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A PÉ

1
2
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte / Biblioteca Setorial de Arquitetura.

Santos, Bárbara Brena Rocha dos.


A pé: uma narrativa sobre a experiência do pedestre no Centro
Histórico de Natal / Bárbara Brena Rocha dos Santos. – Natal, RN, 2015.
261f. : il.

Orientadora: Verônica Maria Fernandes de Lima.

Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura.

1. Centro Histórico – Natal/RN – Monografia. 2. Pedestre –


Experiência urbana – Monografia. 3. Narrativa – Monografia.
I. Lima, Verônica Maria Fernandes de. II. Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BSE15 CDU 72
4
A PÉ

Aos dois grandes amores da minha vida:


mamãe e papai. Eu sei do esforço de vocês para
me ver chegar até aqui. Espero ter conseguido
alcançar as expectativas.

À minha professora, orientadora e amiga,


Verônica Lima, por acreditar e compartilhar
comigo a experiência deste trabalho.

5 Aos tatus, Igor Queiroz e Leonardo Vieira, por


me inspirarem. E pela co-orientação à distância.

Aos Boêmios, minha turma de coração e zueira,


por me orgulharem todos os dias. Sem vocês eu
seria lado A. Obrigada.

À Gabrielle Barrros, Tisbe Machado, Ingrid


Nogueira, Rayanna Rodrigues, Maria Evane
Medeiros e Fernando Cortez, por
compartilharem esse momento da minha vida e
terem sido um ponto de apoio e segurança.

A David Emmanuel, meu melhor, por acreditar


em mim e por me fazer esquecer qualquer
dificuldade com um abraço.

Ao Grupo Estandarte de Teatro, minha


segunda casa. Em especial à Lenilton Teixeira,
Marinalva Moura e Luiz Gadelha, que se
dispuseram a caminhar ao meu lado. Este Aos amigos da Comorg EREA Natal, por
trabalho não seria metade do que é se não enfrentarem essa barra junto comigo.
fosse por vocês.
A Paco, el mejor amigo español, por
Aos queridos da Superintêndencia de Infra ayudarme con los trabajos de la uni y por
Estrutura da UFRN, estágiários e chefes, por siempre preguntarme de Brasil.
serem a melhor equipe de trabalho que eu já
Àqueles que compartilharam suas
conheci e pelos dias mais humanos sempre
experiências comigo: Tárcio Fontenele,
revigorantes.
Aderbal Ferreira, Pedro Mendes, Antônio 6
A Juliana Fernandes, por aceitar participar Capistrano, Henrique Fontes, Flávio Freitas,
deste trabalho e pela atenção sempre Severino Ramos e Marinaldo.
presente.
A Seu Pernambuco, pela melhor tapioca da
A Letícia Sayonara, Luiz Henrique Lins, minha vida, e a Nazih pela herança deixada.
Netto Lins e Eliasz Chmiel por serem
A todos aqueles que participaram da minha
incríveis e mesmo de longe fazerem parte da
graduação e que me ajudaram ouvindo sobre
minha vida.
as confusões e dúvidas com este trabalho.
Às minhas irmãs de coração Olivia Patrício e
Ao centro histórico de Natal, que se abriu
Maria Evane Medeiros, por vivenciarem
para a minha caminhada e que hoje faz parte
Valencia junto comigo, e não deixarem que
de mim.
eu me sentisse sozinha no intercâmbio.
E à pipoca, que mesmo me esnobando, me
A Rui, Rebeca e Lenilson, que me salvaram
fez companhia nas madrugadas deste TFG.
em vários momentos, obrigada.

.
A PÉ

RESUMO

A pé: Uma narrativa sobre a experiência do pedestre no centro histórico de Natal.

Vivemos em cidades resultantes de processos urbanos que historicamente contribuíram para


o afastamento do pedestre da rua, em consequência de um pensamento urbanístico voltado
para uma escala macro, das políticas de incentivo à hegemonia dos veículos motorizados e
dos processos de modernização e homogeneização das cidades. Tais posturas distanciaram o
homem da rua e interferiram na maneira como nos relacionamos e experimentamos o espaço
público. Partindo da constatação do filósofo Michel de Certeau, de que a forma mais
7 elementar de apreensão urbana se dá ao caminhar, desenvolveu-se o presente trabalho: uma
investigação crítico-reflexiva dos processos que interferiram e seguem interferindo na relação
entre homem e cidade, com enfoque na experiência sensível do pedestre no meio urbano,
mais especificamente no centro histórico de Natal. O desenvolvimento da pesquisa aconteceu
através da apropriação teórica de autores como Paola Berenstein Jacques (2012) e Walter
Benjamin (1984) e de pesquisa in loco elaborada através de passeios acompanhados em busca
de imagens, memórias e narrativas urbanas com base nas metodologias desenvolvidas por
Rachel Thomas (2009), Marta Dischinger (2000) e Kevin Lynch (1960). Busca-se, através do
olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, a elaboração de uma narrativa de
apropriação da experiência urbana que provoque uma reflexão acerca dos processos que
interferem na forma como vivenciamos e experienciamos o Centro Histórico de Natal, e que
também instigue o leitor a um novo olhar ou a uma (re)descoberta de antigos ou novos
caminhos pela cidade. Ademais, a fim de ilustrar tal reflexão, uma micro-resistência urbana
em forma de intervenção artística crítica será parte da proposta aqui apresentada.

Palavras-chave: Pedestre; Experiência Urbana; Narrativa; Centro Histórico de Natal.


RESUMEN

A pie: Una narrativa sobre la experiencia del peatón en el Centro Histórico de Natal.

Vivimos en ciudades resultantes de procesos urbanos que históricamente contribuyeron para


el apartamiento del peatón de la calle, en consecuencia de un pensamiento urbanístico
direccionado hacia la escala macro, de las políticas de incentivo a la hegemonía de los
vehículos motorizados y de los procesos de modernización y homogeneización de las
ciudades. Tales posturas, distanciaron el hombre de la calle e interfirieron en la manera como
nos relacionamos y experimentamos el espacio público. Partiendo de la constatación del
filósofo Michel de Certeau, de que la forma más elementar de aprehensión urbana se da al 8
caminar, se desarrolló el presente trabajo: una investigación crítico-reflexiva de los procesos
que interfirieron y siguen interfiriendo en la relación entre hombre y ciudad, con enfoque en
la experiencia sensible del peatón en el medio urbano, más específicamente en el Centro
Histórico de Natal. El desarrollo de la investigación sucedió a través de la apropiación teórica
de autores como Paola Berenstein Jacques (2012) y Walter Benjamin (1984) y de pesquisa in
loco elaborada a través de paseos acompañados en búsqueda de imágenes, memorias y
narrativas urbanas con base en las metodologías desarrolladas por Rachel Thomas (2009),
Marta Dischinger (2000) y Kevin Lynch (1960). Se busca, a través de la mirada y de la
experiencia de quien anda y vive en la ciudad, la elaboración de una narrativa de apropiación
de la experiencia urbana que provoque una reflexión acerca de los procesos que interfieren
en la forma como vivimos y experimentamos el Centro Histórico de Natal, y que también
instigue el lector a una nueva mirada o a una (re)descubierta de antiguos o nuevos caminos
por la ciudad. Además, con fin de ilustrar tal reflexión, una micro-resistencia urbana en forma
de intervención artística crítica será parte de la propuesta aquí presentada.

Palabras-clave: Peatón; Experiencia Urbana; Narrativa; Centro Histórico de Natal.


A PÉ

SUMÁRIO
ANTES DE COMEÇAR, LEIA-ME. 16

INTRODUÇÃO 18

CAPÍTULO UM

1.1 PRÓLOGO CAROL 34

1.2 CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS PARA A ERA DO AUTOMÓVEL 38

CAPÍTULO DOIS

2.1 PRÓLOGO VAGA-LUMES 52


9
2.2 EXPERIÊNCIA: CHOQUE, ESPETÁCULO E NARRATIVA 58

2.2.1 CHOQUE 59

2.2.2 ESPETÁCULO 68

2.2.3 NARRATIVA 77

2.3 UM PRODUTO SENSÍVEL 82

2.4 SÍNTESE E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO 92


CAPÍTULO TRÊS

3.1 PRÓLOGO TAPUMES 98

3.2 UNIVERSO DE ESTUDO: O CENTRO QUE A HISTÓRIA CONTA 104

3.3 MEMÓRIA & EXPERIÊNCIA 114

3.4 EXPERIÊNCIA PRATICADA 117

3.5 SÍNTESE E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO 188

CAPÍTULO QUATRO

4.1 PRÓLOGO LAMBE-LAMBE 192

4.2 GANHAR E DAR CORPO: NARRATIVA DE APROPRIAÇÃO 200 10


INTERFERÊNCIAS DE AFASTAMENTO 201

INTERFERÊNCIAS DE VÍNCULO 231

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 250

6. BIBLIOGRAFIA 255

7. APÊNDICES 262
A PÉ

LISTA DE FIGURAS
1. Janela.
2. Minha carteira de motorista e o carro na garagem de casa.
3. Meus tênis preferidos depois de algumas caminhadas em Valencia.
4. A comunidade do Solar & Os portões do MAM. Salvador, BA.
5. Maria Chiara e D. Suzana (acima), A mesa do Restaurante (abaixo).
6. Carol assustada.
7. Os Boulevards: As grandes avenidas de Haussmann.
8. Antes e depois: Rua du Vieux-Colombier & Igreja de St-Sulpice. Rua Réaumur, Paris.
9. Avenida central: Demolições para a construção da avenida 1904-1905. Traçado, sobre
os quarteirões coloniais. Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro, 1903.
10. Inauguração da General Motors em São José dos Campos (SP), em 1959, com a
presença do então presidente Juscelino Kubitscheck.
11. A cidade do futuro de Le Corbusier.
12. Proposta dos Irmão Krier, da escola de Bruxelas para a reconstrução de Stuttgard
(1975).
13. Igor e os vaga-lumes
14. O ritmo frenético das cidades. O metrô de São Paulo.
15. Os personagens humanos da modernidade.
11 16. Escalas de planejamento urbano.
17. Cidade espetáculo: Montagem do Rio de Janeiro. O que se vende: a praia, os pontos
turisticos e a cidade que se globaliza.
18. Espaços luminosos e espaços opacos.
19. Errantes nas zonas opacas.
20. Intervenção urbana aCerca do Espaço - Coletivo Zona de Interferência (BH/MG).
21. Transmissão da experiência.
22. Projeto "SUR-fake": Novas formas de se comunicar na modernidade.
23. Metodologia fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo.
24. Metodologia aplicada em Oficina do Laboratório Urbano da UFBA, em 2011.
25. Sinalização na Praia Do Uruaú – Beberibe (CE).
26. Uma saída?
27. Cegar com tapume.
28. Brechando. 1
29. Cidade Alta: Praça André de Albuquerque (acima), Rua Vigário Bartolomeu (ao centro).
Ribeira: Rua do Comércio, atual Rua Chile (abaixo).
30. Vista área do bairro de Petrópolis, um dos bairros da Cidade Nova.
31. Natal na Segunda Guera Mundial.
32. A falta de iluminação no Beco da Lama – Cidade Alta. 110
33. Escutando lembranças.
34. Ganhar corpo: Minha mochila pronta para ir a campo; & Personagens da 1ª visita.
35. Lenilton e Marinalva, inicio de passeio.
36. Lenilton criança.
37. A casa de cascudo, Clima, Beco e Consulado.
38. O Ateliê de Flávio Freitas e A entrevista com o artista.
39. Cais da Tavares de Lira, Bistrozinho na Rua Chile e Seda polinizadora.
40. Mercado do Peixe, Seu Perambuco, Jogo de cartas na rua e Marinaldo.
41. Zumbar, Põr do sol na Rua da Misericórdia e Bar da Meladinha.
42. Luiz Gadelha, entrevistado do 2º passeio.
43. Início da caminhada; Sol na cara, Frontões com números romanos e Cerca no Terminal
Marítimo de passageiros.
44. Vista interrompida do rio, Bar Buraco da Catita.
45. Personagens da 3ª visita de campo.
46. Entrevistas no Sebo Balalaika; Fotografando; Movimentação em frente do sebo.
47. Entrevista com Antônio Capistrano, Beco da Lama, Esquina do bar da meladinha e Sebos
da Rua Vig. Bartolomeu.
48. Despedida na sombra, calçada da Rua Vig. Bartolomeu.
49. Convidando Juliana.
50. Porta do Nalva Melo Café Salão; Letreiro Edifício Bila; Escadas Tribuna
51. Rua de calçamento original; Atravessando a Av. Rio Branco; Bagunça em meio aos
camelôs.
52. Lambe.
53. Quadro de referências.
54. Ginga e tapioca de Seu Pernambuco, Canto do Mangue, Rocas. 12
55. Beco da Quarentena, Ribeira.
56. Deixando o caminhão passar.
57. Eu e meus primos em Barra Bonita, SP.
58. Travessa México, Ribeira.
59. Calçada Av. Duque de Caxias, Ribeira.
60. Estacionamento - Mirante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
61. Parada de ônibus, Pç. Augusto Severo.
62. Transporte ativo: caminhada.
63. Lixo acumulado na rua, Ribeira.
64. O comércio na Av. Rio Branco, Cidade Alta.
65. Área residencial, Cidade Alta.
66. Terminal de Passageiros da Ribeira, área de livre acesso ao transeunte.
67. Fachada iluminada, Prefeitura de LED.
68. A caminho do Beco da Lama.
69. Bar da meladinha, Cidade Alta.
70. Meladinha na mesa, Cidade Alta.
71. A proximidade com o rio na rua em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos.
72. Janela na Rua João da Matta.

73. Crianças brincando da Rua da Misericórdia, Cidade Alta


A PÉ

74. .

13
1. Janela.
Acervo pessoal, 2015.

14
INTRODUÇÃO

15
0. ANTES DE COMEÇAR,
LEIA-ME

Antes de começar a explicar a origem e o assim como funcionaram para mim no


desenvolvimento deste trabalho, gostaria decorrer da escrita.
de alertá-lo para uma questão: ele tem
Você vai perceber como as partes de
uma personalidade narrativa, reflexiva e
conversa e de conceituação se
possui uma objetividade um tanto quanto
identificam no momento em que iniciar a
diferente.
leitura, ou ao ver a divisão do trabalho no
Permanece sendo um trabalho final da introdução. Mas também
acadêmico, o último da minha procurei destacar as informações mais
graduação. Mas em alguns momentos objetivas de uma forma diferente no
16
existirão espaços, assim como esse, em texto, e ao final de cada capítulo você vai
que eu me dirijo diretamente a você, o encontrar uma síntese do que foi
leitor. Aqui o texto correrá mais leve, são abordado.
nossos espaços de conversa. A
A introdução a seguir explica a lógica do
objetividade não é o propósito desses
meu pensamento e o que esse trabalho
parágrafos, mas eles funcionarão como
significa para mim. Como eu disse é um
uma quebra, uma pausa para o
momento de conversa e é um pouco mais
cafezinho. No entanto, são tão
longa do que uma introdução usual, mas
importantes quanto os capítulos teóricos
eu sei que ao terminar de ler as próximas
repletos de referências e conceitos, afinal
páginas certamente farão mais sentido
trazem as minhas vivências e reflexões
para você.
sobre o tema. Espero que eles funcionem
para você como um respiro, um alívio,
A PÉ

17
INTRODUÇÃO

2. Minha carteira de motorista e o carro


na garagem de casa.

Acervo pessoal, 2015.

INTRODUÇÃO
Eu tenho 24 anos de idade, e como é de praxe aqui no Brasil, tenho carteira de motorista
desde os 18. Meu pai é meu maior incentivador quando o assunto é carro ou direção. No
entanto, por problemas pessoais e traumas da vida, eu não dirijo. E depender de um pai
motorista, ou de caronas amigas que me socorrem até hoje, sem nem entrar na discussão
quando o assunto é transporte público, já me incomodava bastante antes mesmo de viver
um ano fora do país.

Eu, mesmo como estudante de Arquitetura e Urbanismo, costumava achar pura utopia
algumas discussões sobre mobilidade urbana que surgiam com frequência em sala de
aula. Foi preciso ver de perto para acreditar que muito podia ser feito para melhorar a
relação do pedestre com a cidade. 18
Vivi por um ano em Valencia, na Espanha, e por lá eu não precisava de uma carteira de
motorista para me locomover, uma vez que carro e estudante de intercâmbio normalmente
não aparecem juntos na mesma frase. O transporte público era incrível, mas mesmo assim,
caminhávamos bastante. Andávamos por calçadas enormes, regularizadas, acessíveis,
com espaço suficiente para ciclovia, vegetação de grande porte e equipamentos de
transporte público. E mesmo nas vielas apertadas e irregulares do centro, de fato existia
um acordo entre motoristas e pedestres: quem estava a pé tinha sempre a prioridade.

Acho que o sentimento de empolgação que o intercâmbio causa, com toda aquela sede
por conhecer o novo e experimentar sempre o máximo possível, ajudou na minha relação
com a cidade. Eu sentia prazer em descobri-la, desejava conhecer suas tradições e
histórias, procurava cada dia encontrar um caminho novo. E Valencia se mantinha
disposta a me guiar, a me proporcionar novas experiências. Por mais que minha
empolgação fosse a energia que impulsionava a me lançar pelas ruas da cidade, ela, tão
própria de si, dividida entre os tempos medievais das torres que ainda guardam o centro
A PÉ

e o futuro construído da cidade de Calatrava, me proporcionava uma vivência incrível nas


ruas.

Voltar para Natal e sentir que a realidade daqui continuava a mesma, estagnada no modelo
de planejamento das cidades que ainda valoriza o carro, me atingiu logo na primeira
semana. Senti que estava “presa”, sem a mesma liberdade, submissa a disponibilidade
de ter um carro para realizar boa parte das minhas atividades diárias.

Foi nessa mesma época em que precisei definir o tema do meu Trabalho Final de
Graduação (TFG). Este mesmo o qual você está lendo agora. E a frustração de me sentir
limitada ao convívio urbano me fez refletir sobre alguns aspectos. Eu queria entender como
funcionava esse modo de pensar as cidades direcionadas para quem dirige. E de certa
19 forma como isso interferia nos espaços que eu frequentava, nos caminhos que eu fazia,
assim como nos lugares que eu não conhecia e nas experiências que eu deixava de
vivenciar na minha própria cidade.

Ainda refletindo sobre esses aspectos pertinentes a temática do TFG, uma lembrança das
aulas na universidade espanhola me veio à mente. A disciplina era Fotografia. Erámos
apenas três desgarradas de arquitetura em meio a várias pessoas de comunicação, design
e publicidade. Lembro de uma aula em especial na qual o professor pediu que levássemos
algumas fotografias de nossa autoria. Ele abria cada pasta de arquivos e fazia comentários
em frente à classe. Minha colega de arquitetura levou uma coleção de suas fotos preferidas
da cidade, dessas que todo arquiteto já fez. As belas casas de Barcelona; esquadrias
antigas; pontes e paisagens repletas de construções. O professor elogiou as fotos, estavam
corretas. Mas atentou para algo que faltava. “Personas” ele disse. Fiquei com aquilo na
cabeça, será que é assim que nós, estudantes de arquitetura, vemos a cidade? Focamos
nas construções, nos projetos, em detalhes e ideias de mobiliário, até reclamamos quando
alguém “atrapalha” a foto do edifício que tanto queremos registrar. Mas, e a pessoa? Aquela
que está além do usuário, como nós a vemos? A consideramos? Pensando nisso, decidi
INTRODUÇÃO

que queria estudar um pouco melhor essas figuras, aqueles para quem deveríamos
projetar, aqueles que afetamos todos os dias com nossas decisões. Voltando a atenção
para o espaço público, o pedestre seria então esse personagem a ser investigado.

O pedestre e o caminhar na cidade, dessa forma, claramente já faziam parte deste


trabalho, mas eu sentia que o “todo” ainda não estava definido, faltava “dar a liga”, como
vovó costuma dizer quando a massa do pão ainda não está no ponto certo de ir ao forno.

Sendo bem sincera, eu sempre tive medo de um trabalho de natureza analítica. Quem me
conhece sabe que eu curto muito mais a beleza das imagens do que a poética das
palavras. No entanto, as temáticas que me vinham a cabeça indicavam um trabalho um
tanto quanto teórico, e como uma “desculpa” para me incentivar a acreditar no potencial
daquilo em que eu não estava acostumada, tentei aproximá-lo de algo que eu me identifico 20
bastante, e que consegue ao mesmo tempo ser imagético e textual: a narrativa.

Não que eu seja adepta das grandes e intermináveis conversas, mas a narrativa está muito
presente em uma outra parte da minha vida: o teatro. No teatro somos educados a contar
histórias, as vezes até narramos experiências próprias em cena e é notável como o público
reage diferente. A narrativa proporciona esse sentimento de reconhecimento e
naturalmente desperta o interesse do outro.

O espaço de ensaio do grupo de teatro é para mim um espaço narrativo por natureza. Em
uma das minhas narrativas diárias sobre minha confusão de ideias para o TFG um dos
meus diretores sugeriu que eu buscasse na literatura um personagem de Charles
Baudelaire: o flâneur. O flâneur é um andarilho apaixonado pelo caminhar na cidade, que
experimenta a rua e a sente como sua própria casa.

Entendo que a narrativa está diretamente associada a experiência. E os escritos sobre o


flâneur são exemplos de narrativas da experiência de um personagem que caminha na
A PÉ

cidade. Se eu desejava pesquisar sobre pedestre e cidade, e queria que a narrativa


estivesse inserida, a questão da experiência chegou para dar liga ao que faltava.

Mas experiência urbana se tratava de um assunto que eu não tinha domínio e que só
entendia empiricamente por ser próximo do que eu conhecia, mesmo não tendo estudado
a fundo durante o curso, por apreensão da cidade ou então relação entre pedestre e meio
urbano.

E por mais que eu ainda não tenha encontrado uma definição objetiva para o conceito de
experiência na cidade, entendo que isso acontece por se tratar de um assunto de percepção
sensível. A experiência é particular a cada indivíduo, mas a vejo como parte de uma
(re)descoberta das cidades e daquela sensação agradável que eu costumava ter quando
21 saia sem rumo por Valencia, à procura de nada em específico, só com vontade de sentir
e de me sentir em contato com a rua.

Em busca de material teórico e metodológico que me contaminasse com o tema, e que


me desse um rumo para a real definição dos meus objetivos deste trabalho, comecei uma
leitura dedicada aos estudos do Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, e
dos textos de sua coordenadora, Paola Berenstein Jacques, em particular seu livro: Elogio
aos errantes de 2012.

Foi interessante reconhecer alguns assuntos e autores conhecidos meus. O Flâneur;


Charles Baudelaire e Walter Benjamin são exemplos. Mas a bagagem nova era muito
maior. Fui estimulada a voltar a ler sobre o contexto histórico do início do século XX,
durante o processo de modernização das cidades, associada a chegada do automóvel nas
metrópoles, quando as grandes transformações urbanas modificaram a vida cotidiana e
marcaram o momento em que o pedestre começa a se afastar da rua.

3. Meus tênis preferidos depois de


algumas caminhadas em Valencia .
Acervo pessoal, 2013.
INTRODUÇÃO

22
A PÉ

Também pude entender um processo que interfere diretamente na experiência sensível no


pedestre no espaço público: o processo de espetacularização das cidades que está
relacionado a homogeneização e banalização da produção do espaço em decorrência do
sistema capitalista. Estive em contato com pesquisas que buscam encontrar metodologias
de apreensão urbana as quais quase sempre incluem o corpo do pesquisador no processo
de investigação, e descobri possíveis produtos que ajudem a reconstruir a relação sensível
do pedestre com a cidade, através, por exemplo, da narrativa e do caminhar.

A partir desse processo de apropriação teórica, pude definir como a minha pesquisa se
organizaria. Em síntese, este trabalho se trata de uma investigação crítico-reflexiva dos
processos urbanos que interferiram e seguem interferindo na relação entre o homem e
cidade, com enfoque na experiência sensível do pedestre no meio urbano. Busca-se
23
através do olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, a elaboração de um
produto que consiga incitar uma reflexão acerca de como vivenciamos e experienciamos
nossas cidades, e quem sabe provocar uma nova maneira de enxergar lugares que
normalmente não visitamos e até mesmo (re)descobrir antigos ou novos caminhos pelos
quais ainda não havíamos caminhado.

Dentre os fatores que justificam esta pesquisa, lista-se primeiramente a minha frustração
quanto às condições de mobilidade urbana da cidade de Natal, assunto amplamente
discutido em meios acadêmicos e sociais. No entanto, atento, aqui, para um aspecto em
específico: aqui o foco acontece no pedestre e na sua relação com a rua e os espaços
públicos da cidade. Natal se encontra inserida em uma lógica de planejamento urbana
que privilegia o carro, em detrimento daqueles que caminham na cidade, afetando
diretamente nas relações sensíveis entre a rua e o pedestre. Atualmente, percebo um
esforço em discutir e repensar a cidade em pequena escala. Presenciamos projetos
urbanos que privilegiam o pedestre, o ciclista e o transporte público, e que investem na
melhoria da urbanidade em cidades do mundo todo, incluindo a própria Natal que
recentemente viu algumas de suas principais avenidas destinarem espaço exclusivo para
INTRODUÇÃO

ônibus e ciclistas. Ademais, ainda dentro dessa nova lógica que se busca criar, também
entendo como justificativa a necessidade de discussão e reflexão sobre processos que
interferem na experiência do pedestre na cidade de Natal, a exemplo do processo de
espetacularização das cidades. É importante entendermos o porquê do afastamento do
pedestre das ruas e como isso afeta no nosso sentimento de pertencimento na cidade. A
experiência apropriada pode ser uma grande aliada a uma reaproximação do pedestre com
os espaços públicos e à (re)descoberta das ruas.

O universo de estudo escolhido para a pesquisa é o centro histórico da cidade de Natal,


compreendido entre os bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas. A decisão pesa tanto pelos
aspectos históricos quanto por anseios pessoais. A importância da produção de trabalhos
que envolvam o universo de estudo contemplado, devido ao seu notório reconhecimento
24
e importância histórica e cultural para a cidade, também se configura como justificativa
da pesquisa.

O centro histórico de Natal foi tombado pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - como Patrimônio Histórico e Cultural em 2010. Natal nasceu ali e por
isso certamente é uma região repleta de memórias e narrativas que me interessam.
Também segue preservando o traçado das vias inicialmente pensado para atender aqueles
que andavam e se locomoviam lentamente pela cidade, o que me parece um universo de
estudo ainda mais convidativo quando se busca a provocação da relação entre pedestre e
meio urbano.

Mas também muito me interessa por ser uma região desconhecida e alheia ao meu
cotidiano. Vivo em Natal há dez anos e foram poucas as vezes que adentrei e me aventurei
a conhecer as zonas menos iluminadas do centro. Conheço aquilo que todos conhecem;
aquilo que aparece nos folhetos; que estão nas propagandas da prefeitura; os grandes
marcos; onde as festas geralmente acontecem e os edifícios que todo estudante de
arquitetura por obrigação deve saber identificar. Mas não sei dos espaços de criatividade,
A PÉ

4. A comunidade do Solar & Os


portões do MAM. Salvador, BA.
Igor Queiroz, 2015.

dos becos, dos desvios, dos atalhos. Não vivenciei ali aquele tipo de lugar em que depois
que você conhece, conversa e se apropria, sente que passa a fazer parte e fica à vontade.
Parece que são lugares capazes de transformar o olhar e a forma de se portar e de se
reconhecer na cidade.

Cada um de nós certamente tem um lugar desse guardado nas lembranças, algum lugar
de reconhecimento e importância particular. Me vem à memória o restaurante de Dona
Suzana, lá na Favela do Solar, em Salvador. Era sábado, eu acho, julho de 2013,
provavelmente meu último dia em terras baianas. Igor, um irmão amarelo que a Bahia me
deu, mora no alto da ladeira dos aflitos, pertinho do Solar do Unhão e ele disse que
precisava me levar para conhecer um lugar especial. Era quase a hora do almoço quando
descemos em direção ao Solar, que fica ali no MAM - Museu de Arte Moderna da Bahia,
25
em frente àquela baía linda de todos os santos. Igor é apaixonado por mar, ele certamente
ia se encantar por uma comunidade que tem os pés na areia e é cercada de prainhas
próprias. A Comunidade do Solar, como os moradores se identificam, fica ao lado do MAM,
abaixo da avenida Lafayete Coutinho, esse tipo de avenida de trânsito rápido que contorna
o litoral. Quem olha o mar de dentro do carro quando passa rápido por ali não consegue
ver a favela. Mas quando você desce uma ladeirinha, ao lado da estrutura que sustenta a
via já dá para ir sentindo a ambiência do local. Grafites colorem o caminho todo, tanto nas
estruturas, quanto nas ruas estreitas e nas casas, tudo tem cor. A rua fazia parte do MUSAS
- Museu de Street Arte de Salvador, e o MUSAS fazia parte da rua. Virando à direita em
uma ladeirinha, chegamos à casa de Dona Suzana, onde ela serve feijoada com guaraná.
O quintal onde o restaurante se estabelece é uma grande janela da comunidade para o
mar. Lembro que de lá a gente conseguia ver as crianças brincando na praia e os
barquinhos ancorados na areia.
26
A PÉ

27
INTRODUÇÃO

5. Maria Chiara e D. Suzana (acima), A


mesa do Restaurante (abaixo).
Igor Queiros, 2013.

Esse foi um dos melhores dias em Salvador, me senti, mesmo que só por um almoço,
pertencente àquele espaço. E posso afirmar que aquela feijoada com pimenta no quintal
de uma comunidade fez muito mais sentido para mim enquanto experiência na cidade do
que as visitas ao Pelourinho ou ao Elevador Lacerda. É o tipo de vivência que dá vontade
de narrar. E são esses espaços e essas histórias que eu procuro encontrar e vivenciar nesse
trabalho.

A apropriação do espaço faz parte da metodologia da pesquisa assim como a apropriação


dos conceitos teóricos mencionados anteriormente, e ela se dá através de visitas
acompanhadas à campo. Fazer corpo, ganhar corpo, dar corpo: são, em ordem de
acontecimentos, as etapas do processo metodológico. “Fazer corpo” equivale-se do lançar-
se a campo, deixar-se impregnar pela ambiência do espaço, é o momento da caminhada
28
e da narrativa. “Ganhar corpo” é o tempo de apropriação consciente das experiências, de
análise do que foi empregado. E “Dar corpo” é a tradução da experiência apropriada em
uma outra linguagem, em uma narrativa. Essa metodologia foi adotada a partir dos
resultados da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI”, coordenada
pela socióloga francesa Rachel Thomas em 2009, e das experiências metodológicas do
Laboratório Urbano da UFBA. O passeio acompanhado, proposto por Marta Dischinger
(2000) e as provocações sugeridas por Kevin Lynch (1960) na elaboração de mapas
mentais foram outros processos metodológicos que fizeram parte da construção da
primeira parte do processo de investigação em campo, o “fazer corpo”.

A construção de uma narrativa de apropriação do espaço urbano, baseada no olhar, nas


experiências e lembranças de quem anda e vive na cidade foi o caminho encontrado para
o produto final desse trabalho. Afim de ilustrar tal reflexão, uma micro-resistência urbana
em forma de intervenção artística critica na cidade compõe a conclusão final de ideias.
Para a inspiração criativa de tal intervenção, fez-se uso da sinalização voltada ao pedestre
devido ao seu caráter direcionador comum ao ambiente urbano, no entanto, como micro-
resistência sua natureza será voltada por um caminho essencialmente alheio a esse.
A PÉ

Busca-se a desorientação como uma aliada à descoberta e à (re)descoberta de uma outra


cidade, como uma porta de acesso às experiências e aos lugares narrados nas visitas
acompanhadas à campo.

Resgatando todas as etapas do processo de forma objetiva: Minha motivação inicial surge
de uma frustação pessoal em função dos problemas de mobilidade da cidade. Assim, o
pedestre e o caminhar são elementos motivadores da pesquisa. A narrativa foi apropriada
a partir do desejo de suavizar a natureza analítica do trabalho, e essencialmente, funciona
como um canal de transmissão da experiência, que passa a ser o elemento central da
pesquisa, a “liga”. Dessa forma, a temática é entendida como: A experiência sensível do
pedestre na cidade, e o universo de estudo escolhido é o centro histórico da cidade de
Natal, devido a sua importância histórica e por aspirações pessoais. A metodologia de
29
pesquisa acontece por apropriação teórica e presencial, em busca de narrativas de
experiências na cidade, tendo como base os seguintes autores: Walter Benjamin (1984),
Paola Jaques Berenstein (2012), Rachel Thomas (2009), Kevin Lynch (1960) e Marta
Dischinger (2000). O produto final acontece por meio de uma narrativa de apropriação
das experiências daqueles que caminham na cidade e se vale de uma micro-resistência
urbana como componente ilustrativo da reflexão final.

Dessa forma, as etapas do trabalho encontram-se organizadas em quatro capítulos:


começo com uma retomada da história do automóvel inserido na maneira de se pensar as
cidades em resposta a minha frustração pessoal e motivação inicial (1º capítulo); procuro
entender os processos que interferem na experiência sensível do pedestre na cidade através
de um referencial teórico-metodológico (2º capítulo); em seguida descrevo a metodologia
aplicada através da apresentação do universo de estudo e dos resultados das visitas
acompanhadas à campo (3º capítulo); para, enfim, apresentar a narrativa final de
apropriação de todo o processo (4º capítulo). Cada capítulo é iniciado através de um
prólogo, um espaço de narrativa pessoal que introduz o assunto abordado em seguida. No
antigo teatro grego, o prólogo era a primeira parte da tragédia, acontecia em forma de
INTRODUÇÃO

diálogo entre personagens ou através de monólogo, na qual se fazia a exposição do tema


da peça. Aqui o prólogo funciona da mesma maneira, e por isso é muito importante para
a total compreensão da essência do capítulo.

QUESTÃO DA PESQUISA E OBJETIVOS

Questão da pesquisa

Como a lógica do planejamento das cidades, que historicamente privilegiou a grande e a


média escala, interfere na experiência sensível do pedestre na cidade de Natal? Mais
precisamente em seu centro histórico?

Objetivo Geral
30
Provocar a experiência urbana através de uma narrativa crítico-reflexiva, baseada na
discussão da lógica do planejamento das cidades e em sua interferência na experiência
sensível do pedestre no centro histórico de Natal.

Objetivos Específicos

Discutir a lógica do planejamento das cidades, que historicamente privilegiou a grande e


a média escala em detrimento da escala do pedestre;

Entender os processos urbanos que interferem na experiência sensível do pedestre na


cidade;

Identificar criticamente os efeitos desses processos no centro histórico de Natal e as


possíveis reações;

Construir uma narrativa de apropriação do espaço urbano a partir do olhar e da experiência


de quem anda e vive na cidade, ilustrada por uma micro-resistência urbana em forma de
intervenção artística crítica na cidade.
A PÉ

31
32
A PÉ

33
CAPÍTULO UM

6. Carol assustada.
Acervo pessoal, 2015.

1.1 PRÓLOGO
CAROL
01 de setembro de 2015.

Desde março estagio na Como é de praxe nos primeiros dias de


Superintendência de Infraestrutura da todo estagiário, nós, os veteranos da
UFRN, aqui mesmo, no Campus casa, ficamos responsáveis por explicar o
Universitário. Somos 6 bolsistas ao todo. funcionamento de tudo. Localização dos
Grupo no WhatsApp; fofocas internas; arquivos, logins, senhas, impressoras.
playlists só nossas. O ambiente de
“Olha, ali é o banheiro e ali em baixo tem
trabalho desde sempre foi ótimo. 34
chá e café”.
Hoje foi o primeiro dia de uma nova
Depois das formalidades, partimos para
estagiária aqui no trabalho. Carol veio
as tradições. Já é costume: todos os dias
ocupar o lugar de um bolsista que se
paramos por volta das dez. Um sempre
formou e que já não podia mais trabalhar
lembra o outro quando a fome começa a
aqui.
apertar e diariamente saímos juntos para
Baixinha assim como eu, só que mais disfrutar da nossa happy hour matinal: o
nova, Carol tem 22 anos, pele clara, lanche.
cabelos longos. Chegou cedo, cumpriu o
Carol veio com a gente. Enquanto
horário como toda boa nova estagiária
saíamos do prédio em direção à rua, ela
deve fazer, se apresentou ao chefe e
parecia estranhar o caminho e não
ocupou sua mesa. Ela tem carro próprio,
entender muito bem o nosso provável
veio dirigindo para o trabalho.
destino.
A PÉ

“Gente, onde é a lanchonete? ”. Google, eu conferi. E o trajeto é


distribuído em uma distância menor do
Um de nós apontou para um edifício a
que 400 metros. Nossas caras de
uns 300 metros de distância, no final de
indignação com os hábitos de Carol
uma ladeira.
fizeram com que ela tentasse se justificar.
“Ali embaixo, ó.”
“Eu não era assim, juro. Acontece que
“Nossa. (Pausa). Por que tão longe? ”. depois que eu comecei a dirigir, uso o

Nos entreolhamos e rimos. carro pra tudo! ”

“Sério, Carol? Parece longe pra você? ”. Claro. Dá para entender, Carol. Afinal,
não é só você.
A surpresa com a “longa distância” gerou
35 Carol não é uma estagiária fictícia que eu
uma discussão sobre o que normalmente
fazíamos caminhando dentro do próprio inventei para iniciar o capítulo. Carol

Campus e de como nos acostumamos a realmente existe e certamente como ela

vencer essas distâncias a pé. Eis que, por existem outras e outros dependentes

mais uma vez, fomos surpreendidos com desse sistema motorizado em que

uma afirmação de Carol: vivemos, acostumados desde que


nasceram a conviver com a cultura do
“Gente, eu sempre vou lá da Arquitetura
culto ao carro, com a facilidade de se
para a Biblioteca de carro ”.
deslocar por aí sobre rodas e com
Mais uma pausa em busca do olhar experiências vivenciadas através da
assustado do outro. janela do passageiro.

Isso porquê, quem conhece o Campus Diante dos empecilhos que encontramos
Universitário sabe que a caminhada dos nas cidades brasileiras para aqueles que
Laboratórios de Arquitetura com destino ainda se “aventuram” a caminhar, é até
a Biblioteca Central dura em média 5 compreensível entender os hábitos de
minutos, 3 minutos de acordo com o Carol e sua dependência em dirigir. É
CAPÍTULO UM

fácil entender que ela é fruto de uma Dia após dia, as calçadas foram se
sociedade que patrocina, incentiva e esvaziando de gente e dando espaço para
direciona sua infraestrutura ao uso de as ruas se encherem de carros. O espaço
veículos motorizados. O problema, ou antes destinado ao pedestre tornou-se
parte dele, é como as cidades em que sujo, inseguro, desagradável, e
vivemos ainda são estruturadas sobre paulatinamente foi perdendo a atenção
rodas, como são frequentemente daqueles que são responsáveis por
analisadas de cima, e como nos parece projetar e gerir a cidade.
comum seguir repetindo os mesmos
A seguir, em “Contribuições históricas
costumes, os mesmos padrões.
para a era do automóvel”, procuro
Desde o início do século XX, “as relembrar, através de fragmentos da
36
metrópoles brasileiras passaram por história do automóvel e da história do
grandes transformações, em especial urbanismo, as motivações e possíveis
aquelas decorrentes do advento do justificativas que nos trouxeram para a
automóvel. De tal forma que, a partir de atual era do automóvel, afim de entender
certo momento, obra pública passou a a maneira como isso afeta o nosso hábito
ser um quase-sinônimo de obra de caminhar e experimentar a cidade.
rodoviária” (Rio Cidade, 1996, p.24).
A PÉ

37
CAPÍTULO UM

7. Os Boulevards : As grandes
avenidas de Haussmann.
Disponível em: http://goo.gl/5ApBoI

1.2 CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS PARA


A ERA DO AUTOMÓVEL
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
depressa muda mais que um coração infiel);

Paris muda!
Mas nada em minha nostalgia mudou!
Novos palácios, andaimes, lajeados,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria.
E essas lembranças pesam mais do que rochedos (...).
(BAUDELAIRE, 1985, p. 327)

Charles Baudelaire (1821-1867), poeta contemporâneo das reformas urbanas do Barão


de Haussman1 da Paris do século XIX, descreve e lamenta em seus poemas as drásticas
transformações que ocorriam na cidade. O poeta retratou o desaparecimento de uma certa
Paris por onde costumava perambular, uma vez que o espaço da rua passou a ser 38
projetado para acolher o trânsito crescente de veículos, colocando o pedestre em segundo
plano.

As ruas deixam de ser estreitas para que por elas se estreitem


as diferenças entre as classes. O plano urbanístico de
Haussmann alarga o espaço para que nele estampe a
diferença de tempos de seus habitantes. Pelas avenidas e
pelos boulevards, o passante já não é um transeunte: é a
parcela anônima, quase sempre indistinta, da multidão
(LIMA, 1980 p. 110).

Esta modernização transformou profundamente não só os lugares, mas também as


pessoas e suas relações com a cidade. As reformas urbanísticas de Haussmann
removeram do centro a população pobre, empurrando-a para os bairros periféricos. Além
da substituição da vizinhança, a experiência do caminhar, desprevenido e aleatório, era
agora interrompida e incomodada pela preocupação com o automóvel, e a atenção, antes

1 Entre 1853 e 1870, durante o império de Napoleão III, o barão George Eugène Haussmann,
prefeito de Paris na época, realizou grandes reformas urbanas na capital francesa.
A PÉ

39
CAPÍTULO UM

8. Antes e depois: Rua du Vieux-Colombier &


Igreja de St-Sulpice (acima). Rua Réaumur ,
Paris (abaixo).
Disponível em: http://goo.gl/5ApBoI

despreocupada, do passante, “voltou-se para as novas exigências do caminhar nas ruas,


como os sinais de trânsito, a busca das travessias de pedestres” (FREITAS, p. 06, 2011).
A modernidade dava direito, então, àqueles que podiam usufruir e pagar pela evolução.

Não demorou muito para que a modernidade e sua amiga, a evolução motorizada,
desembarcassem em terras tupiniquins. Trazido por Santos Dumont diretamente de Paris,
em 1881, chega ao porto de Santos o primeiro carro motorizado.

A disseminação do uso dos carros nas cidades alterava quase que “naturalmente” a forma
do espaço urbano, segundo Larica (2003) apud Leite (2006, p. 54), “o aumento das
distâncias proporcionadas pelo automóvel expandiu o raio de ocupação de áreas
metropolitanas em mais de 40 quilômetros alterando assim a forma da cidade“. O
automóvel, nesta época, era sinônimo de modernidade e a expansão das cidades deveria 40
acompanhar o ritmo, agora compassado a motor, capaz de alcançar altas velocidades.

E, subitamente, é a Era do Automóvel. O monstro


transformador irrompeu, bufando, por entre os escombros da
cidade velha, e como nas mágicas e na natureza, aspérrima
educadora, tudo transformou com aparências e novas
aspirações. Quando os meus olhos se abriram para as agruras
e também para os prazeres da vida, a cidade, toda estreita e
toda de mau piso, eriçava o pedregulho contra o animal de
lenda, que acabava de ser inventado em França (RIO, 1911,
apud CARUSO, 2010, p. 41).

João do Rio, pseudônimo do cronista carioca Paulo Barreto (1881 - 1921), descrevia, nos
jornais da época, as transformações urbanas que Pereira Passos2, o “Haussman tropical”,
realizou no Rio de Janeiro entre 1902 e 1904, e que ficaram conhecidas como o Bota-
Abaixo do centro. Seguindo a lógica parisiense, um dos principais objetivos do plano de
melhoramentos de Pereira Passos, apontados por Alfredo Rangel em 1904, era “dar mais

2
Francisco Franco Pereira Passos foi um engenheiro e político brasileiro. Foi prefeito da cidade do
Rio de Janeiro entre 1902 e 1906.
A PÉ

9. Avenida central: Demolições para a construção da avenida 1904 -


1905 (acima) Kok, 2005, apud LIMA, 2008. Traçado, sobre os
quarteirões coloniais (ao centro) PCRJ/IPP/RioArte, 2002, apud
LIMA, 2008. Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro,
1903 (abaixo). Disponível em: http://goo.gl/JZjL0r

franqueza ao tráfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituição das nossas mais
ignóbeis vielas por ruas largas arborizadas” (RANGEL apud JAQUES, 2012a, p. 31).

O cronista analisava o impacto do automóvel na sensibilidade do cotidiano do homem


carioca da época. Conta que a noção de mundo era inteiramente outra, a escala da cidade
foi bruscamente ampliada enquanto a paisagem, as árvores e “os trechos bonitos de
natureza” morriam para dar passagem ao automóvel. João do Rio pintava um cenário que
viria a ser um dos mais emblemáticos do processo de modernização das cidades brasileiras
do início do século XX. E não somente por marcar um momento de grande transformação
física da cidade, mas também por tematizar o ritmo acelerado da vida presente, marcada
agora pela necessidade de crescimento, modernização e pressa.

41 “Por muitas décadas, o carro foi apenas objeto de uso exclusivo da classe brasileira com
maior poder econômico, sendo praticamente inacessível para um trabalhador da época”
(LEITE, 2006 apud BASTOS, 2012, p. 107). A burguesia, com seu poder de compra e
de influência sobre o Estado, ajudou a criar o monopólio de uma classe sobre o espaço e
sobre o processo de urbanização das cidades brasileiras.

A contribuição do Estado vem através de políticas


governamentais ao longo de décadas, com incentivos ao
desenvolvimento das indústrias automobilísticas; no espaço
urbano a atuação deste se direciona para a implementação
de uma série de infraestruturas voltadas para o melhor
deslocamento de uma classe privilegiada, mas minoritária
dentro do sistema viário (BASTOS, 2012, p. 111).

A década de 1950 é um exemplo claro da valorização à cultura do automóvel no país. O


presidente Juscelino Kubitschek, que governou o Brasil entre 1956 e 1961, “empolgou o
país com seu slogan "Cinquenta anos em cinco", e conseguiu encetar um processo de
rápida industrialização, tendo como carro-chefe a indústria automobilística” (MACEDO,
2009, p. 88).
CAPÍTULO UM

42
A PÉ

43 JK promoveu a implantação da indústria automobilística com a vinda de fábricas de


automóveis para o Brasil. Em 1959, a Volkswagen foi a primeira indústria estrangeira a
inaugurar uma fábrica do ramo em solos brasileiros, certamente um empreendimento
seguro uma vez que o governo se empenhava em contribuir para a expansão do setor. O
Estado promoveu a abertura de “rodovias transregionais que uniram todas as regiões do
Brasil (...) e aumentou a produção de petróleo da Petrobrás” (BELLINI, 2012, p. 10).
Carros, vias e combustível não iriam faltar.

Dando continuidade aos trabalhos, durante o governo militar o Estado adotou o projeto
rodoviarista como “escolha econômica nacional, sendo este modelo o fruto de uma relação
intimamente costurada entre o governo e a indústria automobilística sempre em constante
ascensão” (COSTA, 2014, p. 43).

Quando o governo militar escolheu este tipo de transporte


como vetor para o avanço tecnológico, foco de investimentos
e trazendo o consequente desenvolvimento econômico, abriu
portas também para a industrialização automobilística no
sentido do consumo, de onde decorrerá a popularização do
automóvel e, consequentemente, cujo problema com a
CAPÍTULO UM

10. Inauguração da General Motors em São José dos


Campos (SP), em 1959, com a presença do então
presidente Juscelino Kubitscheck.

Disponível em: http://goo.gl/DWJ5n4

mobilidade urbana no Brasil é, também (não apenas), uma


consequência desta escolha (idem).

O “sucesso” da escolha rodoviarista como principal sistema de transporte nacional colhe


frutos e números impressionantes até os dias de hoje. Até a atual “crise financeira” de
2015, a indústria automobilística nacional apresentava “crescimento ininterrupto, em
produção, expansão e faturamento” (ibidem, p. 45). Segundo dados do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013, 54% dos domicílios no Brasil possuíam
carro ou motocicleta disponíveis para o deslocamento dos moradores e a frota de
automóveis e motocicletas apresentou crescimento de até 400% nos últimos dez anos.

No entanto, “o modelo rodoviarista hoje esbarra, principalmente, em uma crescente


conscientização sobre a necessidade de desincentivo ao uso do automóvel e a priorização
das políticas de mobilidade urbana” (COSTA, 2014, p. 46). Discutimos, já há algum 44
tempo, questões como a reformulação do sistema de transporte público; o incentivo a um
desenho urbano que encoraje a caminhada e o ciclismo, provocando “mais oportunidades
de interação social, bem como uma melhor sensação de segurança pública, uma vez que
se estabelece melhor o senso de comunidade” (LEITE, 2012, p. 145); bem como a criação
de “novos modelos de cidades, que rompem com a lógica racionalista da vida urbana”
(COSTA, 2014, p. 46).
Apesar de todos os esforços que o próprio governo tem feito
na medida em que cria leis, estatutos e diretrizes para
constituir base para um sistema menos caótico e mais
sustentável de mobilidade urbana, nos últimos anos o que é
possível identificar é a existência, ainda, de uma prioridade
pela manutenção do modelo rodoviarista (idem).

Além disso, não podemos esquecer “que o automóvel é, antes de tudo, uma mercadoria
(...) e possui papel fundamental na regulação da economia brasileira” (ibidem p. 48). No
entanto, não cabe a esse estudo o aprofundamento de questões como consumismo e
mercadoria; a manutenção do modelo rodoviarista brasileiro e de tantas outras em que no
contexto é pertinente. Todavia, atenta-se para a complexidade desse sistema que soma o
A PÉ

11. Plan Voisin : A cidade do futuro de Le Corbusier .


Disponível em: http://goo.gl/JZjL0r

peso de decisões históricas, influências externas e de uma importante função na estrutura


econômica e, porque não, cultural de um país.

Sobretudo, o carro não é, sozinho, o grande vilão causador das transformações urbanas
do Brasil e do mundo, mas certamente foi um importante direcionador dos investimentos
de infraestrutura estatais uma vez que esteve presente em momentos marcantes da história
do urbanismo moderno.

Podemos, a grosso modo, classificar o urbanismo moderno


em três momentos distintos, que se sobrepõem: a
modernização das cidades, de meados e final do século XIX
até início do século XX; as vanguardas modernas e o
movimento moderno (Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos 1910-20 até 1959
(fim dos CIAMs); e o que chamamos de modernismo (ou
45 moderno tardio), do pós-guerra até os anos 1970 (JAQUES,
2012a, p. 32).

O carro esteve presente no processo de transformação das antigas cidades, a exemplo de


Paris e do Rio de Janeiro, por meio da substituição das “ruas estreitas labirínticas em
grandes vias de circulação para automóveis, reduzindo assim as possibilidades da
experiência corporal direta, através do andar pelas ruelas, e, indiretamente, as
possibilidades de experiência da alteridade urbana” (ibidem, p.31).

Também fez parte do movimento vanguardista moderno e das quatro funções da cidade
moderna formuladas por Le Corbusier: habitar, trabalhar, recrear e circular. Circulação esta
realizada através de um “um sistema viário que elege o automóvel como principal meio de
locomoção no tecido urbano” (SILVA e ROMERO, 2011).

Daí surge a necessidade de se projetar um complexo sistema


de vias largas e retilíneas fundamentado na hierarquia,
conforme a velocidade, a classificação e o volume de
deslocamento. Desse modo, as pessoas são desestimuladas
a caminharem ou a utilizarem meios alternativos de
deslocamento, de exercício físico e de lazer esportivo (como a
bicicleta ou a corrida), face à dispersão urbana e à
CAPÍTULO UM

necessidade de perfazerem longas viagens diárias entre o


trabalho e o domicílio (idem).

No entanto, a questão do automóvel também foi incluída nas discussões do pós-guerra


em que vários autores tiveram palavra ativa na crítica à Cidade Moderna. O “significado
atribuído às ruas na constituição da vida nas cidades é, talvez, a mais relevante distinção
46
entre a postura urbanística moderna e sua crítica pós-moderna” (Rio Cidade, 1996. p.24).
Jane Jacobs, por meio de seu livro A Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas 3 de
1961, de fato foi pioneira em uma “pragmática, mas sociologicamente informada ‘apologia
da rua’” (idem). A jornalista americana contestou os princípios da Carta de Atenas4 e
reclamava a volta da ordem da cidade pela valorização do pedestre e da rua.

No Brasil, Roberto da Mata (1978) esquadrinhou os


significados sociais das categorias rua e casa, mas foi Carlos
Nelson F. dos Santos (1981), pesquisando o bairro do
Catumbi, quem observou que sob certas condições a rua pode
virar casa. James Holston (1982) foi mais longe: comparando
Brasília, Ouro Preto e Rio de Janeiro, dissecou em miúdos “a
morte da rua” promovida pelo urbanismo modernista de
matriz corbusiana” (Rio Cidade, 1996, p.24).

3 Título original: The Death and Life of Great American Cities


4 A Carta de Atenas é o manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna (CIAM), realizado em Atenas em 1933. A carta define o conceito de urbanismo
moderno, traçando diretrizes e fórmulas que, segundo os seus autores, seriam aplicáveis
internacionalmente. Considerava a cidade como um organismo a ser concebido de modo funcional,
na qual as necessidades do homem devem estar claramente colocadas e resolvidas.
A PÉ

12. Proposta dos Irmão Krier, da escola de Bruxelas para


a reconstrução de Stuttgard (1975).

Disponível em: http://goo.gl/Cn0vAs

“Neste ambiente de crítica à Cidade Moderna, a recuperação do passado parece ter sido
o assunto dominante, assim como os urbanistas seguintes voltaram a projetar ruas,
quarteirões e praças” (CARVALHO, 2009, p. 58). Na Itália5 surgem produções que
propõem a reabilitação das formas urbanas tradicionais; a escola de Bruxelas 6, por sua
vez, sugere “uma batalha do regresso ao passado, repropondo os materiais tradicionais na
construção, excluindo o automóvel, (...) numa utopia social que renuncia à
industrialização” (ibidem, p. 58 e 59).

Em síntese, o modo de pensar a cidade associado a crescente industrialização


automobilística dos últimos séculos interferiu não somente nas modificações espaciais dos
centros urbanos como também nas relações sociais. Apesar de um esforço crítico e do
surgimento projetos de valorização da rua, do pedestre e do ciclista, o que ainda se enxerga
47
no cotidiano das cidades é que cada vez menos o espaço urbano permite o encontro das
pessoas, do contato, da vivência, da interação social. Nossas relações espaciais e
corporais, o modo como nos locomovemos, os lugares por onde andamos, são resultado
de decisões históricas e uma pressão exercida pela Era do Automóvel em que, segundo
Lefèbvre (2006), o Habitar é substituído pelo Circular, permitindo na cotidianidade cada
vez mais a deterioração da vida urbana.

Diante do que foi apresentado, levanta-se a seguinte questão: Como esse contexto de um
urbanismo pensado durante muito tempo sob os padrões de modernização das cidades,
interfere na nossa consciência de experimentação urbana e na nossa apreensão da cidade
contemporânea?

5 As escolas de Milão e Veneza formaram o movimento La Tendenza, cujo pai é Giafranco Caniggia,
destacam-se também outros arquitetos como Aldo Rossi, Aymonio, Grassi e Carasi.
6 Em Bruxelas a crítica ao movimento moderno era comandada por Maurice Culot, ou pelos irmãos
Krier.
48
A PÉ

49
50
A PÉ

51
CAPÍTULO DOIS

13. Igor e os vaga-lumes


Acervo pessoal, 2015.

2.1 PRÓLOGO
VAGA-LUMES
20 de outubro de 2015.

Igor é um pequeno grande amigo de acabou por se tornar o principal ponto de


Salvador, dessas criaturas de luz e de arte partida para a construção conceitual
que a gente esbarra no meio da vida. Seu deste trabalho. Da última vez que visitei
apelido é Tatu. Desde que comecei a Salvador ele me deu quatro revistas
construir esse TFG, converso com ele em Redobra7, que, aliás, até hoje eu não
chamadas de vídeo via Skype. A internet consegui terminar de ler mas que são
da casa do Tatu é muito ruim e a imagem salva-vidas com milhões de textos e
frequentemente vai ficando cada vez artigos que brotam por lá. Enfim, Igor é
52
mais borrada no decorrer da conversa, daquele tipo de amigo inteligente que
mas nada que atrapalhe a santa-ajuda você admira e tenta sugar ao máximo
que ele me dá. todo conhecimento que pode, sabe? Ele
é um verdadeiro co-orientador a
Tatu é aluno da Universidade Federal da
distância.
Bahia, também estuda Arquitetura e
Urbanismo e foi a partir dele que eu Entre nossas conversas borradas via
comecei a ler sobre a experiência sensível Skype, eu fazia inúmeras perguntas, e
do pedestre na cidade. A leitura de entre as respostas que ele me dava
“Elogios aos Errantes” de Paola algumas muitas vinham acompanhadas
Berenstein Jacques, que inclusive é de uma expressão de “hmm, como você
professora do Igor, foi indicação dele e ainda não sabe disso?”, mas também

7
REDOBRA é uma publicação semestral do projeto de pesquisa "Laboratório Urbano: Experiências
metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea" [PRONEM -
Programa de Apoio a Núcleos Emergentes, edital FAPESB/CNPq 028/2010] desenvolvido pelo
grupo de pesquisa Laboratório Urbano - PPG-AU/FAUFBA. REDOBRA integra a plataforma de ações
CORPOCIDADE, realizada em parceria com o grupo de pesquisa LABZAT - PPG-Dança/UFBA.
A PÉ

eram quase sempre seguidas de uma saltimbanca me ajudou a iluminar boa


singela e educada pergunta: “Babina8, parte do caminho desse trabalho.
querida, você conhece ‘Sobrevivência
Georges Didi-Huberman é o autor de
dos Vagalumes’? Acho que seria
“Sobrevivência dos vaga-lumes” e espero
interessante que você desse uma lida”. A
que não me condenem por me referir a
sobrevivência dos vaga-lumes um livro
ele por Didi, aqui. Acho mais íntimo. Por
recente (2011) e “fininho”, segundo Igor,
que não praticar o coleguismo, não é
de autoria de um filósofo e historiador
mesmo? Ainda estamos no prólogo! E
francês. Eu fui adiando essa leitura até
como narrativa pessoal, pelo menos
que as perguntas começaram a me
nesse espacinho aqui, eu dito as regras.
incomodar e nem o Igor que era o Igor já
53 podia me responder. Tive que ler sozinha Didi nos apresenta Pier Paolo Pasolini,

mesmo. Confesso que sua silhueta Paolo então, se me permitem. Um jovem

“fininha” ajudou bastante em criar de 19 anos que viria a se tornar um

coragem para a leitura. conhecido cineasta e escritor italiano na


maturidade, no entanto, não é preciso
E ainda bem que fiz isso.
nos estendermos muito, a história segue
Acho que já ia para além da metade em sua juventude. Era 1941, cidade de
desse capítulo quando terminei de ler o Bolonha, ao norte da Itália, Paolo escreve
livro, um fininho de 160 páginas um uma carta a um amigo contando uma
tanto quanto densas. Confesso que fiquei dessas aventuras por entre a natureza,
realmente muito empolgada, alguns que são comuns à juventude.
conceitos e reflexões ficaram mais claros
A amizade é uma coisa belíssima. Na
depois da leitura. Por isso, dedico esse noite da qual te falo, jantamos em
Paderno e, em seguida, na escuridão
prólogo aos vaga-lumes e a sua luz sem lua, subimos até Pievo dei Pino,
errante que mesmo pequena e vimos uma quantidade imensa de
vaga-lumes (abbiamo visto una

8
Babina é meu apelido, acho que ainda não me apresentei assim. Eu gosto. Parece único.
CAPÍTULO DOIS

quantità immensa di lucciole), que claramente dois projetores muito


formavam pequenos bosques de fogo distantes, muito ferozes, olhos
nos bosques de arbustos, e nós os mecânicos aos quais era impossível
invejávamos porque eles se amavam, escapar (due riflettori lontanissimi
porque se procuravam em seus voos eferoci, occhi meccanici a cui non era
amorosos e suas luzes (perché si dato sfuggire), e então fomos tomados
amavano, perché si cercavano con pelo terror de sermos descobertos
amorosi voli e luci), enquanto nós (PASOLINI, 1940-1954, p. 36 apud
estávamos secos e éramos apenas DIDI-HUBERMAN, 2011, p.21).
machos numa vagabundagem artificial.
(PASOLINI, 1940-1954, p. 36 apud Os amigos decidiram passar a noite em
DIDI-HUBERMAN, 2011, p.19).
meio a natureza, e quando o sol ia
Didi não nos deixa esquecer em que nascendo no horizonte, Paolo conta que
momento Paolo disfrutava de sua se despiu e que dançou em honra a luz
mocidade. Aquele foi o ano em que a que o aquecia naquela manhã fria no
Itália iniciava uma tentativa de norte da Itália. “Dançava como um 54
participação mais ativa na 2ª guerra pirilampo, como um vaga-lume” (DIDI-
mundial. General; tropas; reconquista; HUBERMAN, 2011, p.22), vivia esses
exército e frotas são palavras que o autor “tais momentos de exceção em que os
usa para contextualizar a ambiência da seres humanos se tornam vaga-lumes”
época. “Haveria, então, de um lado, os (Ibidem, p.23).
projetores da propaganda aureolando o
Didi conta que exatos trinta e quatro
ditador fascista com uma luz ofuscante.
anos, contados noite após noite, após
Mas também os potentes projetores [...]
escrever sua bela carta em que narrava a
perseguindo o inimigo nas trevas do céu”
aparição dos vaga-lumes, Pasolini
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p.16). Luzes
publicava “um artigo sobre a situação
ferozes, como Paolo contou em sua carta.
política de seu tempo, [...] com o título
Assim estávamos, naquela noite; que se tornou famoso: ‘O artigo dos vaga-
escalamos em seguida os flancos das
colinas, entre os arbustos que estavam lumes’” (ibidem, p.25): “O vaga-lume
mortos, e sua morte parecia viva;
atravessamos pomares e bosques de está morto, perdeu seus gestos e sua luz
cerejeiras carregadas de ginjas e na história política de nosso
chegamos ao cume. De lá, viam-se
A PÉ

contemporâneo sombrio, que condena à acreditavam que os vaga-lumes, ou que


morte sua inocência” (PASOLINI, 1975, a nossa capacidade de nos tornar vaga-
apud HUBERMAN, 2011, p.24) lume, teria desaparecido pelos ventos
junto com a última leva de bichinhos
Seu artigo era, na verdade, um lamento
brilhantes que se teve notícia. Giorgio
fúnebre pelo o que ele chamou de
Agamben, por exemplo, um dos filósofos
desaparecimento dos vaga-lumes, mas
mais inquietantes de nosso tempo,
que muito tinha a ver com a perda desses
segundo Didi, é um desses pessimistas
“sinais humanos da inocência” (DIDI-
natos.
HUBERMAN, 2011, p.25) e com a
nossa capacidade de experiência Todo discurso sobre a experiência deve
partir atualmente da constatação de
sensível. Pasolini falava em que ela não é algo que ainda nos seja
55 dado fazer. Pois, assim como foi
enfraquecimento cultural e em tragédia,
privado da sua biografia, o homem
culpava a modernidade e seu amigo contemporâneo foi expropriado de sua
experiência: aliás, a incapacidade de
consumismo por invadirem a cidade com fazer e transmitir experiências talvez
a luz dos holofotes e dos projetores, seja um dos poucos dados certos de
que disponha sobre si mesmo
capazes de ofuscar e afastar a beleza das (AGAMBEN, 2005, original de 1978,
apud, JACQUES, 2012a).
pequenas luzes, dançantes e erráticas.
Acontece que mesmo com motivos para
Não foi na noite que os vaga-lumes
desapareceram, com efeito. Não, os ser pessimista, existem aqueles que vem
vaga-lumes desapareceram na no pessimismo a motivação para fazer
ofuscante claridade dos “ferozes”
projetores: projetores dos mirantes, dos diferente, para criar coragem e correr
shows políticos, dos estádios de
futebol, dos palcos de televisão (idem). atrás do que parece estar perdido. Didi se
apega aos pensamentos de Walter
Acontece que Paolo não sentenciou essa
Benjamin9 que assim como ele não se
tragédia sozinho. Outros autores,
contentava em aceitar a sentença de
pessimistas por natureza, também

9
Walter Benjamin (1892-1940), além de um inquietante filósofo alemão do início do século XX,
também foi crítico literário, tradutor e sociólogo.
CAPÍTULO DOIS

tragédia, e juntos eles me convenceram coreografia, de uma invenção de


formas (HUBERMAN, 2011, p. 127).
de que por mais defendida que fosse essa
história de expropriação da experiência e Assim como o pedido da urgência em se

desaparecimento dos vaga-lumes, abrir olhos, outras provocações são feitas

realmente ela se tratava de uma nas páginas finais do livro. Por mais que

afirmação apocalíptica e assim como a o valor da experiência tenha caído de

maioria das versões do fim do mundo, cotação, “cabe somente a nós não

não passava de uma assustadora fantasia apostarmos nesse mercado” (Ibidem, p.

em que não somos obrigados a acreditar. 126). Depende de nós não deixar que os
vaga-lumes se deem por desaparecidos.
Questionar pode ser o primeiro passo
Nos tornemos vaga-lumes então, vamos
para a negação. Se não encontramos
organizar esse pessimismo. Busquemos 56
mais os vaga-lumes como se encontrava
por essas experiências que ainda
antigamente, ainda é possível acreditar
sobrevivem escondidas, mesmo que
que eles não tenham desaparecido, mas
reduzidas às sobrevivências e aos
que talvez estejam escondidos, talvez
simples lampejos da noite. Afinal, como
ainda estejam acostumados a se proteger
aprendi com esse livro fininho e um tanto
dos ferozes projetores das cidades. O que
denso: “a experiência é indestrutível”.
fazer então? Seria “necessário abrir os
olhos na noite, se deslocar sem
descanso, voltar a procurar os vaga-
lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p.49).

Somos “pobres em experiência”?


Façamos dessa mesma pobreza - dessa
semiescuridão - uma experiência. [...]
O valor da experiência caiu de cotação,
mas cabe so-mente a nós, em cada
situação particular, erguer essa queda
à dignidade, à “nova beleza” de uma
A PÉ

57
CAPÍTULO DOIS

2.2 EXPERIÊNCIA:
CHOQUE, ESPETÁCULO E NARRATIVA

Estudiosos, filósofos e poetas do final do século XIX já narravam em sua


contemporaneidade a preocupação com a expropriação da experiência sensível na
modernidade. Alguns sentenciaram o “desaparecimento dos vaga-lumes”, e anunciavam
a tragédia em que o sensível estaria em vias de desaparecer.

“Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno de ti e


tomes consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A
tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem
singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras” 58
(PASOLINI, 1975, apud HUBERMAN, 2011, p.30 - 31).

No entanto, essa visão apocalíptica foi questionada por tantos outros estudiosos, filósofos
e poetas ao passar dos anos. Concordavam entre si que havia, sem dúvidas, motivos para
ser pessimista, contudo atentavam para a organização desse pessimismo e provocavam
uma postura questionadora e proativa.

Afim de assumir essa postura que questiona, reflete e se apropria de conceitos e críticas
com o intuito de construir uma nova provocação; em “Experiência: choque, espetáculo e
narrativa”, prioriza-se, de antemão, o entendimento do contexto em que a discussão da
experiência sensível está inserida. A história, contribuições de pesquisas acadêmicas e
estudos práticos na cidade indicam caminhos que podem ser seguidos.
A PÉ

2.2.1 CHOQUE

Somente para um indivíduo insensível a experiência é carente de sentido e imaginação.


(BENJAMIN, 1984, p. 24)

Não é de hoje que se discute a perda da capacidade de experienciar do ser humano diante
das transformações provindas da modernidade. Paola Berenstein Jacques10 em seu livro
“Elogio aos errantes” apresenta um pouco do que já foi dito em relação ao empobrecimento
e até mesmo a destruição dessa capacidade. A autora dá início com a abordagem de
Walter Benjamin em Experiência e Pobreza (1933) e as percepções do autor sobre o
esvaziamento das experiências na modernidade, no contexto da chegada ao poder do
nazismo na Alemanha.
59
Pobreza de experiências: não se devem imaginar que os
homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a
libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que
possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza
externa e interna, que algo de decente possa resultar disso.
Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas
vezes, podemos afirmar o oposto: eles ‘devoraram’ tudo, a
‘cultura’ e os ‘homens’, e ficaram saciados e exaustos. ‘Vocês
estão todos cansados – e tudo porque não concentraram todos
os seus pensamentos num plano simples, mas absolutamente
grandioso (BENJAMIN, 1994, p. 118).

O ritmo frenético que permeia a vida dos indivíduos, consequente da modernização das
cidades, é apontado pelo autor como uma das causas das transformações nas relações
humanas. Entre elas, Benjamin ressalta o desinteresse do homem moderno por novas
experiências, resultando, obviamente, na perda da capacidade de intercambiá-las. Ricardo

10
Professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Paola Berenstein
Jacques coordena o grupo de pesquisa Laboratório Urbano, que investiga metodologias para a
compreensão da complexidade do espaço público contemporâneo.
CAPÍTULO DOIS

Timm de Souza11 aborda a temática no capítulo “Walter Benjamin” de seu livro “As fontes
do humanismo latino” em que aponta sintomas da pobreza de experiência na
modernidade.

Existências deslocadas umas das outras, desconexões como


fato naturalizado, o humano fragmentado, desenraizado de si
mesmo, exposto, solitariamente, à sua indigência, à violência
de um mundo que o seduz continuamente a fazer parte ativa
nele. Um mundo perdido, atônito, onde a esperança lateja de
forma quase imperceptível. Um mundo que permite ao
mesmo um diagnóstico infinitamente profundo e
infinitamente simples: pobreza (SOUZA, 2004, p. 58).

A agitação, o inquietamento, as grandes transformações, o novo que surge a cada dia, a


modernidade que exige atualização diária. Milhões de novas informações são
bombardeadas a todo momento, novos hábitos e novos costumes são criados, tão novos 60
quanto carentes de reconhecimento. Em meio à tanta produção e em tão pouco espaço
para o ócio, o homem se recolhe, se vê perdido em uma imensidão de novas e
espetaculares possibilidades.

A maneira como esse ritmo acelerado interferiu no homem moderno brasileiro também
esteve presente nos textos do cronista carioca João do Rio. Em Vidas vertiginosas de 1911,
mesmo livro em que ele escreve a Era do automóvel, o cronista nos conta sobre essa
sensação de ansiedade e imediatismo que se deu sob imposição das transformações
urbanas sofridas no Rio de Janeiro do início do século XX. “Agora é correr para a frente.
Morre-se depressa para ser esquecido dali a momentos; come-se rapidamente sem pensar
no que se come; arranja-se a vida depressa, escreve-se, ama-se, goza-se como um raio;
pensa-se sem pensar, no amanhã que se pode alcançar agora” (RIO, 2006, p.8-9).

11
Ricardo Timm de Souza é doutor em Filosofia pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg
(Alemanha – 1994), e professor titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atuando nos programas de pós-graduação em
Filosofia, Letras e Ciências Criminais desta universidade.
A PÉ

61
CAPÍTULO DOIS

14. O ritmo frenético das cidades. O


metrô de São Paulo.

Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/3336

A nova percepção, o novo ritmo, o desmanchar do passado para advento do novo, mas
principalmente o novo homem e as novas relações sociais nos permitem reconduzir o
ideário de Walter Benjamin e de João do Rio àquela “atitude blasé” do homem moderno
proposta por Georg Simmel12 em “A metrópole e a vida mental”, de 1903. Simmel elabora
a figura do “homem blasé”, personagem que para se proteger da intensa e nervosa vida
moderna, se torna “blasé”, distante, anônimo - “o oposto daquele habitante dos vilarejos,
onde todos se conhecem, onde todos têm nome e sobrenome, possuem uma ‘identidade’
e um rosto próprio” (JACQUES, 2012a, p. 50). Este homem acaba se escondendo e
guardando sua subjetividade contra toda violência da grande cidade, contra o choque
metropolitano.

No entanto, mediante à velocidade imposta por meio das transformações urbanas de


62
modernização das cidades, surge na Paris do século XIX através de Baudelaire, um
personagem literário ou de carne e osso. Aquele que caminha pela cidade para
experimentá-la, que vaga pelas ruas apenas a contemplar a vida: o Flâneur13.

Para Siegfried Kracauer14, o flâneur “era aquele que não se protegia psicologicamente,
mas, justo ao contrário, buscava a experiência do choque com o Outro, com os vários
outros anônimos, a embriaguez da multidão” (KRACAUER, 1925 apud JACQUES, 2012a,
p. 51). O flâneur de Charles Baudelaire “não se esconde, ele se perde voluntariamente,

12
Georg Simmel (1858-1918) foi um sociólogo alemão que desenvolveu trabalhos de investigação
da sociedade a partir das ações e reações dos atores sociais.
13
Para João do Rio, ser flâneur “é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus
da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas
da população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser
artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis,
que podem ficar eternamente adiadas” (RIO, João do., 1997, p. 51).
14 Siegfried Kracauer (1889-1966) foi um escritor, jornalista, sociólogo e crítico alemão de
cinema. Ele por vezes tem sido associado com a Escola de Frankfurt de teoria crítica.
A PÉ

com um inebriante prazer, entre a alteridade e o anonimato da multidão” (JACQUES,


2012a, p. 53).

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como


a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a
multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador
apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso,
no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito.
(BAUDELAIRE, 1996, p. 197).

Jacques relaciona a experiência do flâneur, “ao vivenciar a cidade antiga sendo demolida
para dar lugar a grande cidade modernizada” (JACQUES, 2012a, p. 49) com o que
Simmel, Kracauer e Benjamin, cada um à sua maneira, chamaram de “‘estado de choque’:
o choque da modernidade, mas, sobretudo, o choque da transformação da cidade antiga
e a emergência da metrópole moderna” (idem).
63
O aparecimento de cinemas, [...] dos novos letreiros
publicitários em neon, das novíssimas lojas de
departamentos, primórdios dos shoppings centers, o aumento
vertiginoso dos jornais e a profusão de notícias provocam uma
enorme excitação nervosa, uma espécie de vertigem de
sentidos, uma hipertrofia dos olhares, um estado de choque
(idem).

Dessa forma, o “estado de choque” pode ser percebido como uma resposta humana, na
esfera do sensível, às grandes transformações da humanidade. Uma interferência direta
na maneira de se vivenciar a cidade, dessa forma, também uma potente pista na
formulação de uma resposta para o questionamento levantado no final do primeiro
capítulo: Como esse contexto de um urbanismo pensado durante muito tempo sob os
padrões de modernização das cidades, interfere na nossa consciência de experimentação
urbana e na nossa apreensão da cidade contemporânea?

Os autores trazidos por Jacques, assim como a própria pesquisadora, debatem a questão
da experiência diante das transformações urbanas contemporâneas a eles e é possível
notar pontos de interseção em seus pensamentos. O flâneur e o homem blasé são
CAPÍTULO DOIS

exemplos de “produtos” humanos dessas transformações, assim como o recolhimento do


personagem de Simmel, por exemplo, se aproxima da pobreza de experiência do homem
moderno de Benjamin e de João do Rio. Todos esses personagens surgem em meio ao
desmanchar do antigo para o advento da modernidade e revelam novas e distintas formas
de olhar o espaço urbano e de lidar com o choque. O “estado de choque”, por sua vez,
seria uma comprovação de que a experiência sensível, subjetiva dos habitantes das
grandes cidades, tanto do ponto de vista material quanto psicológico, sofreu mutação.

64

15. Os personagens humanos


da modernidade.
Acervo pessoal, 2015.
A PÉ

Buscando compreender um pouco melhor os motivos do empobrecimento da experiência


na modernidade, transfere-se a discussão para a contemporaneidade sem fugir do âmbito
das transformações e do planejamento urbano. Jan Gehl, arquiteto dinamarquês autor do
livro “Cidades para Pessoas” (2010, identifica três diferentes escalas de planejamento
urbano: a grande escala, em que a cidade é vista de cima, como em um voo de avião; à
media escala: em que se pensa nos quarteirões e na organização de seu espaço, como se
vista de um voo baixo de helicóptero, e, por fim, a pequena escala, a do pedestre. O autor
defende que esta última é a menos pensada e a mais impactante no nosso cotidiano, uma
vez que é através dela em que interagimos com o ambiente a nossa volta.

65

16. Escalas de planejamento


urbano.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS

A pequena escala é claramente a escala da experiência, da vivência e da apreensão da


cidade. O que o arquiteto dinamarquês constata quando afirma que a escala do pedestre
é a menos pensada, nada mais é do um reflexo da maneira como as cidades foram
modernizadas e planejadas, privilegiando o planejamento à grande e média escala em
detrimento da esfera do sensível.

Michel de Certeau15 nos fala daqueles que experimentam a


cidade, que a vivenciam de dentro – ou “embaixo” como ele
diz, referindo-se ao contrário da visão aérea, do alto, dos
urbanistas através dos mapas. Para De Certeau, essas
pessoas são praticantes ordinários das cidades; ele dedica um
capítulo ao “andar na cidade”, o que considera a forma mais
elementar de experiência urbana (JACQUES, 2012a, p. 267).

Considerando a ideia de Michel de Certeau de que o andar na cidade é a forma mais


elementar de experiência urbana, mais uma pista é levantada a respeito dos motivos pelos 66
quais a experiência na cidade passa por esse processo de esvaziamento. Virou hábito
“vivenciar” uma cidade voltada para o automóvel. O ambiente climatizado do carro
certamente parece mais convidativo do que um “passeio” por uma calçada que
funcionalmente é muito mais borda delimitadora da via do que espaço para o pedestre. O
carro faz parte dessas cidades historicamente pensadas através do voo de pássaro.

Vale também algumas reflexões empíricas sobre os hábitos contemporâneos, por mais que
pesquisas16 comprovem o que atualmente constata-se com facilidade: Parece que

15 Michel de Certeau (1925 - 1986) foi um historiador e erudito francês que se dedicou ao estudo
da psicanálise, filosofia, e ciências sociais.
16
Natal já foi considerada, em 2011, a capital nordestina mais sedentária do país de acordo com
a pesquisa “Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito
Telefônico – VIGITEL BRASIL 2011” do Ministério da Saúde. E segundo a Pesquisa Nacional de
Saúde realizada pelo IBGE em 2013, “A proporção de adultos classificados na condição de
insuficientemente ativos no Brasil foi de 46,0%”, ou seja, quase metade da população adulta
brasileira é considerada sedentária. Entre os índices determinantes para esse resultado está a
“atividade física no deslocamento”, apenas 12% dos entrevistados praticam alguma atividade
A PÉ

caminhar virou empecilho, assim como a prática da experiência urbana: postura que
aparentemente só se mostra instigante quando se está longe de casa, de férias em outra
cidade. Também são notórios o desinteresse e o descaso com o espaço urbano, inúmeros
exemplos de desrespeito com o meio ambiente, com a rua, com o pequeno, são
considerados banais atualmente. Não sentimos a pequena escala como a escala da
experiência, fomos habituados a negligenciá-la, a diminuí-la.

Em resumo, as transformações urbanas, trabalhadas em grande escala além de


modificarem o estado físico e material das grandes cidades também interferiram na
experimentação dos espaços públicos pelos cidadãos. Tal interferência provocou um
“choque” capaz de gerar uma reclusão social, uma atitude blasé de distanciamento,
ameaçando a existência de experiência urbana. A pequena escala, então, que
67
historicamente não recebeu a devida atenção política e não esteve no foco dos grandes
investimentos governamentais, perde muito com esse distanciamento, tem sua essência
perturbada. No entanto, em contraponto ao choque, aparecem personagens que
comprovam o não desaparecimento dessa experiência e sim um empobrecimento da
relação descontruída com o advento da modernidade. Relação essa que pode ser resgatada
através da sua “forma mais elementar”: o caminhar.

durante as atividades diárias de deslocamento, o que demonstra que caminhar atualmente no Brasil
está longe de ser um habito comum à população.
CAPÍTULO DOIS

2.2.2 ESPETÁCULO

Ainda em busca argumentos que ajudem a sustentar a ideia de que mudamos a nossa
forma de experimentar a cidade, e considerando este um universo de ampla investigação,
mais um elemento é trazido para fomentar a discussão. Paola Berenstein Jacques, em seu
texto “Notas sobre espaço público e imagens da cidade”17 de 2009, continua revelando
pistas sobre a questão em debate neste trabalho. A autora defende que estamos
vivenciando hoje, um processo de esterilização urbana.

O processo de esterilização não destrói completamente a


experiência, ele busca sua captura, domesticação,
anestesiamento. A forma mais recorrente e aceita hoje desse
processo esterilizador faz parte do processo mais vasto de
espetacularização das cidades e está diretamente relacionado
com a pacificação dos espaços urbanos, em particular, dos 68
espaços públicos (JACQUES, 2012a, p. 14).

O processo de espetacularização das cidades ao qual Jacques se refere é objeto recorrente


em críticas no meio acadêmico, “mesmo que muitas vezes com outros nomes: cidade-
cenário, cidade-museu, cidade genérica, cidade-parque-temático, cidade-shopping, em
resumo: cidade-espetáculo18” (JACQUES, 2009) denominação idealizada por Guy Debórd,
influente pensador do movimento Internacional Situacionista.

O movimento Internacional Situacionista costumava discutir, no final da década de 1950


e começo dos anos 60, “temas por onde a vida humana, [...] se desenvolvia: a
universidade e o meio estudantil, a produção espacial, a arte e cultura, a economia, o
cotidiano” (FREIRE, 2015, p.24). Em seu trabalho mais conhecido, o livro “A sociedade

17
Texto em parte apresentado oralmente na mesa redonda “Espaço Público e Imagens da Cidade"
no XIII Encontro Nacional da ANPUR que ocorreu em Florianópolis (25 a 29/05/09) publicado no
portal Vitruvius no mesmo ano.
18
Espetáculo no sentido dado por Guy Debord, que diz: “o espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem” in A sociedade do espetáculo, 1997.
A PÉ

17. Cidade espetáculo: Montagem do Rio de


Janeiro. O que se vende: a praia, os pontos
turisticos e a cidade que se globaliza.
Disponível em: http://goo.gl/6iLbgb

do espetáculo” Debórd dedica um capítulo “ao tema do planejamento espacial, discorrendo


sobre a homogeneização e banalização da produção do espaço em decorrência do sistema
capitalista” (idem).

A produção capitalista unificou o espaço, que já não é


limitado por sociedades externas. Essa unificação é ao mesmo
tempo um processo extensivo e intensivo de banalização. A
acumulação de mercadorias produzidas em série para o
espaço abstrato do mercado, assim como devia romper as
barreiras regionais e legais e todas as restrições coorporativas
da Idade Média que mantinham a qualidade da produção
artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade
dos lugares. Essa força de homogeneização é a artilharia
pesada que faz cair todas as muralhas da China (DEBÓRD,
1997, p. 111 apud FREIRE, 2015, p.24).

Jacques defende que o esvaziamento dos espaços públicos - vivos, intensos e conflituosos,
69
a diminuição da participação cidadã e a consequente perda da experiência corporal nas
práticas urbanas cotidianas está diretamente relacionado a esse processo de
espetacularização que toma campo nas cidades contemporâneas.

A espetacularização acontece por meio de um processo de mercantilização das cidades, e


é indissociável das estratégias publicitárias, de marketing e de branding19 das cidades, que
buscam a construção novas “identidades” que lhes garanta um lugar na geopolítica das
redes globalizadas das cidades turísticas.

Dentro dessa lógica de cidade mercadoria, “os espaços públicos contemporâneos, (...)
também são vistos como estratégicos para a construção e a promoção destas imagens de
marca consensuais, ou seja, são pensados enquanto peças publicitárias, para consumo
imediato” (JACQUES, 2009). O que segundo a autora resulta em um esvaziamento da

19
Branding ou Brand Management é uma atividade multidisciplinar que trata da construção de
marcas. Envolve marketing, planejamento, comunicação e design.
CAPÍTULO DOIS

própria experiência urbana, em particular da experiência sensível e corporal das cidades -


70
o que transborda a pobre visualidade imagética.

A pesquisadora afirma que atualmente, é possível notar a realização de projetos urbanos


no mundo inteiro que buscam a transformação de espaços públicos em cenários
homogêneos, desencarnados, padronizados e consensuais. Os logotipos e a identidade
visual de cidades distintas, a exemplo de seus cartões postais, se parecem cada vez mais
entre si.

A padronização também acontece em pretensão a uma semelhança com os espaços


privados. Afim de eliminar conflitos, criam-se imagens de espaços públicos pacificados e
domesticados, algumas vezes cercados e amplamente controlados. “As imagens dos
espaços públicos das cidades, quer seja Barcelona ou Salvador, veiculadas em seus sites
oficiais, por exemplo, são também imagens de espaços pacificados e domesticados”
(JACQUES, 2009).

A pacificação do espaço público, através da fabricação de


falsos consensos, busca esconder as tensões que são
inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a
A PÉ

própria esfera pública, o que, evidentemente, esterilizaria


qualquer experiência e, em particular, a experiência da
alteridade nas cidades (JACQUES, 2012a, p. 14).

Como em um grande espetáculo a cidade é tomada de luz. Luz em toda sua essência
atrelada à “longa duração do ideário da iluminação, bastando citar: “a luz da razão”, “a
luz da inteligência”; “a luz do espírito” (RIBEIRO, 2012, p.66).

À luz, associada ao conhecimento, à ciência, à arte superior


e à metafísica, se opõe, tanto na religião como na ciência, à
escuridão dos sentidos, às pulsões da carne, ao pecado e aos
meandros mais ameaçadores da natureza. A luz, refletindo e
permitindo o exercício da visão, constitui-se na síntese entre
técnica e ação subjacente às propostas de evolução,
progresso e controle dos aspectos mais renegados da
existência (Idem).
71

18. Espaços luminosos e


espaços opacos.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS

Ana Clara Torres Ribeiro20 espacializa claramente o conceito de luz dentro da configuração
de espetáculo urbano. A pesquisadora relembra que a “luz também, escolhe, seleciona e
oculta, engrandecendo espaços, transformados em espaços luminosos, e esmaecendo ou
esquecendo outros, abandonados em sua opacidade” (idem). Os espaços luminosos
seriam espaços de vida plena, valorizada, repleta de beleza. São mais do que espaços
iluminados, são produtos racionais de estratégias comandadas pela modernidade,
oferecem uma visão de mundo desejada e desejável.

É fácil viver em um espaço luminoso, afinal ele é pronto, limpo e livre de conflitos. Seduz
pelo brilho, pelos padrões de beleza e estimula nossa preguiça pela fácil leitura e pelos
caminhos pré-estabelecidos. No entanto, a luz que ofusca também produz sombra, e assim
como a luminosidade, os conceitos atrelados a esse espaço de sombra, escondido, opaco,
72
são naturalmente reconhecidos pelo senso comum. “Uma opacidade que se aproxima da
falta de importância, do desinteresse, do literal apagamento e do radicalmente negativo”
(ibidem, p.67). Para Milton Santos, os espaços opacos são representados como feios, sem
interesse ou perigosos pelo pensamento dominante. Os espaços opacos seriam, então,
espaços da sobrevivência, “espaços com menos técnica e mais inventividade, com menos
dominação e mais domínio” (ibidem, p.68).

Na cidade ‘luminosa’, moderna, hoje, a ‘naturalidade’ do


objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de
gestos sem surpresa. Essa historicização da metafísica crava
no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da
modernidade que se justapõem, superpõem e contrapõem ao
resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas
‘opacas’. Estas são os espaços do aproximativo e da
criatividade, opostos às zonas luminosas, espaços da
exatidão. Os espaços inorgânicos é que são abertos, e os

20
Ana Clara Torres Ribeiro foi uma socióloga e professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Criadora e coordenadora do
Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território (Lastro), desenvolveu a pesquisa sistemática
da Ação Social (reivindicações, protestos e lutas) em contextos metropolitanos, a proposição de
novos conceitos e categorias e exercícios com a denominada cartografia da ação.
A PÉ

espaços regulares são fechados, racionalizados e


racionalizadores (SANTOS, 1996, p.221).

Essa outra cidade, tomada de espaços opacos, escondida, ocultada, existe e resiste por
trás das imagens dos cartões-postais. “As imagens simulacros consensuais não
conseguem apagar essa "outra cidade" latente e pulsante” (JACQUES, 2009). A cidade-
viva, em que esta outra cidade toma corpo, poderia ser vista de fato como uma forma de
resistência à espetacularização.

Os personagens que ocupam as zonas opacas das cidades são chamados de errantes por
Jacques, aos quais ela dedica seu livro “Elogio aos errantes” e considera como figuras
determinantes para a análise da experiência urbana. Ao praticarem suas errâncias pelas
ruas da cidade – em flanâncias percorridas pelo personagem de Baudelaire; ou nas
73 deambulações aleatórias dos surrealistas e dos dadaístas em suas excursões urbanas por
lugares banais; ou ainda em derivas inerentes ao pensamento urbano dos situacionistas,
de errância voluntária pelas ruas e de crítica radical ao urbanismo moderno – os errantes
indicam “uma possibilidade de [...] resistência ou insurgência contra a ideia da [...] perda
ou destruição da experiência a partir da modernidade” (JACQUES, 2012a, p. 19).
CAPÍTULO DOIS

As experiências erráticas buscam recorrentemente as brechas,


margens e desvios dos holofotes do espetáculo urbano e que,
assim, como os vaga-lumes de Georges Didi-Huberman,
esses “seres luminescentes, dançantes, erráticos e
resistentes” sobrevivem, mesmo quando reduzidos à
clandestinidade de simples lampejos. A sobrevivência dos
lampejos errantes dos vaga-lumes é potente, apesar de frágil,
assim como a sobrevivência teimosa dos próprios errantes
urbanos, que erram pela opacidade – pela opaca cidade ou
cidade opaca – e resistem aos projetores do espetáculo da
cidade luminosa (ibidem, p. 37).

As errâncias evidenciam, então, alternativas de se vivenciar a urbanidade em busca de


uma “experiência de alteridade na cidade”. Jacques defende como alternativa a prática de
ações políticas que conduzam uma resistência à espetacularização. Um dos caminhos
possíveis apontados pela pesquisadora é a intervenção artística.
74
As ações artísticas críticas na cidade – que podem ser vistas
tanto como [...] "micro-resistências urbanas", na
denominação que preferimos usar – têm o objetivo de ocupar,
se apropriar do espaço público para construir outras
experiências sensíveis e, assim, perturbar essa imagem
tranquilizadora e pacificada do espaço público que o
espetáculo do consenso tenta forjar (JACQUES, 2009).

Para Jacques Rancière21, a intervenção artística é capaz de promover ficções ou novas


relações, tensões ou dissensos, ou seja, outras formas de reconfiguração da nossa
experiência sensível. Essas intervenções são propostas por Jacques sob o conceito de
“micro-resistências urbanas” que têm o objetivo de ocupar e de se apropriar para construir
outras experiências sensíveis, ajudando a perturbar essa imagem pacífica forjada pelo
espetáculo do consenso.

A autora ainda chama atenção para a potencialidade da experiência corporal urbana como
micro-resistência. A experiência urbana se inscreve no corpo daquele que a experimenta,

21
Jacques Rancière (1940) é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-
Fee e professor emérito da Universidade de Paris.

19. Errantes nas zonas opacas.


Acervo pessoal, 2015.
A PÉ

75
CAPÍTULO DOIS

20. Intervenção urbana aCerca do Espaço - Coletivo Zona


de Interferência (BH/MG) .
Diego Mauro Ribeiro, Paola Berenstein Jacques, outubro
de 2008, arredores do Campus da UFBA
em Ondina, Salvador.

criando uma relação sensível e dissensual do corpo com o espaço público. Além disso,
Jacques entende que esse tipo de intervenção pode produzir, um material, mesmo que
empírico, que ainda é pouco considerado nas análises urbanas tradicionais de
planejamento urbano. E explicita o quanto é importante que se aprenda a trabalhar com
os conflitos e tensões inerentes ao espaço público. Sendo assim, “a arte crítica - a
experiência sensível enquanto micro-resistências sobre ou no espaço público - pode vir a
ser, efetivamente, uma grande aliada. (...) possa efetivamente nos ajudar a inventar (...)
um urbanismo mais dissensual, incorporado e vivaz” (idem).

Em síntese, o processo de espetacularização das cidades soma para a noção de


empobrecimento da experiência, produzindo espaços padronizados e esterilizados. Como
exemplo, é possível retomar as transformações urbanas da Paris do século XIX e do Rio
76
de Janeiro de Pereira Passos. Cidades diferentes, espacialidades distintas e projetos com
o mesmo objetivo: pintar um novo cenário globalizado, alargar as ruas e construir grandes
avenidas. Substanciais transformações em virtude do tráfego de veículos nas ruas da
cidade.

A domesticação urbana enfraquece a relação de reconhecimento e identidade entre o


usuário e o espaço e contribui para o consenso do desaparecimento da experiência na
cidade, deixa-se de perceber a vivência como apreensão. No entanto, o reconhecimento
daqueles que erram e o incentivo à pratica de micro-resistências, como por exemplo
intervenções artísticas na cidade, podem contribuir para o desequilíbrio desses espaços
fabricados.

Destaca-se ainda a importância do corpo inserido nesse processo de resistência e atenta-


se para uma outra forma de análise urbana, que leva em consideração a experiência
sensível no meio urbano como alternativa para uma reflexão crítica da maneira de como o
planejamento urbano se desenvolveu historicamente e de como suas decisões seguem nos
atingindo.
A PÉ

2.2.3 NARRATIVA

O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros.
E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história
BENJAMIN, 1994, p. 201.

Nos textos de Walter Benjamin é possível notar uma nítida diferença entre dois tipos de
experiência, que são termos distintos em sua língua mãe, o alemão.

Erlebnis, a vivência, o acontecimento, uma experiência


sensível, momentânea, efêmera, um tipo de experiência
vivida, isolada, individual; a e Erfahrung, a experiência
maturada, sedimentada, assimilada, que seria um tipo de
experiência transmitida, partilhada, coletiva (JACQUES,
2012a, p.18-19).

77 Benjamin não acreditava no esgotamento e muito menos na destruição da Erlebnis, a


experiência vivida, a vivência; mas na incapacidade de convertê-la em experiência
acumulada, coletiva, a Erfahrung, ou seja, de transmiti-la.

Quando se pede em um grupo que alguém narre alguma coisa


o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados
de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1936
apud JACQUES, 2013, p. 16).

Benjamin acreditava que estaríamos então privados, não exatamente da capacidade de


vivenciar experiências, mas, sobretudo, de intercambiá-las, narrá-las. “Para o autor, mais
do que a experiência propriamente dita (em termos de vivência), era a arte de narrar que
estaria em vias de extinção” (JACQUES, 2012a, p.19).

Considerada uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Walter Benjamin no


Brasil, a professora de filosofia da PUC-SP e de teoria literária da Unicamp, Jeanne Marie
CAPÍTULO DOIS

21. Transmissão da experiência.


Acervo pessoal, 2015.

78
A PÉ

22. Projeto "SUR-fake": Novas formas de


se comunicar na modernidade.
Disponível em: http://antoinegeiger.com/SUR -FAKE

Gagnebin, explica em entrevista22 algumas possíveis causas para o nosso atual


desinteresse em narrar nossas experiências pessoais e assim transformá-las em coletivas.

[...] a faculdade de contar e de ouvir histórias é intimamente


ligada a uma temporalidade pré-capitalista, para dizê-lo de
maneira sucinta. [...] Com o advento da industrialização e do
capitalismo, o tempo da produção se torna um fator essencial
da obtenção da mais-valia e, portanto, do lucro. Essa
aceleração se torna universal, também em relação aos
processos de narração, de escrita (Twitter!), de transmissão e
de experiência: a vivência (um termo introduzido no fim do
século XIX) designa uma experiência individual, não mais
ancorada numa experiência coletiva, geralmente ligada a um
presente fugidio, não mais ancorado numa tradição comum
(GAGNEBIN, 2014, p.14).

A pesquisadora ainda questiona: “Aliás, quem ainda tem tempo para ouvir de maneira
79 gratuita, pelo simples prazer de ouvir? ” (GAGNEBIN, 2014, p.14). O ritmo acelerado que
presenciamos atualmente, que teve início com o advento da modernidade as quais incluem
as grandes transformações urbanas, é capaz de transformar a maneira e os meios de
comunicação cotidianos. “Elas continuam existindo, mas são outras: ensaio efêmero,
romance, filme, conto curto, videoclipe! E também são menos duráveis porque seguem a
lei das novidades mercadológicas” (GAGNEBIN, 2014, p.14).

O Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, do qual Paola Berenstein Jacques


é coordenadora, desenvolve uma pesquisa intitulada “Experiências metodológicas para a
compreensão da complexidade da cidade contemporânea”, a pesquisa toma a noção de
experiência e de sua transmissão em forma narrativa, como princípio norteador de
investigação metodológica.

22
Entrevista concedida ao Laboratório Urbano da UFBA em 2014, publicada na revista Redobra
Nº 14.
CAPÍTULO DOIS

80
A PÉ

O estudo desenvolvido associa a questão das narrativas diretamente à questão da memória


e, assim, da forma de se contar ou de se narrar a história, de transmiti-la. A narrativa
também é diretamente relacionada com “as experiências de trabalho de campo,
etnográfico, de escuta do outro, da escolha de interlocutores, das diferentes formas de
relatos de encontros” (JACQUES, 2013, p. 13). Entende-se que o próprio exercício de
narração se associa ao movimento, a prática espacial, à viagem ou ao simples andar pela
cidade.

A narração, em qualquer forma de narrativa (textual,


fotográfica, audiovisual, etc.), não somente exprime uma
prática, uma ação, nem se contenta em dizer o movimento,
ela já o faz ao narrar. Uma narrativa seria assim uma prática
do espaço, um tipo de ação, que poderia ser cartografada,
mapeada. Essas cartografias partem de experiências físicas,
81 corporais. O próprio corpo pode ser compreendido como um
tipo de cartografia da experiência urbana (JACQUES, 2013,
p. 14).

Em busca de encontrar e experimentar diversas possibilidades metodológicas para a


apreensão da cidade contemporânea, o Laboratório Urbano promove seminários,
discussões abertas e oficinas afim de fomentar o debate. Entre as possibilidades
encontradas, a narrativa se insere tanto no processo quanto no produto da pesquisa. Seja
em um trabalho de investigação da memória na cidade através da narrativa de um
personagem local, ou da ida à campo com olhar atento às pequenas particularidades para
depois cartografá-las, ou seja, narrá-las através de um mapa.
CAPÍTULO DOIS

2.3 UM PRODUTO
SENSÍVEL
A partir de toda leitura e experimentação teórica baseadas na questão da sensibilidade e
do corpo, onde o homem e sua experiência sensível não estão somente inseridos no
processo como são o foco da pesquisa, a decisão por uma metodologia e por um produto
certamente não fugiria dessa ambiência.

Os vaga-lumes, depende apenas de nós não vê-los


desaparecerem. [...] Devemos, portanto, [...] nos tornar vaga-
lumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade
do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças
apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na
noite atravessada de lampejos e não se contentar em
descrever o não da luz que nos ofusca (HUBERMAN, 2011,
p. 154 - 155). 82
É o momento de ir a campo, a hora do processo próximo da experiência sensível. A
metodologia deve integrar o corpo e a narrativa no processo e no produto. Produto esse
que deve instigar a transmissão de pensamentos de natureza crítica e buscar a
(re)descoberta da cidade e dos vaga-lumes que se escondem das luzes do espetáculo.

O espaço do processo, de análise em campo, acontece em pequena escala, na rua, em


busca das zonas opacas da cidade e de seus desvios e becos, a procura da narrativa dos
vaga-lumes resistentes ao processo de espetacularização urbana.

A metodologia escolhida para o desenvolvimento deste trabalho, em suas etapas de visita


a campo, análise e criação da narrativa de apropriação do espaço, é praticada pelo
Laboratório Urbano do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA em suas oficinas e foi
adotada a partir dos resultados da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século
XXI”23, que se divide em três etapas: fazer corpo, ganhar corpo e dar corpo.

23
“A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI - Entre passividade e plasticidade do corpo
em movimento” é uma pesquisa internacional coordenada pela socióloga francesa Rachel Thomas
em parceria com Brasil e Canadá.
A PÉ

83
CAPÍTULO DOIS

23. Metodologia fazer corpo/ ganhar corpo/ d ar corpo, durante a


pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI”.
Realizada em Salvador (BA, Grenoble na França e Montreal no
Canada.

Disponível em: www.caminharnacidade.ufba.br

“fazer corpo”, que se trata do momento em que o pesquisador


entra no campo e deixa-se impregnar pelas ambiências;
“ganhar corpo”, é o “despertar dos corpos” dos pesquisadores
a partir das experiências incorporadas na etapa anterior; e
“dar corpo”, que se refere à construção de linguagens e
instrumentos narrativos acerca da experiência (PENA, 2012,
p. 50 - 51).

A primeira etapa, o fazer corpo, é a fase do trabalho em campo em que o pesquisador


funciona não apenas como um corpo em movimento no espaço, mas também como um
“instrumento de inteligibilidade dos processos engendrados no cotidiano com relação aos
pedestres, entre eles e às ambiências urbanas” (THOMAS, 2013, p.9). Entende-se que
sob esse ponto de vista seja necessário um desvio pela subjetividade na análise realizada
pelo pesquisador afim de compreender a complexidade da experiência sensível ordinária.

O passeio acompanhado, proposto por Marta Dischinger24 (2000) e as provocações 84


sugeridas por Kevin Lynch (1960) na construção de mapas mentais ajudaram na
construção e organização da versão do “fazer corpo” proposta aqui como primeira etapa
do processo de investigação em campo.

Os Passeios Acompanhados consistem em visitas a campo realizadas pelo pesquisador


em companhia de pessoas que apresentam alguma característica relevante à pesquisa.
Foram propostos inicialmente para a análise das dificuldades de deslocamento, orientação,
uso ou comunicação de pessoas com deficiências ou limitações físicas. No entanto, neste
trabalho, a característica relevante à pesquisa é a experiência vivida pelo entrevistado nos
espaços públicos da área de estudo, ou seja, sua vivência como pedestre nas ruas.

24
Essa técnica foi apresentada por Marta Dischinger (2000) no seu artigo “Designing for all senses:
accessible spaces for visually impaired citizens”, por ocasião do seu doutorado em Architecture
Scholl, na Chalmers University of Technology, na Suécia. Dischinger é Professora Adjunta da
Universidade Federal de Santa Catarina.
A PÉ

O primeiro procedimento para a execução dos Passeios


Acompanhados, logo após a escolha dos indivíduos que serão
entrevistados, é a determinação de percursos de interesse de
acordo com sua relevância dentro dos objetivos do estudo a
ser realizado. Os percursos devem possuir um ponto de
partida e objetivos a alcançar. (DISCHINGER 2000).

Dischinger acrescenta que o pesquisador não deve conduzir ou ajudar o entrevistado na


tomada de decisões durante o percurso. O processo pode ser registrado através de
anotações, gravações e fotografias, e deve-se pedir ao entrevistado detalhes de questões
relativas ao passeio. Posteriormente os registros devem ser organizados de modo a ilustrar
aspectos relevantes, podendo inclusive ser localizados espacialmente em mapas dos
percursos percorridos.

Por se tratar de uma análise que busca a apreensão de aspectos de natureza sensível,
85
associadas à narrativa, memória e percurso, questionamentos foram elaborados para
melhor apropriação da experiência urbana do entrevistado. As provocações sugeridas por
Kevin Lynch, em seu livro “A imagem da cidade”, publicado 1960, foram levadas em
consideração na formulação das perguntas fomentadoras das conversas entre pesquisador
e entrevistado.

A pesquisa de Lynch buscava evidenciar a qualidade visual das cidades por meio do estudo
das imagens mentais que seus habitantes faziam delas. Pela primeira vez, uma pesquisa
perceptiva com base em conceitos e métodos da psicologia buscava “compreender os
espaços da cidade, a partir da percepção que os habitantes tinham de determinada área
e qual o significado da cidade para os mesmos” (LIMA, 2008, p.45).

O autor considera que a imagem é formada pelo conjunto de sensações experimentadas


ao observar e viver em determinado ambiente. Uma qualidade visual em específico
recebeu sua atenção: a legibilidade, entendida como a “facilidade com que cada uma das
partes [da cidade] pode ser reconhecida e organizada em um padrão coerente” (LYNCH,
CAPÍTULO DOIS

1960, p.2). Para uma melhor definição do conceito, Lynch decompõe a ideia de
legibilidade em três componentes: identidade, estrutura e significado.

Uma imagem viável requer, primeiro a identificação de um


objeto, o que implica sua diferenciação de outras coisas, seu
reconhecimento enquanto entidade separável. A isso se dá o
nome de identidade, não no sentido de igualdade com alguma
outra coisa, mas com o significado de individualidade ou
unicidade. Em segundo lugar, a imagem deve incluir a relação
espacial ou paradigmática do objeto com o observador e os
outros objetos. Por último, esse objeto deve ter algum
significado para o observador, seja ele prático ou emocional
(LYNCH, 1960, p. 09).

Esses três conceitos identificados pelo autor ajudam na análise da percepção ambiental
do usuário, portanto, se aproximam dos procedimentos de busca pela apreensão da
experiência sensível de quem vivencia a cidade, uma vez que, segundo o autor, um 86
ambiente legível possibilita uma experiência urbana mais intensa e segura. Por mais que
Lynch tenha sido cauteloso em relação ao “significado”, entende-se que cada cidadão tem
determinadas associações com partes da cidade, e a imagem que ele faz delas está
impregnada de memórias e significados.

“No quarto capítulo do livro citado, o autor propõe caminhos para dar uma nova forma a
cidade, tratando do desenho dos elementos que constituem o espaço urbano: vias, limites,
setores, pontos nodais e marcos” (LIMA, 2008, p.46). Estes elementos são abordados em
entrevistas que Lynch realizou com os habitantes de três cidades americanas. No final de
seu livro, um roteiro da entrevista é apresentado e sugerido como modelo a ser seguido.
Além da sequência de tradicionais perguntas e respostas, também faz parte do método a
produção de mapas mentais pelos entrevistados.

Este trabalho toma como inspiração metodológica, para a primeira etapa de visita a campo,
o Passeio Acompanhado e as entrevistas propostas por Lynch, mas não tem a intenção de
se prender às suas sequências e determinações pré-estabelecidas. Do passeio
acompanhado extrai-se o caminhar pela cidade e a vivência da experiência do outro em
A PÉ

24. Metodologia aplicada em Oficina do Laboratório


Urbano da UFBA, em 2011.
Disponível em: Revista Redobra nº 9..

meio urbano, e das entrevistas propostas por Lynch são colhidas as perguntas referentes
aos percursos feitos pelos entrevistados e a busca pela descoberta dos significados da
cidade, particulares à cada indivíduo. Intenciona-se de antemão a realização de passeios
acompanhados com todos os entrevistados, mas, prevendo possíveis adversidades e
indisponibilidades por parte deles, a entrevista in loco também é considerada.

As caminhadas coletivas propriamente ditas fizeram parte da etapa do “fazer corpo”


realizada durante o processo da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século
XXI” e na oficina “Partilha e conflito no espaço público” proposta pelo Laboratório Urbano
da UFBA em 2011.

No final desta caminhada coletiva, um tempo de isolamento


foi dado a fim de permitir que cada um registrasse suas
87 impressões num diário de bordo. Os diferentes grupos de
pesquisadores se reuniram para um momento de retomada
da experiência e de troca. Estes momentos, registrados
sistematicamente, tinham como objetivo relatar as
ambiências percebidas e a vida do bairro (THOMAS, 2010).

O ganhar corpo já se inicia no momento do relato e do registro das impressões do passeio


acompanhado. É importante que esses registros ocorram logo após as caminhadas. A
segunda parte do ganhar corpo trata-se da apropriação desse material que foi recolhido
em campo, seja através da narrativa, de uma cartografia ou de imagens.

E a última etapa metodológica, dar corpo, é a “a implementação de um pensamento do


corpo envolvendo necessariamente a criação de linguagens e criações de instrumentos
narrativos específicos” (THOMAS, 2010). Entre os produtos já produzidos em oficinas
realizadas pelo Laboratório Urbano da UFBA estão “miniaturas” urbanas videográficas e
um diário de bordo por meio do blog em ambiente virtual.
CAPÍTULO DOIS

88
A PÉ

Segundo Rachel Thomas, socióloga responsável pela pesquisa em que a metodologia foi
desenvolvida, “a realização dessa metodologia consiste em repetir – ao longo do trabalho
de pesquisa – as fases de imersão no campo, as fases de atuação dos corpos em
movimento” (THOMAS, 2013, p.9). A pesquisadora fala em “encarnar” as ambiências
urbanas e a partir disso traduzi-las em novas experiências narradas.

Pretende-se a partir desse fazer corpo/tomar corpo/dar corpo provocar a experiência através
de uma narrativa de reflexão, uma apropriação crítica das experiências daqueles que
caminharam ou relataram suas lembranças mais significativas durante as entrevistas. Afim
de articular a experiência corporal com esse produto essencialmente narrativo e até agora
teórico, intenciona-se ilustrar tais reflexões através de uma micro-resistência urbana.

89 Um caminho encontrado durante a pesquisa para a produção dessa micro-resistência é o


da intervenção artística crítica. Entre os campos da arquitetura, em que a arte e a estética
se acercam, existe um que se aproxima do corpo no meio urbano: a comunicação visual
e mais precisamente os projetos de sinalização são elementos comuns a rua e ao pedestre.

O Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito é dividido em seis fascículos: Sinalização


Vertical de Regulamentação; Sinalização Vertical de Advertência; Advertência de Indicação;
Sinalização Horizontal; Sinalização Semafórica e Sinalização de Obras e Dispositivos
Auxiliares. Cada número contempla uma série de normas e “considerações gerais” sobre
o assunto. Logo nas primeiras páginas de cada publicação, um quadro com os princípios
da sinalização do trânsito é apresentado, tais princípios devem ser seguidos por todas as
categorias citadas anteriormente. Entre os ideais apresentados estão a padronização; a
clareza e a precisão. Tais conceitos fogem dos objetivos e claramente não se encaixam
dentro do referencial conceitual desse trabalho, não serão considerados devido sua
objetividade e dureza.

Dessa forma é de grande importância salientar que a escolha por um caminho próximo da
sinalização para o pedestre e da comunicação visual se vale das possibilidades livres de
CAPÍTULO DOIS

modificação e do não cumprimento de qualquer norma ou manual técnico sobre o assunto.


A apropriação da sinalização acontece através de uma micro-resistência urbana de caráter
de intervenção artística, com objetivos críticos-reflexivos. Busca-se a transmissão de uma
mensagem e encontra-se na sinalização um suporte comum ao ambiente urbano, assim,
faz-se uso desse suporte com a intenção de (re)significá-lo por meio da apropriação da
ambiência local.

90

25. Sinalização na Praia Do Uruaú – Beberibe (CE).


Olívia Patrício, 2015
A PÉ

Enquanto o urbanismo busca a orientação através de mapas


e planos, a preocupação do errante estaria mais na
desorientação, sobretudo em deixar de lado seus
condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educação do
urbanismo está voltada para a questão do se orientar.

[...]

A propriedade de se perder seria uma das maiores


características do estado de corpo errante e está diretamente
associada a outra, também relativa ao movimento: a lentidão.
Quando estamos perdidos, passamos para um movimento do
tipo lento, uma busca de outras referências espaço-temporais,
mesmo se estivermos em meios rápidos de circulação
(JACQUES, 2012b, p. 199)

A sinalização em sua plenitude é parte desse urbanismo que busca a orientação e o


direcionamento, no entanto, como micro-resistência urbana ela será voltada por um
91
caminho essencialmente alheio a esse. Busca-se a desorientação como uma aliada à
descoberta e (re)descoberta de uma outra cidade, o “perder-se” talvez seja a porta de
acesso às zonas opacas, e a sinalização como produto gráfico e visual pode auxiliar na
tarefa de indicar onde há luz nesses espaços, pode auxiliar na tarefa de ascender os vaga-
lumes.

Por fim, é preciso definir com bastante clareza as margens entre o que é de fato o produto
final desse trabalho - uma narrativa de reflexão, escrita, teórica - e o que contribui para a
conclusão do pensamento com a inserção do corpo, ilustrando a reflexão previamente
produzida - uma micro-resistência urbana crítica de caráter artístico, inspirada na
sinalização urbana. Ambos fazem parte da finalização desse trabalho, a reflexão narrativa
como produto final estabelecido e a micro-resistência urbana como uma aliada artística.

O processo completo de análise, montagem e criação do produto, assim como suas


justificativas e particularidades serão descritos nos próximos capítulos deste trabalho.
CAPÍTULO DOIS

2.4 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
As grandes transformações urbanas além de modificarem o espaço físico das grandes
cidades também foram capazes de interferir na experimentação sensível do ser humano
no espaço público. Choque, espetáculo e narrativa revelam alguns fatores inerentes a esse
processo.

Partindo do espetáculo, entende-se que as grandes transformações urbanas são claros


exemplos do processo de espetacularização das cidades. Essas transformações ajudam a
criar espaços luminosos, que são produzidos em favor da modernidade para acompanhar
a velocidade movida a motor e sobre quatro rodas. Atrelado a esse processo, temos um
urbanismo que incentiva o voo distante, do alto, que projeta a partir de grandes escalas,
92
em favor das largas avenidas e das longas distâncias, um urbanismo que contribui para a
produção em série desses espaços homogeneizados; padronizados e consensuais.

O choque aparece nesse contexto como uma resposta sensível daqueles que vivem em
baixo, daqueles que sofrem os efeitos dos holofotes do espetáculo. O choque, então, diz
respeito a como o humano lida com essas grandes interferências pensadas em grande
escala que acabam por modificar a pequena, afinal ela foi historicamente deixada de lado
e dessa forma, em termos do sensível, do humano, foi a escala que mais sofreu. A
modernidade impõe um ritmo acelerado, frenético, inédito, e como resposta ao choque, o
homem moderno se protege, distanciando-se da vida em pequena escala. Ele deixa de
caminhar, desabitua-se a experimentar a cidade em sua forma mais elementar para
proteger-se dentro de um veículo, que já nasce com dois grandes faróis em sua dianteira
a guiar e indicar o caminho, e mais duas gritantes luzes vermelhas na parte de trás para
que não nos esqueçamos dele mesmo quando nos dá as costas.

O tempo corre apressado, é a era do instantâneo. E quem tem tempo de sobra hoje em
dia? Quem tem tempo para ouvir e contar histórias? Quem entende a vivência na cidade
A PÉ

como experiência a fim de transmiti-la em uma narrativa? Transformar a experiência


individual - efêmera, instantânea - em experiência coletiva - maturada, sedimentada -
acontece, segundo Walter Benjamin, através de um fenômeno que perdeu valor mediante
ao ritmo frenético das grandes transformações: o ato de narrar.

O que está oculto em meio a esse contexto é o que garante esperança em forma de
resistência. O outro lado, as zonas opacas da cidade e seus frequentadores, seres errantes,
incorporados em suas narrativas ao decorrer da história nos levam a acreditar que a
experiência urbana resiste. Essas zonas de criatividade, de experiência sensível,
geralmente são áreas onde a luz dos holofotes não chega. São lugares assim, iluminados
ao brilho dos vaga-lumes, em que essa experiência que tanto se busca nesse trabalho,
reside, e é por esse caminho que ele segue adiante.
93
O compartilhamento dessas áreas opacas e das experiências vividas nesses espaços por
meio de intervenções críticas na cidade pode contribuir para uma resistência à
transformação do espaço público em lugar homogêneo e consensual. A metodologia do
fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo auxilia na apropriação do espaço e no entendimento
das relações entre o corpo e a cidade, além de incentivar a transmissão dessa experiência
por meio de uma narrativa.

26. Uma saída?


Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS

94
A PÉ

95
96
A PÉ

97
CAPÍTULO TRÊS

27. Cegar com tapume.


Acervo pessoal, 2015.

3.1 PRÓLOGO
TAPUMES
29 de outubro de 2015.

Lenilton é um dos diretores do grupo de Alta e Ribeira. E em uma de suas


teatro que faço parte. Um amigo que atividades de labuta diária, precisou
costumo perturbar por ser daltônico, que visitar o Terminal Marítimo de
me diverte contando causos cotidianos e Passageiros do Porto de Natal para uma
que sempre tem uma resposta ou uma vistoria antes da entrega. A obra foi
definição para algo que eu não conheço. parcialmente entregue em meados de
2014, fazia parte das obras para a Copa
Todas as segundas, quartas e quintas-
do Mundo e está localizada ali no largo
feiras, costumamos compartilhar, antes
da Rua Chile, na Ribeira.
de começar o ensaio do grupo de teatro,
um pouquinho do que se passou no Um pouco indignado, mas com um certo
98
nosso dia. E como é comum aos conformismo de quem já presenciou
estudantes do último semestre de ações parecidas na cidade, Lenilton me
qualquer curso de graduação, faz alguns contou sobre a primeira imagem da
meses que o assunto que levo para esses cidade que foi apresentada aos
momentos é o TFG. passageiros que desembarcaram no
terminal durante seus primeiros meses
Quando, ainda no início do trabalho, falei
de funcionamento. Ao saírem em direção
da minha intenção em trabalhar com o
a cidade, os visitantes eram recebidos por
centro histórico e com a rua, Lenilton me
tapumes de madeira que cobriam a rua.
relatou um fato urbano que o incomodou
Painéis altos e impessoais, que cercavam
em suas andanças pela região.
como se protegessem o novo edifício,
Ele trabalha no edifício da Capitania das todo branco e iluminado, de algo
Artes, na Av. Câmara Cascudo, pertinho perigoso que estava por trás. Além de
da fronteira entre os bairros da Cidade
A PÉ

esconderem a cidade, direcionavam ainda é muito complicado, para mim,


quem desembarcava ali àqueles passeios aceitar essa lógica. Afinal, o terminal foi
turísticos tão comuns ao nosso tempo, construído na Rua Chile. Quem conhece
em que você sobe em um ônibus e mesmo que minimamente a Ribeira,
disfruta os pontos “mais notáveis” da entende a inquestionável importância
cidade sentado, respirando ar- histórica e cultural da rua para a cidade.
condicionado, sem sentir o cheiro da rua, A via já estava lá, justo em frente, muito
sem a possibilidade de sentir calor e se antes da construção do terminal. Ela faz
refrescar nas sombras úmidas de Natal, parte do centro histórico da cidade, de
sem vivenciar experiências que poderiam um dos bairros que deram origem a
ser a feitas a pé, a um passo de distância Natal, e foi literalmente, me perdoem a
99 da fronteira que foi construída. expressão, tapada. Ignorada.

Lenilton me explicou que esses passeios Fiquei me questionando, quem decide o


eram oferecidos dentro do bonito edifício que vemos ou deixamos de ver na
que agora ilumina a paisagem. De acordo cidade? Que inversão de valores é essa,
com a memória dele os navios que escolhe por um muro em recusa a
permaneciam no porto por cerca de 12h, espaços de reconhecimento e
e durante esse intervalo os visitantes significância? Quantos outros exemplos
podiam sair para visitar a cidade. Uma como esse interferem em nossas
sala/museu deveria compor o caminho experiências urbanas sem que
até a rua, e era nela que os passeios para percebamos?
as praias eram vendidos. Nenhum
E mesmo que digam que a escolha pela
passeio incluía a Ribeira. Nenhum
vivência da rua ainda era permitida pelo
passeio era feito a pé.
livre arbítrio de se cruzar o pequeno
Mesmo compreendendo como os espaço deixado entre os tapumes, quem
interesses capitalistas interferem em se atreveria? O outro lado claramente foi
processos de mercantilização da cidade, escondido por um motivo: O abandono,
CAPÍTULO TRÊS

perceptível pela rua vazia, repleta de entorno do porto, especificamente a Rua


construções fechadas, a falta de Chile, que está localizada bem a sua
manutenção, o lixo que se acumulava e frente” (idem). Certamente, faltou
a pouca iluminação certamente não sensibilidade.
foram convidativos àqueles que talvez se
A obra não estava concluída, é verdade,
atreveram a olhar por trás da cerca.
foi aberta para o convívio com a rua um
Um estudo25 recente sobre as tempo depois do final Copa, e eu não sei
potencialidades do Terminal Marítimo de dizer ao certo o que ainda faltava
Passageiros para a diversificação da terminar. Os tapumes podiam estar lá por
oferta turística do bairro da Ribeira, alguns motivos. Claro, ainda podiam
identificou que a obra “vislumbra, além fazer parte do processo final da obra.
100
do desenvolvimento econômico do Sim, podiam estar ali para a proteção de
estado do RN [...], a possibilidade de alguém. Mas já foi o tempo de sermos
dinamização da oferta turística da cidade inocentes, se algo deveria ser protegido
de Natal” (SILVA, MORAIS e NÓBREGA, não seria a rua a ser tapada, não seria o
2015, p. 89) instigando o surgimento de contato com a cidade a ser privado. Se os
“novos locais democráticos de lazer tão valiosos turistas que ali
gratuito e entretenimento tanto para os desembarcaram poderiam sofrer algum
moradores locais quanto para turistas” tipo de dano devido algumas salas a
(ibidem, p.90), mas que no entanto “não concluir, não seria uma fachada cega que
houve a sensibilidade de elaboração de os manteria a salvo.
um planejamento que contemplasse o

25
POLÍTICAS PÚBLICAS DE TURISMO NO BAIRRO DA RIBEIRA, NATAL-RN: UMA REFLEXÃO A
PARTIR DO PAC 2010-2014, de autoria de Jenniffer Ribeiro da Silva, Luciléia Lima De Morais,
Wilker Ricardo de Mendonça Nóbrega. Publicado em janeiro de 2015 na revista AOS - Amazônia,
Organizações e Sustentabilidade.
A PÉ

O 3º capítulo se trata da apresentação do


universo de estudo escolhido: o centro
histórico da cidade de Natal, do ponto de
vista da história e daqueles que o
vivenciam de dentro.

Além de um breve histórico com atenção


para o processo de modernização da
cidade, a questão da memória é
levantada como representante da história
oral, e assim da transmissão de
experiências ocorridas no passado.
101
Também é aqui em que a metodologia
aplicada e a experiência praticada são
descritas e apresentadas como principal
material de investigação desse trabalho.

28. Brechando.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO TRÊS

102
A PÉ

103
CAPÍTULO TRÊS

3.2 UNIVERSO DE ESTUDO:


O CENTRO QUE A HISTÓRIA CONTA
Fundada em 25 de dezembro de 1599, já sob o título de cidade, Natal nasce no atual
bairro da Cidade Alta, à margem direita do Rio Potengi, se expandindo posteriormente para
o bairro da Ribeira. Estes dois bairros da atual região administrativa leste, delimitaram a
cidade por pelo menos dois séculos e meio, e atualmente compreendem o perímetro26 do
centro histórico da cidade.

O lugar escolhido pelos portugueses que aqui chegaram para erguer sua cidade, foi o alto
onde hoje se localiza a Praça André de Albuquerque. Lá de cima a visão era privilegiada,
podiam perceber qualquer aproximação de quem chegasse pelo rio e ainda tinham a
percepção do que acontecia na aldeia dos Potiguaras27.
104
Neste sítio construíram a capela, a casa de Câmara e Cadeia,
instalaram o pelourinho. Foram chantadas duas cruzes,
delimitando o espaço urbano de Natal. Uma foi chantada as
margens do baldo, e, outra nas proximidades da atual Praça
das Mães (Natal - Anuário, 2014, p. 158).

Segundo Miranda (1999, p. 46) a implantação da cidade de Natal não fugiu à regra de
um modelo colonial, onde “Elevações, acidentes geográficos e físicos orientaram e
induziram o seu crescimento espontâneo. Ruas estreitas, terrenos com testada mínima em
torno de 6m, acompanhando a curva de nível da elevação [...]”.

26
Tal perímetro será apresentado posteriormente juntamente às legislações responsáveis por sua
delimitação. A fração compreendida no bairro das Rocas foi significativamente expandida
recentemente, no entanto, se trata de uma área de abrangência do centro histórico, correspondente
quase em sua totalidade a um polígono denominado poligonal de entorno, sendo assim, destaca-
se aqui a história dos bairros de Cidade Alta e Ribeira, compreendidos em todas as delimitações
propostas como os bairros “centrais” do centro histórico de Natal.
27
Potiguara era a denominação dos índios que no Século XVI habitavam o litoral do Rio Grande do
Norte. Potiguara é uma palavra indígena geralmente traduzida como pescador ou comedor de
camarão.
A PÉ

105
CAPÍTULO TRÊS

29. Cidade Alta: Praça André de Albuquerque


(acima), Rua Vigário Bartolomeu (ao centro).
Ribeira: Rua do Comércio, atual Rua Chile
(abaixo).

CD Room Natal 400 anos. Disponível


em: http://goo.gl/aFXCSl

O traçado orgânico e a estruturação da cidade em torno de uma praça principal, no referido


caso - a Praça André de Albuquerque, confirmavam o típico traçado colonial. Em relação
à morfologia, percebem-se quadras retangulares e de grande extensão, sem se prender,
no entanto, a nenhuma ortogonalidade em sua implantação.

A elite natalense ocupava a parte alta da cidade, enquanto a classe trabalhadora, mais
pobre, vivia às margens do rio. Os moradores da atual Cidade Alta foram conhecidos
durante muito tempo por Xarias: comedores de xaréus, um tipo de peixe da região. Os
Xarias eram rivais dos Canguleiros, cangulo é outro tipo de peixe. Os Canguleiros eram
representados pelos pescadores da cidade baixa, a Ribeira.

A Ribeira nasce no caminho entre a Cidade Alta e a Fortaleza dos Reis Magos28. Câmara
Cascudo (1999, p.149) explica que a região foi chamada de Ribeira por se tratar de uma 106
campina constantemente alagada pelas marés do Potengi. A área onde hoje se encontra
o Teatro Alberto Maranhão banhava-se no rio em fins do século XIX.

Segundo Melo e Silva (2007, p. 14), foi somente durante a segunda metade do século XX
que Natal passa por um processo de transformação e modernização da estrutura colonial
que ainda se fazia presente. “Apesar do surgimento da cidade remeter ao século XVI, é
apenas no século XX que Natal entra em um grande período de transformações, a fim de
substituir a originária cidade colonial por uma nova cidade, moderna e progressista”.

O período entre o início do século XX e 1930 foi marcado por um intenso desejo de
mudança. A elite natalense buscava replicar o mesmo fluxo da modernidade de grandes
cidades como Paris e Rio de Janeiro com suas transformações urbanas higienistas. A
tendência de modernização das cidades influenciou a elite da época pela construção de

28
Sua construção teve início em 06 de janeiro de 1598. Símbolo da colonização portuguesa em
nosso litoral, a Fortaleza dos Reis Magos teve sua planta concebida pelo padre jesuíta Gaspar de
Samperes, sob as influências da arquitetura italiana que, no século XVI, era considerada a mais
avançada concepção arquitetônica direcionada para o uso militar (MEDEIROS FILHO, 1997).
A PÉ

novas áreas habitacionais que não fizessem fronteira com bairros de classes mais baixas.
E dessa forma a implantação de uma Cidade Nova acontece. Localizada nos atuais bairros
de Tirol e Petrópolis, a Cidade Nova contribuiu para a caracterização deste período e pela
então classificação de Natal como “cidade moderna”.

107

30. Vista área do bairro de Petrópolis, um dos bairros da Cidade Nova.


Jaeci E. Galvão . Disponível em: http://goo.gl/aFXCSl

Afim de deixar para trás o sentimento de desordem e atraso que a cidade colonial ainda
transmitia, inúmeras intervenções fizeram parte do conjunto de obras de melhoramento
realizadas no período. “O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930” de Arrais,
Andrade e Marinho (2008) ajuda na compreensão desses processos de modernização da
capital potiguar.
CAPÍTULO TRÊS

Alagadiços foram transformados em praças e jardins,


tornando-se espaços de sociabilidade e lazer. O calçamento e
abertura das ruas permitiram mais dinamismo à vida urbana
e consolidaram a Ribeira como bairro comercial. Novas
construções foram erguidas para garantir o aformoseamento
da cidade, a partir de fisionomias modernas e uma
racionalidade técnica e do controle sobre a estética urbana
(ARRAIS, ANDRADE E MARINHO, 2008, passim, apud
TINÔCO, 2015, p. 21).

Devido à sua posição estratégica global, a cidade mais próxima das Américas em relação
ao continente africano, durante a década de 1940, Natal foi escolhida pelos americanos
para sediar duas importantes bases de apoio às forças militares da Segunda Guerra
Mundial. O esforço de guerra fez Natal saltar de um contingente de aproximadamente
50.000 habitantes para quase 100.0000. Segundo Macedo (2004) este acontecimento
impulsionou o processo de transformação da cidade. Natal deixava de ser provinciana. 108

31. Natal na Segunda Guera Mundial.


Hart Preston/Time-Life, 1941. Disponível em: http://goo.gl/20XPwF
A PÉ

No entanto, segundo Medeiros e Vieira (2013, p.03), as várias iniciativas visando o


progresso da cidade, assim como o fim da Segunda Guerra Mundial, colaboraram
gradativamente para o sucessivo “esvaziamento dos bairros da Cidade Alta e da Ribeira,
fazendo com que os mesmos adentrassem em um processo de estagnação de suas funções
primárias”. Segundo as autoras, apesar dos dois bairros compartilharem da mesma
problemática, resultado da perda de suas funções originais e da expansão da cidade com
o surgimento de novas centralidades, o processo de declínio aconteceu de maneira distinta
em cada bairro.

O bairro da Ribeira iniciou o processo de perda de suas


funções com o fim da Segunda Guerra Mundial e
posteriormente com o deslocamento do comércio atacadista e
varejista, bem como do terminal rodoviário de passageiros. Já
109 o bairro da Cidade Alta, teve a substituição da função
habitacional pela de comércio, impulsionada pela migração
da elite potiguar para outros bairros que haviam sido criados
(Petrópolis e Tirol), devido à implantação do porto e da
ferrovia no bairro da Ribeira, necessários ao escoamento da
produção do estado (FERRAZ, 2008, p.51-52, apud,
MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).

Durante o século XX, intensifica-se a transformação de antigas residências da região em


estabelecimentos com fins de comércio e prestação de serviços, em sua maioria para
atender as necessidades do porto de Natal e das instituições públicas que já se localizavam
na Cidade Alta e Ribeira (MIRANDA, 1999). No entanto, segundo Souza (2011),
investimentos em infraestrutura e intervenções do mercado imobiliário, durante o período,
estimularam o aparecimento de outras paisagens urbanas distantes das regiões centrais,
contribuindo para o esvaziamento e degradação do centro histórico.

Os sinais de declínio do centro histórico de Natal são


perceptíveis pelo abandono do patrimônio histórico edificado
que apresenta deterioração acentuada, pela subutilização da
infraestrutura urbana e pelo esvaziamento nas noites e finais
de semana (SOUZA, 2011, p.12).
CAPÍTULO TRÊS

A autora afirma que se tornou comum a associação do centro histórico de Natal à um lugar
inseguro, ainda que a sensação de perigo seja mais expressiva do que a ocorrência de
delitos no local. Souza associa esse sentimento de medo à carência em infraestrutura do
centro histórico. A falta de iluminação em algumas vias, por exemplo, intensifica o
afastamento de estabelecimentos de comércio e serviços da região, o que contribui para a
sensação de abandono. Além disto, a preocupação com a valorização urbana do centro
histórico de Natal é considerada tardia. Somente nos últimos anos do século XX, os bairros
de Cidade Alta e Ribeira começam a ser alvos de ações de preservação.

32. A falta de iluminação no Beco da Lama –


Cidade Alta.
110
Acervo pessoal, 2015.
A PÉ

Em 1990 entrou em vigor a primeira lei municipal elaborada


com a finalidade específica de proteger o patrimônio histórico
remanescente da cidade de Natal. Esta lei definiu a Zona
Especial de Preservação Histórica (ZEPH), através da Lei
Municipal nº. 3.942 que abarcava o bairro da Ribeira, uma
porção da Cidade Alta e trecho do bairro das Rocas
(MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).

O objetivo da ZEPH era “[...] a preservação dos prédios e sítios notáveis pelos valores
históricos, arquitetônicos, culturais e paisagísticos” (MELO e SILVA, 2007). Por meio
dessa determinação foram proibidas demolições sem autorização e um gabarito limite foi
fixado para a área. “Hoje, é senso comum que a vigência desta lei contribuiu decisivamente
para impedir o processo de substituição dos exemplares arquitetônicos antigos da cidade”
(MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).

111 O bairro da Ribeira foi alvo de projetos de revitalização entre o final da década de 1990 e
os primeiros anos do século XXI, destacando-se o Projeto “Fachadas da Rua Chile” de
1996, que recuperou aproximadamente 45 fachadas de imóveis e toda a pavimentação
do Largo da Rua Chile, num trabalho de arquitetura, urbanismo e arqueologia, com
recursos provenientes do Ministério da Cultura em parceria com a Prefeitura de Natal; o
Plano de Reabilitação de Áreas Centrais - Ribeira2 (PRAC-Ribeira, 2005) e o Projeto
ReHabitar3 (2007), que, entre outros objetivos, visavam a inserção de habitação no bairro,
afim a de “reutilizar os edifícios históricos fechados ou subutilizados do bairro” (ibidem, p.
04). No entanto, somente algumas ações pontuais previstas nos planos de melhoramento
foram realizadas, os mesmos não foram considerados na íntegra.

Em dezembro de 2010, o perímetro delimitado como sítio histórico de Natal que inclui
trechos dos bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas, foi tombado pelo IPHAN como
Patrimônio Histórico e Cultural. No entanto, a ausência de legislação específica para a
área tombada atrasa e impossibilita projetos de intervenção na área.
CAPÍTULO TRÊS

112
A PÉ

Sobrepondo as áreas correspondentes à ZEPH e o perímetro do sítio histórico considerado


Patrimônio Histórico e Cultural, que compreende duas poligonais: uma de tombamento e
uma de entorno, é perceptível que a poligonal de tombamento contribui em nível federal
para um reforço à ZEPH referente a proteção municipal. E a poligonal de entorno, por sua
vez, que expandiu os limites de proteção para uma importante fração do bairro das Rocas,
pode tanto confundir quanto contribuir para a ampliação da proteção do centro histórico,
uma vez que foge da área estabelecida pela ZEPH. Por ser o polígono que abrange a maior
área dos bairros estudados, a poligonal de entorno foi escolhida como limite pré-
estabelecido da área de estudo em campo. No entanto, tal perímetro não foi transmitido
aos entrevistados que se basearam em suas vivencias pessoais para conduzir a
caminhada, mesmo essas acontecendo fora da área estabelecida. A poligonal de entorno
113 funciona com um pontapé inicial, uma base para a pesquisa.

Em reflexão sobre o processo de tombamento Medeiros e Vieira (2013, p. 22) questionam:


“Além disso, ficamos sempre nos perguntando o que significa, de fato, tombar o centro
histórico? Mesmo que a norma específica para a área tombada já estivesse pronta, ela é
suficiente para dar conta da gestão da preservação desta área?”. E se mostram
incomodadas com a falta de envolvimento da população “não-técnica” no processo de
discussão do patrimônio da cidade. Sentem que o interesse é latente do lado da
comunidade acadêmica, mas que “não necessariamente corresponde aos desejos e
anseios da população de uma forma geral” (MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p.23). Lamentam
que “sem este reconhecimento, será difícil chegar a algum resultado com um mínimo de
sustentabilidade” (idem).
CAPÍTULO TRÊS

3.3 MEMÓRIA
& EXPERIÊNCIA
Não faz parte dos objetivos específicos deste trabalho recontar a história do centro histórico
de Natal, nem abordar conceitos de patrimônio, por exemplo, como pode parecer
indissociável das discussões referentes ao tema. Entende-se a importância da abordagem
e contextualização de tais assuntos, no entanto, a experiência sensível do pedestre inserida
nesse meio é o foco aqui.

Como abordado no capítulo anterior, é através da narrativa que a experiência é transmitida.


Mas o que seria então essa narrativa inserida em um lugar de importância e
reconhecimento histórico para a cidade? Ao que se refere quando uma experiência vivida
no passado é contada? A memória, ou a lembrança, como memória vivenciada, certamente
114
não fugiriam dessa discussão.

Em reflexão sobre a construção narrativa, a memória e seus múltiplos significados, Yonne


Grossi e Amauri Ferreira29, sugerem que as palavras cartografam vivências a partir de um
tempo passado que se torna presente pelo exercício da linguagem. “Na esteira do tempo
(Cronos), esse devorador age e tudo consome; sua irmã, a memória (Mnemosine), guarda
os momentos mediante a razão narrativa, presente nos sujeitos através da linguagem”
(2001, p.30).

Os autores relacionam memória e experiência a partir da tentativa de compreensão da


sobrevivência de algumas marcas enquanto outras desaparecem. Assim, entendem que a
experiência se relaciona aos textos de memória repletos de fatos e personagens que se
envolvem e se interligam no enredo expressivo do mundo vivido.

29
Yonne Grossi é professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tem experiência
na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política.. Amauri Ferreira é filósofo, escritor e
professor de filosofia. É autor dos livros Singularidades Criadoras (Editora Sapere), Introdução à
Filosofia de Spinoza e Introdução à Filosofia de Nietzsche.
A PÉ

Trata-se de algo parecido a um processo seletivo. Para aquele que narra, seria impossível
narrar tudo, assim, a lembrança traz apenas os momentos significativos do passado.
Evoca-se, então momentos vividos, as vivências pessoais são retomadas, valendo-se de
referências atuais. Assim, experiência e memória se associam em um processo de
metamorfose no qual a identidade passa a ser constituída, afinal somos formados por
aquilo que lembramos: “uma experiência nunca é totalmente nova, pois estamos sempre
115
tomando como referência experiências anteriores, de onde tiramos nosso conhecimento,
nossa forma de agir e perceber o mundo” (STRECK; FRISON, 1999, p. 108).

Walter Benjamin também refletiu sobre o conceito de história e ajuda a analisar as


potencialidades da memória como uma reinterpretação do passado. Ele afirma que as
imagens do passado se aproximam através de pequenos sinais: “A verdadeira imagem do
passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja,
irreversivelmente no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994, p. 224).

O que acontece, segundo Benjamin, é que a história é perpassada pelas ações dos grupos
dominantes, os quais detêm o poder sob as relações políticas e econômicas. O autor
propõe o rompimento com a temporalidade homogênea e linear trabalhada pelas memórias
dominantes. “Essas precisam ser problematizadas no quadro mais amplo e complexo das
relações socioculturais. A memória passaria a desempenhar um papel crítico,
reconstruindo e possibilitando a emergência de determinadas experiências que foram
silenciadas” (VIEIRA, 2006, p. 18).
CAPÍTULO TRÊS

33. Escutando lembranças.


Lenilton Teixeira, 2015.

Em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos (1987) de Ecléa Bosi, a recriação do


passado feita por testemunhas vivas da história é diferente da versão oficial que se lê nos
livros. Velhos relatam as experiências vividas e sofridas por eles na capital paulistana, e
apesar da narrativa simples e sem pretensão, são capazes de comunicar uma história que
passa a ser significativa para quem a lê.

Ao final do livro, a autora conclui que por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo 116
que a recorda. E das camadas do passado que se tem acesso é ele quem pode selecionar
aquelas que são para ele significativas de um tesouro comum.

Este mesmo indivíduo é aquele que anda e experimenta a cidade, ou então que um dia
chegou a realizar tais atividades. Quem sabe suas experiências estejam presas nas
lembranças de um tempo e de um espaço que já não existe. Talvez essa seleção de
experiências significativas esteja enterrada nas camadas mais antigas.

E dessa forma, através da problematização da escolha do universo de estudo, que passou


de berço da cidade para espaço de abandono, incluem-se na investigação por espaços de
experiência na cidade, as lembranças individuais de cada entrevistado. Em caso de uma
experiência ser narrada no passado, por mais que não se realize atualmente, será
considerada como significativa. Afinal como explanado anteriormente é a partir dessas
lembranças que a identidade do ser humano é definida. Além disso, a memória individual
pode ajudar na construção crítica e reflexiva que se busca alcançar com o produto final
deste trabalho.
A PÉ

3.4 EXPERIÊNCIA
PRATICADA
A primeira etapa metodológica de visita à campo - fazer corpo - consistiu na realização de
passeios acompanhados e entrevistas com personagens próximos da pesquisadora que
apresentavam relação com o universo de estudo, seja ela qual fosse - de trabalho, moradia,
convívio ou simplesmente afetiva. A escolha dos entrevistados aconteceu por facilidade de
aproximação e porque fazia parte do objetivo da entrevista o acesso a lembranças e
experiências pessoais, alcançadas com facilidade devido a relação previamente construída
entre entrevistado e pesquisadora.

Dois roteiros foram criados para a abordagem em campo. O Roteiro A (ver apêndice A),
prioritário, abrange as temáticas que deveriam estar presentes durante o passeio
117
acompanhado, como uma conversa entre pesquisadora e entrevistado a respeito dos
espaços visitados. O Roteiro B (ver apêndice B), aplicado em casos em que o entrevistado,
por motivos diversos, não pode acompanhar a pesquisadora em um passeio
acompanhado, segue uma sequência de perguntas pré-estabelecidas realizadas em um
ambiente fixo.

No Roteiro A, uma conversa acontecia previamente ao passeio. Deixava-se claro ao


entrevistado que não existia um trajeto pré-estabelecido e nem era de desejo do
pesquisador conhecer algum lugar em específico. O acompanhante tinha total liberdade
para seguir por seus lugares significativos. No entanto, três objetivos eram apresentados
antes do início da caminhada:

 Quero andar pelos caminhos que você gosta de fazer.

Eu gostaria que você escolhesse os caminhos que normalmente faz, ou que


tenham alguma significância para você. Procure me mostrar sua rua preferida,
seus atalhos e desvios, mesmo que sejam becos ou ruas íngremes.
CAPÍTULO TRÊS

 Quero conhecer onde suas lembranças mais significativas estão.

Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto especial.
Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar que você sinta
saudade.

 Quero descobrir “novos” lugares e conhecer novas pessoas.

Me leve para descobrir lugares que representem, acordo com as suas experiências
pessoais, o centro histórico para você. E se possível, me apresente a outras pessoas
que também tenham uma vivência neste lugar e que possam compartilhar suas
experiências.

O Roteiro B, uma entrevista sob os moldes convencionais, podia acontecer com a escolha
pontual de determinados atores pré-estabelecidos como também com personagens
118
118
introduzidos casualmente ou apresentados por algum entrevistado durante o passeio
acompanhado. Essas entrevistas, aconteceram em sua maioria no “habitat” do
entrevistado, geralmente seu local de trabalho. Os mesmos objetivos relativos aos
caminhos, espaços de experiência e lembranças eram abordados, dessa vez, por meio de
perguntas pré-estabelecidas. No decorrer das entrevistas, o roteiro esteve aberto a
adaptações, como a alteração na ordem das perguntas e questionamentos adicionais de
acordo com a abrangência do discurso de cada entrevistado.

Em ambos os roteiros, a conversa era iniciada com uma breve explicação do que se travava
a temática e os objetivos do trabalho, seguida por perguntas que buscavam uma
contextualização inicial sobre a relação do entrevistado com o centro histórico.

O registro dos passeios e das entrevistas acontecia por gravação de áudio, imagem e vídeo,
com o auxílio de celulares e câmeras fotográficas digitais. Durante o período de 30 de
outubro a 9 de novembro foram realizadas 4 passeios acompanhados e 6 entrevistas,
descritos a seguir em “Fazer e ganhar corpo: Passeios Acompanhados”.
A PÉ

119

3.4.1 FAZER E GANHAR CORPO


PASSEIOS ACOMPANHADOS
A seguir a transcrição dos principais momentos dos passeios e entrevistas, assim como o
registro de imagens realizados. O “fazer corpo” é uma etapa da metodologia realizada in
loco, diz respeito ao estágio de contato do corpo com o ambiente. Mas a partir do momento
em que tal vivência é apresentada, aqui, através de textos, mapas e imagens, o “ganhar
corpo” passa a acontecer. Dessa forma, a descrição e ilustração dos passeios
acompanhados realizados nessa pesquisa fazem parte das etapas metodológicas do “fazer
corpo” e “ganhar corpo”.

A transcrição exata da fala é feita em busca da transmissão da oralidade e da informalidade


com que as conversas foram realizadas
CAPÍTULO TRÊS

34. Ganhar corpo: Minha mochila pronta para ir a


campo. Personagens da 1ª visita a campo.
Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.

120
120

PASSEIO 1. LENILTON, MARINALVA, FLÁVIO, HENRIQUE E NENA

O primeiro passeio acompanhado foi realizado com Lenilton Teixeira, diretor do Grupo
Estandarte de Teatro, com base em suas experiências e lembranças no centro histórico.
Marinalva Moura, sua mulher e atriz do grupo, participou do trajeto completo. Dois
personagens importantes foram apresentados durante o passeio: Flávio Freitas, artista
plástico e Henrique Fontes, diretor artístico da Casa da Ribeira, aos quais foram realizadas
entrevistas convencionais. Nena, uma turista amiga de Henrique, nos acompanhou pela
Cidade Alta.
A PÉ

121
CAPÍTULO TRÊS

35. Lenilton e Marinalva,


inicio de passeio.
30 de outubro de 2015. Acervo pessoal, 2015.

Sexta-feira. Era feriado do dia do Servidor Público. O que significava que eu, Lenilton e
Marinalva estaríamos de folga. Um dia perfeito para irmos os três caminhar pela Cidade
Alta e Ribeira.

Combinei de me encontrar com os dois no apartamento deles as 10:00h da manhã.


122
122
Marinalva nos acompanharia, afinal, nem eu e nem Lenilton dirigimos. E como a
caminhada prometia ser longa, ir de carro até o Centro era a maneira mais fácil de poupar
tempo.

Cheguei um pouco atrasada, eles estavam prontos. Tomamos um suco que Lenilton tinha
feito para o café. Abastecemos as mochilas de água e seguimos, de carro, em direção à
Capitania das Artes, local de trabalho de Lenilton, escolhido por ele como ponto inicial do
nosso trajeto.

No dia anterior eu havia lhe enviado quais eram meus os objetivos com a nossa
caminhada. Lenilton me confessou que ficou pensando a respeito e em sua cabeça já
sabia os lugares os quais queria me apresentar. Fomos conversando no caminho. Eu já
sabia que ele não tinha nascido em Natal, que havia se mudado de Lajes para a capital
quando ainda era criança e por um tempo havia morado no bairro das Quintas. Mas queria
entender como tinha acontecido sua aproximação com o centro histórico.

 Eu acho que com 18, 19 anos, um pouquinho depois do ensino médio. Eu ia na Ribeira
pro teatro, pro Alberto Maranhão, que eu acho que era o lugar pelo tipo de trabalho
que eu já me envolvia, ou eu ia assistir espetáculos ou participar de algumas atividades
A PÉ

na calçada do teatro. Depois, algumas vezes eu ia no canto do mangue, num bar, num
lugar assim de convivência com mais pessoas. E perto da rodoviária também, onde
hoje é o Museu Djalma Maranhão, era uma rodoviária que foi desativada, mas que
tinha função de parar os ônibus. Como lá era o ponto final, você pegava ônibus mais
vago e eu ia para lá para pegar ônibus.

Ah, mas, eu quando ainda criança logo quando cheguei em Natal, existia uma loja que
era correspondente às lojas americanas, que era 4 e 400 o nome da loja. Ela ficava na
Rio Branco exatamente ali onde é hoje a Mariza, essa loja, como a americanas, vendia
muita bunjinganga, todo tipo de troço vendia lá, e eu vinha das Quintas as vezes
comprar soldadinho de plástico, biloca, essas coisas assim. Eu pegava um ônibus, eu
devia ter assim uns 8 anos.

 Você vinha sozinho?

 Sozinho! Pegava um ônibus, descia, comprava e voltava pras quintas. Eu andava muito
só nesse período da infância, eu ia de ônibus pra tudo que é lugar.

123

36. Lenilton cri ança.


Acervo pessoal de fotografias de Lenilton Teixeira.
CAPÍTULO TRÊS

 E durante a sua juventude? Nesses momentos de encontro e diversão, a Cidade Alta e


a Ribeira eram bairros que você costumava frequentar?

 Isso, a Cidade Alta era o coração. Ou do acontecimento ou de trânsito para esse


acontecimento. Só que 10:30h (da noite) terminava o ônibus, então, ou você tinha a
opção de ficar lá até o amanhecer ou você vinha caminhando passando pela cidade. E
eu vinha junto nessas caminhadas. Aconteceu até de uma vez que a gente dormir ali
na escada debaixo do SESC.

 Eita!

 Mas assim, essa época, lógico que existia violência, lógico que existia problema, tudo
existia, mas era sem grandes confusões. Era bem menor. Você tinha mais medo de
encontrar a polícia nesses lugares do que os ladrões. Por que na maioria dos casos,
assim, o ladrão chegava, você não tinha nada e ele ia embora. Não ia ter grandes
confusões. A morte em um assalto ou num roubo era rara.

Nesse momento, íamos nos aproximando da Capitania. Descemos do carro e alguns


124
124
guardas que estavam na porta reconheceram Lenilton: “E aí doutor? Tá de folga hoje, né?
Vai passear”. Fomos seguindo em direção à Ribeira, descendo a ladeira da Av. Câmara
Cascudo e logo ali, em frente ao instituto que leva o mesmo nome da via e do renomado
escritor potiguar, onde no passado foi sua casa, que a uma lembrança significativa da
infância de Lenilton aparece.

 A casa de Cascudo, aqui.

Passou um carro na hora, e eu não ouvi o que ele disse.

 A casa de que?

 De Cascudo, de Câmara Cascudo.

 Sim!

 Meu irmão fazia História e estudava com a filha de Cascudo. Cascudo, Cascudo. Ana
Maria.

 Aham.

 Aí ele vinha muito aqui na casa de Cascudo. A filha de Cascudo criava canários belgas,
e meu irmão também criava, então eles tinham uma amizade.
A PÉ

 É essa casa aqui?

 Isso, essa com um negócio de ferro na janela. Então eu vim com Luiz (o irmão) para
cá numa vez que ele veio. Cascudo tava aí, me deixou na biblioteca e me deu um livro
de quadrinhos de Padre José de Anchieta.

 Você era pequeno, então!

 Era, eu tinha 9 anos. Meu irmão foi conversar com ele e eu fiquei aí, muito leso, na
biblioteca. A biblioteca era imensa, muito grande, tinha muita coisa lá. Aí ele me deu
essa revista.

 Você levou para casa?

 Ele me deu! Uma edição portuguesa de litogravura, toda bonitona.

 Cuidado o carro, vocês dois. - Marinalva chamava atenção.

125  Essa então talvez seja a sua primeira lembrança daqui?

 Não, não. A minha primeira lembrança é na rodoviária. Que quando a gente chegava
aqui tinha um homem que dizia: (faz voz de locutor) Estação Rodoviária Presidente
Kennedy, atenção passageiros…

 Água de coco e água mineral!

 Eu chegava de ônibus ou de trem. Meu pai trabalhava de guarda-freio, que caminhava


em cima do trem para frear junto com o maquinista.

 Olha a água mineral é um real, é um real.

Passamos em frente à estação de trem da Ribeira, eu nunca tinha prestado atenção onde
era o acesso, fica ali por trás das paradas de ônibus que contornam a Praça Augusto
Severo. Continuamos em frente, seguindo reto.

 Como é o nome dessa rua, cê sabe, Leni?

 Não. É a Tavares de Lira? Não, não.

 A Tavares de Lira é aquela mais à frente.

 É, é a de lá. Essa é a Doutor Barata. Ali onde tá fechado, onde foi uma editora, aí,
muito antigamente, vendia o passe escolar. Na minha época você comparava tipo um
chequezinho. O único lugar que vendia era aqui. Uma fila desgraçada. E ela foi
CAPÍTULO TRÊS

também, como é que se chamava? Uma livraria: Livraria Clima! Eu lembro até da
propaganda: “Natal não tem clima. Natal agora tem clima”.

 Eu acho que eu nunca tinha vindo por aqui.

 Aqui sai praqueles lados de Flávio, vamos por aqui. Vamos.

Entramos num beco, descobri o nome pelo mapa depois, Travessa México. Marinalva ia
dizendo enquanto o atravessávamos, em direção à Rua Câmara Cascudo:

 Aqui tem muito espaço para esses espaços que a gente vê muito lá na Europa. Lá na
França a gente vê, eles chamam de rua de passeio, né? É um beco, assim, onde de
um lado e do outro são lojas. Que aqui a gente não vê. Não há investimento. Uma
ruazinha dessa, que não passa carro, se tivesse um investimento de estabelecimentos
comerciais né? Mas é assim, escura.

 João! Ô João!
126
126
 Esse povo do Consulado, chama Lenilton de um nome totalmente diferente.

Nos aproximamos da porta do Consulado Bar e Restaurante30, duas garçonetes


conversavam com “João” e nos convidaram para almoçar. Perguntaram a ele se eu era
turista. “Não, ela tá fazendo um trabalho para a faculdade”. Dissemos que voltaríamos
mais tarde, afinal a caminhada havia começado há pouco tempo. Ao lado do Consulado,
uma oficina parecia estar funcionando.

 Aqui é onde são feitos todos os cenários de Natal, olha - Lenilton aponta para um portão
de onde se vê um cara trabalhando com solda - Em Valdemar.

 Essa é a rua do Catita, né Babina? Eles ainda abrem?

 Abrem, mas tá um pouco diferente, eles fecham a rua.

 Hmmm, só pra burguesia.

30
A casa de número 184 da Rua Câmara Cascudo é onde funciona atualmente o Consulado Bar e
Restaurante. Construída no início do século XX, foi residência do cônsul italiano Guglielmo Lettieri
até 1942 quando passou a ocupar a Bolsa de valores do RN.
A PÉ

127
CAPÍTULO TRÊS

37. A casa de cascudo, Antiga Livraria


Clima, Travessa México e Consulado
Bar e Restaurante.
Acervo pessoal, 2015.

Seguimos até a esquina e uma senhora abriu a porta do Ateliê Flávio Freitas para gente.
Lenilton e Marinalva são amigos de Flávio, assim como Lenilton, ele também trabalha na
Capitania. Flávio Freitas é um conhecido artista plástico da cidade e tem seu espaço de
trabalho em um antigo edifício de dois pavimentos instalado na Travessa José Alexandre
Garcia, vizinho ao Buraco da Catita31. Ficamos observando as obras e o espaço de
exposição que claramente tinha sofrido uma reforma recentemente, enquanto Flávio
terminava uma ligação.

Ele nos apresentou o espaço reformado do Ateliê, tirou algumas obras das gavetas, falou
das técnicas, das cores, ofereceu água. Depois sugeriu que conhecêssemos o andar de
cima. Seu espaço de criação: tintas, pinceis, uma bancada com um caderno de rascunho,
poltronas diversas, janelas de madeira pintadas em azul turquesa e muitas lagartixas
128
128
pregadas na parede, “foram presente”, ele disse.

Depois, mandou eu puxar uma cadeira para conversar enquanto ele ia pintando um quadro
de tons azuis e amarelos:

 Eu nasci no Rio, mas vim para cá criança. Toda minha referência de educação e
formação cultural é potiguar. De família também, né?
Quando eu vinha de férias do rio, ainda muito pequeno, a gente ia brincar no escritório
do meu tio avó, aqui nessa rua de trás, ele tinha um grande escritório da empresa dele.

 Então você tem lembranças de quando aqui era uma área mais …

 Viva! Muito viva!

 Eu tenho a lembrança também de pegar a lancha da redinha, era um momento muito


mágico. A gente pegava aqui no cais da Tavares de Lira, cê conhece?

 Eu ainda não fui lá, mas sei onde fica.

31
O Espaço Cultural Buraco da Catita é um bar e estabelecimento de shows e apresentações
culturais e tem sua origem ligada aos grupos musicais Ribeira de Pau e Corda e Catita Choro e
Gafieira.
A PÉ

38. O Ateliê de Flávio Freitas e A


entrevista com o artista.
Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.

 Pois é, a lancha da redinha era muito mágica, porque não existia a ponte aqui, só a de
Igapó e era um momento de aventura.

 E os caminhos que você gostava de fazer? Você lembra por onde gostava de andar?

 Então, meu tio foi o engenheiro responsável pela implantação do Projeto Camarão.

 Projeto Camarão?

 É, Camarão. Foi quem iniciou as pesquisas de criação de camarão aqui em Natal. No


Brasil na verdade, né? O Governo do Rio Grande do Norte foi pioneiro nesse período. E
aí, quando eu tava de férias, ele me trazia e eu gostava muito de andar na Rua Chile
porque tinha a linha do trem, tinha o trem e essa conexão com o rio. Essa relação com
água que sempre pra mim foi muito agradável. É uma boa lembrança.
Da Doutor Barata em si também, porque a Doutor Barata era uma rua que circulava
pessoas importantes, tinha a livraria clima, o bar dos intelectuais ali na esquina. Eu
sempre passava e via os velhinhos.

129  Mas por que se chamava “bar dos intelectuais”?

 Eu digo porque, Cascudo, Newton Navarro, essas figuras, poetas, um pessoal que
trabalhava na Tribuna, nos jornais mais importantes de Natal frequentava. Fica na
esquina da Doutor Barata com a Tavares de Lira.

 E você lembra como foi que a Ribeira foi se esvaziando?

 Eu acho que na época que eu fazia faculdade, na década da 1980, a Ribeira realmente
ficou condenada a um ambiente de prostituição, mais do que um ambiente de
comércio, assim, como era antigamente, mas fino, de status.

 E por que você decidiu ter um Ateliê de Arte aqui, na Ribeira?

 Como o ateliê é um equipamento de produzir arte, portanto diretamente ligado à


cultura, e eu tendo formação de arquitetura, né? No curso de Arquitetura a gente
aprende a dar valor, dar muita importância a arquitetura histórica, né? Porque ela conta
a história da cidade nos seus prédios, nas paredes, nas fachadas. Na forma do espaço
do bairro. Você caminha e você sente isso. Se a pessoa tiver um pouquinho de atenção,
você vai perceber a história da cidade impregnada nesses espaços que você caminha
onde caminharam as mesmas pessoas, onde viveram, trabalharam, e tal, e eu acho
que isso é uma motivação a mais para eu produzir arte. Então, se é de eu escolher um
bairro, eu sempre achei que o bairro para um atelier é um bairro que já está conectado
com a cultura, né?

 E quais são esses caminhos que você ainda faz hoje?


CAPÍTULO TRÊS

130
130
A PÉ

 A gente hoje não anda tanto a pé, porque a sensação de insegurança é grande. Não
que seja da Ribeira. A Ribeira é um bairro menos violento do que muitos, mas eu digo
porque a sensação de insegurança, ela está espalhada, né? Em toda a cidade.

 A gente acabou falando muito de Ribeira, mas você tem alguma experiência
significativa na Cidade Alta?

 Na Cidade Alta, eu tenho uma lembrança muito forte que era ir com minha mãe e
minha vó, na época de Natal, fazer compras à noite no comércio todo iluminado. Era
muito bonito. É uma lembrança forte. E também o cinema no domingo, que era a
programação quase obrigatória da minha juventude. Terminava o cinema, a gente ia
comer torrada com vitamina de sapoti.

 Onde?

 No Bom-Lanche! Na rua João Pessoa.

 Ainda existe?
131
 Existe, Lenilton?

 Não, não, acabou. Eu tomava lá o Miscelânea.

 Quase ao lado da caixa econômica.

 Miscelânea era o suco, banana, uva, mangaba, ficava uma cor esquisita. Ali na Cidade
era a única que ficava aberta. Vinha numa taça bem grandona assim, riscadinha.

 E Flávio, uma última pergunta, se você tivesse que apresentar um lugar do centro
histórico que você acha que as pessoas não conhecem ou quem visita os bairros
provavelmente não vai. Qual seria? Você teria algum espaço em especial?

 Olha, o que eu faria é, assim, nessa pergunta eu nunca tinha pensado, mas, o que eu
faria é convidar a pessoa para dar uma voltinha de barco e olhar a Ribeira do Rio, sabe?
Você passa a ter outra valorização, sabe? Porque tá muito maltratada a Ribeira, né? Faz
pena.

Tiramos fotos, rimos um pouco com as lembranças de Flávio de quando ele morava em
Fernando de Noronha, agradecemos e nos despedimos. Seguimos pela antiga Rua das
Virgens, atual Rua Câmara Cascudo, em direção à Avenida Tavares de Lira. Algumas
bonitas árvores sombreavam o caminho e Lenilton foi indicando os bares pelos quais íamos
passando.
CAPÍTULO TRÊS

 Esse aqui é antigo. O Bar de Neto, por exemplo, já existia na minha época. Mas, como
a Ribeira não tem morador, quem era atraído para bares eram essas pessoas ligadas a
algum tipo de movimento, ou à cultura, ou à boemia, à arte, essas coisas assim.

Fomos nos aproximando do final da Tavares de Lira, onde já era possível ver o rio. Embaixo
de uma cobertura de telha cerâmica: alguns bares, freezers, mesas e cadeiras, e ao fundo,
pequenas embarcações atracadas. O cheiro de peixe era forte.

 Aqui. Você pegava a lancha da redinha aqui. A que Flávio Falou. Esse mercado, aqui,
é super informal, não é como aquele Mercado do Peixe mesmo, nas Rocas. Aqui já foi.
Mas hoje em dia não vende a mesma coisa do que lá.

 Então hoje foi tomado pelo comércio informal?

 Não, o comércio informal já existia na época, era um lugar que se vendia bastante
peixe, muito mais forte do que lá em baixo, entendeu? Agora com o mercado lá de
baixo, é que esse aqui vira um sub-mercado. 132
132
Seguimos em direção às Rocas, Lenilton queria me levar no Canto do Mangue. Para isso,
passamos pela Rua Chile.

 Aqui, durante muito tempo o trem ainda passava, mesmo com essa rua estreita. Então,
Sávio, uma vez, botou o fusca de Marta na rua, ele estacionou num canto e esqueceu,
aí veio o trem e POW! Buzinando, e ele correu para tirar o carro.

 Olha o caminhão - Marinalva atentava. Ficamos colados na parede, em cima da calçada


estreita, enquanto o caminhão atravessava a rua.

 Olha, a maioria dessas casas são casas particulares que os donos nem fazem nada
nem ninguém compra para fazer algum investimento. Ai, fica assim, né? Ó.
Abandonado.
Ali é a casa de Ferreira Itajubá, as vezes tem espetáculo, é bem bacana, tem um
jardinzinho. Olha essa casa aqui como é legal, fazer um bistrôzinho, um café. Qualquer
coisa cultural.

Paramos no largo da Rua Chile. Contemplamos o rio através das grades do Terminal
Marítimo de Passageiros, que estava fechado. Mas o que nos chamou mais a atenção foi
uma árvore que havia crescido entre a parede e a cobertura de uma das casas fechadas.
Lenilton reconheceu a árvore.
A PÉ

133
CAPÍTULO TRÊS

39. Cais da Tavares de Lira, Bistrozinho na


Rua Chile e Seda polinizadora.
Acervo pessoal, 2015.

 O nome disso é Seda, dessa planta. Ela cresceu, né?

 Ela quebrou a parede!

 Olha a semente dela voando. Ela, é, poloniza, poliniza, como é que chama? Pelo ar.

 Olha o carro aí, cuidado o carro aí.

Depois do largo da Rua Chile, paramos em baixo de algumas árvores da Esplanada Silva
Jardim e seguimos em direção às Rocas pela Av. Duque de Caxias, mais movimentada e
barulhenta, sem árvores, com um canteiro todo concretado e visivelmente descuidado. Na
altura da Rua Olavo Bilac, atentei para o trilho do trem que seguia atravessando a avenida
em direção ao outro lado da rua, perto de uns galpões abandonados, todos brancos e
tomados por vegetação. Segundo Lenilton, eram uma estação de trem.

Passamos por uma fila de ônibus estacionados; pelo novo mercado em fase de 134
134
acabamento que abrigará as barracas da feira das Rocas; pelo hospital de pescadores que
pertence às lembranças da infância de Lenilton, quando a mãe o levava para tomar vacinas
e por um antigo cinema no qual ele viu o primeiro filme pornô de sua vida, hoje ocupado
por uma igreja evangélica.

 Vamos parar ali em Seu Pernambuco.

 O que é “Seu Pernambuco”?

 É uma cigarreira que vende ginga com tapioca. Ai eu não sei exatamente por que razão,
que cargas d’águas que aconteceu, que virou um point. Assim, quando tem aniversário
vão praí, quando vão comemorar banca de mestrado vão praí. Ai não sei o que lá.
Levamos os franceses pra cá. Só que ele é brega, é um lugar brega.

 Tem sei quantos filhos, seu Pernambuco.


Aí, Babina, é assim sabe? Você vai pedindo e depois ele vem e olha e diz mais ou
menos quanto foi. Não anota na-da!

 A gente pode comer uma tapioca.

 Se ele tiver aí, me apresentem.

 Vamos, vamos comer uma tapioca. A tapioca, Babina, é delícia!


A PÉ

 É, faz com coco dentro.

 Hmmm.

 Mas, aqui é o Canto do Mangue, né? Já é mais conhecido mesmo, tem até no roteiro
do centro histórico da Prefeitura.

 Isso, isso. Mas é porque isso aqui é o que é vendido. O mercado. Entendeu?

Nos aproximávamos do Mercado do Peixe, bem diferente daquele, informal, da Av. Tavares
de Lira. Organizado em lojinhas padronizadas, cada um vende o seu peixe no seu
quadrado.

Deixamos o mercado e atravessamos a rua em direção a praça que contorna o rio.


Mulheres descavam camarão na beira da pista, em baixo de uma árvore. Lenilton e

135 Marinalva explicaram que não tem banheiro e que se você estiver apertado é encorajado
pelo próprio Seu Pernambuco a usar o rio para se aliviar. Mesmo que ninguém houvesse
me avisado, o cheiro quando você se aproxima da margem já denuncia a prática.

 Seu Pernambuco! Tudo bom?

 Oi, Seu Pernambuco, prazer.

 Essa é Bárbara uma amiga da gente.

 Vai querer peixe?

 Não, uma ginga com tapioca. Não, coloque duas, duas pareia.

 E duas águas de coco também, tá bom? Obrigada.

 Ah! Tinha que tomar cerveja!

 Ela tá trabalhando, Lenilton.

Enquanto esperávamos a comida, sentamos em baixo de uma lona surrada, em mesas e


cadeiras de plástico. Lenilton se questionava sobre o sucesso da barraca.

 É engraçado que a gente aprende que pra consumir você tem que ter tais regras. Tem
que ser assim e assado. Há uma série de fatores, que dizem, desde a questão da
CAPÍTULO TRÊS

higiene, a questão da apresentação, da recepção, e tudo mais. E aqui todas as regras


são burladas. No entanto, é muito frequentado inclusive. Há outras formas que atraem
a freguesia e o povo que não estão na escola de marketing, que não tá nesse espaço.
Que é: Não sei o que é.

Daí um pouco a ginga e a tapioca chegaram. E nossa. Comecei a entender o porquê do


sucesso do lugar.

 Menino, que tapioca gorda!


Huummmmm!
Huumm!
Ô tapioca boa!
Muito boa!

Voltamos em direção à Ribeira caminhando pela Av. Hidelbrando de Góis, paralela à Av.
Duque de Caxias. É incrível como a ambiência é bem diferente em apenas uma quadra de
distância. A via beira a comunidade do Maruim e por entre suas vielas podemos observar 136
136
as pessoas se apropriando da rua, até atravessamos um varal que estava fincado na
calçada. O esgoto a céu aberto incomodava, mas quando avançamos um pouco mais, ao
lado dos galpões do Grande Moinho Potiguar, um vento forte nos atingiu.

 É a proximidade com o Rio - Lenilton, explicou.

 Dá um banzo né? Esse vento, essa sombra, essas árvores.

Seguimos até a avenida se transformar em rua. Rua Frei Miguelinho. Antiga conhecida de
nós três. A via abriga a Casa da Ribeira, que toma conta de um edifício recentemente
tombado pelo IPHAN. O teatro estreou em 2001 com um espetáculo do Grupo Estandarte
de Teatro, o qual fazemos parte. A Frei Miguelinho também é palco de outros espaços de
arte e cultura da cidade, como o Gira Dança; A Boca Espaço de Teatros e o Espaço A3.

Foi também nessa rua que percebi a presença de alguns estabelecimentos comerciais
diferentes das oficinas de reparo, das casas de pesca, ou dos armazéns de produtos gerais
para casa que se duplicam pelo bairro. Ali estavam algumas pequenas conveniências, nas
quais eram vendidas balas, chocolates, cigarros e revistas, em que também que se
A PÉ

40. Mercado do Peixe, Seu Perambuco, Jogo


de cartas na rua e Marinaldo.
Acervo pessoal, 2015.

prestavam serviços mais cotidianos como uma cópia ou encadernação de um documento.


Algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras postas na rua, como no interior, e
trabalhadores em horário de descanso, sentados em uma mesa improvisada na calçada,
pareciam jogar carteado.

Entre esses pequenos espaços de compra e venda, um deles me chamou a atenção. Acho
que era o menor de todos da rua. Uma placa amarela colocada na calçada indicava:
“Remonta-se: Calçados e Bolsas – Marinaldo”. E sentado, descosturando uma mala
cuidadosamente, seu Marinaldo estava lá. Um senhor que já aparentava bastante idade,
manuseava uma bela máquina de costura, tão antiga que parecia relíquia de museu, mas
em pleno funcionamento. Perguntei a ele há quanto tempo ele trabalhava ali.

137  15 anos aqui nesse setor, 40 anos na Ribeira.

 E o movimento no bairro? Continua o mesmo desde que o senhor começou a trabalhar?

Ele respondeu, baixinho e devagar, que variava.

 Porque eu me mudava de setor. Eu trabalhei aqui na Doutor Barata. Na Doutor Barata


eu trabalhei por 10 anos. Mas onde eu trabalhei mais tempo foi na rua Frei Miguelinho.
Nesse setor foi mais aqui na Ribeira. O mais distante que eu saí foi ali pra Rio Branco,
no final.

Tentei ainda continuar a conversa, queria saber como ele havia aprendido a costurar, mas
não sei ao certo se por impaciência ou porque a máquina, agora ligada, já não o deixava
ouvir, ele parou de me responder e seguimos.

Na esquina com a Av. Tavares de Lira, encontramos Henrique Fontes, diretor artístico da
Casa da Ribeira e dramaturgo de nosso último espetáculo. Henrique caminhava com
Nena, uma curitibana que estava em Natal para um festival de teatro, ela também
trabalhava com arte e foi nossa companhia até o fim do dia. Estávamos indo, todos, para
o mesmo lugar: O Consulado Bar e Restaurante, afinal já eram quase 14h e ninguém
havia almoçado ainda.
CAPÍTULO TRÊS

138
138
A PÉ

Dei muita sorte em encontrar Henrique, ele é o único morador do bairro da Ribeira que
conheço, e durante o almoço aproveitei para ligar o gravador. Henrique aluga um
apartamento no mesmo edifício de Nalva Melo - Café e Salão, na Av. Duque de Caxias.

 Faz quanto tempo que você vive aqui, Henrique?

 Ó, entre a Cidade Alta e a Ribeira eu acho que deve ter uns 7 anos, ou um pouco mais.

 Ah, então você morou na Cidade Alta também?

 Morei. Morei nesse mesmo trecho aqui. Na subida da Junqueira Aires tem um prédio
chamado Ed. Beira Rio. Morei nele e morei numa casa por trás dele por três anos. E
ali no Bila, já tem 3 anos.

 E por que você escolheu morar aqui?

 Primeiro que eu amo o centro da cidade. Eu acho o centro da cidade sempre o lugar
139 mais legal de se morar em todas as cidades. Por conta da história, por conta de uma
facilidade de locomoção. Uma sensação de estar na cidade, né? Mas eu já começo a
pensar em lugares mais sossegados. Bom, especificamente onde eu moro, que minha
janela é para um trânsito muito pesado. Queria um pouquinho mais de sossego, mas
não saindo daqui eu adoro essa parte.

E acho que muito ligado à essa coisa da história. Pra mim, a arquitetura é um negócio
que influência muito na minha vida, em estar em um lugar. Por exemplo, eu escolho
comer aqui não é só porque a comida é boa, eu tenho um bem-estar nesse lugar.

 Você é daqui?

 Eu sou de Manaus, morei em Recife, Rio, Natal, daqui meus pais seguiram, aí eu fui
pros Estados Unidos, voltei, fui de novo, voltei. Eu sou muito cigano. Agora, de uns 10
anos para cá que eu tô mais pacato cidadão. Mas, talvez por isso, eu busque tanto
essas histórias desses lugares ou esses lugares que contenham essas histórias.
E as lembranças que eu tenho, minhas memórias afetivas, bem, claro: Casa da Ribeira,
é aqui. Tenho uma ligação de 20 anos com esse projeto. Desde o começo, o sonhar
em ter o espaço.
Existe uma imagem muito negativa, por um lado, né? Desses Centros Históricos das
cidades que são tidos como violentos, perigosos, como áreas que as pessoas cometem
muito crime, num sei o que. O que não é verdade. Eu tô nesse espaço há 20 anos. A
casa, depois de 15 anos de aberta, o primeiro episódio aconteceu agora, aí o cara
entrou, mas não levou nada, procurou, procurou o que ele queria e não levou nada.
Eu nunca fui assaltado. Pra falar que eu fui abordado uma vez, fui abordado por um
menino aqui que é filho de seu Valdemar, viciado em crack. Eu o reconheci, e disse
CAPÍTULO TRÊS

“Cê num tá lembrado de mim mas eu sei que você é filho de Valdemar”, acabei só
conversando com ele.
Assim, também tem esse aspecto, eu acho que não é uma criminalidade, a daqui, no
nível de violência que se vê por aí. É mais um abandono. Ou então, as vezes é um
desespero mesmo.

Nos eventos, não. Nos eventos, claro, vem bandido de tudo quanto é canto, porque
tem muita gente e eles vem atrás de se dar bem.

 E quais os caminhos que você gosta de fazer, por aqui?

 Eu gostava muito do Rio, agora vou voltar a gostar, porque liberaram um pedacinho da
vista, eles tinham tapado e agora abriram de novo. Adoro aquele lugar ali. Gosto ali
daquela área da pedra do Rosário. Não lá em baixo, em cima.

 Onde fica a pedra do Rosário?

 Ali em cima da Capitania. Mas tem um mirante que fica em cima, que é da igreja, em
frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. É um mirante lindo e dá pra 140
140
ver o pôr do sol. Eu morei ali, né? Embaixo. Numa casa embaixo do mirante. Eu ia
muito ali. E adoro andar pelas Rocas, pelo movimento que as Rocas tem. Pra mim é o
bairro mais vivo dessa cidade, porque, a hora do dia ou da noite que você passar tem
gente na rua, nas calçadas. Três da manhã! Tem gente sentado na calçada, em frente
de casa, conversando. É muito rico.

 Diferente daqui, pela noite, pelo menos quando não tem festa?

 É, é. A Ribeira é uma região de passagem, as pessoas não permanecem aqui. Também


porque não oferece lugares de convivência um pouco mais convidativos. Os lugares são
meio ermos, estranhos, as pessoas não ficam. E é menos residencial, né?

Um prédio que eu gosto muito, é o prédio da Tribuna do Norte, parece um labirinto por
dentro. Merece visitação, é muito legal. Ah, Nalva, também é um espaço chiquérrimo,
né? Que é no meu prédio. Às vezes, eu chego depois do expediente, tá lá rolando um
jazz na porta da minha casa. Eu imagino que se outros lugares tivessem mais qualidade
à noite, né? Mais vida à noite, seria massa. Sinto falta de um restaurante massa, aqui
a noite, seria legal. Não tem, realmente isso não tem.

O povo tem medo, mas esse medo é um medo construído, na verdade.

 Tem algum lugar que você sente saudade?

 Ah, eu sinto saudade das boates como eram antes, e claro, sinto saudade do Blackout.
O Blackout B-52 era o onde hoje é o Galpão 29. E pra mim é o marco da Ribeira. A
Ribeira me foi apresentada por Paulo Ubarana, que era dono desse lugar, que a gente
A PÉ

vivia de segunda a segunda. Ele tinha programação de segunda a segunda. E a gente


morava no Blackout.

 E tem relação com essa época em que a Rua Chile era muito mais frequentada?

 Isso, anos 90.

 Depois ou antes da pintura das fachadas?

 Foi durante, assim, depois, porque a pintura rolou em dois momentos né? Foi depois
da primeira etapa. O pessoal se motivou mais, tal, veio, mas aí veio que não tinha
muito eco do poder público. O problema é que assim, o poder público fez uma falsa
promessa, né? Com essa coisa da pintura. Prometeu que ia revitalizar, todo mundo
acreditou, veio com força, e aí não andou, não teve investimento junto, não teve a
segurança prometida, a iluminação pública, acessibilidade e tarara, tudo que precisa
ter. Até hoje é assim.

Os meninos pediram pudim de leite para a sobremesa, eu, Marinalva e Nena compramos
141 água. Em seguida, nos despedimos de Henrique, ele ia viajar para São Paulo dali a pouco
e não havia mais tempo para conversa. A caminhada continuava, agora em direção à
Cidade Alta.

Subindo a Av. Câmara Cascudo, Lenilton atentou para outras lembranças. Me mostrou
uma casa onde, na sua juventude, foi espaço de ensaio, encontros e festas de “gente de
teatro”. E me fez enfiar a cara em um portão gradeado para ver o pátio de uma casa em
ruinas:

 Cabe tanta coisa maravilhosa aí, e tá assim, abandonada.

Permanecemos à direita ao invés de acompanhar a Av. Câmara Cascudo até a Prefeitura,


subimos a Rua Padre João Manoel, em direção à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos. Lenilton ia contando durante a subida a história da Viúva do Machado, que morava
próximo à igreja.

 A Viúva Machado: diziam que ela comia o fígado das criancinhas. Que ela tinha uma
doença e para se curar ela comida o fígado das crianças. Ai aquela é casa dela, aquela
da esquina.
CAPÍTULO TRÊS

 A rosa?

 Não, a outra casa, do lado dessa da esquina.

 Sumia as crianças, e diziam que ela pegava pra comer. Mãe dizia: “ Você não pode
sair de casa não, se não a Viúva Machado vai pegar você! ” Era o bicho papão.

Contemplamos a vista do mirante que fica justo em frente ao cruzeiro da igreja. Um


transeunte se aproximou. “Lindão, né? Desde que eu cheguei aqui, não me canso dessa
vista. ” Depois, passamos em frente à casa da Viúva, admiramos o jardim e a arquitetura
bem conservada e seguimos caminhando.

 Esse espaço aqui é muito bonito, uma pena que durante a semana fique lotado de
carros de quem trabalha aqui por perto. A gente tem agora, a Praça André de
Albuquerque; o Palácio - a Pinacoteca, né? E mais na frente tem outros lugares que a
gente dá um giro - giro. Vamos?
142
142
Caminhamos até a André de Albuquerque, pela paralela à Rua João Manoel, parando um
pouco para descansar e vislumbrar a vista do rio que a ladeira da Rua João da Matta
proporciona. Cruzamos a praça, indo em direção à praça Padre João Maria, atrás da
catedral.

 Aqui tinha um monte de vela pra ascender. Ou as vezes tinha um monte de vela
apagada e uma acesa, aí a pessoa pegava e ascendia. Era uma coisa engraçada, porque
até os que criam e os que não criam, que não acreditavam em nada, vinham para
esses lugares para fazer. Eu passei muitas vezes e ascendi vela por aí. Agora não tem
a parte das velas como tinha antes.

Seguindo a direita, em uma via perpendicular à praça, Lenilton atenta para o nome da
rua.

 Ó, isso aqui é o seguinte: o nome dessa rua aqui é Voluntários da Pátria, certo?

 Sim, tô vendo.

 Ai, o que era mais legal nessa rua. Aqui em baixo, funcionava o ZumBar, que era o bar
mais cult que você possa imaginar, da Cidade. E a gente zonava muito assim, “Onde é
que fica o Bar? Na Voluntários da Pátria! ”. Nós, que erámos os voluntários da pátria
que estávamos aqui.
A PÉ

 Siiim, hahaha.

 Era uma viagem só nossa, que só a gente sabia rir dessa piada. Ninguém mais sabia
rir dessa piada. E era aqui esse bar, dentro dessa casa aqui.

 Essa?

Uma pequena casa residencial, branquinha de uma janela e uma porta, não aparentava
em nada ter acolhido um bar um dia. A sua direita, um estacionamento, gradeado, cinza,
atravessava o quarteirão.

 Sim, aí olha a doidera. Ele na verdade, era aqui, onde tá derrubado. Eram duas casas
vizinhas, derrubaram uma delas. Essa casa (a que permanece) não sei se era do
proprietário, e aqui do lado era a parte do bar. Era uma casa, você entrava numa porta
como essa, era quase como se fosse a réplica dessa casa. E tinha um mini quintal,
como tem essa daqui. E lá ficavam algumas cadeiras e na parte da sala outras cadeiras.
143 E foi assim durante muito tempo, o ajuntamento dos malucos e artistas que você podia
imaginar na vida. O ZumBar era um ponto que agregava. Eu acho que aqui é o lugar
que eu mais gosto do Centro.

Dois quarteirões a frente, em uma rua paralela a que estávamos, a Rua Gonçalves Lêdo,
paramos em outro bar, esse ainda existente. No Bardallo’s Comida e Arte, sentamos
próximos a uma árvore que fica ao lado do portão. Pedimos suco de melancia com limão.
Nena estava adorando o clima de Natal.

 Ai que ventinho bom, gente, que num é de ar-condicionado.

Lenilton propôs que seguíssemos na mesma rua, adentrando à área residencial do bairro.
Entramos a direita, na rua Dr. Heitor Carrilho, e já podíamos ver, ao final, o branco e o
azul a Igreja de Santo Antônio com seu galo famoso lá em cima na torre. Continuamos,
agora na rua da igreja, a Santo Antônio, seguindo na direção sul, até a Travessa Coronel
Bonifácio.

 Aqui ninguém imagina que são casas, entendeu? Eu acho isso esquisito. Quando eu
me toquei que aqui tinha casa, eu pensei “Gente. Nossa. Eu não sabia que a Cidade
tinha gente que morava”.
CAPÍTULO TRÊS

Entramos em uma série de pequenas e estreitas ruas residenciais: Rua Padre Calazans;
Rua Apodi e Rua Padre Pinto. Nessa última, um pouco mais larga e que leva à região do
Baldo, Lenilton nos levou até um grande muro com um grande portão de ferro, ambos
guardavam um terreno baldio.

 Aqui era o Cabaré de Maria Boa. Demoliram tudo.

A câmera descarregou na hora e não percebi, não tenho as palavras dele gravadas, mas
me lembro do conteúdo. O Cabaré de Maria Boa era um famoso bar e casa de prostituição
da Cidade Alta. Um ponto de encontro de homens e um ponto de referência do bairro.

Regressando um pouco, ainda na mesma rua, na esquina com a Av. Gov. Rafael
Fernandes, Lenilton lembrou da mãe.
144
144
 Então, o ônibus vinha da Cidade fazia a curva onde tá esse carro ai e aqui tinha uma
parada de ônibus. Quando eu vinha com mamãe pra Natal para fazer alguma coisa,
sei lá, ir pro médico, ou outra coisa parecida, que vinha pra Cidade, a gente vinha
pegar o ônibus aqui. Esse muro dessa casa era mais baixo. Bem mais baixo. E tinha
um pé ali de jasmim, que botava os galhos bem grandes pro lado de cá. E mamãe vivia
querendo pedir a dona da casa um galho de jasmim para plantar. Mas nunca coincidia
da mulher tá perto do muro, chamar e pedir, ou sempre o ônibus vinha antes dela
tentar chamar. Aí, é essa a história.

Descemos a avenida até a Rua da Misericórdia. De um lado, pequenas casinhas e becos,


do outro, árvores, bancos, uma muretinha e o Rio. O pôr do sol estava prestes a acontecer,
a luz deixava tudo laranja. Gatos, senhoras e crianças sentados de frente para o Potengi,
curtiam a paisagem. A ambiência da rua era muito agradável. Presenciamos conversas
entre vizinhos, brincadeiras de rua, bandeirinhas que ainda coloriam o céu desde a última
festa de São João. Claro, a vista do mangue, do rio todo grandão, deixava tudo mais bonito,
mas sem dúvida era um belo lugar, entre as construções e a natureza resistente, para se
passar um fim de tarde.

Seu Bosco se aproximou com aquela segurança de morador antigo. Ele gostava de falar.
Um senhor de 70 e poucos anos, já vivia ali há “muuuuuito tempo”, conhecia todo mundo
A PÉ

41. O antigo Zumbar, Põr do sol na Rua da


Misericórdia e Bar da Meladinha.
Acervo pessoal, 2015.

e todo mundo conhecia ele. Chegou dando um conselho: “Não apontem celular e câmera
lá pra baixo, que eles vem tudo buscar.” Seu Bosco se referia a comunidade do Passo da
Pátria. Foi a primeira vez em todo o trajeto que alguém nos falava de uma maneira
pessimista sobre a segurança do bairro. Ele nos acompanhou de volta até a Praça João
Tibúrcio, próxima à André de Albuquerque. No caminho foi reclamando da vida e dos
problemas do bairro.

 Vê isso aqui, pode ficar assim?

Eu que limpei tudinho isso aqui.

Minha mulher diz que eu me intrometo muito.

Passamos por uma quadra de esportes pública, na sombra da Casa do Estudante 32


145 crianças jogavam bola. Quando chegamos na parte alta, quase já não tinha sol. “Voltem
quando quiserem, podem me procurar!”. E Seu Bosco seguiu por outro caminho.

Passamos em frente a Pinacoteca, onde Lenilton trabalhou por um tempo. Do outro lado
da rua, a Prefeitura brilhava, era puro LED33. Av. Ulisses Caldas e depois à direita na Rua
Vigário Bartolomeu. A rua dos sebos.

 Vamos ali na meladinha de Nazih.

Antes, passamos em frente ao Cine França, que segundo Lenilton, até hoje exibe filmes
pornô: “Lugar de encontro de rapazes, sabe?”. Paramos na Casa do Cordel, depois
seguimos em frente: as lojas de festas ainda exibiam fantasias de halloween. Viramos à
esquerda, na Rua Coronel Cascudo. O Bar da Meladinha estava lá, iluminando a esquina
com o Beco da Lama.

32
A Casa do Estudante é uma instituição de apoio a estudantes do estado do Rio Grande do Norte,
construído para abrigar o antigo Hospital da Caridade, em 1856, a Casa do Estudante é um edifício
eclético tombado como parte do Patrimônio Arquitetônico em Natal em 1993.
33
Light Emitting Diode, em inglês, é usado para a emissão de luz em locais e instrumentos onde
se torna mais conveniente a sua utilização no lugar de uma lâmpada.
CAPÍTULO TRÊS

146
146
A PÉ

 Taí, Babina, cê não queria conhecer o Beco da Lama?

 Conta, Lenilton, que eu sei que esse lugar tem história.

Ocupamos duas mesas de plástico e ele começou.

 Nazih era um libanês chato que era dono desse bar aqui. Antigamente não tinha nada,
só meladinha. Hoje que já tem essas coisas: água, refrigerante, num sei o que lá. Antes
era só meladinha. Meladinha é uma bebida de cachaça, mel e limão. Quando Nazih
era vivo ele quem fazia. Ele fazia uma por uma, demorava muito pra chegar. E era
diferente, sabe? Agora é o filho dele quem cuida. Agora eles botam a cachaça, o mel e
o suco de limão que já fica pronto, guardado ali em baixo. Não é a mesma coisa, sabe?
Quando era Nazih, fazia uma por uma, assim (fazendo o movimento com as mãos),
espremia o limão na hora. Ela vinha espumando, sabe? Era muito bom.

Uma vez, uma amiga nossa veio para um congresso na universidade e eu trouxe ela
pra cá. Ela era viajada, conhecia muitos lugares. Mas ela me pediu que eu levasse ela
pra um canto que só tivesse aqui em Natal. Porque ela dizia que as vezes você vai em
147 um lugar que parece o mesmo de outras cidades, sabe? Que não tem nada de diferente.
Como um Mcdonalds da vida. Que tem em toda cidade. Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela
gostou.

Já era quase 18h. As lojas estavam fechando. Muito movimento de gente indo para casa.

 Faltou te levar lá na SAMBA. Agora já tá tarde.

 Samba?

 É, Sociedade de Amigos do Beco da lama e Adjacências. Eles têm um jornalzinho


daqui, bem legal. Tá na terceira edição, já. Fica pra um outro passeio.

E terminamos o dia, assim, sentados no Bar da Meladinha, esquina com o Beco da Lama,
cada um com o seu copinho de cachaça, mel e limão, a não ser Marinalva, que estava
dirigindo.
CAPÍTULO TRÊS

42. Luiz Gadelha, entrevistado


do 2º passeio.
Acervo pessoal, 2015.

PASSEIO 2. GADELHA

O segundo passeio acompanhado aconteceu em presença do músico potiguar, Luiz


Gadelha, 39, também membro do Grupo Estandarte de Teatro. Luiz preferiu concentrar a 148
148
caminhada no bairro da Ribeira, que para ele tinha mais significância dentro de suas
experiências pessoais no Centro Histórico de Natal.

05 de novembro de 2015.

Conheço Luiz Gadelha desde os tempos do meu ensino médio. Mas, talvez ele nem se
lembre de mim como uma das garotinhas daquele grupo de teatro do CEFET34, o qual ele
fazia as trilhas sonoras dos espetáculos por amizade à Marinalva (a da entrevista anterior),
que se esforçava em dirigir um grupo de adolescentes cheios de espinhas, e que hoje é
minha colega no Grupo Estandarte.

Lembro-me de sempre ver Gadelha em festas na Ribeira e de dar aquele sorrisinho de


quem cumprimenta sem conhecer muito bem. No entanto, há alguns meses, ele começou

34
Atual, IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte, o antigo CEFET - Centro Federal de
Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte, foi onde cursei o curso técnico em Edificações
durante o ensino médio, e comecei a participar do grupo de teatro Falas e Pantomimas com outros
alunos da instituição.
A PÉ

a frequentar os ensaios do Estandarte com assiduidade e hoje faz parte daquele grupo que
é, para mim, quase uma segunda casa. Sendo assim, como gente de casa, eu o convidei
para caminhar comigo em prol deste trabalho.

Marcamos de nos encontrar em frente ao TAM – Teatro Alberto Maranhão, na Ribeira, já


que nós dois iriamos de ônibus, a Praça Augusto Severo nos pareceu um bom ponto de
encontro. Cheguei dez minutos atrasada, Gadelha estava ainda mais atrasado do que eu,
mas, por coincidência, Lenilton Teixeira (o da entrevista anterior), estava por ali, como se
me esperasse. Durante esses dias estava acontecendo o FLIN – Festival Literário de Natal
e Lenilton auxilia na coordenação das atividades.

Gadelha não demorou muito a chegar e iniciamos então, os três, uma troca de opiniões
149 sobre Natal e sobre como nos sentimos em relação a ela. Como a vivenciamos, ou não, e
de como, às vezes, não a sentimos nem nos sentimos parte dela.

 Mas Natal é uma cidade esquisita, porque assim, com os americanos aqui, criou-se
umas doenças. Uma que foi o lance do pioneirismo, essa história de ser “o primeiro”
num sei o que lá, num sei o que. A primeira contaminação do ponto de vista do
estrangeirismo de algumas coisas: do chiclete, da Coca-Cola. E também a mudança
dos nomes das ruas em detrimento da facilidade dos americanos, botar: 1, 2, 3... Pra
facilitar a locomoção deles. Então você perdia a identidade própria da rua que era Rua
Fulano de Tal, num sei o que, e passou a ser 1, 2, 3, 4.

 Mas a gente tem muita, ainda, assim, “coisa” com Natal. É difícil admitir que gosta das
coisas daqui. É difícil, muito difícil. A gente vê outras cidades que tem muito orgulho.
Você vê uma pessoa de Recife...

 Não, Pernambuco é demais, é diferente.

 Você vê uma pessoa da Bahia! Nossa senhora! Eles amam demais a Bahia.

 Mas eu acho que Natal é essa cidade metida a besta que tem uma pretenciosa
cosmopota, cospomotolinização, como é que é? Hahahaha. Cosmopolanitalidade.
Como é que chama isso?

 Eu acho que é cos-mo-politi-zação. Haha.

 E tudo começou aqui, né?


CAPÍTULO TRÊS

Papo vai, papo vem, sentados debaixo de uma árvore, ficaríamos ali o dia todo. Mas o
passeio nem tinha começado, precisávamos ir.

 Falando nisso, Babina, vamos começar?

 Vamos!

 Por onde a gente começa?

 Você que decide! Hoje quem faz o roteiro é você.

 Então, a gente pode começar por aqui mesmo. Só o que tem aqui é história! Aqui, aqui
e ali. (Apontando para o teatro, para a praça e para alguns edifícios em volta).

Começamos com as lembranças do Teatro Alberto Maranhão, já que estávamos ali em


frente.
150
150
 Nossa, olha: O primeiro show que eu fiz, de verdade, foi no Alberto Maranhão. Foi em
1997. Dentro do projeto Seis e Meia. Demorou muito para eu conseguir isso. Eu já
tinha tentado bastante. Aqui já existia um movimento musical, mas só rodava aquelas
pessoas, sempre. E o Seis e meia era muito legal, porque era o único projeto, famoso,
que tinha na cidade e que abria espaço para pessoas de fora.
Mas eu já apresentei peça aí, também. Quando eu era adolescente. E lotava! Teve uma
época que esse negócio lotava muito! A direção ficava desesperada. Por que não podia,
porque o teatro não aguentava. E esse pobrezinho, hoje tá totalmente esquecido, né?

Então iniciamos de fato a caminhada. Atravessamos a rua que contorna a praça, passamos
pelos ambulantes que ocupam as paradas dos ônibus e ainda na mesma calçada, Gadelha
apontou para uma janela no andar superior de um dos prédios que margeavam a praça.

 Ali em cima, tá vendo aquele negócio colorido?

 Sei.

 É o único canto colorido que tem. Tem ali “Beto Lanches” e em cima era um lugar de
uma galera de teatro que inventou de fazer uns sarais, umas coisas com música. Eles
ocuparam esse espaço.

 Quando isso?

 Em 2008.
A PÉ

151
CAPÍTULO TRÊS

 Eu me apaixonei loucamente no dia que eu vim aí. Eu nunca vou esquecer. Mas,
menina, isso aí é desse jeito, até hoje, quase caindo.

Mirando um pouco mais à frente e cobrindo os olhos, pela luz do sol que baixava a oeste
e nos cegava um pouco, ele continuou.

 Ó ali, tá vendo aquele “CDI ambientes”?

 Tô.

 Do lado num tem um prédio comprido?

 Tem.

 Ali, no último andar, era um lugar de uma galera bem alternativa que fazia festas, fazia
eventos e que trabalhava com publicidade. Era um lugar muito legal. Depois virou um
estúdio de gravação. É linda a vista que tem! Porque todos os andares, no fundo, têm
uma varanda. 152
152
 Dá pra ver o rio?

 Dá pra ver o rio. É lindo.

Continuamos, pela Rua Sachet, e seguimos a direita para entrar na Rua Dr. Barata.

 Olha ali em cima, o ano em números romanos, você sabe ler? (Apontando para os
números em cima de uma janela, que provavelmente indicavam o ano da construção
do edifício).

 Sei, quer ver? Mil novecentos e vinte cinco!

 Eita. Olha aquele outro (aponta para o frontão do segundo andar do edifício vizinho).
Que lindo. Eu acho tão bonito isso.

 É lindo, mesmo.

 Ó, aqui nessa esquina era uma barbearia, que eu lembro porque funcionou até bem
pouco tempo. E o primeiro panfleto de show que eu fiz foi em uma gráfica que tinha
aqui. Uma bem pequenininha. Acho que era essa porta aqui. Mas não tem mais.

 Você sente essa diferença, de que antes existam mais lugares abertos aqui?
A PÉ

 Sim. As pessoas vinham muito para a cidade, né? Pro centro da Cidade e pra Ribeira.
Depois que teve a inauguração dos shoppings - Natal Shopping, Midway - tudo
concentrou lá. As pessoas deixaram muito de vir pra cá. Então diminuiu bastante, né?

Nesse momento já estávamos na esquina com a Av. Tavares de Lira. E Luiz chamou a
minha atenção para o rio, à esquerda.

 Olha, ali no final, cê já foi até lá?

 Sim, sim.

 Ali, tinha um lugar que tinha um show, um evento que se chamava: Pôr do sol, num
sei o que. Você cantava num barco.

 Mas o show era ali?

 Era ali, o barco saia dali. E todo mundo entrava, e tinha um show, voz e violão, num
153 barco. E ficava todo mundo andando no rio. Era bem legal.

Atravessamos a Tavares de Lira e entramos na Rua Frei Miguelinho.

 Aqui acontecia, eu acho que você já deve ter ouvido falar, a Rua da Casa.

 Rua da casa? - Entendi que se referia a Casa da Ribeira, mas não conhecia.

 É, a Casa da Ribeira tava ainda sendo construída. Os Clowns35 tinham se apropriado


do prédio, que era um prédio em ruínas, não tinha nada. E aí eles começaram a chamar
artistas pra fazer eventos pra chamar atenção. Pra captar recursos, pra se apropriar
desse prédio. E aí essa rua ficava fechada e as coisas aconteciam na rua, em frente à
Casa da Ribeira. Acontecia um domingo por mês. Meu sonho era cantar nesse lugar.
Tinha muita apresentação de teatro de rua. O Galpão36 se apresentou aí! Faz muitos
anos isso, eu lembro. Ai muito artista que eu amava se apresentava e eu vinha ver. Era
um evento muito importante, ficava multo cheio. Natal não tinha muita coisa não, sabe?

 E quem frequentava?

35
Criado em 1993, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare desenvolve desde então atividades
artísticas na cidade de Natal.
36
Criado em 1982, o Grupo Galpão é uma das companhias mais importantes do cenário teatral
brasileiro, cuja origem está ligada à tradição do teatro popular e de rua.
CAPÍTULO TRÊS

 Então, não se tinha esse olhar pra artista daqui não. Era só artista que consumia artista
daqui. Ou quem era da UFRN, que trabalhava com arte, era uma coisa muito fechada,
porque as pessoas não queriam saber mesmo não.

Olha aqui também já foi um espaço que a gente usou pra ensaiar, nessas janelinhas.

As janelas de madeira do grande edifício branco na esquina da Rua Frei Miguelinho com
a Esplanada Silva Jardim estavam fechadas, e assim como ele, transmitiam uma sensação
de esquecimento.

 Uma galera se apropriou disso aí numa época. Várias pessoas usavam pra ensaiar. É
bem legal lá dentro. É imenso.

Continuamos caminhando, entramos a esquerda na Esplanada Silva Jardim, em direção


à Rua Chile.

 Qual sua lembrança mais viva daqui?


154
154

 Teve uma época que revitalizaram aqui, né? Isso foi público.

 Sim, na época da pintura das fachadas?

 Era. Foi principalmente na Rua Chile. Tudo funcionava e era muito cheio mesmo. E aí
todo mundo que tinha vontade de fazer algum trabalho artístico, queria tocar aqui. Era
um privilégio, viu? Era uma coisa muito importante. E eu vinha e ficava sempre
pensando: “Meu Deus, se eu disser pra alguém que eu toquei em algum lugar na
Ribeira?” Nossa, era muito importante.

Havíamos chegado ao largo da Rua Chile, alguns carros estacionados, e caminhões do


porto estavam por ali.

 Uma das primeiras vezes que eu cantei, foi um palco imenso aqui. Não me lembro
qual era o evento, mas era muita mesa espalhada aqui e um palco. E eu cantei. Voz e
Violão. O Blackout37 era aqui (apontando para uma das portas que hoje compõe o
Galpão 2938). O Blackout era só isso, o Galpão não existia não.

37
Blackout: Bar e casa de espetáculos localizada na Rua Chile entre 1997 e 2004.
38
Galpão 29: Espaço de festas e shows noturnos, atualmente ocupa o espaço onde anteriormente
se localizava o Blackout.
A PÉ

155
CAPÍTULO TRÊS

43. Início da caminhada; Sol na cara, Frontões com


números romanos e Cerca no Terminal Marítimo de
passageiros..

Acervo pessoal, 2015.

 Você frequentava o Blackout?

 Frequentava! Era uma das coisas mais maravilhosas de Natal. Todo mundo queria tocar
aí. As melhores bandas vinham tocar. As melhores pessoas vinham pra cá: jornalistas,
tudo, tudo. Tocar aí era alto nível! Eu só consegui muitos anos depois.

Ele foi seguindo para a lateral do Terminal Marítimo de Passageiros, onde ainda é possível
ver o rio, mesmo que por trás de uma grade.

 Aqui era lindo.

 Aqui era aberto?

 Era.
Olha, era ali que eu estudava. - Luiz apontava para uma rampa que saia de um
pequeno edifício antigo, branco com detalhes pretos. Levava uma espécie de letreiro
acima das portas com nome “CENTRO NÁUTICO POTENGY” apontado para o rio.
156
156
 Han? Que você estudou?

 Era, eu estudei remo.

 Sério?

 Sim! Na primeira aula, a gente já entra no barco. Mas fica só experimentando. E a


segunda, a gente já vai. Sozinho.

 E vai até onde?

 Vai até onde quiser. E o professor fica olhando. AÍ uma vez, eu fui até lá, tá vendo?
Onde tem o mato?

 Tô.

 Encalhei!

 Hahaha.

 Porque tinha muita lama. E eu não conseguia sair, o professor teve que ir me buscar.
Vamos lá, quero te mostrar lá dentro.

Demos a volta, passando novamente pela Rua Chile e adentramos no Centro Náutico
Potengy. Algumas pessoas treinavam em aparelhos que simulam as remadas. Vários
A PÉ

barcos estavam empilhados em uma espécie de prateleira para barcos. O espaço era um
grande ambiente sob treliças de madeira e uma cobertura aparente de telhas cerâmicas.
Ao fundo, o rio entre duas portas. Fomos em direção a ele.

 Aí, era aqui que a gente estudava. Bem cedinho, 7h da manhã. A vista era linda, né?
Mas aí construíram isso (se referindo ao terminal marítimo), matou um pouco, né? E
eu não sei como tá sendo as aulas, que tá meio fechado o caminho. Antes o professor
tinha mais visão dos alunos né?
É um esporte muito bonito, muito cheio de filosofia, é muito legal o contato com a
natureza, né? Mas a água é muito suja. Na época que eu vim, eu vi bicho morto, vi
fezes, aí eu fiquei um pouco assim, desisti, não consegui não. Tinha um barco da
prefeitura que tirava lixo todo dia daqui. Todo dia. Todo dia. Mas, muitos, muitos quilos
de lixo. Porque tudo vem pra cá, né? De esgoto.

 E como é ver a cidade vista do rio?

157  Nossa, é impressionante. Parece outra cidade. É linda, é muito linda. Mas muito
malcuidada também, né?

E eles estão aqui, né? (Apontando para o edifício). Há anos resistindo nessa escola.
Nesse prédio velho. Eu acho aqui um lugar muito especial, muito roots39 ainda, do jeito
que era antes. O cara daqui é muito legal e ele leva a história do centro náutico com
muito amor, mesmo sendo muito desvalorizado. Fico pensando o quanto ele é
pressionado pra sair daqui. Não sei se tem muito aluno, e assim, é um esporte que
depende muito da natureza, né? Não é todo mundo que se dispõe a isso.

Despedimo-nos do antigo professor de Luiz e voltamos para a rua. Andamos um pouco e


paramos em frente ao Do Sol40.

 Aqui é o Do Sol, incrível. Essa semana tem festival de música aqui. Eles fecham a rua
daqui até lá no final. Pronto, na época da revitalização, todos esses lugares ficavam
abertos.

 Você lembra quais eram os espaços?

 Aqui ficava aberto (se referindo ao Do Sol), ali se chamava Armazém do Cais
(apontando para a casa de Ferreira de Itajubá), aí lá era o Blackout, acho que esse aqui

39
Roots significa raiz, em inglês. É uma gíria que pode significar algo como “base” ou “essência”.
40
O Centro Cultural Do Sol Combo, casa especializada em música autoral desenvolve atividades
relacionadas à música, presente no cenário cultural da Ribeira desde 2004.
CAPÍTULO TRÊS

também é outro (para uma casa verde fechada). Eu sei que concentrava gente. As ruas
cheias de mesinhas e cada lugar uma atração, cada lugar tinha uma coisa. Desde lá
do começo da rua.

 Devia ser muito bom.

 Era muito bom. Eu tava começando na época e o sonho era tocar aqui. Mas
abandonaram, né? Muito. Se tornou muito perigoso, muito distante.

 Você sente que é perigoso?

 Eu sinto que é perigoso. Eu já fui assaltado aqui. Aqui mesmo onde a gente tá agora.

Continuamos pela Rua Chile, Gadelha ia me guiando. Passamos por uma sessão de
fotografia de uma adolescente, me pareceu algo como fotos para um álbum de 15 anos.
E algumas crianças vestidas com roupas de balé brincavam na rua em frente a um casarão
de onde se ouviam vozes de muitas pessoas. 158
158
 Aqui, é a EDTAM – a Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão, muito bonito esse
prédio, já ensaiei aí. Mas assim, hoje em dia, a maioria das coisas daqui da Ribeira é
de comércio de peixe, né? (Estávamos passando em frente a uma empresa de pesca).
Agora só falta te mostrar a Rua Buraco da Catita.

Voltamos para a Av. Tavares de Lira, caminhando em direção da Rua Câmara Cascudo,
esquina com o Buraco da Catita.

 Pronto, aqui já foi um dos maiores sucessos de público da Ribeira. Do nada, um samba
e todo mundo ficava aqui. Cê já chegou a vir?

 Já sim, mas eu preferia antes quando não fechavam a rua.

 É, agora fecham, né? Porque antes era totalmente democrático. Tudo, né? Inclusive a
música.

 Ah, é? As pessoas entravam pra tocar?

 Entravam! Era tudo aberto, tudo normal. E era bem improvisado, assim, uma mulher
numa mesa vendendo ficha de cerveja.

 Aqui? Sério?
A PÉ

 Era! Não tinha o que tinha hoje não. Era um lugar bem simples. Tinha um isopor com
cerveja e a mulher vendendo. Aí vendia uns caldinhos, umas coisas, e a galera ficava
aqui.

159  Mas já era Buraco da Catita?

 Já! Mas a rua no começo não era assim, com esse calçamento de rua, era como essa
de paralelepípedo, igual a esses becos. Foram eles que revitalizaram, né?

A Rua do Buraco da Catita foi o último lugar que Luiz escolheu para me mostrar. Depois
disso fomos voltando para Praça Augusto Severo, quem sabe encontrar Lenilton outra vez
e ir para casa. No caminho, revi algumas perguntas que eu não tinha feito.

 Ah, Gadelha, não te perguntei, o que você gosta de fazer hoje, por aqui?

 Hoje? Assim, nos dias de hoje?

 Isso.

 Eu gosto de ir ao Do Sol e ao Atelier, um bar que abriu lá na Rua Chile também, a


gente passou em frente. Gosto. Eu tenho medo, na verdade. Eu só venho se tiver uma
carona, porque eu tenho medo de descer aqui na praça e ir andando até lá. Jamais.
Eu gosto desses lugares, me sinto bem. Mas é perigoso, viu?

 E, por fim, você sente saudades de alguma coisa em especial?

 Pra mim, as coisas são muito ligadas às pessoas. Cada canto tem uma situação que
eu vivi com alguém, mas não é saudade, é alguma coisa que marca. Sabe?
CAPÍTULO TRÊS

45. Personagens
44. Vista interrompida do rio,
da 3ª visita de campo.
Bar Buraco da Catita.
Lenilton Teixeira, 2015.
Acervo pessoal, 2015.

160
160

PASSEIO 3. TÁRCIO, ADERBAL, PEDRO, ANTÔNIO E RAMOS

A visita número três aconteceu no bairro de Cidade Alta. Inicialmente se intencionava


realizar uma entrevista e um passeio acompanhado com Tárcio Fontenele, 49, presidente
da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (Samba). Lenilton Teixeira,
figura já apresentada anteriormente (visita 01) foi o responsável pela intermediação. No
entanto, vários outros personagens surgiram durante a conversa e ajudaram a compor um
múltiplo e rico depoimento sobre o Centro Histórico.

Além de Tárcio, foram entrevistados: o advogado Aderbal Ferreira Silva, o músico Pedro
Mendes, 53; o professor aposentado Antônio Capistrano e o proprietário do Sebo Balalaika,
Severino Ramos. A seguir, a transcrição dos principais momentos das entrevistas que
aconteceram na manhã de um sábado nas dependências do Sebo Balalaika, além do relato
do pequeno passeio acompanhado realizado com Tárcio pelas adjacências do Beco da
Lama.
A PÉ

7 de novembro de 2015

No final da visita 01, enquanto tomávamos a meladinha no antigo bar de Nazih, Lenilton
me falava sobre a Samba - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, e
prometeu me apresentar ao presidente dela, Tárcio Fontenele. Prometeu, teve que cumprir.

Marcamos para 7 de novembro, sábado pela manhã, às 10h, em frente a Capitania das
Artes. De lá, subimos a Av. Câmara Cascudo em direção à Cidade Alta. Eu imaginava que
íamos encontrar Tárcio no próprio beco, mas depois de passar pela Prefeitura na Av.
Ulisses Caldas, entramos na Rua Vigário Bartolomeu, em direção ao Sebo Balalaika.

 O escritório deles é aqui.

 Nesse sebo?
161
Na porta do sebo algumas pessoas conversavam e Ramos, ao qual fui apresentada assim
que entramos, proprietário do estabelecimento, organizava e limpava alguns livros. Fomos
em direção ao final da loja e por trás de uma mesa repleta de equipamentos de som,
computadores e material de escritório, estava Tárcio. Lenilton me apresentou como “aquela
menina que eu tinha lhe falado, Bárbara Babina”.

 Sentem aí, querem água?

Ele parecia um pouco ocupado, estava ao telefone e bebemos água, eu me sentei em


frente à mesa, em um sofázinho antigo que havia por lá e esperei que ele terminasse a
ligação.

 Tárcio, eu posso conversar com você?

 Poooode, omh.

 Pois pronto, vou colocar o celular aqui pra gravar, tá certo?


CAPÍTULO TRÊS

Nesse momento, um senhor da pele vermelha queimada do sol e de cabelos bem


branquinhos se aproximou da gente. Ficou ali observando a conversa que ia se iniciar,
como se soubesse que poderia contribuir.

 Então, o meu trabalho é sobre as experiências e lembranças de pessoas aqui no Centro


Histórico.

 Mas eu sou muito novo. Tá bom de você conversar com um caba de uns 80 anos, uns
70.

 Não, qualquer pessoa que tenha vivido, ou trabalhado aqui, independentemente da


idade, não tem problema, dá pra entrevistar.

Lenilton tentou me ajudar a explicar.

 Mas as memórias que ela fala, não quer dizer velhice. Está mais relacionada aos afetos,
as vivencias. 162
162
 Eu entendi! Eu entendi. Dá pra eu fazer aqui algumas coisas, mas eu digo assim,
Dunga, por exemplo, era muito bom, né?

 Quem é Dunga? - Eu quis saber.

Nesse momento o senhor dos cabelos brancos, já havia se sentado próximo a mim e
interviu na conversa.

 Dunga é “um caba”41 que suja uns pano de tinta e diz que é pintor.

Após explicar novamente que independente de idade e ou de tempo de vivência no centro


histórico, o que me interessava eram as experiências de qualquer um que tivesse uma
relação com aquele lugar, me pareceu, que Tárcio e o senhor de cabelos brancos, que
agora já havia se inserido definitivamente na conversa, haviam entendido que poderiam
me ajudar e que eu não reclamaria nem desdenharia daquilo que lhes era importante.

O senhor então começou:

41
“Um caba”: um cabra. Expressão popular nordestina, que se refere a “um homem”.
A PÉ

 Em vim morar aqui em (19)75. No centro, aqui.

 Pronto, óia, ele pode te contar mais coisa - Entendi que Tárcio iria passar a bola do
discurso para quem ele pudesse.

 Alcancei a Confeitaria Delicia; os porres homéricos de Navarro, Newton Navarro,


arriado, os caba levava ele pra casa, lá em baixo na Confeitaria. Porque eu morava lá
em baixo, na Ribeira e aí andava por aqui, né?

 Pois eu vou conversar com vocês dois, então.

 Eu ia da Ribeira pra Casa do Estudante. Quando a Casa do Estudante funcionava, que


tinha uma importância social fantástica. A gente vinha do interior e escapava lá, sabe?
Ninguém tinha condições de estudar no interior e nem os pais tinham condições de
bancar, aí então a gente vinha. Aí tinha o 20 que era o povo do Jardim do Seridó, o
19 era o povo de num sei de onde. E quem vivenciou essa vivência da Casa do
Estudante, por exemplo, você fica amigo pro resto da vida, sabe? E ficaram lembranças
de porres de quando a gente andava aqui que tinha o RP, que era um fuscazinho azul
163 com dois policiais. Num tinha crime. A gente saia do ABC, da festa de noite com o
tênis na mão, a camisa nas costas e ia se despedir da namorada aqui nessa praça da
Metropolitana, depois que lanchava no Chapinha. Natal tinha essa coisa de 40 anos
atrás, se você andasse na Ribeira era muito legal. Porque você tinha essa coisa do
erótico, dos cabarés com o cultural com o artista fazendo performance, sabe? Era aquela
radiola de ficha antiga. Sem ser aquela colorida que você botava a ficha, era aquela
radiola em cima do balcão tocando Genival Santos. Então, eu estudava nas Rocas, por
exemplo, lá na Escola Alberto Maranhão, e eu fazia esse percurso toda a noite pra ir e
vir.

 Desculpe, qual percurso?

Lembro-me de ter me perdido um pouco na conversa, porque além de tanta história e


informação, o senhor da pele vermelha falava muito rápido e continuava a falar sem
nenhuma intervenção da minha parte.

 Da Ribeira ali, da rodoviária antiga pras Rocas, lá pra Escola Alberto Maranhão, que
era depois do mercado.

 Pela Av. Duque de Caxias, mesmo?

 Pronto, era por ali. Então, esse percurso eu fazia toda noite e vinha, era tão tranquilo
Natal que eu vinha a pé de dez horas da noite, das Rocas pra cá e num tinha problema.
Um assalto era um negócio mais…; então a gente tinha essas coisas da boemia, uma
boemia sadia, que as pessoas, figuras de nome aqui no estado, como eu sei de Newton
CAPÍTULO TRÊS

Navarro e outros mais, escritores, que ficavam ao redor de uma mesa contando história,
bebendo, se divertindo. Não havia nada dessa história de violência. Você tinha uma
Natal ainda tranquila. E isso aqui, o Centro Histórico de Natal, ó, daqui pra Ribeira até
as Rocas, havia cultura. Uma coisa normal. Você não tinha esse business de butá um
palco, num sei o que. Ah! “Os caba” tocava com um violão. Eu toquei muito violão de
noite, na porta do prédio, juntava aquele pessoal tudo conhecido, sabe? Aí você tinha
essa coisa na rodoviária, umas figuras que andavam lá. As festas eram nos clubes.
Você tinha o América que era da elite, você tinha a AABB42 e você tinha o ABC43, tinha
o Atlântico44, Natal era essa coisa bacana, sabe? Você andava a pé.

 Era muito mais vivo aqui, então.

 Tá doido! Era muito mais vivo. Hoje você tudo que cê vai fazer tem que ter uma verba,
butá um palanque do tamanho do mundo, sabe? Então você tira o artista popular de
fazer a performance espontânea. Que é o que a gente tá querendo trazer pra cá de
volta. O pessoal da Samba tá querendo fazer eventos pra cento e cinquenta pessoas,
pra cem, fazer pequenas performances, num barzinho, uma coisa que não tem uma
preocupação. Como antigamente que a gente chegava aqui em Odete, era uma onda a
gente vir tomar um porre aqui em Odete. Era aquela coisa do tira gosto, da cachaça. A
164
164
meladinha de Nazih.

 Sim, eu fui lá.

 Pronto, a meladinha de Nazih era fantástica! E Nazih era aquele dono de bar chato que
a gente ia lá porque ele era chato. Ele dava um carão na gente por nada. “Num sei o
que num sei o que, quer mais não?” Esses negócio, sabe? Mas era por Nazih ser assim,
e a meladinha dele só quem fazia era ele, que a gente frequentava.

Ramos, o proprietário do sebo, se aproximava dos fundos da loja, onde nós estávamos, e
Tárcio, mais uma vez, tratou de me arrumar um novo entrevistado.

 Ó, Ramos, Ramos faz tempo que ele tá aqui. Pelo centro aqui, você tá aqui faz quanto
tempo?

 Eu tô aqui de (19)78 pra cá.

42
AABB: Associação Atlética Banco do Brasil, fundada em 1945, localiza-se atualmente na Av.
Hermes da Fonseca, Tirol.
43
ABC: ABC Futebol Clube fundado em 29 de junho de 1915.
44
Atlântico: Clube dos Suboficiais e Sargentos Marinha.
A PÉ

Expliquei para ele qual era o objetivo da entrevista e ele de pronto me contou sobre uma
época da qual ele sente falta.

 Agora, o Centro já foi mais prazeroso quando havia as livrarias de Natal. As primeiras
livrarias de Natal e os cinemas, os primeiros cinemas. Aí era muito prazeroso o Centro
da cidade. O Nordeste aqui, o Cinema Rio Grande, o Cinema Rex e as livrarias. As
primeiras livrarias de Natal foram aqui na Rio Branco, a livraria Universitária e a livraria
Opção. Eu trabalhei em ambas as livrarias. Então, nessas livrarias, acontecia no sábado
o encontro dos intelectuais, os poetas, os escritores. Também tinha a Clima, lá na
Ribeira. Aí o centro tinha uma vida cultural mais ativa, mais bonita. Ó você pega, vê
um filme no Nordeste, no Rio Grande, tinha um cinema de arte no Rio Grande, nos
domingos de manhã. Aí o centro era mais bonito, mais prazeroso.

 E quando foi que você começou a sentir que essa vida bonita e prazerosa começou a
cair?

 O centro começou a cair quando começaram a montar os shoppings em Natal. Aí, os


165 shoppings levaram essa parte cultural mais ativa. Os cinemas ficaram concentrados
nos shoppings, as livrarias, nos shoppings. Os shoppings desativaram o centro da
cidade. Eu permaneço aqui, eu já tenho sebo há 23 anos.

 E porque você permanece aqui?

 Eu não vô sair do centro não. Eu comecei aqui e vou ficar por aqui. Até o final. Eu não
vô levar meu sebo pro shopping.

Neste momento alguns clientes adentravam o sebo e Ramos levantou-se para atendê-los.
Assim como clientes, percebi que algumas outras figuras chegavam como visitar o espaço,
mas ao mesmo tempo para reencontrar velhos conhecidos, como se ali fosse um ponto de
reencontro. Um deles se dirigiu a mim, perguntou o que eu estava fazendo ali, expliquei e
acrescentei: “ouvindo pessoas”, ele disse que poderia me ajudar, que conhecia bastante o
centro histórico.

 Bom, meu nome é Pedro Mendes. Eu sou cantor e compositor.

 Você é daqui de Natal?

 Eu nasci em Parnamirim, mas isso é só um fato, papai era da Aeronáutica. Eu moro,


sempre morei aqui, no Barro Vermelho. E vou fazer 53 anos. Já tenho uma história de
CAPÍTULO TRÊS

música há mais de trinta anos, e conheço muito dessa geografia que você tá estudando.
Eu posso lhe falar, porque eu gosto muito, das ruas, dos prédios.

 E qual a sua rua preferida daqui?

 Do centro? Olha, eu gosto de andar não muito na parte mais comercial porque já
acostumou demais, né? Eu gosto dessas ruazinhas que eu chamo “Olindinha”, né?

 Olindinha?

 É porque parece com as coisas de Olinda (PE), esses bequinhos, só que três séculos
depois. Então eu gosto muito daqui. Eu me lembro que meu avô dizia muito pra mim,
a primeira vez que ele veio a Natal foi em 1913, né? Pra você ter ideia. Ele já faleceu
há muitos anos. Mas ele dizia que Natal era linda. Os casarios da antiga Ribeira,
subindo, todos eram bonitos. Aí as pessoas começaram a descaracterizar tanto, sabe?
Que é uma pena. Eu vejo as fotos eu fico me vendo aqui no bonde subindo aí, né? Mas
eu sinto como se Natal não observasse, sabe? A minha música mais popular diz isso,
fala um pouco disso. Ela fala assim:
166
166
Que aqui não tem avenida São João

Nem o mesmo padrão que se tem por aí

Coisas que não tem em todo o canto não se deve exigir

Isso é Natal, ninguém se dá muito mal

Como dizem pessoas quase sem se sentir

Linda baby, baby linda, volte sempre aqui.

Eu fiz essa música, Linda Baby. Então, eu falo exatamente disso, o que me magoa é
assim, eu quero te dizer em magoar não é falando em tristeza, mas é assim é esse
aspecto que eu acho que o Centro tem e assim ele vai sobrevivendo e os prédios vão
caindo, sabe? Mas eu acho muito bonitinho isso aqui. Eu gosto muito da Rua da
Misericórdia, que eu acho que é o nosso píer, né? Pra ver a cena mais bonita do dia
em Natal é o pôr do sol, o nascer é muito bonito, mas o pôr do sol vai avermelhando a
cidade por lá.

 A rua da misericórdia é aquela que acaba na Casa do Estudante, né?

 É, aquela que tem um paredão. O prédio da Casa do Estudante, que você falou, aquilo
é uma nobreza para o que a gente tem. Ele é uma nobreza, já já vai desabar! Tem uma
história, mas vai se escorregando.
A PÉ

Agradeci e nessa hora, chamei Tárcio para conversar, ele que já havia fugido de mim
algumas vezes, meio que desacreditado da importância de suas experiências.

 Mas Tárcio, deixa eu conversar com você. Já falei com todo mundo e ainda não falei
com você. Me conta um pouco da sua relação com o Beco da Lama.

 Assim, é porque minha mãe, minha mãe trabalhava na Praça Padre João Maria
vendendo artesanato, certo? Isso em, sei lá, há uns vinte e tantos anos atrás. Aí eu
sempre vivia aqui no Beco, aqui no centro, na verdade. Eu sempre andei por aqui.
Então, começou por aí, agora o que é que muda? Nazih que não tem mais, Odete aqui
que o pessoal ia muito.

 Odete era um bar?

 Era, era o Bar da Odete. Aí eu digo assim, o que eu tenho mais assim de coisa são
mais os bares, entendeu? E a convivência de entrar na catedral na época que a nova,
entendeu? Essas pequenas coisas de ficar por aqui andando, desde a época que eu era
167 mais rapaz até hoje eu ando por aqui.

 E como foi que você se tornou o presidente da Samba?

 É que é assim, a questão de eu conviver muito por aqui, então, a Samba é uma coisa
que é daqui. A Samba tem vinte ou vinte e um anos. E o único que precisa na verdade
é do poder público pra fazer alguma coisa, ela não tem receita própria, não tem como
sobreviver assim sozinha. Ai a gente faz algumas coisas sozinho, faz outras coisas. Ó,
em dezembro agora a gente vai fazer o Carna Beco e o Pratodomundo que é o primeiro
festival de gastronomia daqui do estado, entendeu? Tem 12, 13 anos, o Pratodomundo.
Então é o que, os donos dos bares que apresentam suas receitas, né? A galera sai
provando aí, a gente bota os jurados e são três sábados. Aí no último sábado tem show,
tem eventos com música.

 Vem muita gente?

 Depende, né? Teve uma época que já teve mais gente, né? Mas vem.

 Mas normalmente são as pessoas que já circulam por aqui?

 Não, não. Vem pessoas novas, entendeu? Vem pessoas novas provar, vem conhecer.
E esse ano a gente vai introduzir a meladinha, cê já foi tomar a meladinha ali?

 Já, já fui.

 Pronto, a gente vai tentar fazer com a meladinha também, começar um festival de
meladinha, sabe?
CAPÍTULO TRÊS

 Ô Tárcio, e qual é a sua lembrança mais viva do Beco?

 É, é na época de Nazih mesmo. Uma coisa assim quando a pessoa fala em Beco da
Lama, já lembra de Nazih. Ah meu deus, deixa eu ver, eu devia ter assim, uns vinte
tantos anos. Então já faz uns vinte anos que eu vinha aí em Nazih. Mas assim, o que
eu gosto mesmo da questão do centro é a questão que eu sempre passava ali aí tinha
um cara tocando violão, tinha um poeta recitando, aí tinha, como é nome daquele caba
da caixa de fósforo? Hein Ramos? Que ficava aqui, omh.

 Mário Solinha, Mário, Mário.

 Isso, Mário Solinha. Então, esse senhor me chamava muita atenção. Ele sentava, e eu
passava, eu novo, e ele ficava com a caixa de fósforo tocando um samba, samba. Ai
pronto, tinha Maínha, que às vezes você pegava ele tocando sax, entendeu?

 E isso, esse tipo de atividade continua?

 Continua, continua, mais assim hoje tá muito essa indústria do evento, tem que pedir
uma licença, num sei o que. Aí, a questão do espontâneo, assim, tem, tem, mas é 168
168
menos, bem menos.

O senhor da pele vermelha, o qual eu ainda não sabia o nome, voltou a se aproximar e
entrou na conversa.

 Há poucos dias, o menino aqui do Café São Luiz45 levava uma velha guarda pra lá,
com violão, cavaquinho, pandeiro pra fazer chorinho, era fantástico. Todos bem
empregados, sem cobrar nada, levava uma vasilhazinha pra alguém da uns trocados
pra eles beberem.

 A prefeitura barrou, num foi?

 Barrou, foi. É imoral, né?

E assim, a gente tem uma preocupação muito grande com o crack.

 Como assim?

 Por que assim, o melhor lugar de Natal pra ter crack é esse Beco. Porque o Beco,
assim, tem gente que mora aqui há 50 anos e num conhece esse beco. Porque passa
pra cá, passa pra cá, passa pra cá e num entra no Beco.

45
Fundado em 1937 o Café São Luiz Grande Ponto está localizado na Av. Princesa Isabel, foi
reformado e reinaugurado em 29 de novembro de 2013.
A PÉ

46. Entrevistas no Sebo Balalaika;


Fotografando; Movimentação em frente
do sebo.
Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.
 Mas por quê? Por medo?

 Não, porque não precisa, você não tem necessidade de entrar nesse beco. Então você
passa e não precisa nem olhar. Você num vê. Você passa de lá pra cá você num vê!
Então a gente tem uma preocupação de quê? De que se começar a proibir evento, de
começar a proibir os bares abrir, isso aqui vai tomar lugar pra quê? Pro abandono. Você
tem uma vida aqui muito grande de alimentação. Mas a vida noturna, praticamente
não tem. Tem assim, algumas coisas. Pronto, eu ando por aqui muito bem, que eu
vivo por aqui há num sei quantos anos, mas eu acho que outras pessoas que num
conhece aqui deve ficar assustado. O que é que acontece se começar a não movimentar
isso aqui? Se começar a ficar abandonado essa coisa aqui, talvez a gente perca pra
droga. Como aí, a Praça Padre João Maria até um dia desses, tava. Então tem umas
coisas aqui que a gente tem que ter um resgate. A questão da iluminação desse beco,
e de tornar um calçadão. É uma coisa importantíssima pra gente. A proibição de carro.

 Eu ainda não conheço o Beco.

 Eu te levo lá.
169
No caminho até a porta, parei para perguntar o nome do senhor de cabelos brancos e pele
vermelha que tantas histórias me contou.

 Qual o nome do senhor? Que eu não lhe perguntei.

 Olhe, uma vez uma me perguntou isso lá em Brejinho e eu disse: O nome do senhor é
Jesus!

 Ai desculpa!

 É brincadeira! Eu sou senhor mesmo. Meu nome é Aderbal Ferreira Silva. Eu sou o
advogado, poeta, brincante, cantador, precursor da irmandade dos galegos feios do
Brasil! Eu me auto denomino assim.

Paramos na porta o Sebo, eu queria fotografar a fachada e as pessoas que conversavam


ali na frente. Estávamos a um pé de sair quando Tárcio me arrumou mais um “caba” pra
entrevistar.

 Ei professor! Você viveu muitos anos aqui pelo Centro?

 Sim, os anos (19)60 todinhos.

 Ajuda essa moça aqui na tese dela ali. Dê uns minutinhos pra ela conversar com você.
CAPÍTULO TRÊS

170
170
A PÉ

O senhor da voz serena e de fala correta, de boina e óculos de grau me acompanhou até
o final da loja. No caminho, passamos por Ramos, que anunciou: “Esse aí foi o precursor
das livrarias. Quando ele tava saindo eu tava chegando nas livrarias”. E foi assim que
iniciamos nossa conversa.

 Então o senhor é da época das livrarias?

 A livraria universitária era ali na Rio Branco, né? Era a grande livraria de Natal. Do
Nordeste. Era conhecida como o ponto de encontro da cultura potiguar. Lá a gente
reunia todos os dias, mas principalmente aos sábados, ia a intelectualidade de Natal,
toda. A velha e a que tava chegando: Vicente Cerejo, Franklin Capistrano, meu irmão,
a turma de esquerda, praticamente todos frequentavam a livraria também. E Natal, o
Centro de Natal, nos anos (19)60 passa a ser o principal. Porque até os anos 50 era a
Ribeira.

 Ah é? Como era na Ribeira?


171
 Ah, a Ribeira era muito movimentada. A Ribeira era o centro boêmio de Natal. Era onde
tinha os cabarés, os bares tradicionais na Ribeira, né? E foi migrando pra Cidade. A
Cidade foi assumindo esse papel durante os anos 60. Aí durante os anos 60, os
principais cinemas de Natal, o Nordeste. E a gente tinha uma movimentação muito
intensa tanto da parte cultural, com formações de grupos e teatro.

 Você sabe dizer qual sua primeira lembrança daqui, do Centro ou da Ribeira?

 Olhe, a minha primeira lembrança é da Ribeira, que eu morava nas Rocas. Papai e
mamãe eram funcionários dos correios e trabalhavam ali na agência da Ribeira, na
agência central, ainda existe. E eu vinha muito das Rocas em 1952/53, eu tinha 6, 7
anos e eu ia muito pra Ribeira, aí eu andava pela Ribeira, né?

 Você gostava de andar por onde?

 Ah, pelas ruas da Ribeira, a Dr. Barata, porque era muito movimentada. Fervilhava de
gente, né?

 De dia e de noite?

 De dia e de noite, mas eu, na minha idade, eu vinha mais de dia. De noite eu comecei
a andar mais a partir dos anos 60. Nos anos 60, a gente tinha um prefeito que era
uma figura extraordinária. O maior do Brasil.

 Qual?
CAPÍTULO TRÊS

 Era Djalma Maranhão. Djalma Maranhão fez um trabalho extraordinário. Que era um
prefeito que tinha uma visão progressista das coisas, tinha um compromisso com a
cidade. Com a Arquitetura, com a preservação do patrimônio histórico da cidade, né?
Mas a cidade acabou-se. Natal tinha muitos prédios bons, bonitos, né? Destruíram e
vem sendo destruídos irresponsavelmente sem que as autoridades tomem uma
providência. Eu passei agora na Praça André de Albuquerque, essa praça aqui da antiga
catedral, aquela praça ali era o canto da gente ir pras festas da padroeira de Natal. Ali
tava armado os parques de diversões, né? As barracas, aqueles alto-falantes
transmitindo músicas e oferecendo às pessoas que tavam passeando, né? E tinha
também na Praça André de Albuquerque, Djalma Maranhão construiu, alguns
equipamentos que o golpe militar destruiu. Que era a galeria de arte. A galeria de arte
era o local de exposição e vinha gente de todo canto pra expor, Brennand46 veio pra
cá. E além da galeria de arte tinha a concha acústica, no centro da praça, que era onde
era apresentado os corais, os recitais. E tinha a biblioteca pública, que uma biblioteca
fixa e tinha uma biblioteca volante que passava pelos bairros de Natal. Além de uma
preocupação imensa com a questão do folclore, das coisas populares, né? E Djalma
era cercado por essa turma: Newton Navarro, Dorian Gray, Câmara Cascudo, Dr.
Roberto Furtado que era secretário dele, Carlos Lima, Hélio Vasconcelos que depois foi 172
172
secretário da educação, você tinha um grupo de jovens e intelectuais mais idosos que
faziam parte do governo de Maranhão. E eles investiram muito na cidade de Natal.
Natal era uma cidade muito pujante, muito fértil em termos de movimentação cultural,
artística e cultural. Quer dizer, Natal era isso.

 E você sente que não é mais?

 Não. Vai desaparecendo. Claro que cada geração tem a sua cidade, a minha cidade
acabou-se. Passou, né? A gente fica com saudade dela, querendo ver se retorna, mas
hoje é o shopping, né? Hoje não é mais o grande ponto. Cê sabe o grande ponto?

 Na rua João Pessoa?

 É, na João Pessoa.

 E o senhor tem algum lugar de afeto? Algum cantinho?

 Tem. É o grande ponto, mesmo. Porque o grande ponto era o nosso ponto de encontro
da nossa juventude. Domingo ali, fervilhava de gente a noite. Sentado. Conversando.
O pessoal saia da igreja, da matriz, a missa da noite, e passava lá, ficava sentado, aí
tinha o cinema, o Nordeste e o Rex ali perto, né? E a gente se encontrava no grande
ponto. Do grande ponto que a gente saia para as coisas, né? Saia pras festas, saia pros
encontros políticos, era a partir do grande ponto. E a gente quando queria marcar algum

46
Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand é um escultor e artista plástico pernambucano.
A PÉ

47. Entrevista com Antônio Capistrano, Beco da


Lama, Esquina do bar da meladinha e Sebos
da Rua Vig. Bartolomeu.

Lenilton Texeira e Acervo pessoal, 2015.

encontro com algum amigo a gente dizia “A gente se encontra no grande ponto a tal
hora”. Natal ainda preserva esses lugares, mas tá indo-se embora, né? E quando eu
passo vem a memória todo aquele período que era um período muito bonito. Claro que
cada época tem seu período bonito, também. Natal tava sendo construída, né? E foi
interrompida em (19)64 com o golpe. O golpe foi terrível para o Brasil e pra juventude,
né? Eles interromperam um processo de transformação que estava ocorrendo, de uma
transformação cuidadosa com as coisas do país. Eu digo muito que o Brasil caminhava
bem e a gente estava acertando e por isso houve o golpe. A culpa não foi nossa, a
gente não errou, a gente acertava, e eles não deixaram a gente continuar acertando.

 Poxa, muito obrigada pela conversa.

Eu ia lhe perguntar seu nome, mas ele próprio se adiantou.

 Pronto, eu sou Antônio de Farias Capistrano, professor aposentado da universidade.


Fui reitor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, e exerci outras funções,
fui deputado estadual, fui vice-prefeito de Mossoró por dois mandatos. Hoje eu sou
173 aposentado e militante, como sempre. E continuo com esperança e defendendo minha
utopia.

Agradeci mais uma vez e lhe expliquei que precisava ir pois Tárcio esperava para me levar
a conhecer o Beco. Saímos do sebo e foi então que eu entendi o porquê o “escritório” da
Samba se localizar ali. Ao lado do Sebo Balalaika existe uma galeria dá acesso ao pedestre
da Rua Vigário Bartolomeu ao Beco da Lama como é popularmente conhecida a Rua Vaz
Gondim. Eu nunca tinha andado por ali. Passamos pelo o antigo Bar de Odete, onde hoje
é o Bar Encontro dos Boêmios; o Bar da Meladinha, que hoje continua funcionando, mas
sem Nazih, e seguimos pela Rua Coronel Cascudo, voltando para a rua do sebo. Perguntei
a Tárcio o que ele mais gostava do centro.

 Eu gosto muito do sábado à tarde, eu digo da questão da boemia.

 E o que é que tem no sábado à tarde?

 Geralmente aparece, sabe? Um samba em Nazaré, tem evento lá no Zé Reeira. Pronto,


aqui ó, pode ser que daqui a pouco, lá pra duas, três horas, chegue um aí com um
instrumento, chega outro, chega outro, aí fazem uma coisa.
CAPÍTULO TRÊS

174
174
A PÉ

175
CAPÍTULO TRÊS

48. Despedida na sombra, calçada


da Rua Vig. Bartolomeu.
Lenilton Teixeira, 2015.

Paramos na esquina da Coronel Cascudo com a Vigário Bartolomeu, em baixo de uma


marquise, que deixava a calçada sombreada. Em frente, alguns pequenos edifícios antigos
ainda conservavam algumas características da construção original. Tárcio chamou atenção
para essas casinhas que fazem parte do mesmo quarteirão da Assembleia Legislativa do
Estado. 176
176

 Olha, isso tudo aí, ainda bem que preservaram as fachadas, né? O povo diz que a
Assembleia Legislativa tá atrás de comprar isso aqui. Dizem que tá negociando pra
derrubar e fazer estacionamento.

 Sério?

 Ou pra ampliar, eu não sei. Falam muito em estacionamento.

 E como é a questão de estacionamento aqui? É muito carro?

 É, aqui é assim, toda hora você tem que ter paciência, eu dou umas rodadas e fico
rodando até achar. É um pouco difícil estacionamento aqui. A mobilidade daqui no
geral é muito difícil. Pronto, essa questão do Beco, lá, se interditasse pra carro essa
parte que a gente andou e nivelasse a pista com o batente, já fazia a questão da
mobilidade de tudo, botava uma iluminação, um calçadão, pronto, tava feito. A gente
tenta essa questão na prefeitura, sabe? Mas não tá saindo nada.

Agradeci pela atenção, pela conversa, por cada entrevistado que ele me apresentou e pelo
pequeno passeio. Me despedi dele e do centro que fervilhava mesmo em um sábado de
manhã.
A PÉ

49. Convidando Juliana.


Acervo pessoal, 2015.

PASSEIO 4. JULIANA

O quarto e último passeio acompanhado foi realizado na presença de Juliana Fernandes,


29, formada em jornalismo, atualmente estudante de Letras Espanhol na UFRN. Juliana

177 vive em Natal desde os 12 anos, é carioca, mas antes de vir para capital potiguar viveu
parte de sua infância em Brasília. Durante seu estágio acadêmico na Tribuna do Norte 47,
localizada em um dos edifícios históricos da Av. Duque de Caxias, Ribeira, ela passou a
frequentar o bairro, inclusive produzindo festas em estabelecimentos comerciais da região.

9 de novembro de 2015.

A minha última entrevistada é a Juliana, eu a chamo de Ju, porque afinal ela é


pequeninha. Ela é amiga de outras figurinhas do curso de Arquitetura e fomos
apresentadas em uma das primeiras edições do Eco Praça48, mas acho o que nos
aproximou foi um encontro meio que sem querer no Rio de Janeiro, as duas de férias
caminhando e descobrindo o que fazer pelas ruas da cidade. Eu sabia que Ju já havia
frequentado bastante a Ribeira e por isso a convidei para ser uma das minhas
entrevistadas.

47
A Tribuna do Norte é um Jornal diário impresso e digital publicado em Natal.
48
Eco Praça é um projeto de ocupação e revitalização das praças públicas de Natal, através da
mobilização social.
CAPÍTULO TRÊS

Ju pediu que nos encontrássemos em frente à Nalva Melo Café Salão, na Av. Duque de
Caxias. Cheguei antes e fiquei esperando sentada na escadinha que dá acesso ao edifício.
Aproveitei para tirar algumas fotos e ela não demorou muito a chegar. Não nos víamos há
algum tempo, já que o TFG costuma afastar a vida social da gente, então expliquei quais
eram os objetivos da caminhada e ela decidiu que poderíamos começar por ali mesmo.

 Então vamos aproveitar que a gente já tá aqui em Nalva mesmo.

 Tá bom.

 Aqui, era muito engraçado porque mudou muito, sabe? Mudou muito e mudou pouco
na verdade, né?

 Como assim?

 Porque essa frente aqui de vidro sempre esteve. E esse chão lá de dentro, que eu acho 178
178
bem legal, também. Mas por exemplo, não tinha a placa, não tinha nenhum desses
móveis estilosos aí dentro. E eu trabalhava aqui na Tribuna, que é aqui do lado, né?

 Ah! Você trabalhava aqui?

 Trabalhei aí um ano e meio. Então eu passava aqui na frente todos os dias. Por isso
que eu me lembro muito de como era.

 Sim, entendi.

 E aí, foi mudando num sentido assim: começou a ter exposição, começou a ter festa,
às vezes tinha algum lançamento. Mas isso era bem esporádico, hoje em dia acho que
todo fim de semana acontece alguma coisa. Eu lembro de quando eu comecei a
trabalhar na Tribuna foi quando reformaram o Bila.

 O Bila é o nome do prédio?

 É, Edifício Bila. Tem aqui o nome. Tinha em algum local (procurando). Ah! É lá em
cima, ó. Vem aqui pro outro lado da rua que dá pra ver. O nome é muito bom, né?

 E eu entrevistei um cara que mora aí. E ele falou “eu moro no Bila” e eu achei que era
o nome de um cara que alugava. Haha.

 Ó, tá lá em cima!

 Bonito.
A PÉ

179
CAPÍTULO TRÊS

 Eu trabalhei na Tribuna em 2005 e 2006, é a época da reforma desse prédio, que


inclusive fazia muito barulho na redação. Nalva já existia, o PROCON49 também e aqui
também (apontando para um restaurante ao lado de Nalva), aqui era um local de
comida, sempre foi. Mas o prédio em si era um prédio que tava fechado. E aqui é a
Tribuna. Cê já entrou na Tribuna alguma vez?

 Não, mas já me disseram que é muito interessante conhecer.

 Você quer tentar entrar? A gente pode tentar conversar com alguém. Porque a parte da
escadaria: o que me contaram na época é que como Jornalismo e Ditadura eram duas
coisas que não combinavam, o prédio é meio um labirinto. Então você, pra chegar na
redação, você sobe, você desce, você passa por dentro de uma sala e são escadas
assim que são como se você estivesse indo para um esconderijo mesmo. Vamo lá tentar
entrar, pra você conhecer.

 Mas peraí, Ju, me conta da sua época festeira que eu sei de histórias aqui em Nalva.

 Foi assim: em 2007, eu fui com uns amigos pra um festival de música em
Pernambuco. O Coquetel Molotov50. 180
180
 Huhun, conheço.

 E lá, o festival acontecia na Universidade (UFPE51) e eles conseguiam uma coisa super
legal que era: Colocar bandas, colocar discotecagem, ficar a noite toda e ser tudo muito
divertido, tudo muito organizado. E a gente já ficou pensando: “Não é possível que a
gente não consiga ter uma festa dessa em Natal. Se Recife consegue, como é que Natal
não consegue? ” A única coisa que aqui na época tinha, na Ribeira, era o Do Sol e o
Galpão 29. Mas não existia isso de discotecagem. Não existia. Mesmo. A gente ficou
pensando numa festa que fosse só discotecagem “Não existe, não existe. Em Natal a
gente nunca viu”, “Mas será que o povo de Natal vai? ”. Teria que ser uma coisa
pequena pra gente testar. Éramos 5 e decidimos tentar, começamos a conversar em
setembro, mas a festa só saiu em dezembro só, e foi aqui em Nalva. A ideia de ser
aqui em Nalva, foi porque a única coisa que a gente tinha certeza era que a gente
queria que fosse uma festa legal, num espaço bonito e que fosse pequeno suficiente
caso não aparecesse ninguém a gente não ter o prejuízo do universo.

49
O edifício do PROCON se localiza na esquina da Av. Duque de Caxias com a Av. Tavares de Lira.
50
Coquetel Molotov: Festival de música realizado desde 2004 no Recife reúne atrações
internacionais e nacionais. Atualmente já conta com eventos em outras cidades do país, como
Fortaleza e Salvador.
51
UFPE: Universidade Federal de Pernambuco.
A PÉ

 Como era o nome da festa?

 A festa chamava: Lo que sea52.

 A época era época de Orkut, aí a gente criou uma comunidade, falava da festa; fazia
release; mandou pros jornais. Porque na época não tinha um site que divulgava como
tem agora o Apartamento 70253, não tinha nada, a gente mandou pros jornais mesmo,
e todo mundo divulgou, o que é mais louco. Aí a festa deu muito certo. A gente não
tava preocupado em lucrar, a gente colocou o ingresso a 2 reais. Aí foi tudo tranquilo.
A festa 2 foi em janeiro e a festa 3 a gente fez em março. Mas aí a gente começou a
ter problema porque começou a ficar muito lotado. Na festa 3 a gente já teve que fechar
a portaria porque não tinha condições de entrar mais ninguém. E aí essa parte de vidro
da frente ficou toda embaçada! Toda embaçada! Porque tava muito quente lá dentro.
Aí foi isso. A gente só fez essas três aqui. Ainda tentou fazer uma quarta no Galpão 29
por que achou que pudesse dar certo porque era um espaço maior, mas não era a
mesma coisa que a ideia do espaço em Nalva passava. Aí depois a gente parou. Não
produziu nenhuma festa mais. E em 2006 eu parei de trabalhar aqui, 2007/2008,
depois disso mais nada.
181
 Quando foi que você começou a frequentar aqui?

 Eu comecei quando eu comecei a trabalhar aqui (na Tribuna), em 2005.

 E aí você começou a conviver mais pelo bairro.

 Isso. Foi logo no começo de 2005. Porque era uma região da cidade que num tinha
muito apelo, né? Era escuro, era difícil de chegar, você só chegava com carro, se falava
que era meio perigoso. Na época O Galpão, lá no largo da Rua Chile, ele até tinha uma
movimentação bem legal, porque antes tinha sido um local chamado Blackout. E aí,
em 2005, eu comecei a estagiar aqui, saia daqui de 6 horas da noite, comecei a ver
que era mais tranquilo, já comecei a ter amigos na faculdade, então alguém já tava
dirigindo, então a gente vinha pro Do Sol e pro Galpão. Nessa época a Casa da Ribeira
começou a ter mais eventos, então, trabalhando aqui, às vezes eu ia direto. Teve uma
época bem legal que a Casa da Ribeira tinha muita coisa. Eles fizeram um festival de
curtas e aí a tela era na rua, então eles fechavam a rua, colocavam o telão, um monte
de cadeira de plástico na rua. Era bem legal. Também tinha um festival que era com
música, eu lembro que foi uma das primeiras vezes que eu escutei Simona Talma. Aí,
lá perto da rodoviária, tinha um local na esquina que eu não vou lembrar o nome, mas
tinha show grande porque não caberia em outros lugares, aqui, né? Na Ribeira. Que
era mais fácil porque era bem mais perto da rodoviária pra quem chegava de ônibus.

52
Lo que sea: O que seja em tradução livre para o português.
53
Apartamento 702: É um projeto de produção de conteúdo em meio digital. Trabalha com notícias
direcionadas para a cidade de Natal/RN, a exemplo da agenda de eventos da semana.
CAPÍTULO TRÊS

Porque pra todos esses eventos que a gente vinha, muitas vezes, a gente chegava no
último ônibus, vinha andando isso aqui tudo, que é bem esquisito a noite, ficava na
Ribeira até começar a passar ônibus de novo, por volta de 4:30h/5h, e aí voltava todo
mundo andando pra rodoviária também. O que era superperigoso e eu não faria hoje,
jamais assim, mas quando você é mais novo cê num tem muita noção de perigo, né?

 E agora a gente vai pra onde, Ju?

 Pra cá! (Indo em direção a Tribuna). Hoje em dia eu não conheço mais ninguém aí,
mas a gente pode pedir, eu falo que já estagiei e você como estudante de arquitetura.
Se falarem que não pode, a gente volta.

Você sobe um pequeno lance de escada para entrar no edifício. Uma porta bem alta e
larga te direciona para um balcão na recepção. Ju informou que queríamos visitar a
redação. A recepcionista ligou para o setor algumas muitas vezes até alguém atender.
Explicamos a esse alguém do outro lado da linha que era uma visita de uma antiga
182
182
estagiaria e de sua amiga curiosa que estava fazendo um trabalho sobre a Ribeira e que
seria interessante conhecer o prédio, por sua peculiaridade.

 Tudo bem, mas sem fotos.

Guardei a câmera fotográfica que levava no peito e seguimos por uma portinha lateral que
te leva a um corredor curvo. Poucos metros depois, a peculiaridade começou a tomar
forma: escadas, descemos, e então, uma porta à direita e outra escada subindo à
esquerda, seguimos pela escada. Era uma escada estreita e curva. Chegamos a um outro
patamar, uma outra porta e teto era bem baixo. Mais um lance de escadas para cima. A
escada continuava subindo, mas dessa vez seguimos por um pavimento. Portas, salas e
mais uma vez à direita, outra pequena escada, agora descendo. Você desce e a escada
muda de direção e continua descendo. Passamos por um corredor de cor bege meio goiaba
clarinho, sabe? Tinha cara de lugar antigo. As portas pareciam originais, tudo combinava.
No final desse corredor, a redação. Para a surpresa de Ju, um colega dos tempos dela de
estagiária ainda trabalhava ali. Ele nos recebeu e nos acompanhou até a parte do
maquinário. Grandes estruturas metálicas pintadas de azul recebiam os rolos de papel
gigantes. Fiquei imaginando aquilo tudo ligado, entrando papel, saindo jornal, deve ser
A PÉ

50. Porta do Nalva Melo Café


Salão; Letreiro Edifício Bil a;
Escadas Tribuna ( aquelas que
não deveriam ser fotografadas ).
Acervo pessoal, 2015.

incrível. Ju matou a saudade dos tempos de estagiária e eu fiquei bem feliz pela
oportunidade de vivenciar um edifício tão estranho.

Agradecemos a recepcionista e saímos em direção à rua. O nível da recepção é mais alto


do que o da calçada. Nas laterais da escadaria existe uma espécie de banquinho em que
se consegue ver a rua desde um plano mais alto.

 Olha, aqui, quando você sai para fazer uma notícia, tem os motoristas do Jornal que te
levam e te buscam, então era muito comum ficar sentado aqui, esperando o motorista
chegar. Ficar sentado aqui? Sempre. Teve uma vez que eu tive que cobrir para o jornal
online o carnaval da Ribeira, que é o carnaval de Natal na verdade, né? Que são os
desfiles das escolhas de samba. E ele passa todo aqui, essa rua fica fechada, e fica
lotado, cê já viu alguma vez?

 Não, eu já vim pra um bloco de rua, uma prévia.


183
 Não, tô falando do carnaval mesmo. As escolas passam, fecham essa rua aqui e elas
passam aqui. E aí pra você conseguir ver tudo, também, tem que ser em cima dessa
“bancada”, porque é bem difícil, e eu que sou pequena, então.

Nesse momento eu ia tirando a câmera da bolsa e perguntei a Ju qual seria o caminho a


seguir.

 Ai não sei, tenho um medo de andar por aqui com isso (a câmera).

 Pela sua história de assalto?

 Ah é, né? Tenho que lhe contar. Foi assim, depois dessa época 2005/2006 que eu
comecei a trabalhar por aqui e que começamos a fazer as festas teve uma época que
o Ateliê54 reabriu, que era o local que tinha samba, e eu tava um dia no samba e ia ter
uma festa no Galpão depois, não sei se no Galpão ou no Do Sol, eu sei que eu tava lá
no samba e a gente decidiu ir andando. Eu tava com mais três pessoas, eu, mais duas
meninas e um menino. Era basicamente chegar até a esquina da rua, virar e entrar na
Rua Chile. E foi nessa rua grande aqui do lado, eu acho que é a...

 Av. Tavares de Lira.

54
O Ateliê Flávio Freitas já teve parte de sua estrutura física ocupada por um bar, o Ateliê Bar e
Petiscaria.
CAPÍTULO TRÊS

184
184
A PÉ

 É, na Tavares. Três crianças, eu diria, porque eu não acho que nenhum dos três tinha
mais de 18 (anos), pularam assim atrás da gente. O maiorzinho deles tava com uma
faca e colocou no pescoço do meu amigo, e aí todas nós paramos e ele fez assim:
“entrega todo mundo a bolsa senão eu vou meter a faca” uma coisa assim. E aí a gente
só esticou a mão, entregou a bolsa. E eles fugiram a pé mesmo.
Então vamos andando em direção à Capitania (das Artes)? Eu também estagiei lá. Não
quero ir prali não (indicando em direção à Rua Chile).

 Por quê?

 Porque você tá com essa câmera e eu sinceramente acho perigoso.

Seguimos em direção a Cidade Alta, passamos pela Av. Tavares de Lira e Ju quis entrar
para me mostrar onde tinha sido o assalto: esquina com a Rua Frei Miguelinho.

 No dia que eu fui assaltada foi exatamente nessa esquina e a gente ia entrar na próxima
rua. Mas aqui mesmo eu nunca entrei nessas outras ruas (indicando a rua Dr. Barata
185 e a parte da Rua Chile paralela a ela), assim, de carro já, mas a pé mesmo nessas
outras não.

Passamos pela Rua Câmara Cascudo em direção à Praça Augusto Severo. Seguimos pela
praça, porque naquele horário fazia sombra entre o Teatro Alberto Maranhão e a antiga
rodoviária, atual Museu da Cultura Popular. Ela relatou que antigamente os ônibus
passavam exatamente por onde estávamos passando e que a praça não tinha esse espaço
todo que tem hoje, já que era cortada por uma via repleta de paradas de transporte público.
Na subida da Av. Câmara Cascudo perguntei a Ju se ela já chegou a frequentar a Cidade
Alta.

 Sim, eu fazia inglês lá na (Av.) Deodoro (da Fonseca). Eu andava muito e eu gostava
muito de ir pro Rio Verde.

 O que era o Rio Verde?

 Era um cinema de rua que tinha ali do lado da catedral nova.

 Não era Rio Grande, não?

 Tinha os dois, mas o Rio Grande fechou primeiro. Pelo menos foi assim que a
informação chegou a mim, eu só conheci o Rio Verde. Eu gostava muito do Rio Verde,
eu ia toda semana. Eu andava muito e eu gostava muito de andar sozinha depois que
CAPÍTULO TRÊS

eu saia do curso de inglês. Eu tinha curso, eu acho que, de 14 a 15:30h, mas eu só


voltava pra casa as 18h. Porque eu adorava ficar andando.

 Na Cidade?

 Aham, mas não só na cidade, eu gostava de ficar andando em geral. Eu gosto muito
de uma casa que tem aqui perto do Solar (Belavista55) que eu acho que a casa mais
bonita aqui do centro. Eu nem sei se eu ainda sei chegar nela, eu acho que deve ter
alguma coisa de arquitetura assim, porque ela tem uma porta toda de vidro assim
enorme, e ela era um pouquinho mais alta. Eu subia por essa rua de pedra. Assim,
cada dia em inventava um caminho novo, sabe? Principalmente porque eu gostava
muito, não sei porque, de quando eu saia com amigos que dirigiam e não dirigia eu
saber indicar o caminho das ruas, eu tinha muito prazer nisso. E aí eu sempre ficava
andando a pé e entendendo, e falando, e aprendendo os nomes. Hoje em dia eu acho
até que eu sei menos do que eu sabia naquela época que eu não dirigia, porque eu
andava muito pelo centro. E eu lembro uma vez, eu acho que em 2008, eu e minha
prima decidimos fazer tipo um book, sei lá, tirar umas fotos divertidas da gente, e a
gente veio tirar foto aqui nessa rua de pedra (Rua Tv. Pax, lateral ao Solar Belavista). 186
E a gente tem um monte de foto aqui, só que olha como é que ela tá hoje.
186

 É linda, né? Eu acho que é o calçamento original.

 É, eu acho que é. Só que ela tá toda estragada. Tem que fazer a manutenção com
essas coisas de patrimônio, mas olha ali, a quantidade de lixo acumulado. Primeira
coisa, não era pra passar carro. A primeira a ser feita era proibir que passe carro. Eu
acho o Solar muito bonito, acho lindo, mas eu acho ele muito subaproveitado, sabe?
Porque é um espaço massa, que que tem um jardim massa, que podia rolar umas
coisas tipo aquela música instrumental no Parque das Dunas, sabe?

Continuamos subindo, já estávamos quase na porta da Capitania. Entramos e descemos


a rampa que dá acesso ao pátio externo.

 Aí aqui na Capitania eu fiquei só seis meses, mas eu acho um espaço bem legal e
completamente subaproveitado também. Poderia ter muita coisa, raramente acontece
show. Esse ano eu vim pra um de música.

55
O Centro de Cultura e Lazer Solar Belavista coordenado pelo SESI (Serviço Social da Indústria) e
ocupa um casarão construído em 1907, tombado pelo Patrimônio Histórico. É um espaço utilizado
para fins educativos e artísticos e culturais
A PÉ

51. Rua de calçamento original; Atravessando a Rio


Branco; Bagunça em meio aos camelôs.

Acervo pessoal, 2015.

Ouvimos o som do trem ao fundo, uma espécie de buzina. Subimos de volta, bebemos
água e nos sentamos em um dos peitoris das “janelas” da fachada para descansar um
pouco.

 Hoje quando você vem na Cidade Alta e na Ribeira, você vem fazer o que?

 Só resolver coisa. Não que eu tenha problemas com a Ribeira, mas eu não gosto mais.
Os espaços que tem hoje em geral não me atraem tanto. Porque eles continuam iguais
há 10 ano atrás e eu mudei. E além disso, vir pra Ribeira é vir de carro, hoje em dia
eu não tenho mais a coragem de vir de ônibus como eu vinha quando era mais nova.
Pra mim é até tranquilo vir da Zona Norte pra cá, mas em geral o povo mora na Zona
Sul e não quer vir pra Ribeira porque é muito longe, e aí vindo de carro não pode beber
porque não tem como voltar para casa, aí não tenho vindo.

Decidimos continuar andando. Ju escolheu passar pela Rua Tv. Pax, a ladeira de

187 calçamento original, porque, segundo ela, a casa bonita que havia comentado ficava por
ali por perto. Infelizmente não encontramos a casa, mas fomos andando em direção à Av.
Rio Branco.

 Por aqui faz muito tempo que eu não ando. Especialmente a pé. Eu gostava de andar
pelas ruas menores, quanto menos carro, melhor, né? Mas depois de que eu parei de
fazer inglês aqui no centro, isso foi em 2003, junto ao fato de eu ter começado a
faculdade em 2004, eu não tinha mais muito o que vir fazer aqui. Então, vir para o
centro era estar atrás de algo específico, em geral da rua dos armarinhos, eu gosto
muito daquela rua, mas além disso, aqui no centro mesmo não tem nada, eu digo
assim: sem ser comércio, né?

Continuamos na Av. Rio Branco até a Rua Ulisses Caldas, na qual entramos e seguimos
até entrarmos a direta na Rua Princesa Isabel, e seguir até a Rua Coronel Cascudo, que é
fechada para pedestres. Ali na “rua dos armarinhos”, paramos para lanchar no Delícias do
Mate, uma pequena lanchonete que vende um mate com limão maravilhoso.

 Pronto, Babina, este lugar é uma memória afetiva pra mim. Pode anotar aí se você
quiser: eu adorava vir aqui quando eu andava no Centro.

Aproveitamos a pausa para colocar o papo em dia, descansar as pernas um pouquinho e


tomar coragem para voltar andando para a Ribeira, onde o carro de Ju estava estacionado.
CAPÍTULO TRÊS

No caminho de volta, ela decidiu continuar pela Rua Coronel Cascudo, que segue sendo
uma rua de pedestres e que nos quarteirões que margeiam a Av. Rio Branco fica tomada
de ambulantes em ambos os lados.

 Agora se tem uma coisa que eu gosto muito, é assim, essa bagunça. Adoro!
188
188
 E você imagina o porquê?

 Porque eu acho muito sucesso. Eu acho maravilhoso. E às vezes você tá procurando


uma coisa específica e às vezes pessoa nem tem, mas às vezes ela te atende tão melhor
do que numa loja. Olha só esse sapato!

3.5 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
O centro histórico de Natal, região compreendida entre os bairros de Cidade Alta, Ribeira
e Rocas, é o universo de estudo deste trabalho. A fim de definir um perímetro inicial para
o direcionamento da pesquisa em campo, foram sobrepostos as áreas correspondentes à
ZEPH e o perímetro do sítio histórico considerado Patrimônio Histórico e Cultural. A
poligonal de entorno foi escolhida devido à maior abrangência. Ao total, foram realizados
4 passeios acompanhados e 6 entrevistas. A caminhada em companhia do entrevistado é
considerada a fonte de pesquisa mais importante deste trabalho, uma vez que se busca a
apreensão da experiência e da narrativa do outro. Além disso, a busca por lembranças
significativas da cidade auxilia na prática do olhar atento, contribuindo para o exercício de
(re)descoberta da rua.
A PÉ

189
190
A PÉ

191
CAPÍTULO QUATRO

52. Parar para ver o que já estava ali.


Acervo pessoal, 2015.

4.1 PRÓLOGO
LAMBE-LAMBE
Sabe aquilo que eu comentei lá na plásticos a músicos e atores, e devo a
introdução, sobre curtir mais a beleza das eles todo o meu respeito e admiração.
imagens do que a poética das palavras?
Acontece que eu me cobro muito.
Então. Demorei para aceitar que esse
Pergunte aos meus amigos,
trabalho seria completamente teórico, e
provavelmente eles vão revirar os olhos e
na verdade, acho que ainda não aceitei.
dizer algo do tipo: “Ah! Babina é desse
Entendo que meus objetivos deixam claro
jeito mesmo! Ela lambe os trabalhos até
que o meu produto final é uma narrativa, 192
o fim”. Acho que até mesmo o meu medo
a qual eu chamei de narrativa de
de competições vem da possibilidade de
apropriação. No entanto, o caminho da
não me sair bem. E tratar de arte, que por
intervenção artística crítica na cidade,
mais próximo que fosse de mim, não me
que descobri como possibilidade no
deixava completamente confortável. Eu
segundo capítulo ainda me instiga e me
não tinha certeza se seria capaz de
faz acreditar na possibilidade de criar
propor uma intervenção artística crítica
algo um tantinho visual.
na cidade, parecia um peso muito grande
Eu convivo com “gente de arte” no teatro para mim. Até porque, o tempo estava
e também na universidade, a exemplo da passando, a data de entrega do TFG se
minha orientadora, que pinta aquarelas aproximava e eu não sabia se teria tempo
belíssimas, por sinal. Também tive a de propor, justificar, refletir e produzir
oportunidade de conhecer outras figuras dois produtos finais com qualidade: a
artísticas durante as caminhadas que fiz narrativa e a intervenção. Por mais que
por meio desse trabalho, desde artistas eu considere a intervenção artística outra
maneira de narrar a minha reflexão, não
A PÉ

havia tempo, nem conteúdo consolidado Então, eu havia comentado algo sobre
para tal. me inspirar na sinalização de trânsito, tão
comum ao meio urbano, para a criação
Então, decidi que deveria me arriscar, iria
de uma proposta artística. Não é minha
propô-la, a intervenção, mas de maneira
intenção criar placas nem algum tipo de
a ilustrar a minha narrativa. Sem
sistema de wayfinding56 tradicional, mas
preocupações, sem necessidade de cotar
sim me apropriar da estética e
ou justificar o porquê de tal escolha de
principalmente da essência dessas peças
cores ou de tipografia. Quero, de verdade,
urbanas. Segundo o Conselho Nacional
que vocês a entendam como parte desses
de Trânsito - Contran, a sinalização de
prólogos, como um momento de livre
indicação tem por finalidade “identificar
interpretação. Sei que posso estar me
193 as vias, os destinos e os locais de
antecipando e tentando conduzir o
interesse, bem como orientar condutores
julgamento de quem lê, como quem diz:
de veículos quanto aos percursos, os
“Olha, eu não tive tempo de fazer algo
destinos, as distâncias e os serviços
melhor, então estou avisando para que
auxiliares, podendo também ter como
você não se surpreenda e nem me cobre
função a educação do usuário” (Manual
por isso.” Mas, acontece que eu sou
Brasileiro de Sinalização de Trânsito,
assim. Faz parte de mim. Preciso me
2014), e são alguns desses propósitos
cobrar primeiro, antes que você o faça. E
que me interessam, objetivando o
dessa forma, assumindo pessoalmente
pedestre ao invés do condutor.
de que se trata de um momento de
diversão e de criatividade, eu sei que vou Não identificarei vias, nem destinos ou
conseguir relaxar e tentar dar o meu locais iluminados de interesse. O que eu
melhor. espero conseguir, através das

56
Wayfinding é um ramo do design que estuda as formas de que as pessoas se orientam no espaço
físico e como navegam partindo de um lugar a outro.
CAPÍTULO QUATRO

experiências apropriadas daqueles que caso um dia a intervenção seja


caminharam comigo e partilharam suas executada, encontrei nas ruas da Ribeira,
lembranças e vivencias na cidade, é e um elemento da arte urbana que se
estampar de alguma maneira as zonas encaixava nos meus objetivos: O cartaz
opacas do centro histórico, os lugares de de rua ou, popularmente conhecido
experiência e de apropriação, e assim como, lambe-lambe.
provocar a redescoberta da cidade e
“Ora pintados sobre fachadas de lojas e
aproximação do pedestre da rua. Mesmo
prédios; ora circulando sobre tabuletas,
que esses espaços e essas histórias
homens-sanduíche e bondes, ou colados
estejam no passado, me valho do poder
sobre placas, tapumes e muros”
que a arte tem de nos levar a outros
(BEDRAN, 2015, p. 245), produzidos
tempos e a lugares os quais não 194
por meio das mais diversas técnicas:
visitamos.
ilustrados ou pintados com látex, spray e
Entendo que faz parte dessa provocação guache, impressos em fotocopiadoras ou
incitar a reflexão do interlocutor. Nada é silks-creem, qualquer cartaz de rua
definido, nem dito como verdade colado em alguma superfície no espaço
absoluta. Quem se sentir provocado, público pode ser considerado um Lambe-
pode escolher se aquilo de alguma forma Lambe.
lhe incentiva ou não a descobrir outras
Ele surge com a cidade moderna, no
experiências na cidade. Não se busca a
século XIX, mais precisamente em Paris,
resolução de um problema, e sim uma
e se desenvolveu ao longo do tempo
reflexão sobre. Sendo assim, buscando
como uma linguagem voltada para a
para além da sinalização, uma base que
comunicação urbana. Esses primeiros
me permitisse a efemeridade, que não é
cartazes divulgavam o lazer e promoviam
resolutiva, mas que tem a capacidade de
o consumo de mercadorias, espelhando
provocar pelo tempo que for necessário;
a visualidade da cidade moderna em
assim como a facilidade de aplicação,
diversas partes do mundo. A
A PÉ

intensificação da vida urbana exigia uma comunicativa com aqueles que andam
comunicação capaz de alcançar os novos apressados pelas grandes metrópoles.
hábitos.
Como reflexo dessa comunicação
Entre os vários suportes de produzida em série, hoje “viver numa
comunicação que se organizaram para
esse fim, resultantes da indústria metrópole implica em estar cercado de
gráfica que se modernizou – jornais, imagens construídas artificialmente e que
revistas, folhetos, cartões postais e
embalagens -, os cartazes de rua formam uma paisagem em constante
surgiram, sob formatos diversos, como
expoentes da linguagem da publicidade mudança” (CAIO; LOMONACO;
em expansão (BEDRAN, 2015, p. SANTANA, 2015, p. 03). E como Lynch
245).
(1960) já dizia, os elementos gráficos
Pode até parecer contraditório a escolha
urbanos, a exemplo de um cartaz, nos
195 desse tipo de superfície como base de um
ajudam a construir a identidade visual,
produto que reflete sobre o processo de
estética e cultural das cidades, mesmo
espetacularização das cidades, afinal, os
que inconscientemente.
cartazes de rua surgiram, e são utilizados
até hoje, como aliados da mídia que usa Estes elementos funcionam tanto como
indicadores de fluxos urbanos
da cidade para a divulgação de seus (wayfinding), quanto como marcos que
identificam e nomeiam pontos da
produtos e propagandas. No entanto, cidade, auxiliando na definição de sua
talvez por isso, eles sejam uma potente estrutura informacional. As letras e
números que encontramos no
fonte de comunicação em meio urbano, ambiente urbano podem ser
entendidos como parte do discurso
o que lhe asseguraram presença na identitário e comunicativo da cidade.
memória coletiva das cidades. Segundo (CAIO; LOMONACO; SANTANA, 2015,
p. 03).
Moretto (2008), em reflexão sobre a
função social dos cartazes, entre as
manifestações do design gráfico, essa
categoria ganhou destaque no ambiente
urbano, justamente por sua função
CAPÍTULO QUATRO

Em entrevista57, Alessandra Oliveira, as cores da cidade. Com o lambe-


lambe, a gente começa a ver a cidade
mestre em comunicação social e de outra forma. A gente para. Então eu
estudiosa da arte de rua, explica como o acho que o lambe-lambe, hoje, está
trazendo isso para a gente. Essa
lambe-lambe passa de peça publicitária possibilidade de deslocar esse nosso
olhar dessa pressa, dessa correria, e
do passado para se inserir dentro das enxergar alguma coisa que estava ali,
categorias da arte urbana, e mas que estava um pouco obscurecida.
E essa volta ao passado, na verdade, é
principalmente como ele, hoje, é capaz trazer à luz, é mostrar realmente como
essas expressões podem ter uma nova
de ajudar na ressignificação da paisagem roupagem, uma nova linguagem
e do olhar. (OLIVEIRA, 2015).

Pensando nessa “nova” maneira de


Bom, a técnica do lambe-lambe é um
exemplo de como o passado está sendo apresentar o lambe-lambe na rua, com
revisitado. [...] Mas ele não é mais 196
exatamente usado como era antes. Ele caráter de intervenção artística e um foco
tem uma outra roupagem, ele tem um direcionado a outras áreas se não a
outro uso, e esse outro uso vai fazer
com que ele tenha um novo sentido. É publicidade, me veio a memória os
muito comum a gente ver, expressões
que eram usadas em favor do famosos cartazes comuns às ruas de
comércio, em favor da reprodução em cidades como São Paulo e Rio de
série - porque o lambe-lambe surgiu
[...] com essa possibilidade de cópias, Janeiro. Coloridos e tipográficas, em geral
né? De ter muitas reproduções – hoje,
assumindo um papel contrário. Na apresentam frases como “mais amor por
verdade, agora o processo é mais favor”, transformando a pequena poesia
autoral, único. Cada impressão que a
gente faz vai sair um pouquinho em estampa para os muros das cidades.
diferente. Então, o que é o lambe-
lambe está fazendo hoje? Eu acredito O movimento "Mais amor por favor"
que ele esteja proporcionando junto
com as outras expressões da arte nasceu em 2009, em São Paulo, como
urbana, como o grafite e a pichação,
um pedido de atenção à delicadeza das
um deslocamento. Porque a gente anda
pela cidade sem olhar para o outro, pequenas coisas em meio a
sem perceber o que mudou, quais são

57
Entrevista presente no documentário “Lambe-Lambe: de peça publicitária a elemento de arte
urbana” de maio de 2015, realizado por alunos de Comunicação Social da Universidade de
Fortaleza.
A PÉ

agressividade, indiferença e velocidade proponho uma organização da não


da vida na metrópole paulista. “Uma linearidade dos caminhos, dos desvios,
proposta que tenta fazer com que o lembranças e afetos daqueles que
observador se surpreenda com o erraram ao meu lado e que
conteúdo da frase inserida no âmbito generosamente dividiram comigo suas
urbano, reflita por um tempo, ou pelo experiências no centro histórico de Natal,
menos abra um sorriso no momento da acompanhadas de uma proposta gráfica
leitura e passe adiante a mensagem” de intervenção artística em papel, sob a
(MAROTTA, 2010). Impresso em época base do cartaz de rua - lambe-lambe.
de eleição, os cartazes tentavam
E consigo idealizar tal narrativa se não
competir com a propaganda política que
em primeira pessoa. Sei que essa troca
197 invadia a cidade. “Não tem a intenção de
de vozes - ora ele, ora eu - pode nausear
agredir ninguém, apenas encontrou nos
ou confundir um pouco, mas acredito
muros e paredes da cidade um suporte
que será a melhor maneira de lhes contar
possível e eficaz para a mensagem”
sobre o que apreendi dessas vivências.
(Idem).

A minha intenção com essa proposta é


exatamente essa: Fazer uso do cartaz
lambe-lambe e da estética da sinalização
53. Quadro de referência s (da esquerda para
urbana para tentar transmitir uma direita, de cima para baixo):
mensagem. Uma mensagem de atenção a. Stop Gendercide: Red light district ,,
Campanha de rua, Vietnam.
à rua, de reflexão sobre as experiências b. Grafite – Parking. Banksy, Reino Unido.
que existiram, que ainda existem ou que c. Grafites e lambe -lambes na Rua Frei
Miguelinho. Ribeira, Natal.
hoje só podem ser acessadas através de d. Sinalização vertical. Muse u Café Filho.
Cidade Alta, Natal.
lembranças.
e. Cartazes Mais Amor Por Favor. São
Paulo.
Assim, a seguir em “Ganhar e fazer f e g. Grafites e Lambe -lambe na Tv. José
Alexandre Garcia. Ribeira, Natal.
corpo: Narrativa de apropriação”
Disponíveis em:
a. http://goo.gl/Owyf24 ;
b. http://banksy.co.uk/out.asp ;
e. http://goo.gl/9JTucd ;
c, d, f e g. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO

198
A PÉ

199
CAPÍTULO QUATRO

54. Ginga e tapioca de Seu Pernambuco ,


Canto do Mangue, Rocas.
Acervo pessoal, 2015.

4.2 GANHAR E DAR CORPO


NARRATIVA DE APROPRIAÇÃO
Fui em busca de identificar e tentar compreender como processos urbanos, a exemplo da
modernização e da espetacularização das cidades, interferiram e seguem interferindo na
experiência do pedestre no centro histórico de Natal. Caminhei acompanhada de amigos
e desconhecidos e tive a oportunidade de vivenciar suas memórias. Agora, a partir daquilo
que me foi apresentado nas narrativas daqueles que acompanhei, arrisco uma reflexão,
uma narrativa coletiva de apropriação, baseada em conceitos apreendidos previamente
aos passeios e também enriquecidos de novas referências, necessárias devido as
particularidades das experiências de apreensão em campo.

O momento de “ganhar corpo”, que foi iniciado na apresentação das entrevistas e dos 200
passeios acompanhados no capítulo três, é concluído agora com as reflexões trazidas na
narrativa do “dar corpo” que se apoia na fala do outro, em imagens que ajudam na
descrição das análises e em uma micro-resistência urbana que toma como inspiração a
sinalização urbana sob a base do cartaz lambe-lambe.

Organizei minha narrativa em dois momentos: Interferências de afastamento e


Interferências de vínculo. “Interferências de afastamento” diz respeito aos processos
urbanos que afetam a experiência do pedestre de maneira negativa, afastando-o da rua.
Encontra-se dividida em: Carro; Insegurança e Espetáculo. “Interferências de vínculo”
aborda aspectos que identifiquei como interferências positivas à vivência do pedestre no
centro histórico de Natal, e são eles: Memória; Cultura & Boemia; Natureza; Arquitetura e
Resistência. Ao final das cada uma das duas partes, são apresentados os lambe-lambes
produzidos, finalizando e ilustrando as reflexões acerca das interferências de afastamento
e de vínculo.
A PÉ

55. Beco da Quarentena, Ribeira.


Acervo pessoal, 2015.

201

INTERFERÊNCIAS
DE AFASTAMENTO
CARRO | INSEGURANÇA | ESPETÁCULO
CAPÍTULO QUATRO

CARRO
CORPO EM ALERTA
 Cuidado o carro, vocês dois. - incomodo do choque, a reclusão do
Marinalva chamava atenção.
homem moderno contemporâneo às
As advertências de atenção para os grandes transformações da cidade e do
veículos que se aproximavam, muitas cotidiano me parece bastante sensata.
além dos relatos acima, se tornaram
Foi em Barra Bonita, interior do estado de
constantes ao longo da primeira
São Paulo que eu descobri a rua pela
caminhada realizada, e se repetiram
primeira vez. Eu devia ter uns 6 anos,
durante as outras visitas acompanhadas.
então estávamos em meados dos anos
O corpo em frequente estado de alerta
1990. Vivíamos em São Bernardo do
permanecia atento mesmo ao atravessar
Campo e fomos visitar a família do meu
uma faixa de pedestres ou ao caminhar
pai. Tenho na cabeça a imagem de uma
em vias afastadas das principais 202
ladeira com as calçadas em níveis onde
avenidas, onde a movimentação de
meus tios se sentavam em cadeiras de
veículos não era tão intensa.
plástico e observavam as crianças
Compreendo a preocupação de Marinalva jogando amarelinha na rua. Pula corda.
quando ela me chamava a atenção Elástico. Esconde-esconde atrás da
quanto aos veículos que se aproximavam, árvore. Dimdim de coco. O sol se pôs. Os
mas me incomodava a necessidade de adultos foram assistir a novela. E nós,
desviar o caminho a cada carro ou moto primos que não se conheciam, sujos e
que aparecia. Fiquei imaginando o flâneur felizes, nem percebemos a hora passar.
a caminhar pela cidade vivenciando a Minha mãe costuma lembrar que eu liguei
transição histórica do processo de para ela naquela noite. Meia noite, mais
modernização das cidades, quando tal precisamente. Muito contente: “Mãe! Eu
estado de alerta foi inaugurado. Se eu que brinquei na rua, mãe! Na rua! ”. Nunca
nasci quase um século depois e já cresci mais voltamos à Barra Bonita, em casa eu
com medo da rua, sempre olhando para me contentava com a garagem.
os dois lados, hoje ainda respiro o
56. Eu e meus primos em
Barra Bonita, SP.
Acervo pessoal, A PÉ
1997.

Se eu, que tive a rua por um dia, mesmo comemorava um projeto da Prefeitura de
que acesa pela ludicidade infantil, até Natal chamado “Se essa rua fosse minha”
hoje consigo sentir a sensação de que acontecerá na Ribeira no próximo dia
liberdade e diversão que aquela ladeira no 29 de novembro. O projeto consiste em
interior de São Paulo me proporcionou, fechar a Av. Duque de Caxias, entre o
imagine como o flâneur ou o homem Teatro Alberto Maranhão e a Av. Gustavo
moderno se sentiram quando a rua que Cordeiro de Farias, e destiná-la à atividade
eles conheciam foi substituída por novos de pedestres durante um domingo do
hábitos, entre eles o constante estado de mês.
alerta que até hoje nos atinge. De acordo com a secretaria adjunta de
Planejamento da Semurb, Floresia
Tais hábitos modernos nos trouxeram a Pessoa, a ideia do “Se essa rua fosse
203 minha...” é dar visibilidade à Ribeira,
percepção de que em grandes avenidas é despertando novamente nos natalenses
o sentimento de pertencimento, e assim
compreensível a necessidade do trânsito fortalecer os vínculos com o bairro e sua
rápido, a preocupação mais atenta e a história (Prefeitura Municipal do Natal,
2015).
escolha acertada pela faixa de pedestres.
É muito bom ver esse tipo de ação em que
No entanto, em vias como a Dr. Barata,
o caminho inverso é estimulado. Talvez
na Ribeira, por exemplo, em que a
assim o estar na rua fora do estado de
arquitetura te faz querer olhar para cima e
alerta desperte a necessidade de um
ler os números romanos dos frontões das
hábito arquivado desde os tempos do
bonitas fachadas que seguem casadas
flâneur. Talvez assim tal sentimento de
com suas vizinhas, tal preocupação
pertencimento apareça e mesmo fora da
interfere e dificulta a apreensão do
rua cedida por um domingo, continue
sensível, uma vez que esse se ocupa em
provocando a vontade de se apropriar
manter o próprio corpo ileso.
cada vez mais até que essa e outras ruas
Hoje eu li uma matéria que sejam nossas de verdade.
compartilharam no grupo de Arquitetura
da UFRN no Facebook. A chamada
57. Travessa México, Ribeira.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO

DESVIO
Todos os passeios acompanhados  Eu gostava de andar pelas ruas
menores, quanto menos carro,
apresentaram um elemento em comum: o melhor, né?
espaço por onde caminhamos, sem
 Do centro? Olha, eu gosto de andar
exceção, foi a calçada. As largas não muito na parte mais comercial
porque já acostumou demais, né? Eu
geralmente seguiam as grandes avenidas
gosto dessas ruazinhas que eu
e algumas até mesmo desfiguradas, chamo “Olindinha”, né?
traziam a faixa amarela do piso tátil Nessas “ruazinhas” a divisão do espaço
direcional pelo centro. As calçadas mais entre o carro e o pedestre restringe a quem
estreitas, pipocadas aqui e ali por anda a menor parcela do resultado.
ladrilhos antigos resistindo ao tempo, nos
Segundo Jacobs (1961), as ruas e
levavam a competir com o carro por um
calçadas são os órgãos vitais de uma 204
espaço na rua, já que em algumas delas,
cidade, pois são nelas que se percebem a
caminhar lado a lado se tornava difícil
diversidade e a intensidade de usos, são
devido a pequena largura, o que é
espaços de integração e convivência de
compreensível se nos lembrarmos que tais
uma sociedade, sendo as pessoas os
vias, a exemplo da Rua Chile, na Ribeira,
principais protagonistas do uso desses
surgiram sem essa preocupação de
espaços.
divisão de espaço.
A autora afirma que as calçadas devem
Os limites do centro histórico de Natal são
ser largas pois são capazes de receber
guardados por legislações que amparam a
usos tão importantes quanto parques para
preservação do traçado original das vias
atividades das crianças. E quando a
da região, de ruas mais estreitas, becos e
calçada não apresenta espaço suficiente
travessas. E foram por essas ruas que
para o universo de possibilidades que a
meus entrevistados resolveram seguir,
rua oferece à criatividade infantil, são as
tanto em presença quanto em suas
crianças as primeiras a desafiarem a
lembranças.
fronteira estabelecida pelo meio fio.
A PÉ

Quem nunca passou por uma rua, No entanto, já existem espaços próprios
destinada à passagem de carros,
fechada, no sentido figurado, por do centro histórico em que a calçada
pedaços de pau formando espécies de extrapola a rua e que a rua não se
traves em um final de semana agradável
e se deparou com crianças correndo de incomoda, afinal nenhuma das duas de
um lado a outro atrás de uma bola na
busca incessante do gol?! (GAVAZZA, fato existe. Tal configuração, particular
2013). dos becos e travessas da região, não é
As calçadas largas de Jacobs não questionada devido ao tempo em que
caberiam nas vias mais estreitas do centro fazem parte do desenho dos bairros e do
histórico de Natal, a não ser que cotidiano de quem vive ali. São espaços
levássemos a sério a questão da de desvio por natureza e tal característica
extrapolação proposta na brincadeira das já lhes confere um grande potencial.
205 crianças, aproveitando para revisitar o
 Aqui tem muito espaço para esses
passado em que a calçada era rua, e a rua espaços que a gente vê muito lá na
Europa. Lá na França a gente vê,
era calçada.
eles chamam de rua de passeio, né?
É um beco, assim, onde de um lado
Hoje ainda caminhamos por calçadas e e do outro são lojas. Que aqui a
desviamos pela rua. Erramos pelo desvio. gente não vê. Não há investimento.
Uma ruazinha dessa, que não
Mas pude perceber a naturalidade do passa carro, se tivesse um
interesse em transformar o desvio em investimento de estabelecimentos
comerciais né? Mas é assim, escura.
caminho através do discurso daqueles
A falta de iluminação, citada mais de uma
que passearam comigo.
vez em relação aos becos, e o acúmulo de
 Primeira coisa, não era pra passar lixo presenciado durante os passeios são
carro. A primeira coisa a ser feita
era proibir que passe carro. exemplos de evidencias da desatenção.

 A questão da iluminação desse


Assim, o pedestre busca a experiência em
beco, e de tornar um calçadão. É outros lugares, a calçada muitas vezes
uma coisa importantíssima pra
gente. A proibição de carro. não comporta e a rua acaba se tornando
uma opção. Por fim, desvia-se o desvio.
CAPÍTULO QUATRO

NÃO TE ESCUTO
A trama de desvios propícia à errância no Além da divisão do espaço físico, a zona
centro histórico de Natal é bastante rica. da audição é uma das mais prejudicadas
São inúmeras possibilidades entre becos, quando recorremos aos sons da
calçadas, ruas e desvios. No entanto, experiência. Tive consciência de tal
enquanto parte deles está esquecida em incomodo quando precisei transcrever os
meio ao lixo e o escuro, a outra é dividida diálogos das visitas. Em vários momentos
arbitrariamente com a hegemonia da Era não se podia ouvir a voz daquele que
do Automóvel. caminhava ao meu lado devido aos ruídos
produzido pelos veículos.

 Passou um carro na hora, e eu não


ouvi o que ele disse.
206
A relação do ser humano com o ambiente
acontece através dos estímulos que ele
recebe. O estímulo sonoro faz parte dessa
interação, mesmo que muitas vezes de
modo inconsciente.

Em “Para evitar a construção de uma


paisagem sonora autista, é preciso saber
ouvir a arquitetura” (2001), Osvaldo
Emery e Paulo Afonso Rheingantz
explicam que nós como arquitetos
estamos acostumados a nos preocupar
com a qualidade arquitetônica no que
“refere-se, basicamente, à sua aparência”,
mas que pouco ou quase nada de nossa
atenção é voltada para a satisfação dos
demais sentidos.

58. Calçada Av. Duque de Caxias, Ribeira.


Acervo pessoal, 2015.
A PÉ

ESTACIONADO
Segundo os autores, um passo importante E mesmo quando o convidado escolhia
para a intervenção na paisagem sonora é seguir por vias mais calmas como a Rua
a redução ou a eliminação dos ruídos Frei Miguelinho, na Ribeira, afastada das
urbanos, muitas vezes ocasionados pelo grandes e barulhentas avenidas, ou se
trafego de veículos. lembrava de lugares agradáveis de
contemplação da paisagem como o
 Mas eu já começo a pensar em
lugares mais sossegados. Bom, mirante da Igreja de Nossa Senhora do
especificamente onde eu moro, que
Rosário dos Pretos na Cidade Alta, o carro,
minha janela é para um trânsito
muito pesado. Queria um a moto e até mesmo o caminhão, mesmo
pouquinho mais de sossego.
parados, ocupavam a perspectiva.
“Um nível excessivo de ruídos, além de
 Esse espaço aqui é muito bonito,
207 acarretar problemas de natureza física e uma pena que durante a semana
psicológica, sobrepõe-se aos sons fique lotado de carros de quem
trabalha aqui por perto.
desejáveis, dificultando ou até mesmo
impossibilitando sua percepção” (EMERY; Durante os passeios, tive a impressão de

RHEINGANTZ, 2001). Quanto mais tal que sempre haveria espaço para mais um

problemática for combatida no meio novo estacionamento, tanto em vias

urbano, mais as sensações auditivas, públicas que se comprimem devido as

além das visuais e sinestésicas, poderão atualizações diárias de novas vagas,

ajudar aliviar as tensões e a tornar a vida quanto em edificações antigas que

cotidiana mais confortável e prazerosa, rendem a velha arquitetura à

provocando “um ambiente diverso e modernidade da compra e venda do


tempo, comercializado nos
estimulante, propício à interação do
homem com o mundo e seus estacionamentos privados.

semelhantes” (idem). O ZumBar, espaço significativo das


lembranças de Lenilton, lugar de reunião
da juventude natalense de sua geração,
hoje nada mais é do que um terreno cinza
CAPÍTULO QUATRO

59. Estacionamento em frente ao


Mirante da Igreja Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos.
Acervo pessoal, 2015.

na cidade, dividido em fatias com bordas  É, aqui é assim, toda hora você tem
que ter paciência, eu dou umas
de tinta pintadas no chão, e faz parte da rodadas e fico rodando até achar. É
categoria de espaços impessoais das um pouco difícil estacionamento
aqui. A mobilidade daqui no geral é
cidades: padronizados, desabitados, muito difícil.
lotados de dia, vazios pela noite.
A questão dos estacionamentos privados
A ameaça por novos estacionamentos a e da grande quantidade de carros parados
serviço da modernidade segue como nas ruas da região interfere na
receio na boca daqueles que ainda contemplação e percepção da paisagem,
enxergam a beleza das fachadas do dificultando a criação de vínculos
centro. imagéticos e sensoriais; contribui para a
multiplicação de espaços homogêneos e
 Olha, isso tudo aí, ainda bem que 208
preservaram as fachadas, né? (Se impessoais, afeta o equilíbrio emocional
referindo a dois sebos localizados ao lidar com a “paciência”, e participa da
em pequenos edifícios antigos). O
povo diz que a Assembleia equação de divisão o espaço entre
Legislativa tá atrás de comprar isso
aqui. Dizem que tá negociando pra
pedestres e motoristas, somando,
derrubar e fazer estacionamento. obviamente, para o lado sobre rodas.
O bar da juventude de Lenilton e os
Além disso, tal situação demonstra a
pequenos sebos da esquina da Rua
escolha de uma parcela significativa de
Vigário Bartolomeu com a Rua Coronel
usuários do centro pelo transporte privado
Cascudo, que provavelmente
em prioridade ao transporte público.
compartilharão do mesmo futuro cinza de
um estacionamento, são exemplos da
lógica de modernização das cidades: o
antigo cede lugar ao novo.

 E como é a questão de
estacionamento aqui? É muito carro?
A PÉ

PRECISO
DE CARONA
Apesar dos bairros da Cidade Alta e transporte que hoje não existe mais.
Ribeira receberem um grande fluxo que Durante a infância de Lenilton, o centro
interligam todas as regiões administrativas histórico ainda fazia parte da principal
de Natal e que circulam dentro dos limites área central da cidade, e obviamente a
do centro histórico da cidade, os relatos estação de trem e a antiga rodoviária,
sobre o uso do transporte público por ambas localizadas na Praça Augusto
aqueles que entrevistei ou eram tidos Severo, cumpriam o papel de dar boas-
como uma experiência fadada ao vindas natalenses aos passageiros que
passado, ou deixada em segundo plano. viajavam desde o interior do estado, a
O carro, a carona ou alguém que dirija, exemplo de Lenilton, e desembarcavam
foram os meios citados como prioritários e na capital potiguar.
209 seguros pelos entrevistados.
 A minha primeira lembrança é na
rodoviária. Que quando a gente
 Onde hoje é o Museu Djalma
chegava aqui tinha um homem que
Maranhão, era uma rodoviária que
dizia: (faz voz de locutor) Estação
foi desativada, mas que tinha função
Rodoviária Presidente Kennedy,
de parar os ônibus. Como lá era o
atenção passageiros… Eu chegava
ponto final, você pegava ônibus
de ônibus ou de trem. Meu pai
mais vago e eu ia para lá para pegar
trabalhava de guarda-freio, que
ônibus.
caminhava em cima do trem para
 E além disso, vir pra Ribeira é vir de frear junto com o maquinista.
carro, hoje em dia eu não tenho
Outra lembrança, essa agora de Flávio, diz
mais a coragem de vir de ônibus
como eu vinha quando era mais respeito à aventura mágica que o
nova.
transporte aquático proporcionava em sua
 E aí, em 2005 [...] eu já comecei a infância, quando ele saia da Ribeira em
ter amigos na faculdade, então
alguém já tava dirigindo, então a direção à praia da Redinha tomando o
gente vinha.
Potengi como rota.
 Eu só venho se tiver uma carona.
 Eu tenho a lembrança também de
As lembranças do passado também pegar a lancha da redinha, era um
momento muito mágico. A gente
ajudaram a revelar uma dinâmica do pegava aqui no cais da Tavares de
CAPÍTULO QUATRO

60. Parada de ônibus,


Pç. Augusto Severo.
Acervo pessoal, 2015.

Lira, cê conhece? [...] A lancha da de como se dava a relação entre a cidade


redinha era muito mágica, porque
não existia a ponte aqui (se e a saúde de seus moradores.
referindo a Ponte Newton Navarro),
só a de Igapó e era um momento de Um desses relatórios, aborda a questão do
aventura. transporte ativo e lista uma série de
O potencial de conexão do centro histórico benefícios dessa modalidade. Entre as
com as outras regiões da cidade é iniciativas de sucesso descritas, a
inegável, a exemplo da variedade de implementação de um sistema de
modais de transportes existentes e de transporte misto auxiliou no aumento do
viável implementação na área – transporte ativo da cidade, uma vez que a
rodoviário, ferroviário, aquaviário e distância do trajeto é muitas vezes um
cicloviário - que por sua vez, são atrativos fator limitativo.
210
importantes para a quebra do rótulo de
No entanto, não é só a distância que
área acessível prioritariamente à veículos
interfere na questão da experiência. Em
privados que pareceu existir entre os
uma situação em que o sistema de
entrevistados.
transporte público se combina com o ativo
Segundo a Associação Transporte Ativo, para vencer a limitação imposta pela
tudo o que permite a mobilidade de mesma distância que um carro consegue
pessoas apenas pela força de seu corpo, superar, ainda assim, a variedade de
sem auxílio de motores, a exemplo da possibilidades que o transporte misto
caminhada ou do ciclismo, é considerado proporciona é mais rica do que a linha
transporte ativo. contínua e direta do trajeto estabelecido
por quem segue em um carro.
Em outubro de 2011, o relatório Healthy
Toronto by Design foi lançado pela É simples visualizar quando lembro que
Secretaria de Saúde Pública da cidade de me encontrei com Luiz na Praça Augusto
Toronto no Canadá, e foi o primeiro de Severo, porque nós dois chegaríamos de
uma série de documentos sobre a forma ônibus na Ribeira, e que no caminho dali
A PÉ

até o Centro Náutico Potengy, na Rua necessidade de se acessar o centro


Chile, que era o lugar de maior histórico através do veículo privado.
significância o qual ele queria me Afinal, boa parte das festas, dos shows, e
apresentar, passamos por lembranças dos momentos de agregação de pessoas
pessoais, surpresas arquitetônicas, alguns acontece após o expediente diário de
raios de sol na cara e muitas risadas trabalho, no turno noturno, quando o
agradáveis que não teriam acontecido transporte público deixa de funcionar
caso estivéssemos nos encontrado na razoavelmente cedo em comparação ao
porta do clube. horário dos eventos.

Outra questão atingida é a boemia e a Aqui, a Era do automóvel interfere na


participação em eventos culturais da apropriação do espaço através da
211
região. Tão citada durante os passeios valorização do veículo privado em
como essência impregnada no centro detrimento do transporte público, e
histórico, a contar das lembranças da consequentemente do transporte ativo.
década de 1950 em uma Ribeira Mesmo em uma região rica em possíveis
movimentada por bares e radiolas de alternativas de modais de transporte, o
balcão, até uma memória mais recente carro segue em frente, restringindo os
das festas vanguardistas de jovens e caminhos da experiência à caminhada do
adolescentes em edifícios tombados, nos banco do motorista à porta do destino
anos 2000, a boemia pode ser diminuída final. Além disso, dificulta a liberdade
àquele que dirige e não se permite à prudente do aproveitamento da vida
cachaça da meladinha de Nazih ou a uma boêmia, uma vez que beber e dirigir não
cervejinha com ginga e tapioca à beira do combinam.
Canto do mangue.
Mas é a insegurança ressaltada pela noite
Podemos, mesmo que de maneira que aparece de fato como a causa pela
empírica, também associar a escolha do carro como bolha de transporte
movimentação cultural da região à atual e proteção.
CAPÍTULO QUATRO

INSEGURANÇA
OUTROS TEMPOS
 Era escuro, era difícil de chegar, Quando Lenilton me relatou sobre suas
você só chegava com carro, se
falava que era meio perigoso.
experiências da infância, de que andava
de ônibus sozinho e saia pelo centro da
 A gente hoje não anda tanto a pé,
porque a sensação de insegurança é cidade a comprar soldadinhos de plástico
grande.
e bolas de gude, “biloca” como ele disse,
confesso que fiquei surpresa. A ideia de
uma criança de 8 anos fazendo o mesmo
hoje, se apega quase que
instantaneamente a minha preocupação
com a segurança dela.

 Mas assim, essa época, lógico que


existia violência, lógico que existia 212
problema, tudo existia, mas era sem
grandes confusões. Era bem menor.

Aderbal, o senhor de cabelos brancos e


pele vermelha, fez questão de me ressaltar
como Natal era segura em sua juventude
e como ele usufruía disso caminhando
tranquilamente pela cidade.

 Num tinha crime. A gente saia do


ABC, da festa de noite com o tênis
na mão, a camisa nas costas e ia se
despedir da namorada aqui nessa
praça da Metropolitana, depois que
lanchava no Chapinha.

 Então, esse percurso eu fazia toda


noite [...], era tão tranquilo Natal
que eu vinha a pé de dez horas da
noite, das Rocas pra cá e num tinha
problema. [...] Não havia nada

61. Transporte ativo:


caminhada.
Acervo pessoal, 2015.
A PÉ

ABANDONO
dessa história de violência. Você  Cabe tanta coisa maravilhosa aí, e tá
tinha uma Natal ainda tranquila. assim, abandonada.

Ao caminhar na cidade o nosso corpo Já sabemos que a transição da Cidade


funciona como envoltória de proteção, e é Alta que inicialmente ocupou o núcleo
nele que são impregnadas as sensações habitacional de Natal para bairro de
tocantes ao ambiente que nos rodeia, as comércio popular, foi incentivado com a
quais podem estar ou não vinculadas à construção de uma Cidade Nova. O desejo
uma experiência agradável. Quando um de modernização da capital, assim como
espaço transmite a sensação de em tantas outras cidades, lançava luz
insegurança, a experiência apreendida é sobre novos interesses.
negativa e tende a afastar o corpo de tal
Com o tempo uma grande fração da parte
213 lugar, uma vez que ele provavelmente não
alta do centro histórico deixou de ser a
voltará a visita-lo, ao menos não da
vizinhança da elite natalense, passando a
mesma maneira.
ocupar o centro comercial da cidade em
A sensação de um centro histórico mais tomada pelas camadas populares.
seguro no passado e perigoso nos dias de
Por sua vez, a zona comercial da Ribeira
hoje me foi transmitida por boa parte dos
que, segundo a lembrança da infância de
entrevistados. E tentar entender as
Flávio Freitas, já contemplou comércios
possíveis causas dessa transição pode
“finos” e de “status”, foi aos poucos
ajudar a explicar o porquê do afastamento
perdendo público. Com o interesse e o
do pedestre das ruas.
investimento direcionados para outros
 Era muito bom. Eu tava começando lugares, o que restava para aquela área
na época e o sonho era tocar aqui.
Mas abandonaram, né? Muito. Se eram os cabarés, as zonas de prostituição
tornou muito perigoso, muito e de boemia. Áreas consensualmente
distante.
inseguras.
CAPÍTULO QUATRO

62. Lixo acumulado na rua, Ribeira.


Acervo pessoal, 2015.

Tal fenômeno não foi particular da capital  Olha, a maioria dessas casas são
casas particulares que os donos nem
Potiguar, o processo de decadência dos fazem nada nem ninguém compra
centros urbanos faz parte da história de para fazer algum investimento. Ai,
fica assim, né? Ó. Abandonado.
várias cidades brasileiras.
 Porque tá muito maltratada a
Esses novos centros ou polos urbanos se Ribeira, né? Faz pena.
converteram no foco principal de
iniciativas públicas e privadas,  Eu me lembro que meu avô dizia
redirecionando os grandes muito [...] que Natal era linda. Os
investimentos, o que intensificou a casarios da antiga Ribeira, subindo,
desvalorização de áreas urbanas todos eram bonitos. Aí as pessoas
centrais, outrora pontos de referência na começaram a descaracterizar tanto,
cidade. Deste modo, o centro primário sabe? Que é uma pena.
da cidade começou a ser identificado
pela concentração de atividades Juliana e Luiz relataram os assaltos que
econômicas informais, pela
gentrificação, pela degradação de seu sofreram na Ribeira, e em consequência 214
patrimônio histórico e pela subutilização de tal violência, ambos demonstraram
e abandono dos seus edifícios.
(ORREGO, 2012, p. 04) receio ao caminhar na região.

A percepção dos efeitos desse processo foi


 Eu sinto que é perigoso. Eu já fui
levantada diversas vezes nas narrativas assaltado aqui. Aqui mesmo onde a
gente tá agora.
durante os passeios e entrevistas.
 Eu tenho medo, na verdade. Eu só
A falta de iluminação das ruas; o lixo venho se tiver uma carona, porque
eu tenho medo de descer aqui na
acumulado nos becos; o esgoto empoçado praça e ir andando até lá. Jamais.
no meio fio; as casas fechadas; as ruinas Eu gosto desses lugares, me sinto
bem. Mas é perigoso, viu?
repletas de vegetação; a descaracterização
 E aí a gente só esticou a mão,
da arquitetura; e até mesmo os muros
entregou a bolsa. E eles fugiram a
cada vez mais altos foram imagens pé mesmo. [...] Não quero ir prali
não (indicando em direção à Rua
presenciadas e assuntos abordados quase Chile).
sempre em um tom de voz que combinava
 Por quê?
indignação e pena.
 Porque você tá com essa câmera e
eu sinceramente acho perigoso.
63. O comércio na Av.
Rio Branco, Cidade Alta.
Acervo pessoal, A2015.

USOS
Tárcio contou como sente medo que o Voltando a visitar Jacobs (1961), me
abandono do centro histórico dê chance aproprio de reflexões apresentadas pela
para a tomada do espaço pelas drogas. autora em busca da construção da lógica
que pode explicar a insegurança no centro
 A gente tem uma preocupação muito
grande com o crack. [...] Se histórico de Natal.
começar a ficar abandonado essa
coisa aqui, talvez a gente perca pra
Para a autora, mais importante do que a
droga. Como aí, a Praça Padre João
Maria até um dia desses tava. polícia ou mais eficaz do que a iluminação

O processo de modernização das cidades, pública, para garantir a segurança da rua,

que levou a vida cotidiana para novas bairro ou região, é necessário o trânsito

centralidades, é capaz de produzir um ininterrupto de usuários. Tais pedestres

215 sentimento e uma realidade de abandono. em companhia dos “olhos atentos” de

O abandono, por sua vez, está donos de padarias, mercearias, lojas e

intimamente ligado à sensação de pequenos serviços, são essenciais para o

insegurança. E dessa forma, em um sucesso dos bairros e distritos que

instinto de proteção, o pedestre se afasta apresentam maior vitalidade e segurança.

da rua e leva com ele a brecha de acesso Para que a expectativa de usuários e olhos

à uma classe de experiência que se abre atentos seja alcançada é interessante que

unicamente àquele que caminha. a presença desses “vigilantes” aconteça


em vários momentos do dia. E tal
acontecimento é característico de áreas de
uso diversificado.

A Cidade Alta ainda possui uma fração do


centro histórico destinada ao uso
residencial, no entanto, a divisão entre a
zona comercial e as casas de quem mora
64. Área residencial, Cidade Alta.
Acervo pessoal, 2015.

CAPÍTULO QUATRO

no bairro funciona quase como uma estabelecimentos comerciais fecham, os


fronteira entre duas realidades distintas. carros partem e as ruas ficam vazias,
dando margem à insegurança.
Quando caminhava com Lenilton pelas
ruas estreitas da zona residencial do  Mas a vida noturna, praticamente
não tem. Tem assim, algumas
bairro, ele comentava em como ficou coisas. Pronto, eu ando por aqui
espantado quando descobriu que a região muito bem, que eu vivo por aqui há
num sei quantos anos, mas eu acho
também era ocupada por casas. que outras pessoas que num
conhece aqui deve ficar assustado.
 Aqui ninguém imagina que são
casas, entendeu? Eu acho isso  Eu imagino que se outros lugares
esquisito. Quando eu me toquei que tivessem mais qualidade à noite, né?
aqui tinha casa, eu pensei “Gente. Mais vida à noite, seria massa.
Nossa. Eu não sabia que a Cidade Sinto falta de um restaurante massa,
tinha gente que morava”. aqui a noite, seria legal. Não tem, 216
realmente isso não tem.
E em depoimento sobre a Ribeira,
A vida noturna do centro, em particular da
Henrique refere-se ao bairro como uma
Ribeira, além de pobre, parece estagnada.
região de passagem.
Segundo relatos de Luiz e Juliana, os
 A Ribeira é uma região de mesmos estabelecimentos resistem desde
passagem, as pessoas não
permanecem aqui. Também porque os primeiros anos do século XXI.
não oferece lugares de convivência
um pouco mais convidativos. Os  Os espaços que tem hoje em geral
lugares são meio ermos, estranhos, não me atraem tanto. Porque eles
as pessoas não ficam. E é menos continuam iguais há 10 ano atrás e
residencial, né? eu mudei.

O prevalecente uso comercial e de Apesar disso, alguns eventos pontuais,


serviços dos bairros da Ribeira e Cidade como é o caso do Festival DoSol de
alta dispõe do trânsito de usuários e dos música que aconteceu na semana em que
olhos de quem ali trabalha durante o caminhei com Luiz pela Rua Chile,
horário comercial do dia. A noite essa acontecem com certa frequência nos dois
realidade é completamente alterada: os bairros. Apesar de agregar um público
A PÉ

POR OUTRO LADO


significativo nesses momentos e de levar O relato de alguns entrevistados, em
pela primeira vez ao centro histórico especial o de Henrique, morador da
alguns usuários que desconhecem a Ribeira e o Flávio que tem seu espaço de
região, tais eventos produzem uma trabalho no mesmo bairro, tentam
ambiência diferenciada do cotidiano dos amenizar o estigma criado sobre a região.
bairros, a exemplo do número de furtos e
 Não que seja da Ribeira. A Ribeira é
assaltos que aumentam devido a um bairro menos violento do que
muitos, mas eu digo porque a
quantidade de pessoas e a
sensação de insegurança, ela está
vulnerabilidade da multidão que se espalhada, né? Em toda a cidade.
concentra nas apresentações e se distrai  Existe uma imagem muito negativa,
dos pertences. por um lado, né? Desses Centros
Históricos das cidades que são tidos
217 como violentos, perigosos, como
 Nos eventos, claro, vem bandido de áreas que as pessoas cometem
tudo quanto é canto, porque tem
muito crime, num sei o que. O que
muita gente e eles vem atrás de se
não é verdade.
dar bem.
Assim, também tem esse aspecto,
Tais experiências negativas ajudam a eu acho que não é uma
reforçar o estigma de insegurança que criminalidade, a daqui, no nível de
violência que se vê por aí. É mais
atualmente pertence ao centro histórico de um abandono. Ou então, as vezes é
Natal, afastando o pedestre da noite. O um desespero mesmo.

que não contribui para a melhoria da O povo tem medo, mas esse medo é
um medo construído, na verdade.
situação, uma vez que quanto menos
olhos atentos e relações entre pedestres e A construção desse medo, que envolve o

usuários, mais a sensação de insegurança processo de modernização das cidades e

vai estar presente nas ruas. a hegemonia do veículo motorizado,


explicitados anteriormente, também
acontece pela ação do processo de
espetacularização das cidades, que
através da iluminação de outras áreas de
CAPÍTULO QUATRO

interesse, conseguiu transformar o centro  O centro começou a cair quando


começaram a montar os shoppings
histórico de Natal, quase em sua em Natal. Aí, os shoppings levaram
totalidade, em uma zona opaca, oculta, essa parte cultural mais ativa. Os
cinemas ficaram concentrados nos
mas que ainda dispõe de alguns focos de shoppings, as livrarias, nos
luz sob os espaços detentores de shoppings. Os shoppings
desativaram o centro da cidade.
investimento e atenção da região.
 Mas hoje é o shopping, né? Hoje não
é mais o Grande Ponto.
ESPETÁCULO
A força do processo de espetacularização
SHOPPINGS das cidades se traduz claramente no
Vários entrevistados associaram o exemplo do shopping center, que mesmo
esvaziamento do centro histórico à criação localizado fisicamente em áreas distantes
218
dos shoppings centers na cidade. Espaços do centro histórico, consegue interferir
luminosos por natureza, os shoppings tanto no trânsito de pessoas, quanto na
padronizam, homogenizam e criam uma movimentação cultural e nos hábitos
referência limpa de espaço comercial que comuns a essa região. Ajudando a alterar
jamais será alcançada pelo centro a ambiência e a identidade local.
comercial popular estabelecido na cidade.
A propaganda e a concentração de
espaços de cultura, lazer, alimentação e
serviços ajudam a criar um consenso de
que tais espaços são suficientes.

 As pessoas vinham muito para a


cidade, né? Pro centro da Cidade e
pra Ribeira. Depois que teve a
inauguração dos shoppings - Natal
Shopping, Midway - tudo
concentrou lá. As pessoas deixaram
muito de vir pra cá. Então diminuiu
bastante, né?
A PÉ

ESPETACULARES
À SUA MANEIRA

A desatenção e a sensação de abandono Antes o professor tinha mais visão


dos alunos né?
perceptíveis em muitas áreas do perímetro
do centro histórico de Natal contribuem A grade e a construção que limitam a

para a distinção e o realce dos pontos janela para o rio, traduzem bem o que o

luminosos da região. Terminal Marítimo representa dentro do


processo de espetacularização das
O Terminal Marítimo de Passageiros da
cidades. Um espaço, que tem sua real
Ribeira claramente é o foco de um dos
preocupação voltada ao turismo como
holofotes. O edifício branco, limpo, e
atividade econômica, vende a paisagem
espelhado, que prometia “novos locais
sem barreiras do pôr do sol àqueles que
democráticos de lazer gratuito e
podem pagar por ela, e oferece,
entretenimento tanto para os moradores
219 generosamente aos passantes da rua as
locais quanto para turistas” (SILVA,
brechas que sobram em um ato de
MORAIS e NÓBREGA, 2015, p. 89)
democracia cercada por grades.
permaneceu fechado durante os passeios
acompanhados. Nem mesmo o edifício Um outro espaço, esse entendo que muito

restaurado que dá acesso ao prédio se menos espetacular pela arquitetura ou

manteve aberto para visitação. O contato grandiosidade, mas que revela interesses

mais próximo entre pedestre e terminal se ocultos é a região do Canto do Mangue,

dá através de um espaço lateral, nas Rocas, incluindo o Mercado do Peixe

gradeado, em que se destina a e a praça onde Seu Pernambuco serve

contemplação da vista do rio, mas dessa ginga com tapioca.

perspectiva a paisagem já não é a mesma.  Mas, aqui é o Canto do Mangue, né?


Já é mais conhecido mesmo, tem
 Aí, era aqui que a gente estudava. até no roteiro do centro histórico da
Bem cedinho, 7h da manhã. A vista Prefeitura.
era linda, né? Mas aí construíram
isso (se referindo ao terminal  Isso, isso. Mas é porque isso aqui é
marítimo), matou um pouco, né? E o que é vendido. O mercado.
eu não sei como tá sendo as aulas, Entendeu?
que tá meio fechado o caminho.
CAPÍTULO QUATRO

65. Terminal de
Passageiros da
Ribeira, área de livre
acesso ao transeunte.
Acervo pessoal, 2015.

Particularmente para mim é difícil nesse espaço. Que é: Não sei o que
é.
visualizar a região como um produto fiel
do processo de espetacularização das Se a luz surge translúcida em meio ao

cidades. Prefiro entender como uma Canto do Mangue, e me faz querer

tentativa de organização e padronização acreditar que sua força pode ser

do espaço e que assim recebe mais abrandada, ela não deixa dúvidas em

atenção do que o cais da Av. Tavares de estourar de LED as fachadas do edifício

Lira, por exemplo, que dispõe do mesmo que ocupa a Prefeitura Municipal de

tipo de serviço. No entanto, a cigarreira Natal.

“brega” e o mercado que fede a peixe, O processo de espetacularização das


devido ao peso da ambiência de cidades também não age aqui de uma
vizinhança, em que as pessoas se 220
forma habitual, uma vez que a arquitetura
aproximam sem grandes pretextos, “bolo de noiva” não permitiria a
trabalham sentadas em baixo de árvores padronização, no entanto, o espetáculo se
onde apreciam a vista do rio, ainda ocupa em não deixar passar despercebida
conseguem provocar por meio de uma a sede de poder da cidade, realçando a
naturalidade própria a sensação de hierarquia de valor e deixando claro onde
experiência genuína, mesmo que sob um mora a autoridade da região.
pequeno feixe de luz espetacular.

 É engraçado que a gente aprende


que pra consumir você tem que ter 66. Fachada iluminada, Prefeitura de LED.
tais regras. Tem que ser assim e Acervo pessoal, 2015.
assado. Há uma série de fatores, que
dizem, desde a questão da higiene,
a questão da apresentação, da
recepção, e tudo mais. E aqui todas
as regras são burladas. No entanto,
é muito frequentado inclusive. Há
outras formas que atraem a
freguesia e o povo que não estão na
escola de marketing, que não tá
A PÉ

INDÚSTRIA
DO PALANQUE
 E isso aqui, o centro histórico de da “indústria do palanque” cria normas de
Natal, ó, daqui pra Ribeira até as
Rocas, havia cultura. Uma coisa
ocupação do espaço que preocupam por
normal. Você não tinha esse vetar a “performance do artista popular”,
business de butá um palco, num sei
o que. afastando a sua essência vibrante da rua
e dando espaço a ocupação de tais
Em entrevista com os personagens do
lugares por outros atores, a exemplo dos
Sebo Balalaika, alguns deles
usuários de drogas, ajudando na
mencionaram um incômodo que lhes
sensação de insegurança que acomete a
parece natural a contemporaneidade e
região.
que lhes faz sentir saudade de um
passado mais espontâneo.  De que se começar a proibir evento,
de começar a proibir os bares abrir,
221  Hoje tá muito essa indústria do isso aqui vai tomar lugar pra quê?
evento, tem que pedir uma licença, Pro abandono.
num sei o que. Aí, a questão do
espontâneo, assim, tem, tem, mas é
menos, bem menos

 Tudo que cê vai fazer tem que ter CIDADE METIDA


uma verba, butá um palanque do
tamanho do mundo, sabe?
À BESTA
Eles se referiam à espetacularização dos Outra questão que me chamou a atenção

eventos e a burocracia que surge com ela. durante os passeios acompanhados foi a

O que, segundo Aderbal e Tárcio, afastam sensação mencionada pelos entrevistados

das ruas a essência cultural e boêmia do de que o natalense não se identifica com

bairro. a sua cidade, como se Natal não fosse


valorizada por aqueles que vivem aqui,
 A prefeitura barrou, num foi?
atribuindo a tal constatação parte da culpa
 Barrou, foi. É imoral, né? pelo esquecimento do seu centro
Além de ajudar a centralizar e criar histórico.
ambientes prontos para os momentos de
 Mas eu sinto como se Natal não
cultura na região, a dinâmica burocrática observasse, sabe?
CAPÍTULO QUATRO

 É difícil alguém admitir que gosta Segundo Hall (2004) é na modernidade


das coisas daqui. É difícil, muito
difícil. A gente vê outras cidades que
que as sociedades experimentam a
tem muito orgulho. sensação de mudança constante, rápida e
Lenilton levanta a questão da tomada da permanente. E é nesse momento em que
cidade pelos americanos durante a a transição entre aquele sujeito seguro de
Segunda Guerra Mundial, em que Natal sua identidade unificada e estável, para
ficou conhecida por ser pioneira em um personagem fragmentado,
diversos aspectos que refletiam a “constituído de várias identidades,
modernidade que chegava ao país. Ele dá algumas vezes contraditórias ou mal
a entender que a cidade se acostumou em resolvidas” (TINÔCO, 2015, p.17)
ser espetacular, se habitou a olhar para acontece. O autor atribui à globalização a
responsabilidade por este fenômeno e 222
frente e se apegar à modernidade.
entende que o “sujeito pós-moderno [...]
 Mas Natal é uma cidade esquisita,
porque assim, com os americanos não tem identidade fixa, ou permanente,
aqui, criou-se umas doenças. Uma mas se transforma todos os dias” (Idem).
que foi o lance do pioneirismo, essa
história de ser “o primeiro”. [...] E
também a mudança dos nomes das  Mas eu acho que Natal é essa
ruas em detrimento da facilidade dos cidade metida a besta que tem uma
americanos, botar: 1, 2, 3... Pra pretenciosa [...] “cosmopolitização”.
facilitar a locomoção deles. Então
Natal foi exposta à modernização de uma
você perdia a identidade própria da
rua que era Rua Fulano de Tal, num maneira bastante agressiva, a população
sei o que, e passou a ser 1, 2, 3, 4.
aumentou exponencialmente em pouco
O sentimento de pertencimento e orgulho tempo e os novos costumes viraram
dos moradores de um território, de acordo moda. Talvez a cidade tenha se moldado
com Krucken (2009, p. 102 apud a essa “evolução” e tenha decidido seguir
TINÔCO, 2015, p.17) está associado a nesse estado de constante transição, em
imagem que se tem da região, levando-se que olhar para trás é moda do passado. O
em conta sua herança cultural, histórica e processo de modernização não é um
social. problema, ele faz parte do curso natural
A PÉ

da história dos centros urbanos, no


entanto, ter a identidade associada ao
seguir em frente, pode implicar em dar as
costas a errância lenta, a valorização da
experiência e ao cuidado com a história
remanesceste, a exemplo da memória
daqueles que vivenciaram o centro
histórico de Natal.

A seguir, os lambe-lambes produzidos a


partir das reflexões apresentadas a
respeito de carro, insegurança e
223
espetáculo.

Sugere-se a leitura do Apêndice C para


total compreensão dos conceitos adotados
na produção dos lambes.
CAPÍTULO QUATRO

224
A PÉ

225
CAPÍTULO QUATRO

226
A PÉ

227
CAPÍTULO QUATRO

228
A PÉ

229
CAPÍTULO QUATRO

230
A PÉ

231

INTERFERÊNCIAS
DE VÍNCULO
MEMÓRIA | CULTURA & BOEMIA | NATUREZA
ARQUITETURA | RESISTÊNCIA
CAPÍTULO QUATRO

67. A caminho do Beco da Lama.


Lenilton Teixeira , 2015.

MEMÓRIA
Eu sabia que a memória seria uma boa medo da viúva bicho papão e por acreditar
aliada no momento de identificar as que ela possa comer o seu fígado.
experiências daqueles que caminharam
As histórias da juventude também não
ao meu lado ou que cederam um pouco
escaparam aos relatos significativos,
de seu tempo para recordar suas
talvez por ser esse o período da vida em
lembranças mais significativas. Mas não
que mais nos permitimos ao risco e a
podia imaginar o quão expressivas
novas experiências. Como os que
seriam. Nas palavras e no tom da fala de
atravessavam a Ribeira e a Cidade Alta a
cada entrevistado, pude notar que muitas
pé e de madrugada, voltando para casa
das experiências das quais eles mais se
depois de uma festa nos clubes da cidade,
orgulhavam haviam acontecido no
ou a garota que passava horas
passado. 232
caminhando após do fim da aula, pelo
O tempo nos permite perceber a simples prazer em errar sem rumo. Ouvi
experiência ligada à idade. A exemplo das lembranças de rapazes que se despediam
aventuras da infância, quando um passeio das namoradas, “aqui nessa praça”, e que
no rio acontecia por uma lancha mágica, se reuniam com amigos para tocar violão
ou quando um caderno de colorir era e conversar no Grande Ponto depois que
capaz de distrair e fazer a hora correr mais saiam da missa. E quando a sessão de
rápido. Nos faz relembrar quando as luzes cinema acabava, não partiam sem antes
de natal eram vistas de um plano baixo, “traçar” um bom lanche e tomar vitamina
transformando a rua em parte de um de sapoti numa taça riscadinha.
universo lúdico que o adulto já não
Vivem na memória as festas da padroeira
enxerga depois que cresce. A experiência
na Praça André de Albuquerque e os
parece ser mais fácil para o menino, que
parques de diversões que traziam
descomplica a insegurança ao sair
barracas e música para quem passava.
sozinho para comprar biloca no centro,
mas que escolhe não visitar a rua com
A PÉ

68. Bar da meladinha, Cidade Alta.


Acervo pessoal, 2015.

Foi na Ribeira a primeira vez que alguém a ocupar outros corpos. A memória, que
subiu para cantar em um palco, que fez segue no passado é capaz de se fazer
um show de verdade, que resolveu presente através do interesse e da
organizar uma festa com os amigos e apreensão de quem ouve. E como o
acabou lotando um salão de beleza, ou narrador conta e leva à frente o que ele
que passava a semana imerso em um extrai da própria experiência ou daquela
intenso Blackout. contada pelo outro, ela estará sempre se
renovando, acumulando novos discursos
 Tá doido! Era muito mais vivo!
e novos acontecimentos. Ao narrá-la, a
Na época em que o centro já foi “mais
saudade da Natal da geração de Antônio
bonito, mais prazeroso”, também era a
deixa de ser somente dele, e a vontade de
233 época em que se andava a pé, em que
revisitá-la, mesmo que pela primeira vez,
Natal era coisa bacana. Mas Antônio tem
captura novos ouvintes, novos possíveis
razão quando diz que “cada geração tem
errantes.
a sua cidade”, e que se a atual já não
compartilha as mesmas experiências e
não usa a rua da mesma maneira, é
natural sentir saudades.

 A gente fica com saudade dela,


querendo ver se retorna. [...] E
quando eu passo vem a memória
todo aquele período que era um
período muito bonito.

A lembrança narrada é uma experiência


genuína. É a parte mais significativa da
memória e por isso ela é tão importante
na transmissão da experiência. Ao
revisitar o centro histórico através das
lembranças do outro a experiência passa

69. Lembranças de Aderbal.


Lenilton Teixeira, 2015.
CAPÍTULO QUATRO

CULTURA & BOEMIA


Entender o que movia e o que ainda leva ainda surgem aqui e ali a batucar uma
usuários ao centro histórico da cidade me caixa de fósforos ou a soprar um som em
pareceu evidente na busca de um sax.
interferências positivas sobre a
 Então a gente tinha essas coisas da
experiência do pedestre na região, boemia, uma boemia sadia, que as
pessoas, figuras de nome aqui no
sobretudo sobre os vínculos
estado, como eu sei de Newton
estabelecidos, uma vez que tais conexões Navarro e outros mais, escritores,
que ficavam ao redor de uma mesa
são criadas através da preservação de contando história, bebendo, se
relações de interesse. divertindo.

Atualmente, a herança boêmia é somada


Não foi difícil encontrar uma motivação
a vocação musical que perdura na região.
comum às narrativas dos entrevistados.
O Buraco da Catita, o Galpão 29, e o 234
Afinal a essência cultural e boêmia da
DoSol foram citados como casas ainda em
região foi uma questão consensual no
funcionamento que produzem shows,
discurso daqueles com quem conversei.
festivais, festas e espetáculos de música,
 Mas, como a Ribeira não tem sendo responsáveis por ajudar a divulgar
morador, quem era atraído para
bares eram essas pessoas ligadas a a produção de artistas locais.
algum tipo de movimento, ou à
cultura, ou à boemia, à arte, essas  Também tinha um festival que era
coisas assim. com música, eu lembro que foi uma
das primeiras vezes que eu escutei
A boemia aparece nas lembranças vivas Simona Talma.
de uma Ribeira movimentada por cabarés
Em momentos das narrativas a boemia e
e bares tradicionais; nos porres
a cultura se confundem, talvez pelo fato
“homéricos de Newton Navarro”; nos
de estarem acostumadas a frequentar os
bares de Nazih, de Odete e de Nazaré,
mesmos espaços, a exemplo dos
revivida em fachadas coloridas e mesas
intelectuais que se reuniam nas livrarias
postas na rua e na espontaneidade das
aos sábados, mas que certamente
performances de artistas populares que
compareciam os bares na sexta à noite.
A PÉ

 Aqui em baixo, funcionava o Os lugares que me foram apresentados


ZumBar, que era o bar mais cult
que você possa imaginar, da
como as casas em que cultura e a boêmia
Cidade. costumavam frequentar, e que ainda hoje
A movimentação cultural do centro seguem comparecendo, demonstram uma
histórico foi diversas vezes revisitada íntima relação do ambiente interno com a
através, por exemplo, de lembranças das rua.
sessões de cinema na Cidade Alta como
 Era um cinema de rua que tinha ali
programação obrigatória aos domingos; do lado da catedral nova.
dos encontros nas livrarias na Av. Rio  Tinha [...] o bar dos intelectuais ali
Branco; da presença ilustre de artistas na na esquina. Eu sempre passava e
via os velhinhos.
galeria de arte e das apresentações de
235 A exemplo de bares, edifícios que já
corais na concha acústica localizada em
ocuparam cinemas e teatros que ainda
frente a antiga catedral, na Praça André
sobrevivem na região, tais espaços têm
de Albuquerque.
suas portas de acesso voltadas
 Natal era uma cidade muito diretamente a esquinas, becos, ruas
pujante, muito fértil em termos de
movimentação artística e cultural. estreitas e praças. Adentra-se ao espaço

Ultimamente, espaços como a Casa da sem a necessidade de atravessar muros

Ribeira, localizada na Rua Frei ou de passar por uma cerca. Durante os

Miguelinho, contribuem para a festivais de música, teatro e cinema que

preservação dessa identidade cultural do acontecem na região, a rua é

bairro. naturalmente fechada para a passagem


de veículos, priorizando o pedestre. O
 Teve uma época bem legal que a
carnaval é exemplo de uma festa popular
Casa da Ribeira tinha muita coisa.
Eles fizeram um festival de curtas e que também acontece na rua e devido a
aí a tela era na rua, então eles
fechavam a rua, colocavam o telão, sua configuração obriga a preferência por
um monte de cadeira de plástico na quem anda em detrimento de quem
rua. Era bem legal.
dirige.
CAPÍTULO QUATRO

NATUREZA
O RIO
Essa ambiência festiva e agradável típica Quando perguntei a Flávio se ele poderia
dos movimentos boêmios e culturais me apresentar, mesmo que em narrativa,
permeia tais eventos e contribui para a um espaço particular da região, ele me
aproximação entre as pessoas e a rua. respondeu que me levaria para ver a
cidade de dentro do rio.

70. Meladinha na mesa, Cidade Alta. A mesma impressão foi passada pela fala
Acervo pessoal, 2015.
de Luiz, em contato com suas lembranças
das aulas de remo.

 E como é ver a cidade vista do rio?

 Nossa, é impressionante. Parece


outra cidade. É linda, é muito linda. 236
Pude perceber durante os passeios que o
rio não é de importância exclusiva das
memórias de Flávio, que desde a sua
infância caminha pela Rua Chile
vivenciando a conexão da cidade com o
as águas do Potengi, ou para Henrique
que sentia falta da vista quando ela estava
cercada por tapumes. O Rio é o elemento
mais antigo da região que hoje ocupa o
centro histórico de Natal, estava presente
quando a cidade era ainda uma criança
provinciana, e talvez seja um dos
elementos mais importantes da identidade
da região.
A PÉ

JANELAS

Apesar da poluição instaurada em suas A topografia acentuada da Cidade Alta,


águas, que afasta quem tenta se apropriar que já entrega a posição pelo nome,
dele através do esporte, por exemplo, o incentiva a criação de janelas que
Potengi se faz presente mesmo quando funcionam como uma organização visual
não o vemos: Nas ruas ventiladas com a entre o urbano e a natureza. Nesses
brisa úmida, nos mercados e nas espaços a conexão entre cidade e
indústrias de pesca que ocupam a região; paisagem acontece genuinamente mas
na ginga com tapioca servida em mesas e chega a surpreender pela grandiosidade.
cadeiras de plástico. E quando temos a A exemplo do mirante da Igreja de Nossa
oportunidade de contemplá-lo, o olhar Senhora do Rosário dos Pretos que
não nega atenção. espanta pela proximidade com o rio
237 correndo ao final da rua; e a surpresa
agradável que se tem ao encontrar a
esquina da ladeira da Rua João da Matta
71. A proximidade com o
rio na rua em frente a em que o verde do mangue colore o plano
Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos .
de fundo.
Acervo pessoal, 2015.
 Eu gosto muito da Rua da
Misericórdia, que eu acho que é o
nosso píer, né? Pra ver a cena mais
bonita do dia em Natal é o pôr-do-
sol, o nascer é muito bonito, mas o
pôr-do-sol vai avermelhando a
cidade por lá.

Do centro histórico de Natal é possível ver


o pôr-do-sol acontecer em namoro com o
rio. Na Rua da Misericórdia, em que vi o
sol se despedir do dia durante o primeiro
passeio acompanhado, é possível sentir o
tempo parar. Durante alguns instantes
CAPÍTULO QUATRO

72. Janela na Rua João da Matta.


Acervo pessoal, 2015.

daquele sábado, todos que ali  E acho que muito ligado à essa coisa
da história. Pra mim, a arquitetura é
contemplavam a mesma paisagem se um negócio que influência muito na
aquietaram, pareciam estar imersos em minha vida, em estar em um lugar.

um estado de lentidão, de percepção. O A nobreza da Casa do Estudante e as


pôr-do-sol e a paisagem pintada de rio histórias de amizades que ali foram
funcionam como uma pausa na correria construídas; a casa bonita que chamava
do dia-a-dia, como um espaço para a atenção e fazia o caminho desviar para
sensibilidade da natureza cotidiana, que que se pudesse contemplá-la; o prédio de
pinta de vermelho a cidade e que letreiro reformado que hoje é casa de
consegue assim, chamar sua atenção por alguém; a escadaria de onde se viam
alguns instantes. passar as alegorias nas festas de carnaval;
238
o teatro que lotava em apresentações da
infância; o restaurante que já foi
ARQUITETURA consulado; o espaço estiloso e

 No curso de Arquitetura a gente aconchegante próprio para uma festa e o


aprende a dar valor, dar muita labirinto que desperta a curiosidade de
importância a arquitetura histórica,
né? Porque ela conta a história da quem ouve e experimenta seus degraus:
cidade nos seus prédios, nas
são exemplos de como a arquitetura ajuda
paredes, nas fachadas. Na forma do
espaço do bairro. Você caminha e a contar história e a identidade de uma
você sente isso. [...] É uma
motivação a mais para eu produzir cidade através dos volumes e das formas.
arte.
E a preservação dessa arquitetura
Alguns entrevistados associaram a
contribui para a permanência de
importância da arquitetura como um
narrativas que são capazes de despertar o
incentivo à sua permanência e
interesse em manter portas abertas, subir
experimentação no centro histórico de
escadas, aproveitar a varanda para olhar
Natal.
o rio, e assim sentir por dentro um pouco
disso tudo o que contam.
A PÉ

RESISTÊNCIA
Durante a minha apropriação teórica para exemplo, a zona residencial da Cidade
a construção dos conceitos de base deste Alta que parece desconhecida até mesmo
trabalho, li sobre a resistência das zonas àqueles que sentem a região como área
opacas: espaços de criatividade, abertos e apreendida. Mas talvez seja devido a isso
dissensuais que permanecem vivos em que tais zonas revelam uma ambiência
meio aos processos de modernização e diferenciada, intocável, e assim mais
espetacularização das cidades. E também intima e pessoal, como é o caso da Rua
tomei conhecimento da existência de da Misericórdia, única via em que
errantes e vaga-lumes, personagens que presenciei crianças brincando.
permeiam tais áreas e que traduzem a
Assim como o descaso e o abandono
experiência de alteridade na cidade.
permitiram a identificação das áreas
239
Já citei, aqui mesmo nessa narrativa, iluminadas, a resistência nos revela os
parte da minha opinião sobre as zonas vaga-lumes.
opacas do centro histórico. Sinto que
 Eu não vô sair do centro não. Eu
devido ao abandono, a insegurança, e ao comecei aqui e vou ficar por aqui.
Até o final. Eu não vô levar meu sebo
investimento em outras áreas de
pro shopping.
interesse, o centro histórico se configura,
A lojinha apertada onde consertam-se
atualmente, como uma grande zona
roupas e calçados, sinaliza com uma luz
opaca. Mas com distinção em níveis de
pequena aquele que resiste há 40 anos.
iluminação que despontam do LED das
A escola que tem no rio o seu sustento e
fachadas da Prefeitura e chegam ao breu
filosofia, mesmo com a passagem e a
total nos becos da região.
vista cortadas, segue ensinando uma nova
As grandes avenidas que se ocupam de forma de olhar, e assim transforma
carros e do comércio, como a Av. Rio diariamente remadores em pequenas
Branco e a Av. Câmara Cascudo, são mais luzes sobre as águas do Rio Potengi. Uma
iluminadas do que as áreas residenciais associação de amigos que se esforça para
de pequenas casas e ruas estreitas, por criar alternativas de lazer mesmo com
CAPÍTULO QUATRO

73. Crianças brincando da


Rua da misericórdia,
Cidade Alta.
Acervo pessoal, 2015.

poucos recursos, canta para que o beco, embriaguez agradável, também segue
aquele que passa despercebido, não resistindo em meio à luz da modernidade.
perca o samba para o crack. Os pequenos Ela surge com o cheiro do peixe no
comércios de bairro que emprestam suas mercado popular, na ladeira que
cadeiras às calçadas observam o jogo de determina o ritmo da caminhada, no calor
cartas improvisado do outro lado da rua. que te obriga a sentar e descansar, na
O bar de esquina com o beco, que apesar vista hipnotizante e na árvore que é capaz
do dono chato, oferecia o necessário para de abrir o telhado de uma casa para seguir
ascender a boemia da região. As zonas polinizando e resistindo em outros jardins.
opacas e os vaga-lumes do centro
A lembrança também está para além do
histórico resistem nesses espaços.
material e é através da narrativa, que ela
240
Espaços em que as regras são burladas e extrapola o corpo individual podendo
que os seus frequentadores aparecem por resistir por mais tempo no discurso do
se sentirem em casa, por saberem que se outro.
tratam de “cantinhos” únicos, repletos de
A seguir, os lambe-lambes produzidos a
uma identidade própria difícil de se
partir das reflexões apresentadas a
encontrar em tempos de cidades cartões
respeito de memória, cultura e boemia,
postais.
natureza, natureza, arquitetura e
 Porque ela dizia que as vezes você resistência.
vai em um lugar que parece o
mesmo de outras cidades, sabe? Sugere-se a leitura do Apêndice C para
Que não tem nada de diferente.
Como um Mcdonalds da vida. [...] total compreensão dos conceitos adotados
Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela gostou. na produção dos lambes.
Além dos espaços físicos da arquitetura
construída, a natureza que refresca com a
sombra de uma árvore e que pelo vento
consegue provocar uma sensação de
A PÉ

241
CAPÍTULO QUATRO

242
A PÉ

243
CAPÍTULO QUATRO

244
A PÉ

245
CAPÍTULO QUATRO

246
A PÉ

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CAPÍTULO QUATRO

248
A PÉ

249
5. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
 Domingo ali, fervilhava de gente. e descobri o encanto de conversar com

A lembrança nostálgica de Antônio me faz um desconhecido. Sentimos o alivio da

retornar à Espanha, naquela aula de sombra e o cansaço nas pernas depois de

fotografia em que o professor atentou a uma ladeira. Dividimos nossa comida e

falta de algo essencial para o sucesso de bebemos juntos em uma mesa de bar.

uma boa narrativa, seja ela imagética ou Percebi o sotaque forte e me proporcionei

oral: “Personas” ele disse. mais tempo para ouvir do que falar.

Entendo as pessoas como a base material A minha narrativa nada mais é do que um

mais rica deste trabalho, afinal, foi através compartilhamento da narrativa de outras 250
da experiência delas, que hoje eu posso pessoas. A minha reflexão se apoia no que

afirmar ter uma narrativa para ser contada vivi ao lado deles, e no que eles tinham

sobre o centro histórico de Natal. para contar. Entendi que onde fervilha
gente, fervilha a experiência.
 Pra mim, as coisas são muito ligadas
às pessoas. Cada canto tem uma E o dar corpo assume o propósito de
situação que eu vivi com alguém,
[..] é alguma coisa que marca. convite à experiência do outro mas ao
Sabe?
mesmo tempo ambiciona uma
Cada pessoa que caminhou a meu lado, ponderação sobre as posturas que
ou que sentou por algum instante entre o tomamos na cidade e como se dá a nossa
meu gravador e eu, foi capaz de me relação com ela. Tentei estimular o
fornecer narrativas que vão muito além de pensamento sobre hábitos urbanos
informações cruciais sobre o centro contemporâneos: por onde caminhamos,
histórico de Natal. Ouvi histórias pessoais por que deixamos de frequentar tal espaço
embaladas em gestos e expressões faciais e quais são os nossos vínculos
que denunciavam previamente o final da estabelecidos.
frase. Reconheci aqueles que já conhecia
A PÉ

Somos vítimas dos processos de tentaria distinguir os espaços luminosos


modernização e homogeneização das das zonas opacas. Eram conceitos
cidades ou contribuímos para o abandono teóricos, os quais eu havia apropriado
da rua e para a expropriação da previamente aos passeios
experiência? acompanhados.

Temos frequentado os mesmos lugares Mas foi somente ao escutar e ao caminhar


homogêneos que as luzes das cidades nos lado a lado com o outro que fui capaz de
vendem? Ou será que nos permitimos perceber as interferências de afastamento
errar pela rua, arriscar um olhar relaxado, agindo no meu corpo e no daquele que
adentrar em um beco ou conversar cara a me acompanhava.
cara com alguém que não conhecemos?
251 Notei o constante estado de alerta que o
Talvez nem nos inteiremos dos processos corpo assume em proximidade com
que decidem o que vemos e o que trânsito de veículos. Senti o incômodo do
consumimos nas cidades. Mas como ruído do trânsito que afasta o morador de
arquitetos e urbanistas que projetam sua janela. Ouvi a voz de conformismo
espaços para pessoas, tais interferências pelo novo estacionamento que tomou o
precisam ser assimiladas de forma que lugar físico da lembrança. E, claro, me
nossas escolhas não espelhem produtos identifiquei com a sensação de precisar de
homogêneos e impessoais, e que possam uma carona.
alcançar objetivos para além da forma e
Percebi no tom da voz a saudade por um
da função.
tempo mais sossegado, mais seguro, em
Eu tinha ideia, mesmo que muito inicial, que caminhar era coisa bacana, porque se
do que encontraria em campo. Sabia, por fazia sem medo. E entendi no desvio o
exemplo, que poderia identificar indícios receio que afasta e limita o caminho.
dos problemas causados pela hegemonia
Vi, através do abandono do tempo, a vida
do veículo motorizado, ou que, então,
que se afastou para outras centralidades.
E que as fronteiras entre o dia e a noite A apropriação das interferências de
demarcam limites físicos. afastamento e vínculo contribui para a
quebra de consensos e para o
Senti a luz do espetáculo no desanimo de
enfrentamento a um urbanismo que foca
quem sente sua cultura roubada pelo
suas ações em uma escala macro,
espaço homogêneo. E pude ver através do
afastando a experiência da rua. O estudo
gesto a vontade de voltar para quando a
da escala do sensível fornece um tipo de
paisagem não tinha grades.
embasamento que não se pode alcançar
E também foi aceitando os desvios que me através de uma análise aérea.
ofereceram e seguindo pelos passos de
Por mais que pareça difícil alterar uma
suas lembranças que pude perceber os
lógica de planejamento urbano
aspectos referentes àquilo que atrai, o que 252
convencionada com o peso da história, a
facilita a criação de vínculo e o que
narrativa não intenciona a sua
provoca o pedestre à rua.
desconstrução total, mas questiona as
Percebi que é na memória onde suas reais intenções.
guardamos nossos maiores tesouros. Que
Quando escolhi o meu objetivo geral por:
a experiência é facilitada pela infância e
“Provocar a experiência urbana através de
que corre os riscos da juventude.
uma narrativa crítico-reflexiva, baseado na
Presenciei a ambiência boemia e não
discussão da lógica do planejamento das
pude nega-la uma dose. Parei um minuto
cidades e em sua interferência na
para ver o pôr-do-sol e testemunhei que a
experiência sensível do pedestre no centro
cultura tem acesso direto à rua.
histórico de Natal”, eu sabia que dependia
Pude ir além de identificar as zonas do interlocutor para que ele fosse
opacas, adentrei em seus espaços e alcançado. Para mim, se em algum
agradeci a atenção que me foi dada por momento desta narrativa você se sentiu
seus vaga-lumes. provocado a compartilhar, levar a diante,
ou tomar como sua alguma experiência
A PÉ

aqui oferecida, sinto que meu objetivo foi nos lugares errados motivos para errar
atendido. pelo caminho certo.

Não coube a mim propor soluções ou criar E cabe a nós, seguirmos experienciando o
propostas de intervenções para além do outro lado e que essa experiência, de
efêmero e do crítico. Mas espero ter preferência, seja feita a pé.
conseguido ascender algumas luzes sobre
a importância da pequena escala e da
valorização do sensível. Que de alguma
forma contribua para a construção de uma
nova maneira de pensar, para uma nova
forma de se fazer urbanismo, em que, por
253
exemplo, o transporte ativo faça parte dos
planos de gestão da mobilidade; ou que
mais ruas sejam tomadas, e não só aos
domingos; que a divisão do espaço possa
ser repensada entre carros e pedestres, e
que a lembrança, como parte significativa
da memória, possa ser valorizada.

Caminhar pela experiência impregnada de


gente me proporcionou ver além do mapa;
enxergar o problema de outra forma;
perceber a beleza dos becos e entender
que o desvio não é a maneira errada de
seguir em frente. E que errar vale a pena.
Errar pela rua quando a calçada parece
pequena. Errar no escuro a procura da luz
do vaga-lume. Narrar a errância. Buscar
NADAS

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas


leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
254
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

MANOEL DE BARROS
A PÉ

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261
7. APÊNDICES
 APENDICE A. ROTEIRO PASSEIO ACOMPANHADO
1ª ETAPA. CONTEXTUALIZAÇÃO

Conversar previamente com o pedestre que me acompanhará durante a


caminhada.

Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não
precisa ser necessariamente efetuada em campo.

(Iniciar com perguntas sobre o contexto, trabalho e atuação do entrevistado).

 Qual a sua relação com o centro histórico?

 Você o frequenta? Desde Quando?

2ª ETAPA. PREPARAÇÃO DA CAMINHADA

Deixar claro que não existe roteiro pré-estabelecido, nem é meu desejo conhecer 262
algum espaço em específico. O acompanhante tem total liberdade para me levar
aos lugares significativos para ele.

Indicar três objetivos, antes de iniciar a caminhada:

 Quero andar pelos caminhos que você gosta de fazer.

Eu gostaria que você escolhesse os caminhos que normalmente faz, ou


que tenham alguma significância para você. Procure me mostrar sua rua
preferida, seus atalhos e desvios, mesmo que sejam becos ou ruas
íngremes.

 Quero conhecer onde suas lembranças mais significativas estão.

Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto
especial. Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar
que você sinta saudade.

 Quero descobrir “novos” lugares e conhecer novas pessoas.


A PÉ

Me leve para descobrir lugares que representem, acordo com as suas


experiências pessoais, o centro histórico para você. E se possível, me
apresente a outras pessoas que também tenham uma vivência neste lugar
e que possam compartilhar suas experiências.

3ª ETAPA. A CAMINHADA

Caminhar ao lado do entrevistado sem interferir em suas escolhas. Deixar-se guiar.

 APENDICE B. ROTEIRO ENTREVISTA IN LOCO


1ª ETAPA. CONTEXTUALIZAÇÃO

Conversar previamente com o pedestre que me acompanhará durante a


caminhada.

Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não
263
precisa ser necessariamente efetuada em campo.

(Iniciar com perguntas sobre o contexto, trabalho e atuação do entrevistado);

 Qual a sua relação com o centro histórico?

 Você o frequenta? Desde quando?

2ª ETAPA. CAMINHOS

Objetivo da etapa: Entender quais são os caminhos que o entrevistado faz


usualmente faz.

 Você caminha por aqui? Por onde?

 Você faz algum desvio? Usa algum atalho?

 Você tem alguma rua preferida? Ou algum caminho que goste de fazer? Porquê?

3ª ETAPA. AFETOS ESPACIAIS


Objetivo da etapa: Impregnar-se das experiências e memórias de relevância
sensível para o entrevistado.

 O que você gosta de fazer no centro histórico?

 Qual sua lembrança preferida daqui?

 Existe algum lugar, ou mais de um, que você tenha algum afeto especial? Que
você mais gosta? Ou ache bonito? Qual é a história desse lugar?

 Existe algum espaço ou memória de qual você sente falta? ou Você sente
saudades de algo aqui no centro histórico?

 Você lembra de alguma coisa que mudou?

4ª ETAPA - LUGARES PARA SE DESCOBRIR

Objetivo da etapa: Conhecer, inicialmente através da narrativa, dos lugares e


relevância sensível para o entrevistado.

 Se você pudesse me levar ou me aconselhar a conhecer algum lugar que eu 264


não conheça, qual seria?

 O que você acha que tem a cara do centro histórico?

(Devido a subjetividade das respostas, atrelada à experiências e lembranças, as


perguntas podem variar em ordem e quantidade. A ideia é deixar a conversa seguir
livremente e escutar o que o outro tem a dizer. Não se espera que todas as
perguntas sejam respondidas).

 APENDICE C. APRESENTAÇÃO E PROPOSTA DE


LOCAÇÃO DOS LAMBES
A PÉ

265
266
A PÉ

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