistas, se autodeclarar negro não é um mecanismo favorável para obter o acolhimento de
seus pedidos. Em contrapartida, fazer referência à maternidade e ao cuidado de terceiros
torna-se uma ferramenta muito mais proveitosa para atingir esses fins.

Sob essa interpretação, as mulheres privadas de liberdade se intitularam como


brancas mesmo sendo no geral pretas e pardas, o que leva a uma indagação: por qual
razão elas se autodeclaram como a etnia mais privilegiada? Isso porque numa sociedade
racista e sexista que enxerga mulheres negras como agressivas e ladras, é mais vantajoso
se colocar na posição de uma branca para alcançar mais apreciação do outro em geral.
Ademais, a mulher caucasiana é vista com mais delicadeza, como uma cuidadora nata,
enquanto as negras e pobres são constantemente lidas como incapazes de constituir
família, sendo reduzidas a sexualização e agressividade. Sendo assim, as mulheres
privadas de liberdade em suas cartas escrevem se pondo nesse modelo de maternidade e
domesticidade, pois a população impõe um determinado padrão e isso faz com que as
mesmas exerçam esse papel para obter algum tipo de consideração, a qual é negada
desde os primórdios para os alvos do cárcere: pretos e pobres.
Este cenário repete-se quando se analisa a autodeclaração de estado civil, ainda
que os dados apontem que a grande maioria das encarceradas são solteiras, aquelas que
optam por mencionar seu estado civil, revelam estarem casadas ou em união estável. Mais
uma clara tentativa de encaixe nos estereótipos coloniais e discriminatórios do sistema a
que se destinam os relatos. É importante ressaltar que os conteúdos das cartas estão
extremamente centrados na ideia de cuidado de terceiros e de vínculo familiar, em 24% das
cartas há um pedido expresso de cuidado a terceiros.

Portanto, observamos que uma das grandes problemáticas encontra-se na


reprodução por parte da sociedade e do Sistema de Justiça Criminal, de um modelo de
"normalidade", de uma categoria que é caracteristicamente não punível. Tal entendimento,
sufoca as diferenças para exaltar uma categoria universal feminina inexistente, contribuindo
para estigmatizar e invisibilizar tantos outros tipos de expressões femininas, principalmente
em um corpo social como brasileiro, dotado em sua essência de pluralismo cultural e racial.
Um relato que chama atenção é o de uma autora de 16 cartas, que foi presa grávida, teve o
filho na prisão e ficou com ele durante 10 meses. Onde devido às péssimas condições a
que estavam submetidos o filho veio a falecer. Nesse caso podemos observar que para
além de retirada a liberdade lhe foi amputada a função social de cuidar do filho, nesse caso
surge uma pergunta: como falar de ressocialização de pessoas que são completamente
desumanizadas por um sistema prisional corrompido?

O ambiente prisional é expressivamente cruel para com as mulheres presas, sobretudo nas
penitenciárias mistas, uma vez potencializadas as sobrecargas de privações e as dores
prisionais considerando a precarização dos espaços que lhes são destinados, bem como
pelas restrições que são impostas em termos de utilização e acesso a estes espaços que
exigem, por parte das reclusas, o desenvolvimento de estratégias de adaptação a estes
contextos que acabam por se encaixar nas dinâmicas que reproduzem os parâmetros de
dominação masculina existentes na sociedade extramuros. A título de exemplo, o artigo
mostra um relato de uma mãe que fala sobre as torturas aplicadas a seu filho pelos agente
penitenciários e de como ele o encontrou submetido a responsabilidade do Estado: morreu
pela meningite numa caixa plástica, nu com várias lesões no pescoço e rosto, além de estar
com os pés e bocas amarrados. Através desse relato pode-se observar como o sofrimento
causado pelo sistema prisional perpassa os muros das cadeias, como esse sofrimento é
direcionado.

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