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II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”

Por uma História da África Pré-Colonial: algumas considerações1


Júlio César Cossio Rodriguez2

1. Introdução

A História da África, anterior ao mercantilismo e após o período pré-histórico,


encontra-se em um momento de “redescoberta”, no Brasil, devido a uma imposição legal, a
partir da obrigatoriedade de inserção da História da África nos currículos escolares. Esta
situação remete a um problema historiográfico, sobre o qual o artigo pretende tecer algumas
considerações. A História da África foi nitidamente construída a partir de sua relação a
outrem – desta forma questões racistas podem ser consideradas dificuldades para um estudo
da África Pré-Colonial. Outra dificuldade historiográfica é o acesso a fontes, devido a
problemas climáticos de conservação de vestígios arqueológicos e a dificuldade de encontrar
documentos escritos, tanto de viajantes árabes como de viajantes de outras regiões, como da
China. E, ainda, o atual conflito entre as diferentes correntes teóricas, torna-se uma
dificuldade, mas ao mesmo tempo uma possibilidade, para a História africana do período em
questão - devido à importância de relatos orais e da tradição oral dos griots africanos. Além
do problema teórico da imposição de conceitos (normalmente construídos para a Europa)
realizada por muitos estudiosos, os quais não percebem a historicidade dos próprios conceitos
e a necessidade de problematizá-los (e não impô-los) para a História da África.
A necessidade de estudo deste período histórico é notável, mas a precariedade das
pesquisas, das publicações, das fontes, além das questões teóricas que permeiam este estudo,
conferem uma dificuldade única ao estudo da História da África, que pode ser chamada de
Pré-Colonial. A importância do artigo é levantar o debate em torno da necessidade de
pesquisas mais efetivas sobre este período da História africana, para que este possa ser um
campo de estudo próprio e único. Há no Brasil um interesse, de extrema importância, de
1
Artigo a ser apresentado na Seção de Iniciação Científica do “II Congresso Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional”.
2
Acadêmico do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço
eletrônico: juliocossio@gmail.com

1
alguns centros de estudo a respeito da História da África, porém, estas pesquisas (em sua
grande maioria) se referem ao período colonial deste continente, devido ao estudo da
escravidão africana no Brasil. No entanto, a relação entre o Brasil e a África está além da
escravidão (apesar da inquestionável relevância dos estudos referentes à escravidão), devido
às origens (re-significadas) étnicas e culturais do povo brasileiro, eminentemente, ligadas à
África. Também, a importância do conhecimento da História da África Pré-Colonial está na
necessidade de visibilidade desta por uma História Geral.

2. A importância e as dificuldades dos estudos acerca da África Pré-Colonial

É notável o conhecimento histórico que foi produzido ao longo dos séculos a respeito
das mais diversas regiões do planeta, com diversos intuitos – a partir de seus contextos.
Atualmente, estes estudos tendenciam para compreender uma História Geral, buscando as
relações entre as regiões e as temporalidades – mesmo as relações de descontinuidade,
conforme sugere Foucault (2004). No entanto, se faz necessária uma reflexão sobre a
abrangência desta História Geral, pois, ainda hoje, há a respeito de algumas regiões do mundo
e em determinados períodos um evidente desconhecimento, como, por exemplo, a África,
principalmente em seu período que pode ser chamado de pré-colonial.3 E deve-se perceber,
nitidamente, a importância de pesquisar e ampliar os estudos desta região, como propõe
Joseph Ki-Zerbo:
(...) por que esse retorno às fontes africanas? Enquanto a busca desse
passado pode ser, para os estrangeiros, uma simples curiosidade, um
exercício intelectual altamente estimulante para a mente desejosa de
decifrar o enigma da Esfinge, o sentido real dessa iniciativa deve
ultrapassar tais objetivos puramente individuais, pois a história da
África é necessária à compreensão da história universal (sic), da qual
muitas passagens permanecerão enigmas obscuros enquanto o
horizonte do continente africano não tiver sido iluminado. Além
disso, no plano metodológico, a execução da história da África de

3
Há entre os historiadores da África e africanistas um debate sobre a denominação que deve ser utilizada para se
referir ao período histórico africano anterior a chegada dos colonizadores europeus. Pierre Bertaux considera o
período como África Proto-Histórica, enquanto Joseph Ki-Zerbo divide o período compreendido entre 3500 a.C
– 1500 em 4 denominações: África Negra Antiga (3500 a.C – 0 a.C), Séculos Obscuros (Séc I – VI), Dos Reinos
aos Impérios (Séc VII – XII), Grandes Séculos (Séc XII – XV). E a denominação pré-colonial é freqüentemente
utilizada por africanistas para definir o período que se estende entre 3500 a.C – 1500 d.C). Utilizar-se-á a
classificação africanista para facilitar a identificação do período que será tratado neste trabalho. Além disso,
passar-se-á a considerar África à parte do continente chamada de Subsaariana ou Negra, pois sobre a história da
África chamada de Branca ou do Norte há uma outra construção historiográfica que não será tratada neste
presente trabalho.

2
acordo com as normas estabelecidas neste volume4 pode confirmar a
estratégia dos adeptos da história total, apreendida em todos os seus
estratos e em todas as suas dimensões, por todo o arsenal de
instrumentos de investigação disponíveis.
(KI-ZERBO, 1982, p.41).
Há um aumento nas publicações e pesquisas a respeito da História da África, porém
estas publicações, em sua maioria, tratam do período pós-1500. Este fato pode ser
considerado um grande avanço para a historiografia africana recente, no entanto é
insuficiente, pois ainda não incorpora de forma significativa o estudo do período pré-colonial
africano. Alegando diversas dificuldades, a História da África, deste período, pode ser
considerada esquecida pelos quais não poderiam esquecê-la, como afirma Anderson Ribeiro
Oliva:

Em certa medida, essa recente atenção dedicada à África tem (...)


outros motivos apontados por caminhos já percorridos por alguns
trabalhos: a formação de pesquisadores a partir de alguns núcleos de
pesquisas em história da África existentes no país; a fusão cada vez
maior de investigações acerca do tráfico de escravos com o chamado
Mundo Atlântico e conseqüentemente com a África; o crescimento do
número de publicações internacionais sobre a história do continente;
por fim, a maior visibilidade de nossa ignorância sobre a África,
evidenciada em momentos como o vivido há um ano, quando o
governo sancionou uma lei tornando obrigatório o ensino da história
da África nas escolas brasileiras. Mas tudo isso é resultado de ações
não muito distantes do presente, pois, não faz muito tempo, a África
transitava no esquecimento daqueles que têm por ofício lembrar o que
todos esqueceram: os historiadores. (OLIVA, 2004, p. 10).

Dentre as principais dificuldades está a falta de documentos escritos, o que confere a


História da África uma problemática única, pois para ser possível escrever sua história se faz
necessária a aceitação da tradição oral como uma fonte válida. A aceitação deste novo
paradigma pela historiografia africana (destaca-se que a História Oral pode ser entendida
como método, fonte, técnica ou teoria) é pioneira na historiografia mundial como afirma Ki-
Zerbo:

A tradição oral é uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra


bem estabelecida e que confere à história do continente africano uma
notável originalidade (KI-ZERBO, 1982, p.31).

4
Citação retirada do primeiro volume da coleção História Geral da África: Metodologia e pré-história da África,
em que o organizador Joseph Ki-Zerbo e diversos pesquisadores africanos e africanistas definem a metodologia
que será utilizada no desenvolvimento da obra que em inglês está composta por oito volumes, enquanto em
português só foram traduzidos quatro volumes.

3
Com relação às fontes, cita-se, ainda:

Antes de intentar trazar un panorama de esta protohistoria (que se


extiende a menudo hasta comienzos del siglo XIX) no está de más
describir brevemente el estado de las fuentes y recursos con los que
puede contar el historiador de África. Son de un triple orden: la
arqueología, la tradición oral y (muy raramente) el
archivo.(BERTAUX, 1980, p.1)

A compreensão das formações sociais que habitaram a África Negra no período pré-
colonial relaciona-se muito ao estudo dos relatos orais. Isto porque estas podem ser chamadas
de civilizações orais, pois reconhecem a fala não apenas como um meio de comunicação, mas
como uma forma de preservação da sabedoria dos ancestrais. Sobre estes relatos orais,
Bertaux observa que:
La crônica, transmitida generalmente por vía oral, es un recurso del
que no puede prescindir el historiador. Por incierto que sea su valor,
no puede pasarse sin su auxilio. Una tradición puede conservarse
asombrosamente durante siglos; a menudo en África, castas
profesionales que son la memoria social del grupo se transmiten de
generación en generación poemas que los griots5 recitan
periódicamente, acompañado su melopea con rasgueos de guitarra.
(BERTAUX, 1980, p.2)

Portanto, a escrita da história africana deste período requer uma aceitação desta
tradição oral como principal fonte histórica, o que para os historiadores modernos é
compreendido como aceitação ou adoção de princípios de uma nova corrente teórica, a
corrente pós-moderna, pois se baseia em uma maior subjetividade e disso decorrem muitos
debates e muitos embates, o que torna ainda mais difícil a escrita de uma história africana,
mesmo assim, como afirma Paul Thompson:

(...) o material de fontes orais é abundante. Ele tem sido


sistematicamente utilizado por historiadores da África desde a década
de 1950, com uma metodologia cada vez mais elaborada, inclusive
com o desenvolvimento de técnicas especiais para fixar as
cronologias das tradições orais, que muito freqüentemente remontam
ao século XVI e, em alguns casos, até mais longe. (...) Ironicamente,
a pura criatividade exigida para estabelecer os modelos elementares
de povoamento e de poder político na África pré-colonial, a partir de
fontes orais, parece ter impedido que se apliquem energias na

5
São chamados de griots os detentores da tradição oral, senão historiadores orais.

4
exploração potencial equivalente que elas possuem para o
desenvolvimento da história social africana” (THOMPSON, 1978, p.
120 e 121).

Há ainda o escasso recurso de fontes escritas, que em alguns momentos ficam restritas
a crônicas de viajantes árabes, como, por exemplo, os relatos de viagem de Ibn Battuta (1304-
1369), conhecido como Leão, o africano, ou ainda os escritos do historiador Ibn Khaldun
(1332-1406), que por muitos africanistas é considerado o “pai da história”. Além de outros
registros como o Ta’rikh al-Sudan e o Ta’rikh el-Fattash escritos no Tombuctu, que estão
com sua conservação ameaçada devido ao alto custo desta, como destaca o jornal francês Le
Monde Diplomatique do mês de Agosto de 2004:

Parviendra-t-on à sauver les précieux manuscrits de Tombouctou ?


Pour préserver ce fabuleux patrimoine, 4,5 millions d’euros sont
nécessaires. Une somme soixante fois inférieure à l’augmentation de
capital que vient de réclamer Disneyland Paris à ses actionnaires pour
renflouer son parc d’attractions (...) (LE MONDE DIPLOMATIQUE,
2004, p.16).

Além destes problemas historiográficos, há a dificuldade de acesso aos sítios


arqueológicos, devido às inúmeras guerras contemporâneas que assolaram o continente
africano, o que permitiu a instalação de minas terrestres em diversas regiões da África,
principalmente na região do Zimbábue. Certamente, nesta região, uma grande parte dos
vestígios arqueológicos que poderiam reconstituir parte da história desta civilização estão
fadados ao desaparecimento. Outro problema encontrado com fontes arqueológicas da África
subsaariana é o estado de conservação destas, pois logo após o deserto existe uma savana e
uma floresta tropical, que com sua grande umidade permite que apenas alguns tipos de
vestígios sejam mantidos, o que, também é danoso para a reconstituição parcial das
civilizações centro-africanas. Estes problemas com a arqueologia na África dificultam a
captação de recursos, pois as expedições encontram dificuldade de acesso e ainda escassez de
vestígios, além da dificuldade de datação destes, estes fatores encarecem de forma
significativa qualquer expedição e se não forem financiadas por governos locais ficam
restritas a expedições privadas. A importância da redescoberta da História Africana Pré-
colonial se faz necessária para que seja possível que novas expedições saiam em busca do
desconhecido no interior africano.
O conjunto destas dificuldades de redescoberta da história da África Negra Pré-
colonial faz com que esta ainda seja vista como algo enigmático e desconhecido e, por isso, é

5
fundamental o avanço e a ampliação das pesquisas acerca desta temática para que seja
possível a compreensão, por exemplo, de como esta história é re-significada no Brasil
Colonial e Imperial pelos escravos trazidos de diversas regiões africanas (e seus
descendentes). Basil Davidson, citando Heinrich Barth (1870), resume a dificuldade de
escrever a história deste continente no período anterior a chegada dos portugueses:

Qualquer autor que tente recuperar da obscuridade e do olvido as


idades passadas de uma nação iletrada e apresentar ao seu público um
esboço, ainda que elementaríssimo, da sua história, terá
provavelmente que esbarrar contra os preconceitos enraizados de
numerosos críticos, acostumados a recusar credibilidade a tudo o que
não é ainda capaz de investigação mais rigorosa. (DAVIDSON, 1977,
p.17).

Referindo a passagem acima Basil Davidson completa:

Sensatas e prescientes quando escritas, estas palavras continuam a ser


aplicáveis, ainda hoje, à elaboração da história africana, ainda que os
cépticos sejam menos numerosos e menos confiantes do que o eram
há cem anos. (...) Esta redescoberta da África, de facto, leva-nos ao
reconhecimento da unidade essencial dos povos africanos com os
povos do resto do mundo. As ilhas perdidas da humanidade africana
começam a reunir-se ao continente. (DAVIDSON, 1977, p. 19).

Basil Davidson ressalta outra dificuldade em se escrever a história da África Negra – o


racismo, que preconceituosamente, durante os séculos, negou a este continente a capacidade
de ser considerado agente de sua história, para que pudesse ser completamente subjugável.
Não é por acaso que as construções históricas acerca da África anterior aos colonizadores
europeus encontraram muita resistência até em meados do século XX, pois não dar direito a
um continente de ter história e, considerar, eurocêntricamente, todas as formações sociais
incapazes de ter história anterior à chegada dos portugueses é ideologicamente explicável
devido aos interesses materiais por parte dos colonizadores. É notavelmente mais justificável,
para os colonizadores, a subjugação dos “sem história”. Cita-se:

(...) em 1958, Sir Arthur Kirby, Alto-Comissário em Londres da


África Oriental Britânica, podia dizer à secção de Torquay da Liga do
Ultramar: nos últimos sessenta anos – pouco mais do que a vida de
muitas das pessoas presentes nesta sala – a África Oriental começou
a evoluir a partir de uma fase inteiramente primitiva, em muitos
aspectos mais atrasada que a Idade da Pedra... Segundo este ponto
de vista os africanos nunca tinham produzido civilizações próprias; se

6
é que possuíam uma história, era de tal ordem que mal valeria o
esforço de a contar. Esta crença de que os africanos tinham vivido
num caos ou numa estagnação universal até a chegada dos europeus,
não só parecia encontrar justificativa num milhar de histórias, que
revelavam a miséria mais selvática e a mais primitiva ignorância: era
também, é claro, estupendamente conveniente numa época de
imperialismo em expansão. (DAVIDSON, 1977,p.14).

A partir desta ótica que, até recentemente, era vista a História da África. E se hoje há
uma mudança significativa neste preconceito ela ainda não se reflete na quantidade de
publicações e pesquisas científicas a fim de findar com esta lógica. Se faz necessária uma
escrita da história de forma como pouco se fez acerca deste continente: sem imposição de
conceitos6, respeitando o processo histórico e a dinâmica da história própria deste continente,
sem que ele seja tratado a partir da lógica eurocêntrica de construção da história. A afirmação
de Davidson ressalta esta necessidade de uma outra escrita da História da África:

Podia-se argumentar e ainda se argumenta que estes povos sem


história eram naturalmente inferiores, ou que eram crianças que ainda
têm de crescer (...) que necessitavam de ser governados por outros
povos que já tivessem crescido. (DAVIDSON, 1977, p.14).

Com relação ao combate ao eurocêntrismo, cita-se, ainda:

(...) há alguns conteúdos fundamentais propostos nos novos PCNs —


especialmente a ênfase na história da África — que, infelizmente,
ainda engatinham como área de discussão e pesquisa nas nossas
universidades, impondo-se como limite ainda maior ao esforço
pedagógico que pode ser feito para uma abordagem que rompa com o
eurocentrismo que ainda estrutura os programas de ensino das
escolas. (MATTOS, 2003, p.131).

Tendo em vista uma revisão bibliográfica restrita ao acesso a algumas fontes


disponíveis em português, além de pesquisas feitas ao conjunto de periódicos disponíveis para
consulta acadêmica através da internet no portal dos periódicos da Capes, que são
disponibilizados pelo governo brasileiro, nota-se a escassez de bibliografia recente a respeito
da história da África subsaariana pré-colonial. Dentro do conjunto de livros e do conjunto de
artigos que são publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, o número de
artigos que tenham como temática o continente africano em seu período anterior ao século
XV são raros, quando não inexistentes. Portanto, a produção acadêmica sobre este tema é

6
Respeitando a historicidade dos conceitos, utilizando-os como re-problematização e não como imposição –
conforme sugere E. P. Thompson (1981).

7
quase inexistente no país e esta ainda em sua fase inicial no mundo. No Brasil o que há de
mais significativo em pesquisas a respeito de história da África, mas considerando-a
incorporada ao que podemos chamar de Mundo Atlântico, são os estudos relativos à
escravidão negra e suas relações com a história do Brasil.
Predomina na historiografia brasileira um enfoque que restringe os estudos do período
anterior à escravidão. Pode-se explicar isto devido aos problemas já mencionados (com
relação às fontes, ao racismo, ao eurocêntrismo), presentes não só no Brasil, os quais
dificultam a construção de uma historia africana anterior ao período colonial. No entanto, no
Brasil, os estudos deste período têm sua importância ressaltada, não só para uma História
Geral, mas para a História do Brasil. Isto porque, a escravidão é um recorte espacial e
temporal que relaciona a África e o Brasil, no entanto os processos destas regiões que se
interligam, e suas explicações, não podem restringir-se ao recorte da escravidão. Ou seja, as
continuidades e descontinuidades históricas do Brasil, da África e das relações entre ambos,
anteriores à escravidão, devem ser estudadas – especialmente para a compreensão da
formação social, cultural e étnica do Brasil, porque os africanos e seus descendentes são parte
integrante do povo brasileiro e, assim, suas origens (passíveis de estudo através de uma
historiografia da África Pré-colonial) re-significadas de formas específicas no Brasil são
componentes das formações sociais, culturais e étnicas brasileiras.
É importante ressaltar, ainda, outras razões pelas quais não ocorre uma ampliação nas
pesquisas desta temática – África Pré-colonial – no Brasil. Dentre elas destaca-se falta de
democratização do ensino superior brasileiro, que é composto, em sua maioria, por brancos,
principalmente no que se refere ao quadro de professores, tornando ainda mais difícil o
interesse e o desenvolvimento de pesquisas que supram as carências existentes7. Outra razão
que está indiretamente ligada a anterior refere-se à problemática da produção de
conhecimento cientifico no país, que cada vez mais se vê influenciado e dependente do
capital, como questiona Anderson Ribeiro Oliva ao analisar a abordagem sobre história da
África em um livro didático brasileiro:

Como veremos logo a seguir, se sua coleção possui espaço para tratar
a Reforma Religiosa européia em catorze páginas, por que reservar
apenas dez para toda a África pré-colonial? Escolha do autor? Da
editora? Do mercado consumidor? Dos currículos? Tais questões nos
fazem percorrer rapidamente o citado volume realizando um balanço

7
Isto porque toda produção de conhecimento não é neutra, mas sim esta de acordo com interesses pessoais e por
isso esta focada a um determinado objetivo e a um determinado objeto, sendo que se houvesse um maior número
de negros estudando e pesquisando, provavelmente, ter-se-ia um maior número de pesquisas sobre a África.

8
das páginas dedicadas aos assuntos. É revelador o grande espaço
reservado às temáticas oriundas de uma abordagem eurocêntrica da
História, e as restrições a que são submetidas à História da América e
da África. Por exemplo, enquanto os capítulos que tratam de temas
como Europa Medieval, Absolutismo Monárquico, Renascimento
Cultural e Construção do Pensamento Moderno Ocidental possuem
respectivamente vinte, quinze, vinte e dezoito páginas e vasta
bibliografia, a História da América pré-colombiana, América
Espanhola e História da África possuem, cada uma, onze, dez e dez
páginas, e literatura de apoio restrita. Ou por falta de conhecimento
ou de interesse, a escolha foi feita no sentido de conceder menor
atenção para essas temáticas. Com relação à História da África, a
bibliografia citada, apesar de conter nomes importantes da
historiografia africana, é ainda bastante restrita se comparada à
difusão de estudos e pesquisas que a História da África passou nos
últimos vinte anos. A presença dos trabalhos de Basil Davidson,
Roland Oliver, Joseph Ki-Zerbo demonstra o contato com a vertente
de estudos efetuados até a década de 1970. Já a citação da obra de
Alberto da Costa e Silva revela um pequeno contato com os novos
estudos, porém, a referência é ainda insuficiente.(OLIVA, 2003,
p.445).

Considerando-se as duas razões, anteriormente citadas, em conjunto temos um


problema social do Brasil que, de alguma forma, tornam as pesquisas sobre toda temática
africana restrita a alguns núcleos de estudos, alguns professores interessados e alguns alunos
dispostos. No entanto, para estar ao menos de acordo com a nova lei brasileira que obriga o
ensino de historia da África nas escolas, o número de pesquisas e publicações de qualidade
deveria crescer muito, pois há, conforme a pesquisa de Anderson Ribeiro Oliva sobre o ensino
e as publicações a respeito da África Negra nos bancos escolares, um número restrito de
publicações e ainda de baixa qualidade, o que é um reflexo imediato da falta de estudos desta
temática no país. Cita-se:

Medida justa e tardia, e ao mesmo tempo difícil de ser implementada.


Isso por um motivo prático: muitos professores formados ou em
formação, com algumas exceções, nunca tiveram, em suas
graduações, contato com disciplinas específicas sobre a História da
África. Soma-se a esse relevante fator a constatação de que a grande
maioria dos livros didáticos de História utilizada nesses níveis de
ensino não reserva para a África espaço adequado, pouco atentando
para a produção historiográfica sobre o Continente. Os alunos passam
assim, a construir apenas estereótipos sobre a África e suas
populações. (OLIVA, 2003, p. 428).

Enfim, estas considerações demonstram o problema que enfrenta a construção de uma


História Africana Pré-colonial, os obstáculos são muitos e os esforços estão apenas no início,

9
mas os vícios e os comprometimentos ideológicos e financeiros que ainda existem
comprometem uma escrita responsável de uma história pouco pesquisada e até agora
incipiente. A incapacidade de neutralidade por parte dos historiadores é notável, mas como
afirma Elikia M’Bokolo (2003) deve-se tentar ao máximo ser neutro, para que não se
cometam erros freqüentes como a adoção de termos para designação de certos períodos
históricos de determinadas regiões, como a escolha feita neste artigo pelo uso de pré-colonial
para facilitar a identificação do período, mesmo que essa escolha seja arbitrária e já seja alvo
de críticas. Cita-se:

África pré-colonial? África tradicional? Apesar da força considerável


dos hábitos e das falsas evidências do senso comum, temos de nos
decidir de maneira definitiva a deixar de concentrar estes longos
séculos sob o epíteto aparentemente cómodo, mas inteiramente
anacrónico e errado, de "pré-coloniais". Regista-se, com efeito, pelo
menos, um erro de perspectiva, quando não um preconceito prenhe de
implicações intelectuais mas também políticas, quando se pretende
dar um sentido à evolução muito longa e inacabada de um continente
e partir do último século da sua história: o século colonial.
Semelhante miopia não se explica apenas pelo facto de este século ser
o mais próximo de nós. Deriva também do facto de muitos
continuarem a aí encontrar a legitimidade das suas posições actuais.
Ora, o mínimo que se pode exigir ao historiador é que se abstraia, até
onde for possível, das pressões afectivas e sociais do tempo presente.
De resto, todas as características que as duas lendas da colonização -
a lenda negra e a lenda dourada - lhe atribuem encontram-se com uma
intensidade variável conforme as regiões e as épocas, no período
abusivamente designado como "pré-colonial": abertura aos mundos
exteriores; hegemonismos externos e internos; polarizações sociais;
pauperização, dependência e desigualdade dos ritmos de crescimento
económico e das formas de desenvolvimento social; alienação,
aculturação ou afirmação de personalidades próprias...(M´BOKOLO,
2003, p.1).

A escrita da história, portanto, não é neutra e cumpre interesses específicos e, muitas


vezes, particulares. A escrita de uma História da África, até hoje, vem sendo utilizada para
subjugação e não permite a devida compreensão dos processos históricos do continente
africano. É necessário, então, o interesse particular de um africano ou de um africanista, que
queira romper com as lógicas até o recente momento predominantes, mesmo que para isso,
seja necessário o estudo aprofundado que contemple os diversos debates existentes acerca da
escrita desta história. Mesmo que para isso seja necessário entrar em meio a debates

10
importantes da historiografia atual, mesmo que para isso seja necessária a leitura aprofundada
de relatos em línguas não familiares como o Árabe e o Chinês.
A revisão bibliográfica e a leitura extensiva de artigos publicados em português e em
outras línguas permitem que seja feita uma análise historiográfica e, assim, possam ser
percebidas as imprecisões da bibliografia existente. Como, além do eurocêntrismo, por
exemplo, o fato da bibliografia brasileira em relação à África estar, desde seu início, atrelada
à história da escravidão, centrando-se no tráfico transatlântico. Neste sentido, cabe destacar
um artigo referente aos Africanos, do Primeiro Congresso de História Nacional do Instituto
Histórico Brasileiro, realizado em 1914 com o intuito de construir uma História Nacional, o
qual inicia-se da seguinte forma: “A história do tráfico ou do commercio de carne humana (...)
é por excellencia a história dos povos da África”(CLAÚDIO, 1915, p.597).
A superação das restrições e das dificuldades teórico-metodológicas conferem a
História da África, principalmente, no período Pré-colonial uma singularidade que deve servir
de estimulo a superação destes entraves a pesquisa.

3. Considerações Finais

A revisão bibliográfica das principais obras acerca da História da África Pré-colonial


publicadas no Brasil, além de consulta aos periódicos científicos disponíveis para acadêmicos
brasileiros, permite afirmar que os estudos sobre esta temática no país podem ser
considerados insuficientes e não estão de acordo com as necessidades da sociedade brasileira.
Ou seja, tendo em vista a obrigatoriedade do ensino de História da África no Brasil e o
incentivo à pesquisas sobre este tema, as publicações são raras, sendo que muitas, em especial
as didáticas, que se referem a este período da historia africana são muito precárias, ao
contrário das obras já clássicas de Alberto da Costa e Silva, Basil Davidson e Elikia
M´Bokolo que são as pioneiras em língua portuguesa sobre o assunto. A ausência de
publicações e pesquisas sobre o assunto torna precário o ensino e a formação de profissionais
da história preparados para ensinar historia da África desde o Ensino Fundamental ao
Superior. A lei brasileira que obriga o ensino de Historia da África nas escolas e
universidades brasileiras é um avanço, porém insuficiente, pois não oferece o preparo
necessário aos docentes brasileiros sobre o tema.
As dificuldades teórico-metodológicas, o preconceito, a falta de incentivo e o não
interesse por esta parte da história mundial, pelos historiadores e pelas editoras, tornam a
tarefa de ensinar e pesquisar a História da África algo exclusivamente para poucos

11
interessados e aqueles pesquisadores da escravidão africana que não fiquem restritos ao
período em que houve escravidão – mas tenham interesse em compreender a re-significação
desta Historia no Brasil e seu papel na formação da sociedade brasileira; em entender as
relações não apenas estatais, mas entre as formações sociais das diversas regiões do mundo,
como por exemplo, a compreensão do chamado Mundo Atlântico; e, em interpretar como e
porque as relações entre estas formações sociais desenvolvem-se de forma desigual e
combinada no processo histórico mundial, com descontinuidades e características especificas.
Enfim, as especificidades do estudo de uma África Subsaariana Pré-colonial são
fundamentais para compreensão dos motivos pelos quais deve-se dar notabilidade a este tema
e deve-se estar constantemente atento às mudanças em sua historiografia, para que seja
possível mudar o quadro que hoje existe acerca deste tema. É necessário fazer com que o tema
em questão adquira a devida importância, não só em forma de lei, mas em forma de pesquisas
e publicações, para que isto influencie diretamente o ensino deste tema nas escolas e
universidade brasileiras.

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