Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Introdução
1
alguns centros de estudo a respeito da História da África, porém, estas pesquisas (em sua
grande maioria) se referem ao período colonial deste continente, devido ao estudo da
escravidão africana no Brasil. No entanto, a relação entre o Brasil e a África está além da
escravidão (apesar da inquestionável relevância dos estudos referentes à escravidão), devido
às origens (re-significadas) étnicas e culturais do povo brasileiro, eminentemente, ligadas à
África. Também, a importância do conhecimento da História da África Pré-Colonial está na
necessidade de visibilidade desta por uma História Geral.
É notável o conhecimento histórico que foi produzido ao longo dos séculos a respeito
das mais diversas regiões do planeta, com diversos intuitos – a partir de seus contextos.
Atualmente, estes estudos tendenciam para compreender uma História Geral, buscando as
relações entre as regiões e as temporalidades – mesmo as relações de descontinuidade,
conforme sugere Foucault (2004). No entanto, se faz necessária uma reflexão sobre a
abrangência desta História Geral, pois, ainda hoje, há a respeito de algumas regiões do mundo
e em determinados períodos um evidente desconhecimento, como, por exemplo, a África,
principalmente em seu período que pode ser chamado de pré-colonial.3 E deve-se perceber,
nitidamente, a importância de pesquisar e ampliar os estudos desta região, como propõe
Joseph Ki-Zerbo:
(...) por que esse retorno às fontes africanas? Enquanto a busca desse
passado pode ser, para os estrangeiros, uma simples curiosidade, um
exercício intelectual altamente estimulante para a mente desejosa de
decifrar o enigma da Esfinge, o sentido real dessa iniciativa deve
ultrapassar tais objetivos puramente individuais, pois a história da
África é necessária à compreensão da história universal (sic), da qual
muitas passagens permanecerão enigmas obscuros enquanto o
horizonte do continente africano não tiver sido iluminado. Além
disso, no plano metodológico, a execução da história da África de
3
Há entre os historiadores da África e africanistas um debate sobre a denominação que deve ser utilizada para se
referir ao período histórico africano anterior a chegada dos colonizadores europeus. Pierre Bertaux considera o
período como África Proto-Histórica, enquanto Joseph Ki-Zerbo divide o período compreendido entre 3500 a.C
– 1500 em 4 denominações: África Negra Antiga (3500 a.C – 0 a.C), Séculos Obscuros (Séc I – VI), Dos Reinos
aos Impérios (Séc VII – XII), Grandes Séculos (Séc XII – XV). E a denominação pré-colonial é freqüentemente
utilizada por africanistas para definir o período que se estende entre 3500 a.C – 1500 d.C). Utilizar-se-á a
classificação africanista para facilitar a identificação do período que será tratado neste trabalho. Além disso,
passar-se-á a considerar África à parte do continente chamada de Subsaariana ou Negra, pois sobre a história da
África chamada de Branca ou do Norte há uma outra construção historiográfica que não será tratada neste
presente trabalho.
2
acordo com as normas estabelecidas neste volume4 pode confirmar a
estratégia dos adeptos da história total, apreendida em todos os seus
estratos e em todas as suas dimensões, por todo o arsenal de
instrumentos de investigação disponíveis.
(KI-ZERBO, 1982, p.41).
Há um aumento nas publicações e pesquisas a respeito da História da África, porém
estas publicações, em sua maioria, tratam do período pós-1500. Este fato pode ser
considerado um grande avanço para a historiografia africana recente, no entanto é
insuficiente, pois ainda não incorpora de forma significativa o estudo do período pré-colonial
africano. Alegando diversas dificuldades, a História da África, deste período, pode ser
considerada esquecida pelos quais não poderiam esquecê-la, como afirma Anderson Ribeiro
Oliva:
4
Citação retirada do primeiro volume da coleção História Geral da África: Metodologia e pré-história da África,
em que o organizador Joseph Ki-Zerbo e diversos pesquisadores africanos e africanistas definem a metodologia
que será utilizada no desenvolvimento da obra que em inglês está composta por oito volumes, enquanto em
português só foram traduzidos quatro volumes.
3
Com relação às fontes, cita-se, ainda:
A compreensão das formações sociais que habitaram a África Negra no período pré-
colonial relaciona-se muito ao estudo dos relatos orais. Isto porque estas podem ser chamadas
de civilizações orais, pois reconhecem a fala não apenas como um meio de comunicação, mas
como uma forma de preservação da sabedoria dos ancestrais. Sobre estes relatos orais,
Bertaux observa que:
La crônica, transmitida generalmente por vía oral, es un recurso del
que no puede prescindir el historiador. Por incierto que sea su valor,
no puede pasarse sin su auxilio. Una tradición puede conservarse
asombrosamente durante siglos; a menudo en África, castas
profesionales que son la memoria social del grupo se transmiten de
generación en generación poemas que los griots5 recitan
periódicamente, acompañado su melopea con rasgueos de guitarra.
(BERTAUX, 1980, p.2)
Portanto, a escrita da história africana deste período requer uma aceitação desta
tradição oral como principal fonte histórica, o que para os historiadores modernos é
compreendido como aceitação ou adoção de princípios de uma nova corrente teórica, a
corrente pós-moderna, pois se baseia em uma maior subjetividade e disso decorrem muitos
debates e muitos embates, o que torna ainda mais difícil a escrita de uma história africana,
mesmo assim, como afirma Paul Thompson:
5
São chamados de griots os detentores da tradição oral, senão historiadores orais.
4
exploração potencial equivalente que elas possuem para o
desenvolvimento da história social africana” (THOMPSON, 1978, p.
120 e 121).
Há ainda o escasso recurso de fontes escritas, que em alguns momentos ficam restritas
a crônicas de viajantes árabes, como, por exemplo, os relatos de viagem de Ibn Battuta (1304-
1369), conhecido como Leão, o africano, ou ainda os escritos do historiador Ibn Khaldun
(1332-1406), que por muitos africanistas é considerado o “pai da história”. Além de outros
registros como o Ta’rikh al-Sudan e o Ta’rikh el-Fattash escritos no Tombuctu, que estão
com sua conservação ameaçada devido ao alto custo desta, como destaca o jornal francês Le
Monde Diplomatique do mês de Agosto de 2004:
5
fundamental o avanço e a ampliação das pesquisas acerca desta temática para que seja
possível a compreensão, por exemplo, de como esta história é re-significada no Brasil
Colonial e Imperial pelos escravos trazidos de diversas regiões africanas (e seus
descendentes). Basil Davidson, citando Heinrich Barth (1870), resume a dificuldade de
escrever a história deste continente no período anterior a chegada dos portugueses:
6
é que possuíam uma história, era de tal ordem que mal valeria o
esforço de a contar. Esta crença de que os africanos tinham vivido
num caos ou numa estagnação universal até a chegada dos europeus,
não só parecia encontrar justificativa num milhar de histórias, que
revelavam a miséria mais selvática e a mais primitiva ignorância: era
também, é claro, estupendamente conveniente numa época de
imperialismo em expansão. (DAVIDSON, 1977,p.14).
A partir desta ótica que, até recentemente, era vista a História da África. E se hoje há
uma mudança significativa neste preconceito ela ainda não se reflete na quantidade de
publicações e pesquisas científicas a fim de findar com esta lógica. Se faz necessária uma
escrita da história de forma como pouco se fez acerca deste continente: sem imposição de
conceitos6, respeitando o processo histórico e a dinâmica da história própria deste continente,
sem que ele seja tratado a partir da lógica eurocêntrica de construção da história. A afirmação
de Davidson ressalta esta necessidade de uma outra escrita da História da África:
6
Respeitando a historicidade dos conceitos, utilizando-os como re-problematização e não como imposição –
conforme sugere E. P. Thompson (1981).
7
quase inexistente no país e esta ainda em sua fase inicial no mundo. No Brasil o que há de
mais significativo em pesquisas a respeito de história da África, mas considerando-a
incorporada ao que podemos chamar de Mundo Atlântico, são os estudos relativos à
escravidão negra e suas relações com a história do Brasil.
Predomina na historiografia brasileira um enfoque que restringe os estudos do período
anterior à escravidão. Pode-se explicar isto devido aos problemas já mencionados (com
relação às fontes, ao racismo, ao eurocêntrismo), presentes não só no Brasil, os quais
dificultam a construção de uma historia africana anterior ao período colonial. No entanto, no
Brasil, os estudos deste período têm sua importância ressaltada, não só para uma História
Geral, mas para a História do Brasil. Isto porque, a escravidão é um recorte espacial e
temporal que relaciona a África e o Brasil, no entanto os processos destas regiões que se
interligam, e suas explicações, não podem restringir-se ao recorte da escravidão. Ou seja, as
continuidades e descontinuidades históricas do Brasil, da África e das relações entre ambos,
anteriores à escravidão, devem ser estudadas – especialmente para a compreensão da
formação social, cultural e étnica do Brasil, porque os africanos e seus descendentes são parte
integrante do povo brasileiro e, assim, suas origens (passíveis de estudo através de uma
historiografia da África Pré-colonial) re-significadas de formas específicas no Brasil são
componentes das formações sociais, culturais e étnicas brasileiras.
É importante ressaltar, ainda, outras razões pelas quais não ocorre uma ampliação nas
pesquisas desta temática – África Pré-colonial – no Brasil. Dentre elas destaca-se falta de
democratização do ensino superior brasileiro, que é composto, em sua maioria, por brancos,
principalmente no que se refere ao quadro de professores, tornando ainda mais difícil o
interesse e o desenvolvimento de pesquisas que supram as carências existentes7. Outra razão
que está indiretamente ligada a anterior refere-se à problemática da produção de
conhecimento cientifico no país, que cada vez mais se vê influenciado e dependente do
capital, como questiona Anderson Ribeiro Oliva ao analisar a abordagem sobre história da
África em um livro didático brasileiro:
Como veremos logo a seguir, se sua coleção possui espaço para tratar
a Reforma Religiosa européia em catorze páginas, por que reservar
apenas dez para toda a África pré-colonial? Escolha do autor? Da
editora? Do mercado consumidor? Dos currículos? Tais questões nos
fazem percorrer rapidamente o citado volume realizando um balanço
7
Isto porque toda produção de conhecimento não é neutra, mas sim esta de acordo com interesses pessoais e por
isso esta focada a um determinado objetivo e a um determinado objeto, sendo que se houvesse um maior número
de negros estudando e pesquisando, provavelmente, ter-se-ia um maior número de pesquisas sobre a África.
8
das páginas dedicadas aos assuntos. É revelador o grande espaço
reservado às temáticas oriundas de uma abordagem eurocêntrica da
História, e as restrições a que são submetidas à História da América e
da África. Por exemplo, enquanto os capítulos que tratam de temas
como Europa Medieval, Absolutismo Monárquico, Renascimento
Cultural e Construção do Pensamento Moderno Ocidental possuem
respectivamente vinte, quinze, vinte e dezoito páginas e vasta
bibliografia, a História da América pré-colombiana, América
Espanhola e História da África possuem, cada uma, onze, dez e dez
páginas, e literatura de apoio restrita. Ou por falta de conhecimento
ou de interesse, a escolha foi feita no sentido de conceder menor
atenção para essas temáticas. Com relação à História da África, a
bibliografia citada, apesar de conter nomes importantes da
historiografia africana, é ainda bastante restrita se comparada à
difusão de estudos e pesquisas que a História da África passou nos
últimos vinte anos. A presença dos trabalhos de Basil Davidson,
Roland Oliver, Joseph Ki-Zerbo demonstra o contato com a vertente
de estudos efetuados até a década de 1970. Já a citação da obra de
Alberto da Costa e Silva revela um pequeno contato com os novos
estudos, porém, a referência é ainda insuficiente.(OLIVA, 2003,
p.445).
9
mas os vícios e os comprometimentos ideológicos e financeiros que ainda existem
comprometem uma escrita responsável de uma história pouco pesquisada e até agora
incipiente. A incapacidade de neutralidade por parte dos historiadores é notável, mas como
afirma Elikia M’Bokolo (2003) deve-se tentar ao máximo ser neutro, para que não se
cometam erros freqüentes como a adoção de termos para designação de certos períodos
históricos de determinadas regiões, como a escolha feita neste artigo pelo uso de pré-colonial
para facilitar a identificação do período, mesmo que essa escolha seja arbitrária e já seja alvo
de críticas. Cita-se:
10
importantes da historiografia atual, mesmo que para isso seja necessária a leitura aprofundada
de relatos em línguas não familiares como o Árabe e o Chinês.
A revisão bibliográfica e a leitura extensiva de artigos publicados em português e em
outras línguas permitem que seja feita uma análise historiográfica e, assim, possam ser
percebidas as imprecisões da bibliografia existente. Como, além do eurocêntrismo, por
exemplo, o fato da bibliografia brasileira em relação à África estar, desde seu início, atrelada
à história da escravidão, centrando-se no tráfico transatlântico. Neste sentido, cabe destacar
um artigo referente aos Africanos, do Primeiro Congresso de História Nacional do Instituto
Histórico Brasileiro, realizado em 1914 com o intuito de construir uma História Nacional, o
qual inicia-se da seguinte forma: “A história do tráfico ou do commercio de carne humana (...)
é por excellencia a história dos povos da África”(CLAÚDIO, 1915, p.597).
A superação das restrições e das dificuldades teórico-metodológicas conferem a
História da África, principalmente, no período Pré-colonial uma singularidade que deve servir
de estimulo a superação destes entraves a pesquisa.
3. Considerações Finais
11
interessados e aqueles pesquisadores da escravidão africana que não fiquem restritos ao
período em que houve escravidão – mas tenham interesse em compreender a re-significação
desta Historia no Brasil e seu papel na formação da sociedade brasileira; em entender as
relações não apenas estatais, mas entre as formações sociais das diversas regiões do mundo,
como por exemplo, a compreensão do chamado Mundo Atlântico; e, em interpretar como e
porque as relações entre estas formações sociais desenvolvem-se de forma desigual e
combinada no processo histórico mundial, com descontinuidades e características especificas.
Enfim, as especificidades do estudo de uma África Subsaariana Pré-colonial são
fundamentais para compreensão dos motivos pelos quais deve-se dar notabilidade a este tema
e deve-se estar constantemente atento às mudanças em sua historiografia, para que seja
possível mudar o quadro que hoje existe acerca deste tema. É necessário fazer com que o tema
em questão adquira a devida importância, não só em forma de lei, mas em forma de pesquisas
e publicações, para que isto influencie diretamente o ensino deste tema nas escolas e
universidade brasileiras.
Referências Bibliográficas
BERTAUX, Pierre. África: Desde la prehistoria hasta los Estados actuales.México: Siglo
XXI Editores, 1980.
COSTA E SILVA, Alberto. A enxada e a lança: A África antes dos portugueses. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro, UCAM, Editora 34, 2001.
12
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Lisboa: Europa América, s.d.
M’BOKOLO, Elikia. África Negra História e Civilizações. Até o século XVIII. Lisboa,
Vulgata, 2003.
McEVEDY, Colin. The Penguin Atlas of African History.London: Penguin Books, 1995.
MATTOS, Hebe Maria. “O ensino de história e a luta contra discriminação racial no Brasil”.
In M. Abreu & R. Soihet, Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de
Janeiro, Casa da Palavra, FAPERJ, pp. 127-136. 2003.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África em perspectiva. Revista Múltipla, 2004, ano
IX, no.16, p. 9-40.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
13