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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte / Biblioteca Setorial de Arquitetura.
RN/UF/BSE15 CDU 72
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A PÉ
.
A PÉ
RESUMO
A pie: Una narrativa sobre la experiencia del peatón en el Centro Histórico de Natal.
SUMÁRIO
ANTES DE COMEÇAR, LEIA-ME. 16
INTRODUÇÃO 18
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
2.2.1 CHOQUE 59
2.2.2 ESPETÁCULO 68
2.2.3 NARRATIVA 77
CAPÍTULO QUATRO
6. BIBLIOGRAFIA 255
7. APÊNDICES 262
A PÉ
LISTA DE FIGURAS
1. Janela.
2. Minha carteira de motorista e o carro na garagem de casa.
3. Meus tênis preferidos depois de algumas caminhadas em Valencia.
4. A comunidade do Solar & Os portões do MAM. Salvador, BA.
5. Maria Chiara e D. Suzana (acima), A mesa do Restaurante (abaixo).
6. Carol assustada.
7. Os Boulevards: As grandes avenidas de Haussmann.
8. Antes e depois: Rua du Vieux-Colombier & Igreja de St-Sulpice. Rua Réaumur, Paris.
9. Avenida central: Demolições para a construção da avenida 1904-1905. Traçado, sobre
os quarteirões coloniais. Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro, 1903.
10. Inauguração da General Motors em São José dos Campos (SP), em 1959, com a
presença do então presidente Juscelino Kubitscheck.
11. A cidade do futuro de Le Corbusier.
12. Proposta dos Irmão Krier, da escola de Bruxelas para a reconstrução de Stuttgard
(1975).
13. Igor e os vaga-lumes
14. O ritmo frenético das cidades. O metrô de São Paulo.
15. Os personagens humanos da modernidade.
11 16. Escalas de planejamento urbano.
17. Cidade espetáculo: Montagem do Rio de Janeiro. O que se vende: a praia, os pontos
turisticos e a cidade que se globaliza.
18. Espaços luminosos e espaços opacos.
19. Errantes nas zonas opacas.
20. Intervenção urbana aCerca do Espaço - Coletivo Zona de Interferência (BH/MG).
21. Transmissão da experiência.
22. Projeto "SUR-fake": Novas formas de se comunicar na modernidade.
23. Metodologia fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo.
24. Metodologia aplicada em Oficina do Laboratório Urbano da UFBA, em 2011.
25. Sinalização na Praia Do Uruaú – Beberibe (CE).
26. Uma saída?
27. Cegar com tapume.
28. Brechando. 1
29. Cidade Alta: Praça André de Albuquerque (acima), Rua Vigário Bartolomeu (ao centro).
Ribeira: Rua do Comércio, atual Rua Chile (abaixo).
30. Vista área do bairro de Petrópolis, um dos bairros da Cidade Nova.
31. Natal na Segunda Guera Mundial.
32. A falta de iluminação no Beco da Lama – Cidade Alta. 110
33. Escutando lembranças.
34. Ganhar corpo: Minha mochila pronta para ir a campo; & Personagens da 1ª visita.
35. Lenilton e Marinalva, inicio de passeio.
36. Lenilton criança.
37. A casa de cascudo, Clima, Beco e Consulado.
38. O Ateliê de Flávio Freitas e A entrevista com o artista.
39. Cais da Tavares de Lira, Bistrozinho na Rua Chile e Seda polinizadora.
40. Mercado do Peixe, Seu Perambuco, Jogo de cartas na rua e Marinaldo.
41. Zumbar, Põr do sol na Rua da Misericórdia e Bar da Meladinha.
42. Luiz Gadelha, entrevistado do 2º passeio.
43. Início da caminhada; Sol na cara, Frontões com números romanos e Cerca no Terminal
Marítimo de passageiros.
44. Vista interrompida do rio, Bar Buraco da Catita.
45. Personagens da 3ª visita de campo.
46. Entrevistas no Sebo Balalaika; Fotografando; Movimentação em frente do sebo.
47. Entrevista com Antônio Capistrano, Beco da Lama, Esquina do bar da meladinha e Sebos
da Rua Vig. Bartolomeu.
48. Despedida na sombra, calçada da Rua Vig. Bartolomeu.
49. Convidando Juliana.
50. Porta do Nalva Melo Café Salão; Letreiro Edifício Bila; Escadas Tribuna
51. Rua de calçamento original; Atravessando a Av. Rio Branco; Bagunça em meio aos
camelôs.
52. Lambe.
53. Quadro de referências.
54. Ginga e tapioca de Seu Pernambuco, Canto do Mangue, Rocas. 12
55. Beco da Quarentena, Ribeira.
56. Deixando o caminhão passar.
57. Eu e meus primos em Barra Bonita, SP.
58. Travessa México, Ribeira.
59. Calçada Av. Duque de Caxias, Ribeira.
60. Estacionamento - Mirante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
61. Parada de ônibus, Pç. Augusto Severo.
62. Transporte ativo: caminhada.
63. Lixo acumulado na rua, Ribeira.
64. O comércio na Av. Rio Branco, Cidade Alta.
65. Área residencial, Cidade Alta.
66. Terminal de Passageiros da Ribeira, área de livre acesso ao transeunte.
67. Fachada iluminada, Prefeitura de LED.
68. A caminho do Beco da Lama.
69. Bar da meladinha, Cidade Alta.
70. Meladinha na mesa, Cidade Alta.
71. A proximidade com o rio na rua em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos.
72. Janela na Rua João da Matta.
74. .
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1. Janela.
Acervo pessoal, 2015.
14
INTRODUÇÃO
15
0. ANTES DE COMEÇAR,
LEIA-ME
17
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Eu tenho 24 anos de idade, e como é de praxe aqui no Brasil, tenho carteira de motorista
desde os 18. Meu pai é meu maior incentivador quando o assunto é carro ou direção. No
entanto, por problemas pessoais e traumas da vida, eu não dirijo. E depender de um pai
motorista, ou de caronas amigas que me socorrem até hoje, sem nem entrar na discussão
quando o assunto é transporte público, já me incomodava bastante antes mesmo de viver
um ano fora do país.
Eu, mesmo como estudante de Arquitetura e Urbanismo, costumava achar pura utopia
algumas discussões sobre mobilidade urbana que surgiam com frequência em sala de
aula. Foi preciso ver de perto para acreditar que muito podia ser feito para melhorar a
relação do pedestre com a cidade. 18
Vivi por um ano em Valencia, na Espanha, e por lá eu não precisava de uma carteira de
motorista para me locomover, uma vez que carro e estudante de intercâmbio normalmente
não aparecem juntos na mesma frase. O transporte público era incrível, mas mesmo assim,
caminhávamos bastante. Andávamos por calçadas enormes, regularizadas, acessíveis,
com espaço suficiente para ciclovia, vegetação de grande porte e equipamentos de
transporte público. E mesmo nas vielas apertadas e irregulares do centro, de fato existia
um acordo entre motoristas e pedestres: quem estava a pé tinha sempre a prioridade.
Acho que o sentimento de empolgação que o intercâmbio causa, com toda aquela sede
por conhecer o novo e experimentar sempre o máximo possível, ajudou na minha relação
com a cidade. Eu sentia prazer em descobri-la, desejava conhecer suas tradições e
histórias, procurava cada dia encontrar um caminho novo. E Valencia se mantinha
disposta a me guiar, a me proporcionar novas experiências. Por mais que minha
empolgação fosse a energia que impulsionava a me lançar pelas ruas da cidade, ela, tão
própria de si, dividida entre os tempos medievais das torres que ainda guardam o centro
A PÉ
Voltar para Natal e sentir que a realidade daqui continuava a mesma, estagnada no modelo
de planejamento das cidades que ainda valoriza o carro, me atingiu logo na primeira
semana. Senti que estava “presa”, sem a mesma liberdade, submissa a disponibilidade
de ter um carro para realizar boa parte das minhas atividades diárias.
Foi nessa mesma época em que precisei definir o tema do meu Trabalho Final de
Graduação (TFG). Este mesmo o qual você está lendo agora. E a frustração de me sentir
limitada ao convívio urbano me fez refletir sobre alguns aspectos. Eu queria entender como
funcionava esse modo de pensar as cidades direcionadas para quem dirige. E de certa
19 forma como isso interferia nos espaços que eu frequentava, nos caminhos que eu fazia,
assim como nos lugares que eu não conhecia e nas experiências que eu deixava de
vivenciar na minha própria cidade.
Ainda refletindo sobre esses aspectos pertinentes a temática do TFG, uma lembrança das
aulas na universidade espanhola me veio à mente. A disciplina era Fotografia. Erámos
apenas três desgarradas de arquitetura em meio a várias pessoas de comunicação, design
e publicidade. Lembro de uma aula em especial na qual o professor pediu que levássemos
algumas fotografias de nossa autoria. Ele abria cada pasta de arquivos e fazia comentários
em frente à classe. Minha colega de arquitetura levou uma coleção de suas fotos preferidas
da cidade, dessas que todo arquiteto já fez. As belas casas de Barcelona; esquadrias
antigas; pontes e paisagens repletas de construções. O professor elogiou as fotos, estavam
corretas. Mas atentou para algo que faltava. “Personas” ele disse. Fiquei com aquilo na
cabeça, será que é assim que nós, estudantes de arquitetura, vemos a cidade? Focamos
nas construções, nos projetos, em detalhes e ideias de mobiliário, até reclamamos quando
alguém “atrapalha” a foto do edifício que tanto queremos registrar. Mas, e a pessoa? Aquela
que está além do usuário, como nós a vemos? A consideramos? Pensando nisso, decidi
INTRODUÇÃO
que queria estudar um pouco melhor essas figuras, aqueles para quem deveríamos
projetar, aqueles que afetamos todos os dias com nossas decisões. Voltando a atenção
para o espaço público, o pedestre seria então esse personagem a ser investigado.
Sendo bem sincera, eu sempre tive medo de um trabalho de natureza analítica. Quem me
conhece sabe que eu curto muito mais a beleza das imagens do que a poética das
palavras. No entanto, as temáticas que me vinham a cabeça indicavam um trabalho um
tanto quanto teórico, e como uma “desculpa” para me incentivar a acreditar no potencial
daquilo em que eu não estava acostumada, tentei aproximá-lo de algo que eu me identifico 20
bastante, e que consegue ao mesmo tempo ser imagético e textual: a narrativa.
Não que eu seja adepta das grandes e intermináveis conversas, mas a narrativa está muito
presente em uma outra parte da minha vida: o teatro. No teatro somos educados a contar
histórias, as vezes até narramos experiências próprias em cena e é notável como o público
reage diferente. A narrativa proporciona esse sentimento de reconhecimento e
naturalmente desperta o interesse do outro.
O espaço de ensaio do grupo de teatro é para mim um espaço narrativo por natureza. Em
uma das minhas narrativas diárias sobre minha confusão de ideias para o TFG um dos
meus diretores sugeriu que eu buscasse na literatura um personagem de Charles
Baudelaire: o flâneur. O flâneur é um andarilho apaixonado pelo caminhar na cidade, que
experimenta a rua e a sente como sua própria casa.
Mas experiência urbana se tratava de um assunto que eu não tinha domínio e que só
entendia empiricamente por ser próximo do que eu conhecia, mesmo não tendo estudado
a fundo durante o curso, por apreensão da cidade ou então relação entre pedestre e meio
urbano.
E por mais que eu ainda não tenha encontrado uma definição objetiva para o conceito de
experiência na cidade, entendo que isso acontece por se tratar de um assunto de percepção
sensível. A experiência é particular a cada indivíduo, mas a vejo como parte de uma
(re)descoberta das cidades e daquela sensação agradável que eu costumava ter quando
21 saia sem rumo por Valencia, à procura de nada em específico, só com vontade de sentir
e de me sentir em contato com a rua.
22
A PÉ
A partir desse processo de apropriação teórica, pude definir como a minha pesquisa se
organizaria. Em síntese, este trabalho se trata de uma investigação crítico-reflexiva dos
processos urbanos que interferiram e seguem interferindo na relação entre o homem e
cidade, com enfoque na experiência sensível do pedestre no meio urbano. Busca-se
23
através do olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, a elaboração de um
produto que consiga incitar uma reflexão acerca de como vivenciamos e experienciamos
nossas cidades, e quem sabe provocar uma nova maneira de enxergar lugares que
normalmente não visitamos e até mesmo (re)descobrir antigos ou novos caminhos pelos
quais ainda não havíamos caminhado.
Dentre os fatores que justificam esta pesquisa, lista-se primeiramente a minha frustração
quanto às condições de mobilidade urbana da cidade de Natal, assunto amplamente
discutido em meios acadêmicos e sociais. No entanto, atento, aqui, para um aspecto em
específico: aqui o foco acontece no pedestre e na sua relação com a rua e os espaços
públicos da cidade. Natal se encontra inserida em uma lógica de planejamento urbana
que privilegia o carro, em detrimento daqueles que caminham na cidade, afetando
diretamente nas relações sensíveis entre a rua e o pedestre. Atualmente, percebo um
esforço em discutir e repensar a cidade em pequena escala. Presenciamos projetos
urbanos que privilegiam o pedestre, o ciclista e o transporte público, e que investem na
melhoria da urbanidade em cidades do mundo todo, incluindo a própria Natal que
recentemente viu algumas de suas principais avenidas destinarem espaço exclusivo para
INTRODUÇÃO
ônibus e ciclistas. Ademais, ainda dentro dessa nova lógica que se busca criar, também
entendo como justificativa a necessidade de discussão e reflexão sobre processos que
interferem na experiência do pedestre na cidade de Natal, a exemplo do processo de
espetacularização das cidades. É importante entendermos o porquê do afastamento do
pedestre das ruas e como isso afeta no nosso sentimento de pertencimento na cidade. A
experiência apropriada pode ser uma grande aliada a uma reaproximação do pedestre com
os espaços públicos e à (re)descoberta das ruas.
O centro histórico de Natal foi tombado pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - como Patrimônio Histórico e Cultural em 2010. Natal nasceu ali e por
isso certamente é uma região repleta de memórias e narrativas que me interessam.
Também segue preservando o traçado das vias inicialmente pensado para atender aqueles
que andavam e se locomoviam lentamente pela cidade, o que me parece um universo de
estudo ainda mais convidativo quando se busca a provocação da relação entre pedestre e
meio urbano.
Mas também muito me interessa por ser uma região desconhecida e alheia ao meu
cotidiano. Vivo em Natal há dez anos e foram poucas as vezes que adentrei e me aventurei
a conhecer as zonas menos iluminadas do centro. Conheço aquilo que todos conhecem;
aquilo que aparece nos folhetos; que estão nas propagandas da prefeitura; os grandes
marcos; onde as festas geralmente acontecem e os edifícios que todo estudante de
arquitetura por obrigação deve saber identificar. Mas não sei dos espaços de criatividade,
A PÉ
dos becos, dos desvios, dos atalhos. Não vivenciei ali aquele tipo de lugar em que depois
que você conhece, conversa e se apropria, sente que passa a fazer parte e fica à vontade.
Parece que são lugares capazes de transformar o olhar e a forma de se portar e de se
reconhecer na cidade.
Cada um de nós certamente tem um lugar desse guardado nas lembranças, algum lugar
de reconhecimento e importância particular. Me vem à memória o restaurante de Dona
Suzana, lá na Favela do Solar, em Salvador. Era sábado, eu acho, julho de 2013,
provavelmente meu último dia em terras baianas. Igor, um irmão amarelo que a Bahia me
deu, mora no alto da ladeira dos aflitos, pertinho do Solar do Unhão e ele disse que
precisava me levar para conhecer um lugar especial. Era quase a hora do almoço quando
descemos em direção ao Solar, que fica ali no MAM - Museu de Arte Moderna da Bahia,
25
em frente àquela baía linda de todos os santos. Igor é apaixonado por mar, ele certamente
ia se encantar por uma comunidade que tem os pés na areia e é cercada de prainhas
próprias. A Comunidade do Solar, como os moradores se identificam, fica ao lado do MAM,
abaixo da avenida Lafayete Coutinho, esse tipo de avenida de trânsito rápido que contorna
o litoral. Quem olha o mar de dentro do carro quando passa rápido por ali não consegue
ver a favela. Mas quando você desce uma ladeirinha, ao lado da estrutura que sustenta a
via já dá para ir sentindo a ambiência do local. Grafites colorem o caminho todo, tanto nas
estruturas, quanto nas ruas estreitas e nas casas, tudo tem cor. A rua fazia parte do MUSAS
- Museu de Street Arte de Salvador, e o MUSAS fazia parte da rua. Virando à direita em
uma ladeirinha, chegamos à casa de Dona Suzana, onde ela serve feijoada com guaraná.
O quintal onde o restaurante se estabelece é uma grande janela da comunidade para o
mar. Lembro que de lá a gente conseguia ver as crianças brincando na praia e os
barquinhos ancorados na areia.
26
A PÉ
27
INTRODUÇÃO
Esse foi um dos melhores dias em Salvador, me senti, mesmo que só por um almoço,
pertencente àquele espaço. E posso afirmar que aquela feijoada com pimenta no quintal
de uma comunidade fez muito mais sentido para mim enquanto experiência na cidade do
que as visitas ao Pelourinho ou ao Elevador Lacerda. É o tipo de vivência que dá vontade
de narrar. E são esses espaços e essas histórias que eu procuro encontrar e vivenciar nesse
trabalho.
Resgatando todas as etapas do processo de forma objetiva: Minha motivação inicial surge
de uma frustação pessoal em função dos problemas de mobilidade da cidade. Assim, o
pedestre e o caminhar são elementos motivadores da pesquisa. A narrativa foi apropriada
a partir do desejo de suavizar a natureza analítica do trabalho, e essencialmente, funciona
como um canal de transmissão da experiência, que passa a ser o elemento central da
pesquisa, a “liga”. Dessa forma, a temática é entendida como: A experiência sensível do
pedestre na cidade, e o universo de estudo escolhido é o centro histórico da cidade de
Natal, devido a sua importância histórica e por aspirações pessoais. A metodologia de
29
pesquisa acontece por apropriação teórica e presencial, em busca de narrativas de
experiências na cidade, tendo como base os seguintes autores: Walter Benjamin (1984),
Paola Jaques Berenstein (2012), Rachel Thomas (2009), Kevin Lynch (1960) e Marta
Dischinger (2000). O produto final acontece por meio de uma narrativa de apropriação
das experiências daqueles que caminham na cidade e se vale de uma micro-resistência
urbana como componente ilustrativo da reflexão final.
Questão da pesquisa
Objetivo Geral
30
Provocar a experiência urbana através de uma narrativa crítico-reflexiva, baseada na
discussão da lógica do planejamento das cidades e em sua interferência na experiência
sensível do pedestre no centro histórico de Natal.
Objetivos Específicos
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A PÉ
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CAPÍTULO UM
6. Carol assustada.
Acervo pessoal, 2015.
1.1 PRÓLOGO
CAROL
01 de setembro de 2015.
“Sério, Carol? Parece longe pra você? ”. Claro. Dá para entender, Carol. Afinal,
não é só você.
A surpresa com a “longa distância” gerou
35 Carol não é uma estagiária fictícia que eu
uma discussão sobre o que normalmente
fazíamos caminhando dentro do próprio inventei para iniciar o capítulo. Carol
vencer essas distâncias a pé. Eis que, por existem outras e outros dependentes
mais uma vez, fomos surpreendidos com desse sistema motorizado em que
Isso porquê, quem conhece o Campus Diante dos empecilhos que encontramos
Universitário sabe que a caminhada dos nas cidades brasileiras para aqueles que
Laboratórios de Arquitetura com destino ainda se “aventuram” a caminhar, é até
a Biblioteca Central dura em média 5 compreensível entender os hábitos de
minutos, 3 minutos de acordo com o Carol e sua dependência em dirigir. É
CAPÍTULO UM
fácil entender que ela é fruto de uma Dia após dia, as calçadas foram se
sociedade que patrocina, incentiva e esvaziando de gente e dando espaço para
direciona sua infraestrutura ao uso de as ruas se encherem de carros. O espaço
veículos motorizados. O problema, ou antes destinado ao pedestre tornou-se
parte dele, é como as cidades em que sujo, inseguro, desagradável, e
vivemos ainda são estruturadas sobre paulatinamente foi perdendo a atenção
rodas, como são frequentemente daqueles que são responsáveis por
analisadas de cima, e como nos parece projetar e gerir a cidade.
comum seguir repetindo os mesmos
A seguir, em “Contribuições históricas
costumes, os mesmos padrões.
para a era do automóvel”, procuro
Desde o início do século XX, “as relembrar, através de fragmentos da
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metrópoles brasileiras passaram por história do automóvel e da história do
grandes transformações, em especial urbanismo, as motivações e possíveis
aquelas decorrentes do advento do justificativas que nos trouxeram para a
automóvel. De tal forma que, a partir de atual era do automóvel, afim de entender
certo momento, obra pública passou a a maneira como isso afeta o nosso hábito
ser um quase-sinônimo de obra de caminhar e experimentar a cidade.
rodoviária” (Rio Cidade, 1996, p.24).
A PÉ
37
CAPÍTULO UM
7. Os Boulevards : As grandes
avenidas de Haussmann.
Disponível em: http://goo.gl/5ApBoI
Paris muda!
Mas nada em minha nostalgia mudou!
Novos palácios, andaimes, lajeados,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria.
E essas lembranças pesam mais do que rochedos (...).
(BAUDELAIRE, 1985, p. 327)
1 Entre 1853 e 1870, durante o império de Napoleão III, o barão George Eugène Haussmann,
prefeito de Paris na época, realizou grandes reformas urbanas na capital francesa.
A PÉ
39
CAPÍTULO UM
Não demorou muito para que a modernidade e sua amiga, a evolução motorizada,
desembarcassem em terras tupiniquins. Trazido por Santos Dumont diretamente de Paris,
em 1881, chega ao porto de Santos o primeiro carro motorizado.
A disseminação do uso dos carros nas cidades alterava quase que “naturalmente” a forma
do espaço urbano, segundo Larica (2003) apud Leite (2006, p. 54), “o aumento das
distâncias proporcionadas pelo automóvel expandiu o raio de ocupação de áreas
metropolitanas em mais de 40 quilômetros alterando assim a forma da cidade“. O
automóvel, nesta época, era sinônimo de modernidade e a expansão das cidades deveria 40
acompanhar o ritmo, agora compassado a motor, capaz de alcançar altas velocidades.
João do Rio, pseudônimo do cronista carioca Paulo Barreto (1881 - 1921), descrevia, nos
jornais da época, as transformações urbanas que Pereira Passos2, o “Haussman tropical”,
realizou no Rio de Janeiro entre 1902 e 1904, e que ficaram conhecidas como o Bota-
Abaixo do centro. Seguindo a lógica parisiense, um dos principais objetivos do plano de
melhoramentos de Pereira Passos, apontados por Alfredo Rangel em 1904, era “dar mais
2
Francisco Franco Pereira Passos foi um engenheiro e político brasileiro. Foi prefeito da cidade do
Rio de Janeiro entre 1902 e 1906.
A PÉ
franqueza ao tráfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituição das nossas mais
ignóbeis vielas por ruas largas arborizadas” (RANGEL apud JAQUES, 2012a, p. 31).
41 “Por muitas décadas, o carro foi apenas objeto de uso exclusivo da classe brasileira com
maior poder econômico, sendo praticamente inacessível para um trabalhador da época”
(LEITE, 2006 apud BASTOS, 2012, p. 107). A burguesia, com seu poder de compra e
de influência sobre o Estado, ajudou a criar o monopólio de uma classe sobre o espaço e
sobre o processo de urbanização das cidades brasileiras.
42
A PÉ
Dando continuidade aos trabalhos, durante o governo militar o Estado adotou o projeto
rodoviarista como “escolha econômica nacional, sendo este modelo o fruto de uma relação
intimamente costurada entre o governo e a indústria automobilística sempre em constante
ascensão” (COSTA, 2014, p. 43).
Além disso, não podemos esquecer “que o automóvel é, antes de tudo, uma mercadoria
(...) e possui papel fundamental na regulação da economia brasileira” (ibidem p. 48). No
entanto, não cabe a esse estudo o aprofundamento de questões como consumismo e
mercadoria; a manutenção do modelo rodoviarista brasileiro e de tantas outras em que no
contexto é pertinente. Todavia, atenta-se para a complexidade desse sistema que soma o
A PÉ
Sobretudo, o carro não é, sozinho, o grande vilão causador das transformações urbanas
do Brasil e do mundo, mas certamente foi um importante direcionador dos investimentos
de infraestrutura estatais uma vez que esteve presente em momentos marcantes da história
do urbanismo moderno.
Também fez parte do movimento vanguardista moderno e das quatro funções da cidade
moderna formuladas por Le Corbusier: habitar, trabalhar, recrear e circular. Circulação esta
realizada através de um “um sistema viário que elege o automóvel como principal meio de
locomoção no tecido urbano” (SILVA e ROMERO, 2011).
“Neste ambiente de crítica à Cidade Moderna, a recuperação do passado parece ter sido
o assunto dominante, assim como os urbanistas seguintes voltaram a projetar ruas,
quarteirões e praças” (CARVALHO, 2009, p. 58). Na Itália5 surgem produções que
propõem a reabilitação das formas urbanas tradicionais; a escola de Bruxelas 6, por sua
vez, sugere “uma batalha do regresso ao passado, repropondo os materiais tradicionais na
construção, excluindo o automóvel, (...) numa utopia social que renuncia à
industrialização” (ibidem, p. 58 e 59).
Diante do que foi apresentado, levanta-se a seguinte questão: Como esse contexto de um
urbanismo pensado durante muito tempo sob os padrões de modernização das cidades,
interfere na nossa consciência de experimentação urbana e na nossa apreensão da cidade
contemporânea?
5 As escolas de Milão e Veneza formaram o movimento La Tendenza, cujo pai é Giafranco Caniggia,
destacam-se também outros arquitetos como Aldo Rossi, Aymonio, Grassi e Carasi.
6 Em Bruxelas a crítica ao movimento moderno era comandada por Maurice Culot, ou pelos irmãos
Krier.
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A PÉ
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A PÉ
51
CAPÍTULO DOIS
2.1 PRÓLOGO
VAGA-LUMES
20 de outubro de 2015.
7
REDOBRA é uma publicação semestral do projeto de pesquisa "Laboratório Urbano: Experiências
metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea" [PRONEM -
Programa de Apoio a Núcleos Emergentes, edital FAPESB/CNPq 028/2010] desenvolvido pelo
grupo de pesquisa Laboratório Urbano - PPG-AU/FAUFBA. REDOBRA integra a plataforma de ações
CORPOCIDADE, realizada em parceria com o grupo de pesquisa LABZAT - PPG-Dança/UFBA.
A PÉ
8
Babina é meu apelido, acho que ainda não me apresentei assim. Eu gosto. Parece único.
CAPÍTULO DOIS
9
Walter Benjamin (1892-1940), além de um inquietante filósofo alemão do início do século XX,
também foi crítico literário, tradutor e sociólogo.
CAPÍTULO DOIS
realmente ela se tratava de uma nas páginas finais do livro. Por mais que
maioria das versões do fim do mundo, cotação, “cabe somente a nós não
em que não somos obrigados a acreditar. 126). Depende de nós não deixar que os
vaga-lumes se deem por desaparecidos.
Questionar pode ser o primeiro passo
Nos tornemos vaga-lumes então, vamos
para a negação. Se não encontramos
organizar esse pessimismo. Busquemos 56
mais os vaga-lumes como se encontrava
por essas experiências que ainda
antigamente, ainda é possível acreditar
sobrevivem escondidas, mesmo que
que eles não tenham desaparecido, mas
reduzidas às sobrevivências e aos
que talvez estejam escondidos, talvez
simples lampejos da noite. Afinal, como
ainda estejam acostumados a se proteger
aprendi com esse livro fininho e um tanto
dos ferozes projetores das cidades. O que
denso: “a experiência é indestrutível”.
fazer então? Seria “necessário abrir os
olhos na noite, se deslocar sem
descanso, voltar a procurar os vaga-
lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p.49).
57
CAPÍTULO DOIS
2.2 EXPERIÊNCIA:
CHOQUE, ESPETÁCULO E NARRATIVA
No entanto, essa visão apocalíptica foi questionada por tantos outros estudiosos, filósofos
e poetas ao passar dos anos. Concordavam entre si que havia, sem dúvidas, motivos para
ser pessimista, contudo atentavam para a organização desse pessimismo e provocavam
uma postura questionadora e proativa.
Afim de assumir essa postura que questiona, reflete e se apropria de conceitos e críticas
com o intuito de construir uma nova provocação; em “Experiência: choque, espetáculo e
narrativa”, prioriza-se, de antemão, o entendimento do contexto em que a discussão da
experiência sensível está inserida. A história, contribuições de pesquisas acadêmicas e
estudos práticos na cidade indicam caminhos que podem ser seguidos.
A PÉ
2.2.1 CHOQUE
Não é de hoje que se discute a perda da capacidade de experienciar do ser humano diante
das transformações provindas da modernidade. Paola Berenstein Jacques10 em seu livro
“Elogio aos errantes” apresenta um pouco do que já foi dito em relação ao empobrecimento
e até mesmo a destruição dessa capacidade. A autora dá início com a abordagem de
Walter Benjamin em Experiência e Pobreza (1933) e as percepções do autor sobre o
esvaziamento das experiências na modernidade, no contexto da chegada ao poder do
nazismo na Alemanha.
59
Pobreza de experiências: não se devem imaginar que os
homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a
libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que
possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza
externa e interna, que algo de decente possa resultar disso.
Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas
vezes, podemos afirmar o oposto: eles ‘devoraram’ tudo, a
‘cultura’ e os ‘homens’, e ficaram saciados e exaustos. ‘Vocês
estão todos cansados – e tudo porque não concentraram todos
os seus pensamentos num plano simples, mas absolutamente
grandioso (BENJAMIN, 1994, p. 118).
O ritmo frenético que permeia a vida dos indivíduos, consequente da modernização das
cidades, é apontado pelo autor como uma das causas das transformações nas relações
humanas. Entre elas, Benjamin ressalta o desinteresse do homem moderno por novas
experiências, resultando, obviamente, na perda da capacidade de intercambiá-las. Ricardo
10
Professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Paola Berenstein
Jacques coordena o grupo de pesquisa Laboratório Urbano, que investiga metodologias para a
compreensão da complexidade do espaço público contemporâneo.
CAPÍTULO DOIS
Timm de Souza11 aborda a temática no capítulo “Walter Benjamin” de seu livro “As fontes
do humanismo latino” em que aponta sintomas da pobreza de experiência na
modernidade.
A maneira como esse ritmo acelerado interferiu no homem moderno brasileiro também
esteve presente nos textos do cronista carioca João do Rio. Em Vidas vertiginosas de 1911,
mesmo livro em que ele escreve a Era do automóvel, o cronista nos conta sobre essa
sensação de ansiedade e imediatismo que se deu sob imposição das transformações
urbanas sofridas no Rio de Janeiro do início do século XX. “Agora é correr para a frente.
Morre-se depressa para ser esquecido dali a momentos; come-se rapidamente sem pensar
no que se come; arranja-se a vida depressa, escreve-se, ama-se, goza-se como um raio;
pensa-se sem pensar, no amanhã que se pode alcançar agora” (RIO, 2006, p.8-9).
11
Ricardo Timm de Souza é doutor em Filosofia pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg
(Alemanha – 1994), e professor titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atuando nos programas de pós-graduação em
Filosofia, Letras e Ciências Criminais desta universidade.
A PÉ
61
CAPÍTULO DOIS
Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/3336
A nova percepção, o novo ritmo, o desmanchar do passado para advento do novo, mas
principalmente o novo homem e as novas relações sociais nos permitem reconduzir o
ideário de Walter Benjamin e de João do Rio àquela “atitude blasé” do homem moderno
proposta por Georg Simmel12 em “A metrópole e a vida mental”, de 1903. Simmel elabora
a figura do “homem blasé”, personagem que para se proteger da intensa e nervosa vida
moderna, se torna “blasé”, distante, anônimo - “o oposto daquele habitante dos vilarejos,
onde todos se conhecem, onde todos têm nome e sobrenome, possuem uma ‘identidade’
e um rosto próprio” (JACQUES, 2012a, p. 50). Este homem acaba se escondendo e
guardando sua subjetividade contra toda violência da grande cidade, contra o choque
metropolitano.
Para Siegfried Kracauer14, o flâneur “era aquele que não se protegia psicologicamente,
mas, justo ao contrário, buscava a experiência do choque com o Outro, com os vários
outros anônimos, a embriaguez da multidão” (KRACAUER, 1925 apud JACQUES, 2012a,
p. 51). O flâneur de Charles Baudelaire “não se esconde, ele se perde voluntariamente,
12
Georg Simmel (1858-1918) foi um sociólogo alemão que desenvolveu trabalhos de investigação
da sociedade a partir das ações e reações dos atores sociais.
13
Para João do Rio, ser flâneur “é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus
da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas
da população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser
artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis,
que podem ficar eternamente adiadas” (RIO, João do., 1997, p. 51).
14 Siegfried Kracauer (1889-1966) foi um escritor, jornalista, sociólogo e crítico alemão de
cinema. Ele por vezes tem sido associado com a Escola de Frankfurt de teoria crítica.
A PÉ
Jacques relaciona a experiência do flâneur, “ao vivenciar a cidade antiga sendo demolida
para dar lugar a grande cidade modernizada” (JACQUES, 2012a, p. 49) com o que
Simmel, Kracauer e Benjamin, cada um à sua maneira, chamaram de “‘estado de choque’:
o choque da modernidade, mas, sobretudo, o choque da transformação da cidade antiga
e a emergência da metrópole moderna” (idem).
63
O aparecimento de cinemas, [...] dos novos letreiros
publicitários em neon, das novíssimas lojas de
departamentos, primórdios dos shoppings centers, o aumento
vertiginoso dos jornais e a profusão de notícias provocam uma
enorme excitação nervosa, uma espécie de vertigem de
sentidos, uma hipertrofia dos olhares, um estado de choque
(idem).
Dessa forma, o “estado de choque” pode ser percebido como uma resposta humana, na
esfera do sensível, às grandes transformações da humanidade. Uma interferência direta
na maneira de se vivenciar a cidade, dessa forma, também uma potente pista na
formulação de uma resposta para o questionamento levantado no final do primeiro
capítulo: Como esse contexto de um urbanismo pensado durante muito tempo sob os
padrões de modernização das cidades, interfere na nossa consciência de experimentação
urbana e na nossa apreensão da cidade contemporânea?
Os autores trazidos por Jacques, assim como a própria pesquisadora, debatem a questão
da experiência diante das transformações urbanas contemporâneas a eles e é possível
notar pontos de interseção em seus pensamentos. O flâneur e o homem blasé são
CAPÍTULO DOIS
64
65
Vale também algumas reflexões empíricas sobre os hábitos contemporâneos, por mais que
pesquisas16 comprovem o que atualmente constata-se com facilidade: Parece que
15 Michel de Certeau (1925 - 1986) foi um historiador e erudito francês que se dedicou ao estudo
da psicanálise, filosofia, e ciências sociais.
16
Natal já foi considerada, em 2011, a capital nordestina mais sedentária do país de acordo com
a pesquisa “Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito
Telefônico – VIGITEL BRASIL 2011” do Ministério da Saúde. E segundo a Pesquisa Nacional de
Saúde realizada pelo IBGE em 2013, “A proporção de adultos classificados na condição de
insuficientemente ativos no Brasil foi de 46,0%”, ou seja, quase metade da população adulta
brasileira é considerada sedentária. Entre os índices determinantes para esse resultado está a
“atividade física no deslocamento”, apenas 12% dos entrevistados praticam alguma atividade
A PÉ
caminhar virou empecilho, assim como a prática da experiência urbana: postura que
aparentemente só se mostra instigante quando se está longe de casa, de férias em outra
cidade. Também são notórios o desinteresse e o descaso com o espaço urbano, inúmeros
exemplos de desrespeito com o meio ambiente, com a rua, com o pequeno, são
considerados banais atualmente. Não sentimos a pequena escala como a escala da
experiência, fomos habituados a negligenciá-la, a diminuí-la.
durante as atividades diárias de deslocamento, o que demonstra que caminhar atualmente no Brasil
está longe de ser um habito comum à população.
CAPÍTULO DOIS
2.2.2 ESPETÁCULO
Ainda em busca argumentos que ajudem a sustentar a ideia de que mudamos a nossa
forma de experimentar a cidade, e considerando este um universo de ampla investigação,
mais um elemento é trazido para fomentar a discussão. Paola Berenstein Jacques, em seu
texto “Notas sobre espaço público e imagens da cidade”17 de 2009, continua revelando
pistas sobre a questão em debate neste trabalho. A autora defende que estamos
vivenciando hoje, um processo de esterilização urbana.
17
Texto em parte apresentado oralmente na mesa redonda “Espaço Público e Imagens da Cidade"
no XIII Encontro Nacional da ANPUR que ocorreu em Florianópolis (25 a 29/05/09) publicado no
portal Vitruvius no mesmo ano.
18
Espetáculo no sentido dado por Guy Debord, que diz: “o espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem” in A sociedade do espetáculo, 1997.
A PÉ
Jacques defende que o esvaziamento dos espaços públicos - vivos, intensos e conflituosos,
69
a diminuição da participação cidadã e a consequente perda da experiência corporal nas
práticas urbanas cotidianas está diretamente relacionado a esse processo de
espetacularização que toma campo nas cidades contemporâneas.
Dentro dessa lógica de cidade mercadoria, “os espaços públicos contemporâneos, (...)
também são vistos como estratégicos para a construção e a promoção destas imagens de
marca consensuais, ou seja, são pensados enquanto peças publicitárias, para consumo
imediato” (JACQUES, 2009). O que segundo a autora resulta em um esvaziamento da
19
Branding ou Brand Management é uma atividade multidisciplinar que trata da construção de
marcas. Envolve marketing, planejamento, comunicação e design.
CAPÍTULO DOIS
Como em um grande espetáculo a cidade é tomada de luz. Luz em toda sua essência
atrelada à “longa duração do ideário da iluminação, bastando citar: “a luz da razão”, “a
luz da inteligência”; “a luz do espírito” (RIBEIRO, 2012, p.66).
Ana Clara Torres Ribeiro20 espacializa claramente o conceito de luz dentro da configuração
de espetáculo urbano. A pesquisadora relembra que a “luz também, escolhe, seleciona e
oculta, engrandecendo espaços, transformados em espaços luminosos, e esmaecendo ou
esquecendo outros, abandonados em sua opacidade” (idem). Os espaços luminosos
seriam espaços de vida plena, valorizada, repleta de beleza. São mais do que espaços
iluminados, são produtos racionais de estratégias comandadas pela modernidade,
oferecem uma visão de mundo desejada e desejável.
É fácil viver em um espaço luminoso, afinal ele é pronto, limpo e livre de conflitos. Seduz
pelo brilho, pelos padrões de beleza e estimula nossa preguiça pela fácil leitura e pelos
caminhos pré-estabelecidos. No entanto, a luz que ofusca também produz sombra, e assim
como a luminosidade, os conceitos atrelados a esse espaço de sombra, escondido, opaco,
72
são naturalmente reconhecidos pelo senso comum. “Uma opacidade que se aproxima da
falta de importância, do desinteresse, do literal apagamento e do radicalmente negativo”
(ibidem, p.67). Para Milton Santos, os espaços opacos são representados como feios, sem
interesse ou perigosos pelo pensamento dominante. Os espaços opacos seriam, então,
espaços da sobrevivência, “espaços com menos técnica e mais inventividade, com menos
dominação e mais domínio” (ibidem, p.68).
20
Ana Clara Torres Ribeiro foi uma socióloga e professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Criadora e coordenadora do
Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território (Lastro), desenvolveu a pesquisa sistemática
da Ação Social (reivindicações, protestos e lutas) em contextos metropolitanos, a proposição de
novos conceitos e categorias e exercícios com a denominada cartografia da ação.
A PÉ
Essa outra cidade, tomada de espaços opacos, escondida, ocultada, existe e resiste por
trás das imagens dos cartões-postais. “As imagens simulacros consensuais não
conseguem apagar essa "outra cidade" latente e pulsante” (JACQUES, 2009). A cidade-
viva, em que esta outra cidade toma corpo, poderia ser vista de fato como uma forma de
resistência à espetacularização.
Os personagens que ocupam as zonas opacas das cidades são chamados de errantes por
Jacques, aos quais ela dedica seu livro “Elogio aos errantes” e considera como figuras
determinantes para a análise da experiência urbana. Ao praticarem suas errâncias pelas
ruas da cidade – em flanâncias percorridas pelo personagem de Baudelaire; ou nas
73 deambulações aleatórias dos surrealistas e dos dadaístas em suas excursões urbanas por
lugares banais; ou ainda em derivas inerentes ao pensamento urbano dos situacionistas,
de errância voluntária pelas ruas e de crítica radical ao urbanismo moderno – os errantes
indicam “uma possibilidade de [...] resistência ou insurgência contra a ideia da [...] perda
ou destruição da experiência a partir da modernidade” (JACQUES, 2012a, p. 19).
CAPÍTULO DOIS
A autora ainda chama atenção para a potencialidade da experiência corporal urbana como
micro-resistência. A experiência urbana se inscreve no corpo daquele que a experimenta,
21
Jacques Rancière (1940) é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-
Fee e professor emérito da Universidade de Paris.
75
CAPÍTULO DOIS
criando uma relação sensível e dissensual do corpo com o espaço público. Além disso,
Jacques entende que esse tipo de intervenção pode produzir, um material, mesmo que
empírico, que ainda é pouco considerado nas análises urbanas tradicionais de
planejamento urbano. E explicita o quanto é importante que se aprenda a trabalhar com
os conflitos e tensões inerentes ao espaço público. Sendo assim, “a arte crítica - a
experiência sensível enquanto micro-resistências sobre ou no espaço público - pode vir a
ser, efetivamente, uma grande aliada. (...) possa efetivamente nos ajudar a inventar (...)
um urbanismo mais dissensual, incorporado e vivaz” (idem).
2.2.3 NARRATIVA
O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros.
E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história
BENJAMIN, 1994, p. 201.
Nos textos de Walter Benjamin é possível notar uma nítida diferença entre dois tipos de
experiência, que são termos distintos em sua língua mãe, o alemão.
78
A PÉ
A pesquisadora ainda questiona: “Aliás, quem ainda tem tempo para ouvir de maneira
79 gratuita, pelo simples prazer de ouvir? ” (GAGNEBIN, 2014, p.14). O ritmo acelerado que
presenciamos atualmente, que teve início com o advento da modernidade as quais incluem
as grandes transformações urbanas, é capaz de transformar a maneira e os meios de
comunicação cotidianos. “Elas continuam existindo, mas são outras: ensaio efêmero,
romance, filme, conto curto, videoclipe! E também são menos duráveis porque seguem a
lei das novidades mercadológicas” (GAGNEBIN, 2014, p.14).
22
Entrevista concedida ao Laboratório Urbano da UFBA em 2014, publicada na revista Redobra
Nº 14.
CAPÍTULO DOIS
80
A PÉ
2.3 UM PRODUTO
SENSÍVEL
A partir de toda leitura e experimentação teórica baseadas na questão da sensibilidade e
do corpo, onde o homem e sua experiência sensível não estão somente inseridos no
processo como são o foco da pesquisa, a decisão por uma metodologia e por um produto
certamente não fugiria dessa ambiência.
23
“A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI - Entre passividade e plasticidade do corpo
em movimento” é uma pesquisa internacional coordenada pela socióloga francesa Rachel Thomas
em parceria com Brasil e Canadá.
A PÉ
83
CAPÍTULO DOIS
24
Essa técnica foi apresentada por Marta Dischinger (2000) no seu artigo “Designing for all senses:
accessible spaces for visually impaired citizens”, por ocasião do seu doutorado em Architecture
Scholl, na Chalmers University of Technology, na Suécia. Dischinger é Professora Adjunta da
Universidade Federal de Santa Catarina.
A PÉ
Por se tratar de uma análise que busca a apreensão de aspectos de natureza sensível,
85
associadas à narrativa, memória e percurso, questionamentos foram elaborados para
melhor apropriação da experiência urbana do entrevistado. As provocações sugeridas por
Kevin Lynch, em seu livro “A imagem da cidade”, publicado 1960, foram levadas em
consideração na formulação das perguntas fomentadoras das conversas entre pesquisador
e entrevistado.
A pesquisa de Lynch buscava evidenciar a qualidade visual das cidades por meio do estudo
das imagens mentais que seus habitantes faziam delas. Pela primeira vez, uma pesquisa
perceptiva com base em conceitos e métodos da psicologia buscava “compreender os
espaços da cidade, a partir da percepção que os habitantes tinham de determinada área
e qual o significado da cidade para os mesmos” (LIMA, 2008, p.45).
1960, p.2). Para uma melhor definição do conceito, Lynch decompõe a ideia de
legibilidade em três componentes: identidade, estrutura e significado.
Esses três conceitos identificados pelo autor ajudam na análise da percepção ambiental
do usuário, portanto, se aproximam dos procedimentos de busca pela apreensão da
experiência sensível de quem vivencia a cidade, uma vez que, segundo o autor, um 86
ambiente legível possibilita uma experiência urbana mais intensa e segura. Por mais que
Lynch tenha sido cauteloso em relação ao “significado”, entende-se que cada cidadão tem
determinadas associações com partes da cidade, e a imagem que ele faz delas está
impregnada de memórias e significados.
“No quarto capítulo do livro citado, o autor propõe caminhos para dar uma nova forma a
cidade, tratando do desenho dos elementos que constituem o espaço urbano: vias, limites,
setores, pontos nodais e marcos” (LIMA, 2008, p.46). Estes elementos são abordados em
entrevistas que Lynch realizou com os habitantes de três cidades americanas. No final de
seu livro, um roteiro da entrevista é apresentado e sugerido como modelo a ser seguido.
Além da sequência de tradicionais perguntas e respostas, também faz parte do método a
produção de mapas mentais pelos entrevistados.
Este trabalho toma como inspiração metodológica, para a primeira etapa de visita a campo,
o Passeio Acompanhado e as entrevistas propostas por Lynch, mas não tem a intenção de
se prender às suas sequências e determinações pré-estabelecidas. Do passeio
acompanhado extrai-se o caminhar pela cidade e a vivência da experiência do outro em
A PÉ
meio urbano, e das entrevistas propostas por Lynch são colhidas as perguntas referentes
aos percursos feitos pelos entrevistados e a busca pela descoberta dos significados da
cidade, particulares à cada indivíduo. Intenciona-se de antemão a realização de passeios
acompanhados com todos os entrevistados, mas, prevendo possíveis adversidades e
indisponibilidades por parte deles, a entrevista in loco também é considerada.
88
A PÉ
Segundo Rachel Thomas, socióloga responsável pela pesquisa em que a metodologia foi
desenvolvida, “a realização dessa metodologia consiste em repetir – ao longo do trabalho
de pesquisa – as fases de imersão no campo, as fases de atuação dos corpos em
movimento” (THOMAS, 2013, p.9). A pesquisadora fala em “encarnar” as ambiências
urbanas e a partir disso traduzi-las em novas experiências narradas.
Pretende-se a partir desse fazer corpo/tomar corpo/dar corpo provocar a experiência através
de uma narrativa de reflexão, uma apropriação crítica das experiências daqueles que
caminharam ou relataram suas lembranças mais significativas durante as entrevistas. Afim
de articular a experiência corporal com esse produto essencialmente narrativo e até agora
teórico, intenciona-se ilustrar tais reflexões através de uma micro-resistência urbana.
Dessa forma é de grande importância salientar que a escolha por um caminho próximo da
sinalização para o pedestre e da comunicação visual se vale das possibilidades livres de
CAPÍTULO DOIS
90
[...]
Por fim, é preciso definir com bastante clareza as margens entre o que é de fato o produto
final desse trabalho - uma narrativa de reflexão, escrita, teórica - e o que contribui para a
conclusão do pensamento com a inserção do corpo, ilustrando a reflexão previamente
produzida - uma micro-resistência urbana crítica de caráter artístico, inspirada na
sinalização urbana. Ambos fazem parte da finalização desse trabalho, a reflexão narrativa
como produto final estabelecido e a micro-resistência urbana como uma aliada artística.
2.4 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
As grandes transformações urbanas além de modificarem o espaço físico das grandes
cidades também foram capazes de interferir na experimentação sensível do ser humano
no espaço público. Choque, espetáculo e narrativa revelam alguns fatores inerentes a esse
processo.
O choque aparece nesse contexto como uma resposta sensível daqueles que vivem em
baixo, daqueles que sofrem os efeitos dos holofotes do espetáculo. O choque, então, diz
respeito a como o humano lida com essas grandes interferências pensadas em grande
escala que acabam por modificar a pequena, afinal ela foi historicamente deixada de lado
e dessa forma, em termos do sensível, do humano, foi a escala que mais sofreu. A
modernidade impõe um ritmo acelerado, frenético, inédito, e como resposta ao choque, o
homem moderno se protege, distanciando-se da vida em pequena escala. Ele deixa de
caminhar, desabitua-se a experimentar a cidade em sua forma mais elementar para
proteger-se dentro de um veículo, que já nasce com dois grandes faróis em sua dianteira
a guiar e indicar o caminho, e mais duas gritantes luzes vermelhas na parte de trás para
que não nos esqueçamos dele mesmo quando nos dá as costas.
O tempo corre apressado, é a era do instantâneo. E quem tem tempo de sobra hoje em
dia? Quem tem tempo para ouvir e contar histórias? Quem entende a vivência na cidade
A PÉ
O que está oculto em meio a esse contexto é o que garante esperança em forma de
resistência. O outro lado, as zonas opacas da cidade e seus frequentadores, seres errantes,
incorporados em suas narrativas ao decorrer da história nos levam a acreditar que a
experiência urbana resiste. Essas zonas de criatividade, de experiência sensível,
geralmente são áreas onde a luz dos holofotes não chega. São lugares assim, iluminados
ao brilho dos vaga-lumes, em que essa experiência que tanto se busca nesse trabalho,
reside, e é por esse caminho que ele segue adiante.
93
O compartilhamento dessas áreas opacas e das experiências vividas nesses espaços por
meio de intervenções críticas na cidade pode contribuir para uma resistência à
transformação do espaço público em lugar homogêneo e consensual. A metodologia do
fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo auxilia na apropriação do espaço e no entendimento
das relações entre o corpo e a cidade, além de incentivar a transmissão dessa experiência
por meio de uma narrativa.
94
A PÉ
95
96
A PÉ
97
CAPÍTULO TRÊS
3.1 PRÓLOGO
TAPUMES
29 de outubro de 2015.
25
POLÍTICAS PÚBLICAS DE TURISMO NO BAIRRO DA RIBEIRA, NATAL-RN: UMA REFLEXÃO A
PARTIR DO PAC 2010-2014, de autoria de Jenniffer Ribeiro da Silva, Luciléia Lima De Morais,
Wilker Ricardo de Mendonça Nóbrega. Publicado em janeiro de 2015 na revista AOS - Amazônia,
Organizações e Sustentabilidade.
A PÉ
28. Brechando.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO TRÊS
102
A PÉ
103
CAPÍTULO TRÊS
O lugar escolhido pelos portugueses que aqui chegaram para erguer sua cidade, foi o alto
onde hoje se localiza a Praça André de Albuquerque. Lá de cima a visão era privilegiada,
podiam perceber qualquer aproximação de quem chegasse pelo rio e ainda tinham a
percepção do que acontecia na aldeia dos Potiguaras27.
104
Neste sítio construíram a capela, a casa de Câmara e Cadeia,
instalaram o pelourinho. Foram chantadas duas cruzes,
delimitando o espaço urbano de Natal. Uma foi chantada as
margens do baldo, e, outra nas proximidades da atual Praça
das Mães (Natal - Anuário, 2014, p. 158).
Segundo Miranda (1999, p. 46) a implantação da cidade de Natal não fugiu à regra de
um modelo colonial, onde “Elevações, acidentes geográficos e físicos orientaram e
induziram o seu crescimento espontâneo. Ruas estreitas, terrenos com testada mínima em
torno de 6m, acompanhando a curva de nível da elevação [...]”.
26
Tal perímetro será apresentado posteriormente juntamente às legislações responsáveis por sua
delimitação. A fração compreendida no bairro das Rocas foi significativamente expandida
recentemente, no entanto, se trata de uma área de abrangência do centro histórico, correspondente
quase em sua totalidade a um polígono denominado poligonal de entorno, sendo assim, destaca-
se aqui a história dos bairros de Cidade Alta e Ribeira, compreendidos em todas as delimitações
propostas como os bairros “centrais” do centro histórico de Natal.
27
Potiguara era a denominação dos índios que no Século XVI habitavam o litoral do Rio Grande do
Norte. Potiguara é uma palavra indígena geralmente traduzida como pescador ou comedor de
camarão.
A PÉ
105
CAPÍTULO TRÊS
A elite natalense ocupava a parte alta da cidade, enquanto a classe trabalhadora, mais
pobre, vivia às margens do rio. Os moradores da atual Cidade Alta foram conhecidos
durante muito tempo por Xarias: comedores de xaréus, um tipo de peixe da região. Os
Xarias eram rivais dos Canguleiros, cangulo é outro tipo de peixe. Os Canguleiros eram
representados pelos pescadores da cidade baixa, a Ribeira.
A Ribeira nasce no caminho entre a Cidade Alta e a Fortaleza dos Reis Magos28. Câmara
Cascudo (1999, p.149) explica que a região foi chamada de Ribeira por se tratar de uma 106
campina constantemente alagada pelas marés do Potengi. A área onde hoje se encontra
o Teatro Alberto Maranhão banhava-se no rio em fins do século XIX.
Segundo Melo e Silva (2007, p. 14), foi somente durante a segunda metade do século XX
que Natal passa por um processo de transformação e modernização da estrutura colonial
que ainda se fazia presente. “Apesar do surgimento da cidade remeter ao século XVI, é
apenas no século XX que Natal entra em um grande período de transformações, a fim de
substituir a originária cidade colonial por uma nova cidade, moderna e progressista”.
O período entre o início do século XX e 1930 foi marcado por um intenso desejo de
mudança. A elite natalense buscava replicar o mesmo fluxo da modernidade de grandes
cidades como Paris e Rio de Janeiro com suas transformações urbanas higienistas. A
tendência de modernização das cidades influenciou a elite da época pela construção de
28
Sua construção teve início em 06 de janeiro de 1598. Símbolo da colonização portuguesa em
nosso litoral, a Fortaleza dos Reis Magos teve sua planta concebida pelo padre jesuíta Gaspar de
Samperes, sob as influências da arquitetura italiana que, no século XVI, era considerada a mais
avançada concepção arquitetônica direcionada para o uso militar (MEDEIROS FILHO, 1997).
A PÉ
novas áreas habitacionais que não fizessem fronteira com bairros de classes mais baixas.
E dessa forma a implantação de uma Cidade Nova acontece. Localizada nos atuais bairros
de Tirol e Petrópolis, a Cidade Nova contribuiu para a caracterização deste período e pela
então classificação de Natal como “cidade moderna”.
107
Afim de deixar para trás o sentimento de desordem e atraso que a cidade colonial ainda
transmitia, inúmeras intervenções fizeram parte do conjunto de obras de melhoramento
realizadas no período. “O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930” de Arrais,
Andrade e Marinho (2008) ajuda na compreensão desses processos de modernização da
capital potiguar.
CAPÍTULO TRÊS
Devido à sua posição estratégica global, a cidade mais próxima das Américas em relação
ao continente africano, durante a década de 1940, Natal foi escolhida pelos americanos
para sediar duas importantes bases de apoio às forças militares da Segunda Guerra
Mundial. O esforço de guerra fez Natal saltar de um contingente de aproximadamente
50.000 habitantes para quase 100.0000. Segundo Macedo (2004) este acontecimento
impulsionou o processo de transformação da cidade. Natal deixava de ser provinciana. 108
A autora afirma que se tornou comum a associação do centro histórico de Natal à um lugar
inseguro, ainda que a sensação de perigo seja mais expressiva do que a ocorrência de
delitos no local. Souza associa esse sentimento de medo à carência em infraestrutura do
centro histórico. A falta de iluminação em algumas vias, por exemplo, intensifica o
afastamento de estabelecimentos de comércio e serviços da região, o que contribui para a
sensação de abandono. Além disto, a preocupação com a valorização urbana do centro
histórico de Natal é considerada tardia. Somente nos últimos anos do século XX, os bairros
de Cidade Alta e Ribeira começam a ser alvos de ações de preservação.
O objetivo da ZEPH era “[...] a preservação dos prédios e sítios notáveis pelos valores
históricos, arquitetônicos, culturais e paisagísticos” (MELO e SILVA, 2007). Por meio
dessa determinação foram proibidas demolições sem autorização e um gabarito limite foi
fixado para a área. “Hoje, é senso comum que a vigência desta lei contribuiu decisivamente
para impedir o processo de substituição dos exemplares arquitetônicos antigos da cidade”
(MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).
111 O bairro da Ribeira foi alvo de projetos de revitalização entre o final da década de 1990 e
os primeiros anos do século XXI, destacando-se o Projeto “Fachadas da Rua Chile” de
1996, que recuperou aproximadamente 45 fachadas de imóveis e toda a pavimentação
do Largo da Rua Chile, num trabalho de arquitetura, urbanismo e arqueologia, com
recursos provenientes do Ministério da Cultura em parceria com a Prefeitura de Natal; o
Plano de Reabilitação de Áreas Centrais - Ribeira2 (PRAC-Ribeira, 2005) e o Projeto
ReHabitar3 (2007), que, entre outros objetivos, visavam a inserção de habitação no bairro,
afim a de “reutilizar os edifícios históricos fechados ou subutilizados do bairro” (ibidem, p.
04). No entanto, somente algumas ações pontuais previstas nos planos de melhoramento
foram realizadas, os mesmos não foram considerados na íntegra.
Em dezembro de 2010, o perímetro delimitado como sítio histórico de Natal que inclui
trechos dos bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas, foi tombado pelo IPHAN como
Patrimônio Histórico e Cultural. No entanto, a ausência de legislação específica para a
área tombada atrasa e impossibilita projetos de intervenção na área.
CAPÍTULO TRÊS
112
A PÉ
3.3 MEMÓRIA
& EXPERIÊNCIA
Não faz parte dos objetivos específicos deste trabalho recontar a história do centro histórico
de Natal, nem abordar conceitos de patrimônio, por exemplo, como pode parecer
indissociável das discussões referentes ao tema. Entende-se a importância da abordagem
e contextualização de tais assuntos, no entanto, a experiência sensível do pedestre inserida
nesse meio é o foco aqui.
29
Yonne Grossi é professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tem experiência
na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política.. Amauri Ferreira é filósofo, escritor e
professor de filosofia. É autor dos livros Singularidades Criadoras (Editora Sapere), Introdução à
Filosofia de Spinoza e Introdução à Filosofia de Nietzsche.
A PÉ
Trata-se de algo parecido a um processo seletivo. Para aquele que narra, seria impossível
narrar tudo, assim, a lembrança traz apenas os momentos significativos do passado.
Evoca-se, então momentos vividos, as vivências pessoais são retomadas, valendo-se de
referências atuais. Assim, experiência e memória se associam em um processo de
metamorfose no qual a identidade passa a ser constituída, afinal somos formados por
aquilo que lembramos: “uma experiência nunca é totalmente nova, pois estamos sempre
115
tomando como referência experiências anteriores, de onde tiramos nosso conhecimento,
nossa forma de agir e perceber o mundo” (STRECK; FRISON, 1999, p. 108).
O que acontece, segundo Benjamin, é que a história é perpassada pelas ações dos grupos
dominantes, os quais detêm o poder sob as relações políticas e econômicas. O autor
propõe o rompimento com a temporalidade homogênea e linear trabalhada pelas memórias
dominantes. “Essas precisam ser problematizadas no quadro mais amplo e complexo das
relações socioculturais. A memória passaria a desempenhar um papel crítico,
reconstruindo e possibilitando a emergência de determinadas experiências que foram
silenciadas” (VIEIRA, 2006, p. 18).
CAPÍTULO TRÊS
Ao final do livro, a autora conclui que por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo 116
que a recorda. E das camadas do passado que se tem acesso é ele quem pode selecionar
aquelas que são para ele significativas de um tesouro comum.
Este mesmo indivíduo é aquele que anda e experimenta a cidade, ou então que um dia
chegou a realizar tais atividades. Quem sabe suas experiências estejam presas nas
lembranças de um tempo e de um espaço que já não existe. Talvez essa seleção de
experiências significativas esteja enterrada nas camadas mais antigas.
3.4 EXPERIÊNCIA
PRATICADA
A primeira etapa metodológica de visita à campo - fazer corpo - consistiu na realização de
passeios acompanhados e entrevistas com personagens próximos da pesquisadora que
apresentavam relação com o universo de estudo, seja ela qual fosse - de trabalho, moradia,
convívio ou simplesmente afetiva. A escolha dos entrevistados aconteceu por facilidade de
aproximação e porque fazia parte do objetivo da entrevista o acesso a lembranças e
experiências pessoais, alcançadas com facilidade devido a relação previamente construída
entre entrevistado e pesquisadora.
Dois roteiros foram criados para a abordagem em campo. O Roteiro A (ver apêndice A),
prioritário, abrange as temáticas que deveriam estar presentes durante o passeio
117
acompanhado, como uma conversa entre pesquisadora e entrevistado a respeito dos
espaços visitados. O Roteiro B (ver apêndice B), aplicado em casos em que o entrevistado,
por motivos diversos, não pode acompanhar a pesquisadora em um passeio
acompanhado, segue uma sequência de perguntas pré-estabelecidas realizadas em um
ambiente fixo.
Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto especial.
Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar que você sinta
saudade.
Me leve para descobrir lugares que representem, acordo com as suas experiências
pessoais, o centro histórico para você. E se possível, me apresente a outras pessoas
que também tenham uma vivência neste lugar e que possam compartilhar suas
experiências.
O Roteiro B, uma entrevista sob os moldes convencionais, podia acontecer com a escolha
pontual de determinados atores pré-estabelecidos como também com personagens
118
118
introduzidos casualmente ou apresentados por algum entrevistado durante o passeio
acompanhado. Essas entrevistas, aconteceram em sua maioria no “habitat” do
entrevistado, geralmente seu local de trabalho. Os mesmos objetivos relativos aos
caminhos, espaços de experiência e lembranças eram abordados, dessa vez, por meio de
perguntas pré-estabelecidas. No decorrer das entrevistas, o roteiro esteve aberto a
adaptações, como a alteração na ordem das perguntas e questionamentos adicionais de
acordo com a abrangência do discurso de cada entrevistado.
Em ambos os roteiros, a conversa era iniciada com uma breve explicação do que se travava
a temática e os objetivos do trabalho, seguida por perguntas que buscavam uma
contextualização inicial sobre a relação do entrevistado com o centro histórico.
O registro dos passeios e das entrevistas acontecia por gravação de áudio, imagem e vídeo,
com o auxílio de celulares e câmeras fotográficas digitais. Durante o período de 30 de
outubro a 9 de novembro foram realizadas 4 passeios acompanhados e 6 entrevistas,
descritos a seguir em “Fazer e ganhar corpo: Passeios Acompanhados”.
A PÉ
119
120
120
O primeiro passeio acompanhado foi realizado com Lenilton Teixeira, diretor do Grupo
Estandarte de Teatro, com base em suas experiências e lembranças no centro histórico.
Marinalva Moura, sua mulher e atriz do grupo, participou do trajeto completo. Dois
personagens importantes foram apresentados durante o passeio: Flávio Freitas, artista
plástico e Henrique Fontes, diretor artístico da Casa da Ribeira, aos quais foram realizadas
entrevistas convencionais. Nena, uma turista amiga de Henrique, nos acompanhou pela
Cidade Alta.
A PÉ
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CAPÍTULO TRÊS
Sexta-feira. Era feriado do dia do Servidor Público. O que significava que eu, Lenilton e
Marinalva estaríamos de folga. Um dia perfeito para irmos os três caminhar pela Cidade
Alta e Ribeira.
Cheguei um pouco atrasada, eles estavam prontos. Tomamos um suco que Lenilton tinha
feito para o café. Abastecemos as mochilas de água e seguimos, de carro, em direção à
Capitania das Artes, local de trabalho de Lenilton, escolhido por ele como ponto inicial do
nosso trajeto.
No dia anterior eu havia lhe enviado quais eram meus os objetivos com a nossa
caminhada. Lenilton me confessou que ficou pensando a respeito e em sua cabeça já
sabia os lugares os quais queria me apresentar. Fomos conversando no caminho. Eu já
sabia que ele não tinha nascido em Natal, que havia se mudado de Lajes para a capital
quando ainda era criança e por um tempo havia morado no bairro das Quintas. Mas queria
entender como tinha acontecido sua aproximação com o centro histórico.
Eu acho que com 18, 19 anos, um pouquinho depois do ensino médio. Eu ia na Ribeira
pro teatro, pro Alberto Maranhão, que eu acho que era o lugar pelo tipo de trabalho
que eu já me envolvia, ou eu ia assistir espetáculos ou participar de algumas atividades
A PÉ
na calçada do teatro. Depois, algumas vezes eu ia no canto do mangue, num bar, num
lugar assim de convivência com mais pessoas. E perto da rodoviária também, onde
hoje é o Museu Djalma Maranhão, era uma rodoviária que foi desativada, mas que
tinha função de parar os ônibus. Como lá era o ponto final, você pegava ônibus mais
vago e eu ia para lá para pegar ônibus.
Ah, mas, eu quando ainda criança logo quando cheguei em Natal, existia uma loja que
era correspondente às lojas americanas, que era 4 e 400 o nome da loja. Ela ficava na
Rio Branco exatamente ali onde é hoje a Mariza, essa loja, como a americanas, vendia
muita bunjinganga, todo tipo de troço vendia lá, e eu vinha das Quintas as vezes
comprar soldadinho de plástico, biloca, essas coisas assim. Eu pegava um ônibus, eu
devia ter assim uns 8 anos.
Sozinho! Pegava um ônibus, descia, comprava e voltava pras quintas. Eu andava muito
só nesse período da infância, eu ia de ônibus pra tudo que é lugar.
123
Eita!
Mas assim, essa época, lógico que existia violência, lógico que existia problema, tudo
existia, mas era sem grandes confusões. Era bem menor. Você tinha mais medo de
encontrar a polícia nesses lugares do que os ladrões. Por que na maioria dos casos,
assim, o ladrão chegava, você não tinha nada e ele ia embora. Não ia ter grandes
confusões. A morte em um assalto ou num roubo era rara.
A casa de que?
Sim!
Meu irmão fazia História e estudava com a filha de Cascudo. Cascudo, Cascudo. Ana
Maria.
Aham.
Aí ele vinha muito aqui na casa de Cascudo. A filha de Cascudo criava canários belgas,
e meu irmão também criava, então eles tinham uma amizade.
A PÉ
Isso, essa com um negócio de ferro na janela. Então eu vim com Luiz (o irmão) para
cá numa vez que ele veio. Cascudo tava aí, me deixou na biblioteca e me deu um livro
de quadrinhos de Padre José de Anchieta.
Era, eu tinha 9 anos. Meu irmão foi conversar com ele e eu fiquei aí, muito leso, na
biblioteca. A biblioteca era imensa, muito grande, tinha muita coisa lá. Aí ele me deu
essa revista.
Não, não. A minha primeira lembrança é na rodoviária. Que quando a gente chegava
aqui tinha um homem que dizia: (faz voz de locutor) Estação Rodoviária Presidente
Kennedy, atenção passageiros…
Passamos em frente à estação de trem da Ribeira, eu nunca tinha prestado atenção onde
era o acesso, fica ali por trás das paradas de ônibus que contornam a Praça Augusto
Severo. Continuamos em frente, seguindo reto.
É, é a de lá. Essa é a Doutor Barata. Ali onde tá fechado, onde foi uma editora, aí,
muito antigamente, vendia o passe escolar. Na minha época você comparava tipo um
chequezinho. O único lugar que vendia era aqui. Uma fila desgraçada. E ela foi
CAPÍTULO TRÊS
também, como é que se chamava? Uma livraria: Livraria Clima! Eu lembro até da
propaganda: “Natal não tem clima. Natal agora tem clima”.
Entramos num beco, descobri o nome pelo mapa depois, Travessa México. Marinalva ia
dizendo enquanto o atravessávamos, em direção à Rua Câmara Cascudo:
Aqui tem muito espaço para esses espaços que a gente vê muito lá na Europa. Lá na
França a gente vê, eles chamam de rua de passeio, né? É um beco, assim, onde de
um lado e do outro são lojas. Que aqui a gente não vê. Não há investimento. Uma
ruazinha dessa, que não passa carro, se tivesse um investimento de estabelecimentos
comerciais né? Mas é assim, escura.
João! Ô João!
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Esse povo do Consulado, chama Lenilton de um nome totalmente diferente.
Aqui é onde são feitos todos os cenários de Natal, olha - Lenilton aponta para um portão
de onde se vê um cara trabalhando com solda - Em Valdemar.
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A casa de número 184 da Rua Câmara Cascudo é onde funciona atualmente o Consulado Bar e
Restaurante. Construída no início do século XX, foi residência do cônsul italiano Guglielmo Lettieri
até 1942 quando passou a ocupar a Bolsa de valores do RN.
A PÉ
127
CAPÍTULO TRÊS
Seguimos até a esquina e uma senhora abriu a porta do Ateliê Flávio Freitas para gente.
Lenilton e Marinalva são amigos de Flávio, assim como Lenilton, ele também trabalha na
Capitania. Flávio Freitas é um conhecido artista plástico da cidade e tem seu espaço de
trabalho em um antigo edifício de dois pavimentos instalado na Travessa José Alexandre
Garcia, vizinho ao Buraco da Catita31. Ficamos observando as obras e o espaço de
exposição que claramente tinha sofrido uma reforma recentemente, enquanto Flávio
terminava uma ligação.
Ele nos apresentou o espaço reformado do Ateliê, tirou algumas obras das gavetas, falou
das técnicas, das cores, ofereceu água. Depois sugeriu que conhecêssemos o andar de
cima. Seu espaço de criação: tintas, pinceis, uma bancada com um caderno de rascunho,
poltronas diversas, janelas de madeira pintadas em azul turquesa e muitas lagartixas
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pregadas na parede, “foram presente”, ele disse.
Depois, mandou eu puxar uma cadeira para conversar enquanto ele ia pintando um quadro
de tons azuis e amarelos:
Eu nasci no Rio, mas vim para cá criança. Toda minha referência de educação e
formação cultural é potiguar. De família também, né?
Quando eu vinha de férias do rio, ainda muito pequeno, a gente ia brincar no escritório
do meu tio avó, aqui nessa rua de trás, ele tinha um grande escritório da empresa dele.
Então você tem lembranças de quando aqui era uma área mais …
31
O Espaço Cultural Buraco da Catita é um bar e estabelecimento de shows e apresentações
culturais e tem sua origem ligada aos grupos musicais Ribeira de Pau e Corda e Catita Choro e
Gafieira.
A PÉ
Pois é, a lancha da redinha era muito mágica, porque não existia a ponte aqui, só a de
Igapó e era um momento de aventura.
E os caminhos que você gostava de fazer? Você lembra por onde gostava de andar?
Então, meu tio foi o engenheiro responsável pela implantação do Projeto Camarão.
Projeto Camarão?
Eu digo porque, Cascudo, Newton Navarro, essas figuras, poetas, um pessoal que
trabalhava na Tribuna, nos jornais mais importantes de Natal frequentava. Fica na
esquina da Doutor Barata com a Tavares de Lira.
Eu acho que na época que eu fazia faculdade, na década da 1980, a Ribeira realmente
ficou condenada a um ambiente de prostituição, mais do que um ambiente de
comércio, assim, como era antigamente, mas fino, de status.
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130
A PÉ
A gente hoje não anda tanto a pé, porque a sensação de insegurança é grande. Não
que seja da Ribeira. A Ribeira é um bairro menos violento do que muitos, mas eu digo
porque a sensação de insegurança, ela está espalhada, né? Em toda a cidade.
A gente acabou falando muito de Ribeira, mas você tem alguma experiência
significativa na Cidade Alta?
Na Cidade Alta, eu tenho uma lembrança muito forte que era ir com minha mãe e
minha vó, na época de Natal, fazer compras à noite no comércio todo iluminado. Era
muito bonito. É uma lembrança forte. E também o cinema no domingo, que era a
programação quase obrigatória da minha juventude. Terminava o cinema, a gente ia
comer torrada com vitamina de sapoti.
Onde?
Ainda existe?
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Existe, Lenilton?
Miscelânea era o suco, banana, uva, mangaba, ficava uma cor esquisita. Ali na Cidade
era a única que ficava aberta. Vinha numa taça bem grandona assim, riscadinha.
E Flávio, uma última pergunta, se você tivesse que apresentar um lugar do centro
histórico que você acha que as pessoas não conhecem ou quem visita os bairros
provavelmente não vai. Qual seria? Você teria algum espaço em especial?
Olha, o que eu faria é, assim, nessa pergunta eu nunca tinha pensado, mas, o que eu
faria é convidar a pessoa para dar uma voltinha de barco e olhar a Ribeira do Rio, sabe?
Você passa a ter outra valorização, sabe? Porque tá muito maltratada a Ribeira, né? Faz
pena.
Tiramos fotos, rimos um pouco com as lembranças de Flávio de quando ele morava em
Fernando de Noronha, agradecemos e nos despedimos. Seguimos pela antiga Rua das
Virgens, atual Rua Câmara Cascudo, em direção à Avenida Tavares de Lira. Algumas
bonitas árvores sombreavam o caminho e Lenilton foi indicando os bares pelos quais íamos
passando.
CAPÍTULO TRÊS
Esse aqui é antigo. O Bar de Neto, por exemplo, já existia na minha época. Mas, como
a Ribeira não tem morador, quem era atraído para bares eram essas pessoas ligadas a
algum tipo de movimento, ou à cultura, ou à boemia, à arte, essas coisas assim.
Fomos nos aproximando do final da Tavares de Lira, onde já era possível ver o rio. Embaixo
de uma cobertura de telha cerâmica: alguns bares, freezers, mesas e cadeiras, e ao fundo,
pequenas embarcações atracadas. O cheiro de peixe era forte.
Aqui. Você pegava a lancha da redinha aqui. A que Flávio Falou. Esse mercado, aqui,
é super informal, não é como aquele Mercado do Peixe mesmo, nas Rocas. Aqui já foi.
Mas hoje em dia não vende a mesma coisa do que lá.
Não, o comércio informal já existia na época, era um lugar que se vendia bastante
peixe, muito mais forte do que lá em baixo, entendeu? Agora com o mercado lá de
baixo, é que esse aqui vira um sub-mercado. 132
132
Seguimos em direção às Rocas, Lenilton queria me levar no Canto do Mangue. Para isso,
passamos pela Rua Chile.
Aqui, durante muito tempo o trem ainda passava, mesmo com essa rua estreita. Então,
Sávio, uma vez, botou o fusca de Marta na rua, ele estacionou num canto e esqueceu,
aí veio o trem e POW! Buzinando, e ele correu para tirar o carro.
Olha, a maioria dessas casas são casas particulares que os donos nem fazem nada
nem ninguém compra para fazer algum investimento. Ai, fica assim, né? Ó.
Abandonado.
Ali é a casa de Ferreira Itajubá, as vezes tem espetáculo, é bem bacana, tem um
jardinzinho. Olha essa casa aqui como é legal, fazer um bistrôzinho, um café. Qualquer
coisa cultural.
Paramos no largo da Rua Chile. Contemplamos o rio através das grades do Terminal
Marítimo de Passageiros, que estava fechado. Mas o que nos chamou mais a atenção foi
uma árvore que havia crescido entre a parede e a cobertura de uma das casas fechadas.
Lenilton reconheceu a árvore.
A PÉ
133
CAPÍTULO TRÊS
Olha a semente dela voando. Ela, é, poloniza, poliniza, como é que chama? Pelo ar.
Depois do largo da Rua Chile, paramos em baixo de algumas árvores da Esplanada Silva
Jardim e seguimos em direção às Rocas pela Av. Duque de Caxias, mais movimentada e
barulhenta, sem árvores, com um canteiro todo concretado e visivelmente descuidado. Na
altura da Rua Olavo Bilac, atentei para o trilho do trem que seguia atravessando a avenida
em direção ao outro lado da rua, perto de uns galpões abandonados, todos brancos e
tomados por vegetação. Segundo Lenilton, eram uma estação de trem.
Passamos por uma fila de ônibus estacionados; pelo novo mercado em fase de 134
134
acabamento que abrigará as barracas da feira das Rocas; pelo hospital de pescadores que
pertence às lembranças da infância de Lenilton, quando a mãe o levava para tomar vacinas
e por um antigo cinema no qual ele viu o primeiro filme pornô de sua vida, hoje ocupado
por uma igreja evangélica.
É uma cigarreira que vende ginga com tapioca. Ai eu não sei exatamente por que razão,
que cargas d’águas que aconteceu, que virou um point. Assim, quando tem aniversário
vão praí, quando vão comemorar banca de mestrado vão praí. Ai não sei o que lá.
Levamos os franceses pra cá. Só que ele é brega, é um lugar brega.
Hmmm.
Mas, aqui é o Canto do Mangue, né? Já é mais conhecido mesmo, tem até no roteiro
do centro histórico da Prefeitura.
Isso, isso. Mas é porque isso aqui é o que é vendido. O mercado. Entendeu?
Nos aproximávamos do Mercado do Peixe, bem diferente daquele, informal, da Av. Tavares
de Lira. Organizado em lojinhas padronizadas, cada um vende o seu peixe no seu
quadrado.
135 Marinalva explicaram que não tem banheiro e que se você estiver apertado é encorajado
pelo próprio Seu Pernambuco a usar o rio para se aliviar. Mesmo que ninguém houvesse
me avisado, o cheiro quando você se aproxima da margem já denuncia a prática.
Não, uma ginga com tapioca. Não, coloque duas, duas pareia.
É engraçado que a gente aprende que pra consumir você tem que ter tais regras. Tem
que ser assim e assado. Há uma série de fatores, que dizem, desde a questão da
CAPÍTULO TRÊS
Voltamos em direção à Ribeira caminhando pela Av. Hidelbrando de Góis, paralela à Av.
Duque de Caxias. É incrível como a ambiência é bem diferente em apenas uma quadra de
distância. A via beira a comunidade do Maruim e por entre suas vielas podemos observar 136
136
as pessoas se apropriando da rua, até atravessamos um varal que estava fincado na
calçada. O esgoto a céu aberto incomodava, mas quando avançamos um pouco mais, ao
lado dos galpões do Grande Moinho Potiguar, um vento forte nos atingiu.
Seguimos até a avenida se transformar em rua. Rua Frei Miguelinho. Antiga conhecida de
nós três. A via abriga a Casa da Ribeira, que toma conta de um edifício recentemente
tombado pelo IPHAN. O teatro estreou em 2001 com um espetáculo do Grupo Estandarte
de Teatro, o qual fazemos parte. A Frei Miguelinho também é palco de outros espaços de
arte e cultura da cidade, como o Gira Dança; A Boca Espaço de Teatros e o Espaço A3.
Foi também nessa rua que percebi a presença de alguns estabelecimentos comerciais
diferentes das oficinas de reparo, das casas de pesca, ou dos armazéns de produtos gerais
para casa que se duplicam pelo bairro. Ali estavam algumas pequenas conveniências, nas
quais eram vendidas balas, chocolates, cigarros e revistas, em que também que se
A PÉ
Entre esses pequenos espaços de compra e venda, um deles me chamou a atenção. Acho
que era o menor de todos da rua. Uma placa amarela colocada na calçada indicava:
“Remonta-se: Calçados e Bolsas – Marinaldo”. E sentado, descosturando uma mala
cuidadosamente, seu Marinaldo estava lá. Um senhor que já aparentava bastante idade,
manuseava uma bela máquina de costura, tão antiga que parecia relíquia de museu, mas
em pleno funcionamento. Perguntei a ele há quanto tempo ele trabalhava ali.
Tentei ainda continuar a conversa, queria saber como ele havia aprendido a costurar, mas
não sei ao certo se por impaciência ou porque a máquina, agora ligada, já não o deixava
ouvir, ele parou de me responder e seguimos.
Na esquina com a Av. Tavares de Lira, encontramos Henrique Fontes, diretor artístico da
Casa da Ribeira e dramaturgo de nosso último espetáculo. Henrique caminhava com
Nena, uma curitibana que estava em Natal para um festival de teatro, ela também
trabalhava com arte e foi nossa companhia até o fim do dia. Estávamos indo, todos, para
o mesmo lugar: O Consulado Bar e Restaurante, afinal já eram quase 14h e ninguém
havia almoçado ainda.
CAPÍTULO TRÊS
138
138
A PÉ
Dei muita sorte em encontrar Henrique, ele é o único morador do bairro da Ribeira que
conheço, e durante o almoço aproveitei para ligar o gravador. Henrique aluga um
apartamento no mesmo edifício de Nalva Melo - Café e Salão, na Av. Duque de Caxias.
Ó, entre a Cidade Alta e a Ribeira eu acho que deve ter uns 7 anos, ou um pouco mais.
Morei. Morei nesse mesmo trecho aqui. Na subida da Junqueira Aires tem um prédio
chamado Ed. Beira Rio. Morei nele e morei numa casa por trás dele por três anos. E
ali no Bila, já tem 3 anos.
Primeiro que eu amo o centro da cidade. Eu acho o centro da cidade sempre o lugar
139 mais legal de se morar em todas as cidades. Por conta da história, por conta de uma
facilidade de locomoção. Uma sensação de estar na cidade, né? Mas eu já começo a
pensar em lugares mais sossegados. Bom, especificamente onde eu moro, que minha
janela é para um trânsito muito pesado. Queria um pouquinho mais de sossego, mas
não saindo daqui eu adoro essa parte.
E acho que muito ligado à essa coisa da história. Pra mim, a arquitetura é um negócio
que influência muito na minha vida, em estar em um lugar. Por exemplo, eu escolho
comer aqui não é só porque a comida é boa, eu tenho um bem-estar nesse lugar.
Você é daqui?
Eu sou de Manaus, morei em Recife, Rio, Natal, daqui meus pais seguiram, aí eu fui
pros Estados Unidos, voltei, fui de novo, voltei. Eu sou muito cigano. Agora, de uns 10
anos para cá que eu tô mais pacato cidadão. Mas, talvez por isso, eu busque tanto
essas histórias desses lugares ou esses lugares que contenham essas histórias.
E as lembranças que eu tenho, minhas memórias afetivas, bem, claro: Casa da Ribeira,
é aqui. Tenho uma ligação de 20 anos com esse projeto. Desde o começo, o sonhar
em ter o espaço.
Existe uma imagem muito negativa, por um lado, né? Desses Centros Históricos das
cidades que são tidos como violentos, perigosos, como áreas que as pessoas cometem
muito crime, num sei o que. O que não é verdade. Eu tô nesse espaço há 20 anos. A
casa, depois de 15 anos de aberta, o primeiro episódio aconteceu agora, aí o cara
entrou, mas não levou nada, procurou, procurou o que ele queria e não levou nada.
Eu nunca fui assaltado. Pra falar que eu fui abordado uma vez, fui abordado por um
menino aqui que é filho de seu Valdemar, viciado em crack. Eu o reconheci, e disse
CAPÍTULO TRÊS
“Cê num tá lembrado de mim mas eu sei que você é filho de Valdemar”, acabei só
conversando com ele.
Assim, também tem esse aspecto, eu acho que não é uma criminalidade, a daqui, no
nível de violência que se vê por aí. É mais um abandono. Ou então, as vezes é um
desespero mesmo.
Nos eventos, não. Nos eventos, claro, vem bandido de tudo quanto é canto, porque
tem muita gente e eles vem atrás de se dar bem.
Eu gostava muito do Rio, agora vou voltar a gostar, porque liberaram um pedacinho da
vista, eles tinham tapado e agora abriram de novo. Adoro aquele lugar ali. Gosto ali
daquela área da pedra do Rosário. Não lá em baixo, em cima.
Ali em cima da Capitania. Mas tem um mirante que fica em cima, que é da igreja, em
frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. É um mirante lindo e dá pra 140
140
ver o pôr do sol. Eu morei ali, né? Embaixo. Numa casa embaixo do mirante. Eu ia
muito ali. E adoro andar pelas Rocas, pelo movimento que as Rocas tem. Pra mim é o
bairro mais vivo dessa cidade, porque, a hora do dia ou da noite que você passar tem
gente na rua, nas calçadas. Três da manhã! Tem gente sentado na calçada, em frente
de casa, conversando. É muito rico.
Diferente daqui, pela noite, pelo menos quando não tem festa?
Um prédio que eu gosto muito, é o prédio da Tribuna do Norte, parece um labirinto por
dentro. Merece visitação, é muito legal. Ah, Nalva, também é um espaço chiquérrimo,
né? Que é no meu prédio. Às vezes, eu chego depois do expediente, tá lá rolando um
jazz na porta da minha casa. Eu imagino que se outros lugares tivessem mais qualidade
à noite, né? Mais vida à noite, seria massa. Sinto falta de um restaurante massa, aqui
a noite, seria legal. Não tem, realmente isso não tem.
Ah, eu sinto saudade das boates como eram antes, e claro, sinto saudade do Blackout.
O Blackout B-52 era o onde hoje é o Galpão 29. E pra mim é o marco da Ribeira. A
Ribeira me foi apresentada por Paulo Ubarana, que era dono desse lugar, que a gente
A PÉ
E tem relação com essa época em que a Rua Chile era muito mais frequentada?
Foi durante, assim, depois, porque a pintura rolou em dois momentos né? Foi depois
da primeira etapa. O pessoal se motivou mais, tal, veio, mas aí veio que não tinha
muito eco do poder público. O problema é que assim, o poder público fez uma falsa
promessa, né? Com essa coisa da pintura. Prometeu que ia revitalizar, todo mundo
acreditou, veio com força, e aí não andou, não teve investimento junto, não teve a
segurança prometida, a iluminação pública, acessibilidade e tarara, tudo que precisa
ter. Até hoje é assim.
Os meninos pediram pudim de leite para a sobremesa, eu, Marinalva e Nena compramos
141 água. Em seguida, nos despedimos de Henrique, ele ia viajar para São Paulo dali a pouco
e não havia mais tempo para conversa. A caminhada continuava, agora em direção à
Cidade Alta.
Subindo a Av. Câmara Cascudo, Lenilton atentou para outras lembranças. Me mostrou
uma casa onde, na sua juventude, foi espaço de ensaio, encontros e festas de “gente de
teatro”. E me fez enfiar a cara em um portão gradeado para ver o pátio de uma casa em
ruinas:
A Viúva Machado: diziam que ela comia o fígado das criancinhas. Que ela tinha uma
doença e para se curar ela comida o fígado das crianças. Ai aquela é casa dela, aquela
da esquina.
CAPÍTULO TRÊS
A rosa?
Sumia as crianças, e diziam que ela pegava pra comer. Mãe dizia: “ Você não pode
sair de casa não, se não a Viúva Machado vai pegar você! ” Era o bicho papão.
Esse espaço aqui é muito bonito, uma pena que durante a semana fique lotado de
carros de quem trabalha aqui por perto. A gente tem agora, a Praça André de
Albuquerque; o Palácio - a Pinacoteca, né? E mais na frente tem outros lugares que a
gente dá um giro - giro. Vamos?
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Caminhamos até a André de Albuquerque, pela paralela à Rua João Manoel, parando um
pouco para descansar e vislumbrar a vista do rio que a ladeira da Rua João da Matta
proporciona. Cruzamos a praça, indo em direção à praça Padre João Maria, atrás da
catedral.
Aqui tinha um monte de vela pra ascender. Ou as vezes tinha um monte de vela
apagada e uma acesa, aí a pessoa pegava e ascendia. Era uma coisa engraçada, porque
até os que criam e os que não criam, que não acreditavam em nada, vinham para
esses lugares para fazer. Eu passei muitas vezes e ascendi vela por aí. Agora não tem
a parte das velas como tinha antes.
Seguindo a direita, em uma via perpendicular à praça, Lenilton atenta para o nome da
rua.
Ó, isso aqui é o seguinte: o nome dessa rua aqui é Voluntários da Pátria, certo?
Sim, tô vendo.
Ai, o que era mais legal nessa rua. Aqui em baixo, funcionava o ZumBar, que era o bar
mais cult que você possa imaginar, da Cidade. E a gente zonava muito assim, “Onde é
que fica o Bar? Na Voluntários da Pátria! ”. Nós, que erámos os voluntários da pátria
que estávamos aqui.
A PÉ
Siiim, hahaha.
Era uma viagem só nossa, que só a gente sabia rir dessa piada. Ninguém mais sabia
rir dessa piada. E era aqui esse bar, dentro dessa casa aqui.
Essa?
Uma pequena casa residencial, branquinha de uma janela e uma porta, não aparentava
em nada ter acolhido um bar um dia. A sua direita, um estacionamento, gradeado, cinza,
atravessava o quarteirão.
Sim, aí olha a doidera. Ele na verdade, era aqui, onde tá derrubado. Eram duas casas
vizinhas, derrubaram uma delas. Essa casa (a que permanece) não sei se era do
proprietário, e aqui do lado era a parte do bar. Era uma casa, você entrava numa porta
como essa, era quase como se fosse a réplica dessa casa. E tinha um mini quintal,
como tem essa daqui. E lá ficavam algumas cadeiras e na parte da sala outras cadeiras.
143 E foi assim durante muito tempo, o ajuntamento dos malucos e artistas que você podia
imaginar na vida. O ZumBar era um ponto que agregava. Eu acho que aqui é o lugar
que eu mais gosto do Centro.
Dois quarteirões a frente, em uma rua paralela a que estávamos, a Rua Gonçalves Lêdo,
paramos em outro bar, esse ainda existente. No Bardallo’s Comida e Arte, sentamos
próximos a uma árvore que fica ao lado do portão. Pedimos suco de melancia com limão.
Nena estava adorando o clima de Natal.
Lenilton propôs que seguíssemos na mesma rua, adentrando à área residencial do bairro.
Entramos a direita, na rua Dr. Heitor Carrilho, e já podíamos ver, ao final, o branco e o
azul a Igreja de Santo Antônio com seu galo famoso lá em cima na torre. Continuamos,
agora na rua da igreja, a Santo Antônio, seguindo na direção sul, até a Travessa Coronel
Bonifácio.
Aqui ninguém imagina que são casas, entendeu? Eu acho isso esquisito. Quando eu
me toquei que aqui tinha casa, eu pensei “Gente. Nossa. Eu não sabia que a Cidade
tinha gente que morava”.
CAPÍTULO TRÊS
Entramos em uma série de pequenas e estreitas ruas residenciais: Rua Padre Calazans;
Rua Apodi e Rua Padre Pinto. Nessa última, um pouco mais larga e que leva à região do
Baldo, Lenilton nos levou até um grande muro com um grande portão de ferro, ambos
guardavam um terreno baldio.
A câmera descarregou na hora e não percebi, não tenho as palavras dele gravadas, mas
me lembro do conteúdo. O Cabaré de Maria Boa era um famoso bar e casa de prostituição
da Cidade Alta. Um ponto de encontro de homens e um ponto de referência do bairro.
Regressando um pouco, ainda na mesma rua, na esquina com a Av. Gov. Rafael
Fernandes, Lenilton lembrou da mãe.
144
144
Então, o ônibus vinha da Cidade fazia a curva onde tá esse carro ai e aqui tinha uma
parada de ônibus. Quando eu vinha com mamãe pra Natal para fazer alguma coisa,
sei lá, ir pro médico, ou outra coisa parecida, que vinha pra Cidade, a gente vinha
pegar o ônibus aqui. Esse muro dessa casa era mais baixo. Bem mais baixo. E tinha
um pé ali de jasmim, que botava os galhos bem grandes pro lado de cá. E mamãe vivia
querendo pedir a dona da casa um galho de jasmim para plantar. Mas nunca coincidia
da mulher tá perto do muro, chamar e pedir, ou sempre o ônibus vinha antes dela
tentar chamar. Aí, é essa a história.
Seu Bosco se aproximou com aquela segurança de morador antigo. Ele gostava de falar.
Um senhor de 70 e poucos anos, já vivia ali há “muuuuuito tempo”, conhecia todo mundo
A PÉ
e todo mundo conhecia ele. Chegou dando um conselho: “Não apontem celular e câmera
lá pra baixo, que eles vem tudo buscar.” Seu Bosco se referia a comunidade do Passo da
Pátria. Foi a primeira vez em todo o trajeto que alguém nos falava de uma maneira
pessimista sobre a segurança do bairro. Ele nos acompanhou de volta até a Praça João
Tibúrcio, próxima à André de Albuquerque. No caminho foi reclamando da vida e dos
problemas do bairro.
Passamos em frente a Pinacoteca, onde Lenilton trabalhou por um tempo. Do outro lado
da rua, a Prefeitura brilhava, era puro LED33. Av. Ulisses Caldas e depois à direita na Rua
Vigário Bartolomeu. A rua dos sebos.
Antes, passamos em frente ao Cine França, que segundo Lenilton, até hoje exibe filmes
pornô: “Lugar de encontro de rapazes, sabe?”. Paramos na Casa do Cordel, depois
seguimos em frente: as lojas de festas ainda exibiam fantasias de halloween. Viramos à
esquerda, na Rua Coronel Cascudo. O Bar da Meladinha estava lá, iluminando a esquina
com o Beco da Lama.
32
A Casa do Estudante é uma instituição de apoio a estudantes do estado do Rio Grande do Norte,
construído para abrigar o antigo Hospital da Caridade, em 1856, a Casa do Estudante é um edifício
eclético tombado como parte do Patrimônio Arquitetônico em Natal em 1993.
33
Light Emitting Diode, em inglês, é usado para a emissão de luz em locais e instrumentos onde
se torna mais conveniente a sua utilização no lugar de uma lâmpada.
CAPÍTULO TRÊS
146
146
A PÉ
Nazih era um libanês chato que era dono desse bar aqui. Antigamente não tinha nada,
só meladinha. Hoje que já tem essas coisas: água, refrigerante, num sei o que lá. Antes
era só meladinha. Meladinha é uma bebida de cachaça, mel e limão. Quando Nazih
era vivo ele quem fazia. Ele fazia uma por uma, demorava muito pra chegar. E era
diferente, sabe? Agora é o filho dele quem cuida. Agora eles botam a cachaça, o mel e
o suco de limão que já fica pronto, guardado ali em baixo. Não é a mesma coisa, sabe?
Quando era Nazih, fazia uma por uma, assim (fazendo o movimento com as mãos),
espremia o limão na hora. Ela vinha espumando, sabe? Era muito bom.
Uma vez, uma amiga nossa veio para um congresso na universidade e eu trouxe ela
pra cá. Ela era viajada, conhecia muitos lugares. Mas ela me pediu que eu levasse ela
pra um canto que só tivesse aqui em Natal. Porque ela dizia que as vezes você vai em
147 um lugar que parece o mesmo de outras cidades, sabe? Que não tem nada de diferente.
Como um Mcdonalds da vida. Que tem em toda cidade. Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela
gostou.
Já era quase 18h. As lojas estavam fechando. Muito movimento de gente indo para casa.
Samba?
E terminamos o dia, assim, sentados no Bar da Meladinha, esquina com o Beco da Lama,
cada um com o seu copinho de cachaça, mel e limão, a não ser Marinalva, que estava
dirigindo.
CAPÍTULO TRÊS
PASSEIO 2. GADELHA
05 de novembro de 2015.
Conheço Luiz Gadelha desde os tempos do meu ensino médio. Mas, talvez ele nem se
lembre de mim como uma das garotinhas daquele grupo de teatro do CEFET34, o qual ele
fazia as trilhas sonoras dos espetáculos por amizade à Marinalva (a da entrevista anterior),
que se esforçava em dirigir um grupo de adolescentes cheios de espinhas, e que hoje é
minha colega no Grupo Estandarte.
34
Atual, IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte, o antigo CEFET - Centro Federal de
Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte, foi onde cursei o curso técnico em Edificações
durante o ensino médio, e comecei a participar do grupo de teatro Falas e Pantomimas com outros
alunos da instituição.
A PÉ
a frequentar os ensaios do Estandarte com assiduidade e hoje faz parte daquele grupo que
é, para mim, quase uma segunda casa. Sendo assim, como gente de casa, eu o convidei
para caminhar comigo em prol deste trabalho.
Gadelha não demorou muito a chegar e iniciamos então, os três, uma troca de opiniões
149 sobre Natal e sobre como nos sentimos em relação a ela. Como a vivenciamos, ou não, e
de como, às vezes, não a sentimos nem nos sentimos parte dela.
Mas Natal é uma cidade esquisita, porque assim, com os americanos aqui, criou-se
umas doenças. Uma que foi o lance do pioneirismo, essa história de ser “o primeiro”
num sei o que lá, num sei o que. A primeira contaminação do ponto de vista do
estrangeirismo de algumas coisas: do chiclete, da Coca-Cola. E também a mudança
dos nomes das ruas em detrimento da facilidade dos americanos, botar: 1, 2, 3... Pra
facilitar a locomoção deles. Então você perdia a identidade própria da rua que era Rua
Fulano de Tal, num sei o que, e passou a ser 1, 2, 3, 4.
Mas a gente tem muita, ainda, assim, “coisa” com Natal. É difícil admitir que gosta das
coisas daqui. É difícil, muito difícil. A gente vê outras cidades que tem muito orgulho.
Você vê uma pessoa de Recife...
Você vê uma pessoa da Bahia! Nossa senhora! Eles amam demais a Bahia.
Mas eu acho que Natal é essa cidade metida a besta que tem uma pretenciosa
cosmopota, cospomotolinização, como é que é? Hahahaha. Cosmopolanitalidade.
Como é que chama isso?
Papo vai, papo vem, sentados debaixo de uma árvore, ficaríamos ali o dia todo. Mas o
passeio nem tinha começado, precisávamos ir.
Vamos!
Então, a gente pode começar por aqui mesmo. Só o que tem aqui é história! Aqui, aqui
e ali. (Apontando para o teatro, para a praça e para alguns edifícios em volta).
Então iniciamos de fato a caminhada. Atravessamos a rua que contorna a praça, passamos
pelos ambulantes que ocupam as paradas dos ônibus e ainda na mesma calçada, Gadelha
apontou para uma janela no andar superior de um dos prédios que margeavam a praça.
Sei.
É o único canto colorido que tem. Tem ali “Beto Lanches” e em cima era um lugar de
uma galera de teatro que inventou de fazer uns sarais, umas coisas com música. Eles
ocuparam esse espaço.
Quando isso?
Em 2008.
A PÉ
151
CAPÍTULO TRÊS
Eu me apaixonei loucamente no dia que eu vim aí. Eu nunca vou esquecer. Mas,
menina, isso aí é desse jeito, até hoje, quase caindo.
Mirando um pouco mais à frente e cobrindo os olhos, pela luz do sol que baixava a oeste
e nos cegava um pouco, ele continuou.
Tô.
Tem.
Ali, no último andar, era um lugar de uma galera bem alternativa que fazia festas, fazia
eventos e que trabalhava com publicidade. Era um lugar muito legal. Depois virou um
estúdio de gravação. É linda a vista que tem! Porque todos os andares, no fundo, têm
uma varanda. 152
152
Dá pra ver o rio?
Continuamos, pela Rua Sachet, e seguimos a direita para entrar na Rua Dr. Barata.
Olha ali em cima, o ano em números romanos, você sabe ler? (Apontando para os
números em cima de uma janela, que provavelmente indicavam o ano da construção
do edifício).
Eita. Olha aquele outro (aponta para o frontão do segundo andar do edifício vizinho).
Que lindo. Eu acho tão bonito isso.
É lindo, mesmo.
Ó, aqui nessa esquina era uma barbearia, que eu lembro porque funcionou até bem
pouco tempo. E o primeiro panfleto de show que eu fiz foi em uma gráfica que tinha
aqui. Uma bem pequenininha. Acho que era essa porta aqui. Mas não tem mais.
Você sente essa diferença, de que antes existam mais lugares abertos aqui?
A PÉ
Sim. As pessoas vinham muito para a cidade, né? Pro centro da Cidade e pra Ribeira.
Depois que teve a inauguração dos shoppings - Natal Shopping, Midway - tudo
concentrou lá. As pessoas deixaram muito de vir pra cá. Então diminuiu bastante, né?
Nesse momento já estávamos na esquina com a Av. Tavares de Lira. E Luiz chamou a
minha atenção para o rio, à esquerda.
Sim, sim.
Ali, tinha um lugar que tinha um show, um evento que se chamava: Pôr do sol, num
sei o que. Você cantava num barco.
Era ali, o barco saia dali. E todo mundo entrava, e tinha um show, voz e violão, num
153 barco. E ficava todo mundo andando no rio. Era bem legal.
Aqui acontecia, eu acho que você já deve ter ouvido falar, a Rua da Casa.
Rua da casa? - Entendi que se referia a Casa da Ribeira, mas não conhecia.
E quem frequentava?
35
Criado em 1993, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare desenvolve desde então atividades
artísticas na cidade de Natal.
36
Criado em 1982, o Grupo Galpão é uma das companhias mais importantes do cenário teatral
brasileiro, cuja origem está ligada à tradição do teatro popular e de rua.
CAPÍTULO TRÊS
Então, não se tinha esse olhar pra artista daqui não. Era só artista que consumia artista
daqui. Ou quem era da UFRN, que trabalhava com arte, era uma coisa muito fechada,
porque as pessoas não queriam saber mesmo não.
Olha aqui também já foi um espaço que a gente usou pra ensaiar, nessas janelinhas.
As janelas de madeira do grande edifício branco na esquina da Rua Frei Miguelinho com
a Esplanada Silva Jardim estavam fechadas, e assim como ele, transmitiam uma sensação
de esquecimento.
Uma galera se apropriou disso aí numa época. Várias pessoas usavam pra ensaiar. É
bem legal lá dentro. É imenso.
Teve uma época que revitalizaram aqui, né? Isso foi público.
Era. Foi principalmente na Rua Chile. Tudo funcionava e era muito cheio mesmo. E aí
todo mundo que tinha vontade de fazer algum trabalho artístico, queria tocar aqui. Era
um privilégio, viu? Era uma coisa muito importante. E eu vinha e ficava sempre
pensando: “Meu Deus, se eu disser pra alguém que eu toquei em algum lugar na
Ribeira?” Nossa, era muito importante.
Uma das primeiras vezes que eu cantei, foi um palco imenso aqui. Não me lembro
qual era o evento, mas era muita mesa espalhada aqui e um palco. E eu cantei. Voz e
Violão. O Blackout37 era aqui (apontando para uma das portas que hoje compõe o
Galpão 2938). O Blackout era só isso, o Galpão não existia não.
37
Blackout: Bar e casa de espetáculos localizada na Rua Chile entre 1997 e 2004.
38
Galpão 29: Espaço de festas e shows noturnos, atualmente ocupa o espaço onde anteriormente
se localizava o Blackout.
A PÉ
155
CAPÍTULO TRÊS
Frequentava! Era uma das coisas mais maravilhosas de Natal. Todo mundo queria tocar
aí. As melhores bandas vinham tocar. As melhores pessoas vinham pra cá: jornalistas,
tudo, tudo. Tocar aí era alto nível! Eu só consegui muitos anos depois.
Ele foi seguindo para a lateral do Terminal Marítimo de Passageiros, onde ainda é possível
ver o rio, mesmo que por trás de uma grade.
Era.
Olha, era ali que eu estudava. - Luiz apontava para uma rampa que saia de um
pequeno edifício antigo, branco com detalhes pretos. Levava uma espécie de letreiro
acima das portas com nome “CENTRO NÁUTICO POTENGY” apontado para o rio.
156
156
Han? Que você estudou?
Sério?
Vai até onde quiser. E o professor fica olhando. AÍ uma vez, eu fui até lá, tá vendo?
Onde tem o mato?
Tô.
Encalhei!
Hahaha.
Porque tinha muita lama. E eu não conseguia sair, o professor teve que ir me buscar.
Vamos lá, quero te mostrar lá dentro.
Demos a volta, passando novamente pela Rua Chile e adentramos no Centro Náutico
Potengy. Algumas pessoas treinavam em aparelhos que simulam as remadas. Vários
A PÉ
barcos estavam empilhados em uma espécie de prateleira para barcos. O espaço era um
grande ambiente sob treliças de madeira e uma cobertura aparente de telhas cerâmicas.
Ao fundo, o rio entre duas portas. Fomos em direção a ele.
Aí, era aqui que a gente estudava. Bem cedinho, 7h da manhã. A vista era linda, né?
Mas aí construíram isso (se referindo ao terminal marítimo), matou um pouco, né? E
eu não sei como tá sendo as aulas, que tá meio fechado o caminho. Antes o professor
tinha mais visão dos alunos né?
É um esporte muito bonito, muito cheio de filosofia, é muito legal o contato com a
natureza, né? Mas a água é muito suja. Na época que eu vim, eu vi bicho morto, vi
fezes, aí eu fiquei um pouco assim, desisti, não consegui não. Tinha um barco da
prefeitura que tirava lixo todo dia daqui. Todo dia. Todo dia. Mas, muitos, muitos quilos
de lixo. Porque tudo vem pra cá, né? De esgoto.
157 Nossa, é impressionante. Parece outra cidade. É linda, é muito linda. Mas muito
malcuidada também, né?
E eles estão aqui, né? (Apontando para o edifício). Há anos resistindo nessa escola.
Nesse prédio velho. Eu acho aqui um lugar muito especial, muito roots39 ainda, do jeito
que era antes. O cara daqui é muito legal e ele leva a história do centro náutico com
muito amor, mesmo sendo muito desvalorizado. Fico pensando o quanto ele é
pressionado pra sair daqui. Não sei se tem muito aluno, e assim, é um esporte que
depende muito da natureza, né? Não é todo mundo que se dispõe a isso.
Aqui é o Do Sol, incrível. Essa semana tem festival de música aqui. Eles fecham a rua
daqui até lá no final. Pronto, na época da revitalização, todos esses lugares ficavam
abertos.
Aqui ficava aberto (se referindo ao Do Sol), ali se chamava Armazém do Cais
(apontando para a casa de Ferreira de Itajubá), aí lá era o Blackout, acho que esse aqui
39
Roots significa raiz, em inglês. É uma gíria que pode significar algo como “base” ou “essência”.
40
O Centro Cultural Do Sol Combo, casa especializada em música autoral desenvolve atividades
relacionadas à música, presente no cenário cultural da Ribeira desde 2004.
CAPÍTULO TRÊS
também é outro (para uma casa verde fechada). Eu sei que concentrava gente. As ruas
cheias de mesinhas e cada lugar uma atração, cada lugar tinha uma coisa. Desde lá
do começo da rua.
Era muito bom. Eu tava começando na época e o sonho era tocar aqui. Mas
abandonaram, né? Muito. Se tornou muito perigoso, muito distante.
Eu sinto que é perigoso. Eu já fui assaltado aqui. Aqui mesmo onde a gente tá agora.
Continuamos pela Rua Chile, Gadelha ia me guiando. Passamos por uma sessão de
fotografia de uma adolescente, me pareceu algo como fotos para um álbum de 15 anos.
E algumas crianças vestidas com roupas de balé brincavam na rua em frente a um casarão
de onde se ouviam vozes de muitas pessoas. 158
158
Aqui, é a EDTAM – a Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão, muito bonito esse
prédio, já ensaiei aí. Mas assim, hoje em dia, a maioria das coisas daqui da Ribeira é
de comércio de peixe, né? (Estávamos passando em frente a uma empresa de pesca).
Agora só falta te mostrar a Rua Buraco da Catita.
Voltamos para a Av. Tavares de Lira, caminhando em direção da Rua Câmara Cascudo,
esquina com o Buraco da Catita.
Pronto, aqui já foi um dos maiores sucessos de público da Ribeira. Do nada, um samba
e todo mundo ficava aqui. Cê já chegou a vir?
É, agora fecham, né? Porque antes era totalmente democrático. Tudo, né? Inclusive a
música.
Entravam! Era tudo aberto, tudo normal. E era bem improvisado, assim, uma mulher
numa mesa vendendo ficha de cerveja.
Aqui? Sério?
A PÉ
Era! Não tinha o que tinha hoje não. Era um lugar bem simples. Tinha um isopor com
cerveja e a mulher vendendo. Aí vendia uns caldinhos, umas coisas, e a galera ficava
aqui.
Já! Mas a rua no começo não era assim, com esse calçamento de rua, era como essa
de paralelepípedo, igual a esses becos. Foram eles que revitalizaram, né?
A Rua do Buraco da Catita foi o último lugar que Luiz escolheu para me mostrar. Depois
disso fomos voltando para Praça Augusto Severo, quem sabe encontrar Lenilton outra vez
e ir para casa. No caminho, revi algumas perguntas que eu não tinha feito.
Ah, Gadelha, não te perguntei, o que você gosta de fazer hoje, por aqui?
Isso.
Pra mim, as coisas são muito ligadas às pessoas. Cada canto tem uma situação que
eu vivi com alguém, mas não é saudade, é alguma coisa que marca. Sabe?
CAPÍTULO TRÊS
45. Personagens
44. Vista interrompida do rio,
da 3ª visita de campo.
Bar Buraco da Catita.
Lenilton Teixeira, 2015.
Acervo pessoal, 2015.
160
160
Além de Tárcio, foram entrevistados: o advogado Aderbal Ferreira Silva, o músico Pedro
Mendes, 53; o professor aposentado Antônio Capistrano e o proprietário do Sebo Balalaika,
Severino Ramos. A seguir, a transcrição dos principais momentos das entrevistas que
aconteceram na manhã de um sábado nas dependências do Sebo Balalaika, além do relato
do pequeno passeio acompanhado realizado com Tárcio pelas adjacências do Beco da
Lama.
A PÉ
7 de novembro de 2015
No final da visita 01, enquanto tomávamos a meladinha no antigo bar de Nazih, Lenilton
me falava sobre a Samba - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, e
prometeu me apresentar ao presidente dela, Tárcio Fontenele. Prometeu, teve que cumprir.
Marcamos para 7 de novembro, sábado pela manhã, às 10h, em frente a Capitania das
Artes. De lá, subimos a Av. Câmara Cascudo em direção à Cidade Alta. Eu imaginava que
íamos encontrar Tárcio no próprio beco, mas depois de passar pela Prefeitura na Av.
Ulisses Caldas, entramos na Rua Vigário Bartolomeu, em direção ao Sebo Balalaika.
Nesse sebo?
161
Na porta do sebo algumas pessoas conversavam e Ramos, ao qual fui apresentada assim
que entramos, proprietário do estabelecimento, organizava e limpava alguns livros. Fomos
em direção ao final da loja e por trás de uma mesa repleta de equipamentos de som,
computadores e material de escritório, estava Tárcio. Lenilton me apresentou como “aquela
menina que eu tinha lhe falado, Bárbara Babina”.
Poooode, omh.
Mas eu sou muito novo. Tá bom de você conversar com um caba de uns 80 anos, uns
70.
Mas as memórias que ela fala, não quer dizer velhice. Está mais relacionada aos afetos,
as vivencias. 162
162
Eu entendi! Eu entendi. Dá pra eu fazer aqui algumas coisas, mas eu digo assim,
Dunga, por exemplo, era muito bom, né?
Nesse momento o senhor dos cabelos brancos, já havia se sentado próximo a mim e
interviu na conversa.
Dunga é “um caba”41 que suja uns pano de tinta e diz que é pintor.
41
“Um caba”: um cabra. Expressão popular nordestina, que se refere a “um homem”.
A PÉ
Pronto, óia, ele pode te contar mais coisa - Entendi que Tárcio iria passar a bola do
discurso para quem ele pudesse.
Da Ribeira ali, da rodoviária antiga pras Rocas, lá pra Escola Alberto Maranhão, que
era depois do mercado.
Pronto, era por ali. Então, esse percurso eu fazia toda noite e vinha, era tão tranquilo
Natal que eu vinha a pé de dez horas da noite, das Rocas pra cá e num tinha problema.
Um assalto era um negócio mais…; então a gente tinha essas coisas da boemia, uma
boemia sadia, que as pessoas, figuras de nome aqui no estado, como eu sei de Newton
CAPÍTULO TRÊS
Navarro e outros mais, escritores, que ficavam ao redor de uma mesa contando história,
bebendo, se divertindo. Não havia nada dessa história de violência. Você tinha uma
Natal ainda tranquila. E isso aqui, o Centro Histórico de Natal, ó, daqui pra Ribeira até
as Rocas, havia cultura. Uma coisa normal. Você não tinha esse business de butá um
palco, num sei o que. Ah! “Os caba” tocava com um violão. Eu toquei muito violão de
noite, na porta do prédio, juntava aquele pessoal tudo conhecido, sabe? Aí você tinha
essa coisa na rodoviária, umas figuras que andavam lá. As festas eram nos clubes.
Você tinha o América que era da elite, você tinha a AABB42 e você tinha o ABC43, tinha
o Atlântico44, Natal era essa coisa bacana, sabe? Você andava a pé.
Tá doido! Era muito mais vivo. Hoje você tudo que cê vai fazer tem que ter uma verba,
butá um palanque do tamanho do mundo, sabe? Então você tira o artista popular de
fazer a performance espontânea. Que é o que a gente tá querendo trazer pra cá de
volta. O pessoal da Samba tá querendo fazer eventos pra cento e cinquenta pessoas,
pra cem, fazer pequenas performances, num barzinho, uma coisa que não tem uma
preocupação. Como antigamente que a gente chegava aqui em Odete, era uma onda a
gente vir tomar um porre aqui em Odete. Era aquela coisa do tira gosto, da cachaça. A
164
164
meladinha de Nazih.
Pronto, a meladinha de Nazih era fantástica! E Nazih era aquele dono de bar chato que
a gente ia lá porque ele era chato. Ele dava um carão na gente por nada. “Num sei o
que num sei o que, quer mais não?” Esses negócio, sabe? Mas era por Nazih ser assim,
e a meladinha dele só quem fazia era ele, que a gente frequentava.
Ramos, o proprietário do sebo, se aproximava dos fundos da loja, onde nós estávamos, e
Tárcio, mais uma vez, tratou de me arrumar um novo entrevistado.
Ó, Ramos, Ramos faz tempo que ele tá aqui. Pelo centro aqui, você tá aqui faz quanto
tempo?
42
AABB: Associação Atlética Banco do Brasil, fundada em 1945, localiza-se atualmente na Av.
Hermes da Fonseca, Tirol.
43
ABC: ABC Futebol Clube fundado em 29 de junho de 1915.
44
Atlântico: Clube dos Suboficiais e Sargentos Marinha.
A PÉ
Expliquei para ele qual era o objetivo da entrevista e ele de pronto me contou sobre uma
época da qual ele sente falta.
Agora, o Centro já foi mais prazeroso quando havia as livrarias de Natal. As primeiras
livrarias de Natal e os cinemas, os primeiros cinemas. Aí era muito prazeroso o Centro
da cidade. O Nordeste aqui, o Cinema Rio Grande, o Cinema Rex e as livrarias. As
primeiras livrarias de Natal foram aqui na Rio Branco, a livraria Universitária e a livraria
Opção. Eu trabalhei em ambas as livrarias. Então, nessas livrarias, acontecia no sábado
o encontro dos intelectuais, os poetas, os escritores. Também tinha a Clima, lá na
Ribeira. Aí o centro tinha uma vida cultural mais ativa, mais bonita. Ó você pega, vê
um filme no Nordeste, no Rio Grande, tinha um cinema de arte no Rio Grande, nos
domingos de manhã. Aí o centro era mais bonito, mais prazeroso.
E quando foi que você começou a sentir que essa vida bonita e prazerosa começou a
cair?
Eu não vô sair do centro não. Eu comecei aqui e vou ficar por aqui. Até o final. Eu não
vô levar meu sebo pro shopping.
Neste momento alguns clientes adentravam o sebo e Ramos levantou-se para atendê-los.
Assim como clientes, percebi que algumas outras figuras chegavam como visitar o espaço,
mas ao mesmo tempo para reencontrar velhos conhecidos, como se ali fosse um ponto de
reencontro. Um deles se dirigiu a mim, perguntou o que eu estava fazendo ali, expliquei e
acrescentei: “ouvindo pessoas”, ele disse que poderia me ajudar, que conhecia bastante o
centro histórico.
música há mais de trinta anos, e conheço muito dessa geografia que você tá estudando.
Eu posso lhe falar, porque eu gosto muito, das ruas, dos prédios.
Do centro? Olha, eu gosto de andar não muito na parte mais comercial porque já
acostumou demais, né? Eu gosto dessas ruazinhas que eu chamo “Olindinha”, né?
Olindinha?
É porque parece com as coisas de Olinda (PE), esses bequinhos, só que três séculos
depois. Então eu gosto muito daqui. Eu me lembro que meu avô dizia muito pra mim,
a primeira vez que ele veio a Natal foi em 1913, né? Pra você ter ideia. Ele já faleceu
há muitos anos. Mas ele dizia que Natal era linda. Os casarios da antiga Ribeira,
subindo, todos eram bonitos. Aí as pessoas começaram a descaracterizar tanto, sabe?
Que é uma pena. Eu vejo as fotos eu fico me vendo aqui no bonde subindo aí, né? Mas
eu sinto como se Natal não observasse, sabe? A minha música mais popular diz isso,
fala um pouco disso. Ela fala assim:
166
166
Que aqui não tem avenida São João
Eu fiz essa música, Linda Baby. Então, eu falo exatamente disso, o que me magoa é
assim, eu quero te dizer em magoar não é falando em tristeza, mas é assim é esse
aspecto que eu acho que o Centro tem e assim ele vai sobrevivendo e os prédios vão
caindo, sabe? Mas eu acho muito bonitinho isso aqui. Eu gosto muito da Rua da
Misericórdia, que eu acho que é o nosso píer, né? Pra ver a cena mais bonita do dia
em Natal é o pôr do sol, o nascer é muito bonito, mas o pôr do sol vai avermelhando a
cidade por lá.
É, aquela que tem um paredão. O prédio da Casa do Estudante, que você falou, aquilo
é uma nobreza para o que a gente tem. Ele é uma nobreza, já já vai desabar! Tem uma
história, mas vai se escorregando.
A PÉ
Agradeci e nessa hora, chamei Tárcio para conversar, ele que já havia fugido de mim
algumas vezes, meio que desacreditado da importância de suas experiências.
Mas Tárcio, deixa eu conversar com você. Já falei com todo mundo e ainda não falei
com você. Me conta um pouco da sua relação com o Beco da Lama.
Assim, é porque minha mãe, minha mãe trabalhava na Praça Padre João Maria
vendendo artesanato, certo? Isso em, sei lá, há uns vinte e tantos anos atrás. Aí eu
sempre vivia aqui no Beco, aqui no centro, na verdade. Eu sempre andei por aqui.
Então, começou por aí, agora o que é que muda? Nazih que não tem mais, Odete aqui
que o pessoal ia muito.
Era, era o Bar da Odete. Aí eu digo assim, o que eu tenho mais assim de coisa são
mais os bares, entendeu? E a convivência de entrar na catedral na época que a nova,
entendeu? Essas pequenas coisas de ficar por aqui andando, desde a época que eu era
167 mais rapaz até hoje eu ando por aqui.
É que é assim, a questão de eu conviver muito por aqui, então, a Samba é uma coisa
que é daqui. A Samba tem vinte ou vinte e um anos. E o único que precisa na verdade
é do poder público pra fazer alguma coisa, ela não tem receita própria, não tem como
sobreviver assim sozinha. Ai a gente faz algumas coisas sozinho, faz outras coisas. Ó,
em dezembro agora a gente vai fazer o Carna Beco e o Pratodomundo que é o primeiro
festival de gastronomia daqui do estado, entendeu? Tem 12, 13 anos, o Pratodomundo.
Então é o que, os donos dos bares que apresentam suas receitas, né? A galera sai
provando aí, a gente bota os jurados e são três sábados. Aí no último sábado tem show,
tem eventos com música.
Depende, né? Teve uma época que já teve mais gente, né? Mas vem.
Não, não. Vem pessoas novas, entendeu? Vem pessoas novas provar, vem conhecer.
E esse ano a gente vai introduzir a meladinha, cê já foi tomar a meladinha ali?
Já, já fui.
Pronto, a gente vai tentar fazer com a meladinha também, começar um festival de
meladinha, sabe?
CAPÍTULO TRÊS
É, é na época de Nazih mesmo. Uma coisa assim quando a pessoa fala em Beco da
Lama, já lembra de Nazih. Ah meu deus, deixa eu ver, eu devia ter assim, uns vinte
tantos anos. Então já faz uns vinte anos que eu vinha aí em Nazih. Mas assim, o que
eu gosto mesmo da questão do centro é a questão que eu sempre passava ali aí tinha
um cara tocando violão, tinha um poeta recitando, aí tinha, como é nome daquele caba
da caixa de fósforo? Hein Ramos? Que ficava aqui, omh.
Isso, Mário Solinha. Então, esse senhor me chamava muita atenção. Ele sentava, e eu
passava, eu novo, e ele ficava com a caixa de fósforo tocando um samba, samba. Ai
pronto, tinha Maínha, que às vezes você pegava ele tocando sax, entendeu?
Continua, continua, mais assim hoje tá muito essa indústria do evento, tem que pedir
uma licença, num sei o que. Aí, a questão do espontâneo, assim, tem, tem, mas é 168
168
menos, bem menos.
O senhor da pele vermelha, o qual eu ainda não sabia o nome, voltou a se aproximar e
entrou na conversa.
Há poucos dias, o menino aqui do Café São Luiz45 levava uma velha guarda pra lá,
com violão, cavaquinho, pandeiro pra fazer chorinho, era fantástico. Todos bem
empregados, sem cobrar nada, levava uma vasilhazinha pra alguém da uns trocados
pra eles beberem.
Como assim?
Por que assim, o melhor lugar de Natal pra ter crack é esse Beco. Porque o Beco,
assim, tem gente que mora aqui há 50 anos e num conhece esse beco. Porque passa
pra cá, passa pra cá, passa pra cá e num entra no Beco.
45
Fundado em 1937 o Café São Luiz Grande Ponto está localizado na Av. Princesa Isabel, foi
reformado e reinaugurado em 29 de novembro de 2013.
A PÉ
Não, porque não precisa, você não tem necessidade de entrar nesse beco. Então você
passa e não precisa nem olhar. Você num vê. Você passa de lá pra cá você num vê!
Então a gente tem uma preocupação de quê? De que se começar a proibir evento, de
começar a proibir os bares abrir, isso aqui vai tomar lugar pra quê? Pro abandono. Você
tem uma vida aqui muito grande de alimentação. Mas a vida noturna, praticamente
não tem. Tem assim, algumas coisas. Pronto, eu ando por aqui muito bem, que eu
vivo por aqui há num sei quantos anos, mas eu acho que outras pessoas que num
conhece aqui deve ficar assustado. O que é que acontece se começar a não movimentar
isso aqui? Se começar a ficar abandonado essa coisa aqui, talvez a gente perca pra
droga. Como aí, a Praça Padre João Maria até um dia desses, tava. Então tem umas
coisas aqui que a gente tem que ter um resgate. A questão da iluminação desse beco,
e de tornar um calçadão. É uma coisa importantíssima pra gente. A proibição de carro.
Eu te levo lá.
169
No caminho até a porta, parei para perguntar o nome do senhor de cabelos brancos e pele
vermelha que tantas histórias me contou.
Olhe, uma vez uma me perguntou isso lá em Brejinho e eu disse: O nome do senhor é
Jesus!
Ai desculpa!
É brincadeira! Eu sou senhor mesmo. Meu nome é Aderbal Ferreira Silva. Eu sou o
advogado, poeta, brincante, cantador, precursor da irmandade dos galegos feios do
Brasil! Eu me auto denomino assim.
Ajuda essa moça aqui na tese dela ali. Dê uns minutinhos pra ela conversar com você.
CAPÍTULO TRÊS
170
170
A PÉ
O senhor da voz serena e de fala correta, de boina e óculos de grau me acompanhou até
o final da loja. No caminho, passamos por Ramos, que anunciou: “Esse aí foi o precursor
das livrarias. Quando ele tava saindo eu tava chegando nas livrarias”. E foi assim que
iniciamos nossa conversa.
A livraria universitária era ali na Rio Branco, né? Era a grande livraria de Natal. Do
Nordeste. Era conhecida como o ponto de encontro da cultura potiguar. Lá a gente
reunia todos os dias, mas principalmente aos sábados, ia a intelectualidade de Natal,
toda. A velha e a que tava chegando: Vicente Cerejo, Franklin Capistrano, meu irmão,
a turma de esquerda, praticamente todos frequentavam a livraria também. E Natal, o
Centro de Natal, nos anos (19)60 passa a ser o principal. Porque até os anos 50 era a
Ribeira.
Você sabe dizer qual sua primeira lembrança daqui, do Centro ou da Ribeira?
Olhe, a minha primeira lembrança é da Ribeira, que eu morava nas Rocas. Papai e
mamãe eram funcionários dos correios e trabalhavam ali na agência da Ribeira, na
agência central, ainda existe. E eu vinha muito das Rocas em 1952/53, eu tinha 6, 7
anos e eu ia muito pra Ribeira, aí eu andava pela Ribeira, né?
Ah, pelas ruas da Ribeira, a Dr. Barata, porque era muito movimentada. Fervilhava de
gente, né?
De dia e de noite?
De dia e de noite, mas eu, na minha idade, eu vinha mais de dia. De noite eu comecei
a andar mais a partir dos anos 60. Nos anos 60, a gente tinha um prefeito que era
uma figura extraordinária. O maior do Brasil.
Qual?
CAPÍTULO TRÊS
Era Djalma Maranhão. Djalma Maranhão fez um trabalho extraordinário. Que era um
prefeito que tinha uma visão progressista das coisas, tinha um compromisso com a
cidade. Com a Arquitetura, com a preservação do patrimônio histórico da cidade, né?
Mas a cidade acabou-se. Natal tinha muitos prédios bons, bonitos, né? Destruíram e
vem sendo destruídos irresponsavelmente sem que as autoridades tomem uma
providência. Eu passei agora na Praça André de Albuquerque, essa praça aqui da antiga
catedral, aquela praça ali era o canto da gente ir pras festas da padroeira de Natal. Ali
tava armado os parques de diversões, né? As barracas, aqueles alto-falantes
transmitindo músicas e oferecendo às pessoas que tavam passeando, né? E tinha
também na Praça André de Albuquerque, Djalma Maranhão construiu, alguns
equipamentos que o golpe militar destruiu. Que era a galeria de arte. A galeria de arte
era o local de exposição e vinha gente de todo canto pra expor, Brennand46 veio pra
cá. E além da galeria de arte tinha a concha acústica, no centro da praça, que era onde
era apresentado os corais, os recitais. E tinha a biblioteca pública, que uma biblioteca
fixa e tinha uma biblioteca volante que passava pelos bairros de Natal. Além de uma
preocupação imensa com a questão do folclore, das coisas populares, né? E Djalma
era cercado por essa turma: Newton Navarro, Dorian Gray, Câmara Cascudo, Dr.
Roberto Furtado que era secretário dele, Carlos Lima, Hélio Vasconcelos que depois foi 172
172
secretário da educação, você tinha um grupo de jovens e intelectuais mais idosos que
faziam parte do governo de Maranhão. E eles investiram muito na cidade de Natal.
Natal era uma cidade muito pujante, muito fértil em termos de movimentação cultural,
artística e cultural. Quer dizer, Natal era isso.
Não. Vai desaparecendo. Claro que cada geração tem a sua cidade, a minha cidade
acabou-se. Passou, né? A gente fica com saudade dela, querendo ver se retorna, mas
hoje é o shopping, né? Hoje não é mais o grande ponto. Cê sabe o grande ponto?
É, na João Pessoa.
Tem. É o grande ponto, mesmo. Porque o grande ponto era o nosso ponto de encontro
da nossa juventude. Domingo ali, fervilhava de gente a noite. Sentado. Conversando.
O pessoal saia da igreja, da matriz, a missa da noite, e passava lá, ficava sentado, aí
tinha o cinema, o Nordeste e o Rex ali perto, né? E a gente se encontrava no grande
ponto. Do grande ponto que a gente saia para as coisas, né? Saia pras festas, saia pros
encontros políticos, era a partir do grande ponto. E a gente quando queria marcar algum
46
Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand é um escultor e artista plástico pernambucano.
A PÉ
encontro com algum amigo a gente dizia “A gente se encontra no grande ponto a tal
hora”. Natal ainda preserva esses lugares, mas tá indo-se embora, né? E quando eu
passo vem a memória todo aquele período que era um período muito bonito. Claro que
cada época tem seu período bonito, também. Natal tava sendo construída, né? E foi
interrompida em (19)64 com o golpe. O golpe foi terrível para o Brasil e pra juventude,
né? Eles interromperam um processo de transformação que estava ocorrendo, de uma
transformação cuidadosa com as coisas do país. Eu digo muito que o Brasil caminhava
bem e a gente estava acertando e por isso houve o golpe. A culpa não foi nossa, a
gente não errou, a gente acertava, e eles não deixaram a gente continuar acertando.
Agradeci mais uma vez e lhe expliquei que precisava ir pois Tárcio esperava para me levar
a conhecer o Beco. Saímos do sebo e foi então que eu entendi o porquê o “escritório” da
Samba se localizar ali. Ao lado do Sebo Balalaika existe uma galeria dá acesso ao pedestre
da Rua Vigário Bartolomeu ao Beco da Lama como é popularmente conhecida a Rua Vaz
Gondim. Eu nunca tinha andado por ali. Passamos pelo o antigo Bar de Odete, onde hoje
é o Bar Encontro dos Boêmios; o Bar da Meladinha, que hoje continua funcionando, mas
sem Nazih, e seguimos pela Rua Coronel Cascudo, voltando para a rua do sebo. Perguntei
a Tárcio o que ele mais gostava do centro.
174
174
A PÉ
175
CAPÍTULO TRÊS
Olha, isso tudo aí, ainda bem que preservaram as fachadas, né? O povo diz que a
Assembleia Legislativa tá atrás de comprar isso aqui. Dizem que tá negociando pra
derrubar e fazer estacionamento.
Sério?
É, aqui é assim, toda hora você tem que ter paciência, eu dou umas rodadas e fico
rodando até achar. É um pouco difícil estacionamento aqui. A mobilidade daqui no
geral é muito difícil. Pronto, essa questão do Beco, lá, se interditasse pra carro essa
parte que a gente andou e nivelasse a pista com o batente, já fazia a questão da
mobilidade de tudo, botava uma iluminação, um calçadão, pronto, tava feito. A gente
tenta essa questão na prefeitura, sabe? Mas não tá saindo nada.
Agradeci pela atenção, pela conversa, por cada entrevistado que ele me apresentou e pelo
pequeno passeio. Me despedi dele e do centro que fervilhava mesmo em um sábado de
manhã.
A PÉ
PASSEIO 4. JULIANA
177 vive em Natal desde os 12 anos, é carioca, mas antes de vir para capital potiguar viveu
parte de sua infância em Brasília. Durante seu estágio acadêmico na Tribuna do Norte 47,
localizada em um dos edifícios históricos da Av. Duque de Caxias, Ribeira, ela passou a
frequentar o bairro, inclusive produzindo festas em estabelecimentos comerciais da região.
9 de novembro de 2015.
47
A Tribuna do Norte é um Jornal diário impresso e digital publicado em Natal.
48
Eco Praça é um projeto de ocupação e revitalização das praças públicas de Natal, através da
mobilização social.
CAPÍTULO TRÊS
Ju pediu que nos encontrássemos em frente à Nalva Melo Café Salão, na Av. Duque de
Caxias. Cheguei antes e fiquei esperando sentada na escadinha que dá acesso ao edifício.
Aproveitei para tirar algumas fotos e ela não demorou muito a chegar. Não nos víamos há
algum tempo, já que o TFG costuma afastar a vida social da gente, então expliquei quais
eram os objetivos da caminhada e ela decidiu que poderíamos começar por ali mesmo.
Tá bom.
Aqui, era muito engraçado porque mudou muito, sabe? Mudou muito e mudou pouco
na verdade, né?
Como assim?
Porque essa frente aqui de vidro sempre esteve. E esse chão lá de dentro, que eu acho 178
178
bem legal, também. Mas por exemplo, não tinha a placa, não tinha nenhum desses
móveis estilosos aí dentro. E eu trabalhava aqui na Tribuna, que é aqui do lado, né?
Trabalhei aí um ano e meio. Então eu passava aqui na frente todos os dias. Por isso
que eu me lembro muito de como era.
Sim, entendi.
E aí, foi mudando num sentido assim: começou a ter exposição, começou a ter festa,
às vezes tinha algum lançamento. Mas isso era bem esporádico, hoje em dia acho que
todo fim de semana acontece alguma coisa. Eu lembro de quando eu comecei a
trabalhar na Tribuna foi quando reformaram o Bila.
É, Edifício Bila. Tem aqui o nome. Tinha em algum local (procurando). Ah! É lá em
cima, ó. Vem aqui pro outro lado da rua que dá pra ver. O nome é muito bom, né?
E eu entrevistei um cara que mora aí. E ele falou “eu moro no Bila” e eu achei que era
o nome de um cara que alugava. Haha.
Ó, tá lá em cima!
Bonito.
A PÉ
179
CAPÍTULO TRÊS
Você quer tentar entrar? A gente pode tentar conversar com alguém. Porque a parte da
escadaria: o que me contaram na época é que como Jornalismo e Ditadura eram duas
coisas que não combinavam, o prédio é meio um labirinto. Então você, pra chegar na
redação, você sobe, você desce, você passa por dentro de uma sala e são escadas
assim que são como se você estivesse indo para um esconderijo mesmo. Vamo lá tentar
entrar, pra você conhecer.
Mas peraí, Ju, me conta da sua época festeira que eu sei de histórias aqui em Nalva.
Foi assim: em 2007, eu fui com uns amigos pra um festival de música em
Pernambuco. O Coquetel Molotov50. 180
180
Huhun, conheço.
E lá, o festival acontecia na Universidade (UFPE51) e eles conseguiam uma coisa super
legal que era: Colocar bandas, colocar discotecagem, ficar a noite toda e ser tudo muito
divertido, tudo muito organizado. E a gente já ficou pensando: “Não é possível que a
gente não consiga ter uma festa dessa em Natal. Se Recife consegue, como é que Natal
não consegue? ” A única coisa que aqui na época tinha, na Ribeira, era o Do Sol e o
Galpão 29. Mas não existia isso de discotecagem. Não existia. Mesmo. A gente ficou
pensando numa festa que fosse só discotecagem “Não existe, não existe. Em Natal a
gente nunca viu”, “Mas será que o povo de Natal vai? ”. Teria que ser uma coisa
pequena pra gente testar. Éramos 5 e decidimos tentar, começamos a conversar em
setembro, mas a festa só saiu em dezembro só, e foi aqui em Nalva. A ideia de ser
aqui em Nalva, foi porque a única coisa que a gente tinha certeza era que a gente
queria que fosse uma festa legal, num espaço bonito e que fosse pequeno suficiente
caso não aparecesse ninguém a gente não ter o prejuízo do universo.
49
O edifício do PROCON se localiza na esquina da Av. Duque de Caxias com a Av. Tavares de Lira.
50
Coquetel Molotov: Festival de música realizado desde 2004 no Recife reúne atrações
internacionais e nacionais. Atualmente já conta com eventos em outras cidades do país, como
Fortaleza e Salvador.
51
UFPE: Universidade Federal de Pernambuco.
A PÉ
A época era época de Orkut, aí a gente criou uma comunidade, falava da festa; fazia
release; mandou pros jornais. Porque na época não tinha um site que divulgava como
tem agora o Apartamento 70253, não tinha nada, a gente mandou pros jornais mesmo,
e todo mundo divulgou, o que é mais louco. Aí a festa deu muito certo. A gente não
tava preocupado em lucrar, a gente colocou o ingresso a 2 reais. Aí foi tudo tranquilo.
A festa 2 foi em janeiro e a festa 3 a gente fez em março. Mas aí a gente começou a
ter problema porque começou a ficar muito lotado. Na festa 3 a gente já teve que fechar
a portaria porque não tinha condições de entrar mais ninguém. E aí essa parte de vidro
da frente ficou toda embaçada! Toda embaçada! Porque tava muito quente lá dentro.
Aí foi isso. A gente só fez essas três aqui. Ainda tentou fazer uma quarta no Galpão 29
por que achou que pudesse dar certo porque era um espaço maior, mas não era a
mesma coisa que a ideia do espaço em Nalva passava. Aí depois a gente parou. Não
produziu nenhuma festa mais. E em 2006 eu parei de trabalhar aqui, 2007/2008,
depois disso mais nada.
181
Quando foi que você começou a frequentar aqui?
Isso. Foi logo no começo de 2005. Porque era uma região da cidade que num tinha
muito apelo, né? Era escuro, era difícil de chegar, você só chegava com carro, se falava
que era meio perigoso. Na época O Galpão, lá no largo da Rua Chile, ele até tinha uma
movimentação bem legal, porque antes tinha sido um local chamado Blackout. E aí,
em 2005, eu comecei a estagiar aqui, saia daqui de 6 horas da noite, comecei a ver
que era mais tranquilo, já comecei a ter amigos na faculdade, então alguém já tava
dirigindo, então a gente vinha pro Do Sol e pro Galpão. Nessa época a Casa da Ribeira
começou a ter mais eventos, então, trabalhando aqui, às vezes eu ia direto. Teve uma
época bem legal que a Casa da Ribeira tinha muita coisa. Eles fizeram um festival de
curtas e aí a tela era na rua, então eles fechavam a rua, colocavam o telão, um monte
de cadeira de plástico na rua. Era bem legal. Também tinha um festival que era com
música, eu lembro que foi uma das primeiras vezes que eu escutei Simona Talma. Aí,
lá perto da rodoviária, tinha um local na esquina que eu não vou lembrar o nome, mas
tinha show grande porque não caberia em outros lugares, aqui, né? Na Ribeira. Que
era mais fácil porque era bem mais perto da rodoviária pra quem chegava de ônibus.
52
Lo que sea: O que seja em tradução livre para o português.
53
Apartamento 702: É um projeto de produção de conteúdo em meio digital. Trabalha com notícias
direcionadas para a cidade de Natal/RN, a exemplo da agenda de eventos da semana.
CAPÍTULO TRÊS
Porque pra todos esses eventos que a gente vinha, muitas vezes, a gente chegava no
último ônibus, vinha andando isso aqui tudo, que é bem esquisito a noite, ficava na
Ribeira até começar a passar ônibus de novo, por volta de 4:30h/5h, e aí voltava todo
mundo andando pra rodoviária também. O que era superperigoso e eu não faria hoje,
jamais assim, mas quando você é mais novo cê num tem muita noção de perigo, né?
Pra cá! (Indo em direção a Tribuna). Hoje em dia eu não conheço mais ninguém aí,
mas a gente pode pedir, eu falo que já estagiei e você como estudante de arquitetura.
Se falarem que não pode, a gente volta.
Você sobe um pequeno lance de escada para entrar no edifício. Uma porta bem alta e
larga te direciona para um balcão na recepção. Ju informou que queríamos visitar a
redação. A recepcionista ligou para o setor algumas muitas vezes até alguém atender.
Explicamos a esse alguém do outro lado da linha que era uma visita de uma antiga
182
182
estagiaria e de sua amiga curiosa que estava fazendo um trabalho sobre a Ribeira e que
seria interessante conhecer o prédio, por sua peculiaridade.
Guardei a câmera fotográfica que levava no peito e seguimos por uma portinha lateral que
te leva a um corredor curvo. Poucos metros depois, a peculiaridade começou a tomar
forma: escadas, descemos, e então, uma porta à direita e outra escada subindo à
esquerda, seguimos pela escada. Era uma escada estreita e curva. Chegamos a um outro
patamar, uma outra porta e teto era bem baixo. Mais um lance de escadas para cima. A
escada continuava subindo, mas dessa vez seguimos por um pavimento. Portas, salas e
mais uma vez à direita, outra pequena escada, agora descendo. Você desce e a escada
muda de direção e continua descendo. Passamos por um corredor de cor bege meio goiaba
clarinho, sabe? Tinha cara de lugar antigo. As portas pareciam originais, tudo combinava.
No final desse corredor, a redação. Para a surpresa de Ju, um colega dos tempos dela de
estagiária ainda trabalhava ali. Ele nos recebeu e nos acompanhou até a parte do
maquinário. Grandes estruturas metálicas pintadas de azul recebiam os rolos de papel
gigantes. Fiquei imaginando aquilo tudo ligado, entrando papel, saindo jornal, deve ser
A PÉ
incrível. Ju matou a saudade dos tempos de estagiária e eu fiquei bem feliz pela
oportunidade de vivenciar um edifício tão estranho.
Olha, aqui, quando você sai para fazer uma notícia, tem os motoristas do Jornal que te
levam e te buscam, então era muito comum ficar sentado aqui, esperando o motorista
chegar. Ficar sentado aqui? Sempre. Teve uma vez que eu tive que cobrir para o jornal
online o carnaval da Ribeira, que é o carnaval de Natal na verdade, né? Que são os
desfiles das escolhas de samba. E ele passa todo aqui, essa rua fica fechada, e fica
lotado, cê já viu alguma vez?
Ai não sei, tenho um medo de andar por aqui com isso (a câmera).
Ah é, né? Tenho que lhe contar. Foi assim, depois dessa época 2005/2006 que eu
comecei a trabalhar por aqui e que começamos a fazer as festas teve uma época que
o Ateliê54 reabriu, que era o local que tinha samba, e eu tava um dia no samba e ia ter
uma festa no Galpão depois, não sei se no Galpão ou no Do Sol, eu sei que eu tava lá
no samba e a gente decidiu ir andando. Eu tava com mais três pessoas, eu, mais duas
meninas e um menino. Era basicamente chegar até a esquina da rua, virar e entrar na
Rua Chile. E foi nessa rua grande aqui do lado, eu acho que é a...
54
O Ateliê Flávio Freitas já teve parte de sua estrutura física ocupada por um bar, o Ateliê Bar e
Petiscaria.
CAPÍTULO TRÊS
184
184
A PÉ
É, na Tavares. Três crianças, eu diria, porque eu não acho que nenhum dos três tinha
mais de 18 (anos), pularam assim atrás da gente. O maiorzinho deles tava com uma
faca e colocou no pescoço do meu amigo, e aí todas nós paramos e ele fez assim:
“entrega todo mundo a bolsa senão eu vou meter a faca” uma coisa assim. E aí a gente
só esticou a mão, entregou a bolsa. E eles fugiram a pé mesmo.
Então vamos andando em direção à Capitania (das Artes)? Eu também estagiei lá. Não
quero ir prali não (indicando em direção à Rua Chile).
Por quê?
Seguimos em direção a Cidade Alta, passamos pela Av. Tavares de Lira e Ju quis entrar
para me mostrar onde tinha sido o assalto: esquina com a Rua Frei Miguelinho.
No dia que eu fui assaltada foi exatamente nessa esquina e a gente ia entrar na próxima
rua. Mas aqui mesmo eu nunca entrei nessas outras ruas (indicando a rua Dr. Barata
185 e a parte da Rua Chile paralela a ela), assim, de carro já, mas a pé mesmo nessas
outras não.
Passamos pela Rua Câmara Cascudo em direção à Praça Augusto Severo. Seguimos pela
praça, porque naquele horário fazia sombra entre o Teatro Alberto Maranhão e a antiga
rodoviária, atual Museu da Cultura Popular. Ela relatou que antigamente os ônibus
passavam exatamente por onde estávamos passando e que a praça não tinha esse espaço
todo que tem hoje, já que era cortada por uma via repleta de paradas de transporte público.
Na subida da Av. Câmara Cascudo perguntei a Ju se ela já chegou a frequentar a Cidade
Alta.
Sim, eu fazia inglês lá na (Av.) Deodoro (da Fonseca). Eu andava muito e eu gostava
muito de ir pro Rio Verde.
Tinha os dois, mas o Rio Grande fechou primeiro. Pelo menos foi assim que a
informação chegou a mim, eu só conheci o Rio Verde. Eu gostava muito do Rio Verde,
eu ia toda semana. Eu andava muito e eu gostava muito de andar sozinha depois que
CAPÍTULO TRÊS
Na Cidade?
Aham, mas não só na cidade, eu gostava de ficar andando em geral. Eu gosto muito
de uma casa que tem aqui perto do Solar (Belavista55) que eu acho que a casa mais
bonita aqui do centro. Eu nem sei se eu ainda sei chegar nela, eu acho que deve ter
alguma coisa de arquitetura assim, porque ela tem uma porta toda de vidro assim
enorme, e ela era um pouquinho mais alta. Eu subia por essa rua de pedra. Assim,
cada dia em inventava um caminho novo, sabe? Principalmente porque eu gostava
muito, não sei porque, de quando eu saia com amigos que dirigiam e não dirigia eu
saber indicar o caminho das ruas, eu tinha muito prazer nisso. E aí eu sempre ficava
andando a pé e entendendo, e falando, e aprendendo os nomes. Hoje em dia eu acho
até que eu sei menos do que eu sabia naquela época que eu não dirigia, porque eu
andava muito pelo centro. E eu lembro uma vez, eu acho que em 2008, eu e minha
prima decidimos fazer tipo um book, sei lá, tirar umas fotos divertidas da gente, e a
gente veio tirar foto aqui nessa rua de pedra (Rua Tv. Pax, lateral ao Solar Belavista). 186
E a gente tem um monte de foto aqui, só que olha como é que ela tá hoje.
186
É, eu acho que é. Só que ela tá toda estragada. Tem que fazer a manutenção com
essas coisas de patrimônio, mas olha ali, a quantidade de lixo acumulado. Primeira
coisa, não era pra passar carro. A primeira a ser feita era proibir que passe carro. Eu
acho o Solar muito bonito, acho lindo, mas eu acho ele muito subaproveitado, sabe?
Porque é um espaço massa, que que tem um jardim massa, que podia rolar umas
coisas tipo aquela música instrumental no Parque das Dunas, sabe?
Aí aqui na Capitania eu fiquei só seis meses, mas eu acho um espaço bem legal e
completamente subaproveitado também. Poderia ter muita coisa, raramente acontece
show. Esse ano eu vim pra um de música.
55
O Centro de Cultura e Lazer Solar Belavista coordenado pelo SESI (Serviço Social da Indústria) e
ocupa um casarão construído em 1907, tombado pelo Patrimônio Histórico. É um espaço utilizado
para fins educativos e artísticos e culturais
A PÉ
Ouvimos o som do trem ao fundo, uma espécie de buzina. Subimos de volta, bebemos
água e nos sentamos em um dos peitoris das “janelas” da fachada para descansar um
pouco.
Hoje quando você vem na Cidade Alta e na Ribeira, você vem fazer o que?
Só resolver coisa. Não que eu tenha problemas com a Ribeira, mas eu não gosto mais.
Os espaços que tem hoje em geral não me atraem tanto. Porque eles continuam iguais
há 10 ano atrás e eu mudei. E além disso, vir pra Ribeira é vir de carro, hoje em dia
eu não tenho mais a coragem de vir de ônibus como eu vinha quando era mais nova.
Pra mim é até tranquilo vir da Zona Norte pra cá, mas em geral o povo mora na Zona
Sul e não quer vir pra Ribeira porque é muito longe, e aí vindo de carro não pode beber
porque não tem como voltar para casa, aí não tenho vindo.
Decidimos continuar andando. Ju escolheu passar pela Rua Tv. Pax, a ladeira de
187 calçamento original, porque, segundo ela, a casa bonita que havia comentado ficava por
ali por perto. Infelizmente não encontramos a casa, mas fomos andando em direção à Av.
Rio Branco.
Por aqui faz muito tempo que eu não ando. Especialmente a pé. Eu gostava de andar
pelas ruas menores, quanto menos carro, melhor, né? Mas depois de que eu parei de
fazer inglês aqui no centro, isso foi em 2003, junto ao fato de eu ter começado a
faculdade em 2004, eu não tinha mais muito o que vir fazer aqui. Então, vir para o
centro era estar atrás de algo específico, em geral da rua dos armarinhos, eu gosto
muito daquela rua, mas além disso, aqui no centro mesmo não tem nada, eu digo
assim: sem ser comércio, né?
Continuamos na Av. Rio Branco até a Rua Ulisses Caldas, na qual entramos e seguimos
até entrarmos a direta na Rua Princesa Isabel, e seguir até a Rua Coronel Cascudo, que é
fechada para pedestres. Ali na “rua dos armarinhos”, paramos para lanchar no Delícias do
Mate, uma pequena lanchonete que vende um mate com limão maravilhoso.
Pronto, Babina, este lugar é uma memória afetiva pra mim. Pode anotar aí se você
quiser: eu adorava vir aqui quando eu andava no Centro.
No caminho de volta, ela decidiu continuar pela Rua Coronel Cascudo, que segue sendo
uma rua de pedestres e que nos quarteirões que margeiam a Av. Rio Branco fica tomada
de ambulantes em ambos os lados.
Agora se tem uma coisa que eu gosto muito, é assim, essa bagunça. Adoro!
188
188
E você imagina o porquê?
3.5 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
O centro histórico de Natal, região compreendida entre os bairros de Cidade Alta, Ribeira
e Rocas, é o universo de estudo deste trabalho. A fim de definir um perímetro inicial para
o direcionamento da pesquisa em campo, foram sobrepostos as áreas correspondentes à
ZEPH e o perímetro do sítio histórico considerado Patrimônio Histórico e Cultural. A
poligonal de entorno foi escolhida devido à maior abrangência. Ao total, foram realizados
4 passeios acompanhados e 6 entrevistas. A caminhada em companhia do entrevistado é
considerada a fonte de pesquisa mais importante deste trabalho, uma vez que se busca a
apreensão da experiência e da narrativa do outro. Além disso, a busca por lembranças
significativas da cidade auxilia na prática do olhar atento, contribuindo para o exercício de
(re)descoberta da rua.
A PÉ
189
190
A PÉ
191
CAPÍTULO QUATRO
4.1 PRÓLOGO
LAMBE-LAMBE
Sabe aquilo que eu comentei lá na plásticos a músicos e atores, e devo a
introdução, sobre curtir mais a beleza das eles todo o meu respeito e admiração.
imagens do que a poética das palavras?
Acontece que eu me cobro muito.
Então. Demorei para aceitar que esse
Pergunte aos meus amigos,
trabalho seria completamente teórico, e
provavelmente eles vão revirar os olhos e
na verdade, acho que ainda não aceitei.
dizer algo do tipo: “Ah! Babina é desse
Entendo que meus objetivos deixam claro
jeito mesmo! Ela lambe os trabalhos até
que o meu produto final é uma narrativa, 192
o fim”. Acho que até mesmo o meu medo
a qual eu chamei de narrativa de
de competições vem da possibilidade de
apropriação. No entanto, o caminho da
não me sair bem. E tratar de arte, que por
intervenção artística crítica na cidade,
mais próximo que fosse de mim, não me
que descobri como possibilidade no
deixava completamente confortável. Eu
segundo capítulo ainda me instiga e me
não tinha certeza se seria capaz de
faz acreditar na possibilidade de criar
propor uma intervenção artística crítica
algo um tantinho visual.
na cidade, parecia um peso muito grande
Eu convivo com “gente de arte” no teatro para mim. Até porque, o tempo estava
e também na universidade, a exemplo da passando, a data de entrega do TFG se
minha orientadora, que pinta aquarelas aproximava e eu não sabia se teria tempo
belíssimas, por sinal. Também tive a de propor, justificar, refletir e produzir
oportunidade de conhecer outras figuras dois produtos finais com qualidade: a
artísticas durante as caminhadas que fiz narrativa e a intervenção. Por mais que
por meio desse trabalho, desde artistas eu considere a intervenção artística outra
maneira de narrar a minha reflexão, não
A PÉ
havia tempo, nem conteúdo consolidado Então, eu havia comentado algo sobre
para tal. me inspirar na sinalização de trânsito, tão
comum ao meio urbano, para a criação
Então, decidi que deveria me arriscar, iria
de uma proposta artística. Não é minha
propô-la, a intervenção, mas de maneira
intenção criar placas nem algum tipo de
a ilustrar a minha narrativa. Sem
sistema de wayfinding56 tradicional, mas
preocupações, sem necessidade de cotar
sim me apropriar da estética e
ou justificar o porquê de tal escolha de
principalmente da essência dessas peças
cores ou de tipografia. Quero, de verdade,
urbanas. Segundo o Conselho Nacional
que vocês a entendam como parte desses
de Trânsito - Contran, a sinalização de
prólogos, como um momento de livre
indicação tem por finalidade “identificar
interpretação. Sei que posso estar me
193 as vias, os destinos e os locais de
antecipando e tentando conduzir o
interesse, bem como orientar condutores
julgamento de quem lê, como quem diz:
de veículos quanto aos percursos, os
“Olha, eu não tive tempo de fazer algo
destinos, as distâncias e os serviços
melhor, então estou avisando para que
auxiliares, podendo também ter como
você não se surpreenda e nem me cobre
função a educação do usuário” (Manual
por isso.” Mas, acontece que eu sou
Brasileiro de Sinalização de Trânsito,
assim. Faz parte de mim. Preciso me
2014), e são alguns desses propósitos
cobrar primeiro, antes que você o faça. E
que me interessam, objetivando o
dessa forma, assumindo pessoalmente
pedestre ao invés do condutor.
de que se trata de um momento de
diversão e de criatividade, eu sei que vou Não identificarei vias, nem destinos ou
conseguir relaxar e tentar dar o meu locais iluminados de interesse. O que eu
melhor. espero conseguir, através das
56
Wayfinding é um ramo do design que estuda as formas de que as pessoas se orientam no espaço
físico e como navegam partindo de um lugar a outro.
CAPÍTULO QUATRO
intensificação da vida urbana exigia uma comunicativa com aqueles que andam
comunicação capaz de alcançar os novos apressados pelas grandes metrópoles.
hábitos.
Como reflexo dessa comunicação
Entre os vários suportes de produzida em série, hoje “viver numa
comunicação que se organizaram para
esse fim, resultantes da indústria metrópole implica em estar cercado de
gráfica que se modernizou – jornais, imagens construídas artificialmente e que
revistas, folhetos, cartões postais e
embalagens -, os cartazes de rua formam uma paisagem em constante
surgiram, sob formatos diversos, como
expoentes da linguagem da publicidade mudança” (CAIO; LOMONACO;
em expansão (BEDRAN, 2015, p. SANTANA, 2015, p. 03). E como Lynch
245).
(1960) já dizia, os elementos gráficos
Pode até parecer contraditório a escolha
urbanos, a exemplo de um cartaz, nos
195 desse tipo de superfície como base de um
ajudam a construir a identidade visual,
produto que reflete sobre o processo de
estética e cultural das cidades, mesmo
espetacularização das cidades, afinal, os
que inconscientemente.
cartazes de rua surgiram, e são utilizados
até hoje, como aliados da mídia que usa Estes elementos funcionam tanto como
indicadores de fluxos urbanos
da cidade para a divulgação de seus (wayfinding), quanto como marcos que
identificam e nomeiam pontos da
produtos e propagandas. No entanto, cidade, auxiliando na definição de sua
talvez por isso, eles sejam uma potente estrutura informacional. As letras e
números que encontramos no
fonte de comunicação em meio urbano, ambiente urbano podem ser
entendidos como parte do discurso
o que lhe asseguraram presença na identitário e comunicativo da cidade.
memória coletiva das cidades. Segundo (CAIO; LOMONACO; SANTANA, 2015,
p. 03).
Moretto (2008), em reflexão sobre a
função social dos cartazes, entre as
manifestações do design gráfico, essa
categoria ganhou destaque no ambiente
urbano, justamente por sua função
CAPÍTULO QUATRO
57
Entrevista presente no documentário “Lambe-Lambe: de peça publicitária a elemento de arte
urbana” de maio de 2015, realizado por alunos de Comunicação Social da Universidade de
Fortaleza.
A PÉ
198
A PÉ
199
CAPÍTULO QUATRO
O momento de “ganhar corpo”, que foi iniciado na apresentação das entrevistas e dos 200
passeios acompanhados no capítulo três, é concluído agora com as reflexões trazidas na
narrativa do “dar corpo” que se apoia na fala do outro, em imagens que ajudam na
descrição das análises e em uma micro-resistência urbana que toma como inspiração a
sinalização urbana sob a base do cartaz lambe-lambe.
201
INTERFERÊNCIAS
DE AFASTAMENTO
CARRO | INSEGURANÇA | ESPETÁCULO
CAPÍTULO QUATRO
CARRO
CORPO EM ALERTA
Cuidado o carro, vocês dois. - incomodo do choque, a reclusão do
Marinalva chamava atenção.
homem moderno contemporâneo às
As advertências de atenção para os grandes transformações da cidade e do
veículos que se aproximavam, muitas cotidiano me parece bastante sensata.
além dos relatos acima, se tornaram
Foi em Barra Bonita, interior do estado de
constantes ao longo da primeira
São Paulo que eu descobri a rua pela
caminhada realizada, e se repetiram
primeira vez. Eu devia ter uns 6 anos,
durante as outras visitas acompanhadas.
então estávamos em meados dos anos
O corpo em frequente estado de alerta
1990. Vivíamos em São Bernardo do
permanecia atento mesmo ao atravessar
Campo e fomos visitar a família do meu
uma faixa de pedestres ou ao caminhar
pai. Tenho na cabeça a imagem de uma
em vias afastadas das principais 202
ladeira com as calçadas em níveis onde
avenidas, onde a movimentação de
meus tios se sentavam em cadeiras de
veículos não era tão intensa.
plástico e observavam as crianças
Compreendo a preocupação de Marinalva jogando amarelinha na rua. Pula corda.
quando ela me chamava a atenção Elástico. Esconde-esconde atrás da
quanto aos veículos que se aproximavam, árvore. Dimdim de coco. O sol se pôs. Os
mas me incomodava a necessidade de adultos foram assistir a novela. E nós,
desviar o caminho a cada carro ou moto primos que não se conheciam, sujos e
que aparecia. Fiquei imaginando o flâneur felizes, nem percebemos a hora passar.
a caminhar pela cidade vivenciando a Minha mãe costuma lembrar que eu liguei
transição histórica do processo de para ela naquela noite. Meia noite, mais
modernização das cidades, quando tal precisamente. Muito contente: “Mãe! Eu
estado de alerta foi inaugurado. Se eu que brinquei na rua, mãe! Na rua! ”. Nunca
nasci quase um século depois e já cresci mais voltamos à Barra Bonita, em casa eu
com medo da rua, sempre olhando para me contentava com a garagem.
os dois lados, hoje ainda respiro o
56. Eu e meus primos em
Barra Bonita, SP.
Acervo pessoal, A PÉ
1997.
Se eu, que tive a rua por um dia, mesmo comemorava um projeto da Prefeitura de
que acesa pela ludicidade infantil, até Natal chamado “Se essa rua fosse minha”
hoje consigo sentir a sensação de que acontecerá na Ribeira no próximo dia
liberdade e diversão que aquela ladeira no 29 de novembro. O projeto consiste em
interior de São Paulo me proporcionou, fechar a Av. Duque de Caxias, entre o
imagine como o flâneur ou o homem Teatro Alberto Maranhão e a Av. Gustavo
moderno se sentiram quando a rua que Cordeiro de Farias, e destiná-la à atividade
eles conheciam foi substituída por novos de pedestres durante um domingo do
hábitos, entre eles o constante estado de mês.
alerta que até hoje nos atinge. De acordo com a secretaria adjunta de
Planejamento da Semurb, Floresia
Tais hábitos modernos nos trouxeram a Pessoa, a ideia do “Se essa rua fosse
203 minha...” é dar visibilidade à Ribeira,
percepção de que em grandes avenidas é despertando novamente nos natalenses
o sentimento de pertencimento, e assim
compreensível a necessidade do trânsito fortalecer os vínculos com o bairro e sua
rápido, a preocupação mais atenta e a história (Prefeitura Municipal do Natal,
2015).
escolha acertada pela faixa de pedestres.
É muito bom ver esse tipo de ação em que
No entanto, em vias como a Dr. Barata,
o caminho inverso é estimulado. Talvez
na Ribeira, por exemplo, em que a
assim o estar na rua fora do estado de
arquitetura te faz querer olhar para cima e
alerta desperte a necessidade de um
ler os números romanos dos frontões das
hábito arquivado desde os tempos do
bonitas fachadas que seguem casadas
flâneur. Talvez assim tal sentimento de
com suas vizinhas, tal preocupação
pertencimento apareça e mesmo fora da
interfere e dificulta a apreensão do
rua cedida por um domingo, continue
sensível, uma vez que esse se ocupa em
provocando a vontade de se apropriar
manter o próprio corpo ileso.
cada vez mais até que essa e outras ruas
Hoje eu li uma matéria que sejam nossas de verdade.
compartilharam no grupo de Arquitetura
da UFRN no Facebook. A chamada
57. Travessa México, Ribeira.
Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO
DESVIO
Todos os passeios acompanhados Eu gostava de andar pelas ruas
menores, quanto menos carro,
apresentaram um elemento em comum: o melhor, né?
espaço por onde caminhamos, sem
Do centro? Olha, eu gosto de andar
exceção, foi a calçada. As largas não muito na parte mais comercial
porque já acostumou demais, né? Eu
geralmente seguiam as grandes avenidas
gosto dessas ruazinhas que eu
e algumas até mesmo desfiguradas, chamo “Olindinha”, né?
traziam a faixa amarela do piso tátil Nessas “ruazinhas” a divisão do espaço
direcional pelo centro. As calçadas mais entre o carro e o pedestre restringe a quem
estreitas, pipocadas aqui e ali por anda a menor parcela do resultado.
ladrilhos antigos resistindo ao tempo, nos
Segundo Jacobs (1961), as ruas e
levavam a competir com o carro por um
calçadas são os órgãos vitais de uma 204
espaço na rua, já que em algumas delas,
cidade, pois são nelas que se percebem a
caminhar lado a lado se tornava difícil
diversidade e a intensidade de usos, são
devido a pequena largura, o que é
espaços de integração e convivência de
compreensível se nos lembrarmos que tais
uma sociedade, sendo as pessoas os
vias, a exemplo da Rua Chile, na Ribeira,
principais protagonistas do uso desses
surgiram sem essa preocupação de
espaços.
divisão de espaço.
A autora afirma que as calçadas devem
Os limites do centro histórico de Natal são
ser largas pois são capazes de receber
guardados por legislações que amparam a
usos tão importantes quanto parques para
preservação do traçado original das vias
atividades das crianças. E quando a
da região, de ruas mais estreitas, becos e
calçada não apresenta espaço suficiente
travessas. E foram por essas ruas que
para o universo de possibilidades que a
meus entrevistados resolveram seguir,
rua oferece à criatividade infantil, são as
tanto em presença quanto em suas
crianças as primeiras a desafiarem a
lembranças.
fronteira estabelecida pelo meio fio.
A PÉ
Quem nunca passou por uma rua, No entanto, já existem espaços próprios
destinada à passagem de carros,
fechada, no sentido figurado, por do centro histórico em que a calçada
pedaços de pau formando espécies de extrapola a rua e que a rua não se
traves em um final de semana agradável
e se deparou com crianças correndo de incomoda, afinal nenhuma das duas de
um lado a outro atrás de uma bola na
busca incessante do gol?! (GAVAZZA, fato existe. Tal configuração, particular
2013). dos becos e travessas da região, não é
As calçadas largas de Jacobs não questionada devido ao tempo em que
caberiam nas vias mais estreitas do centro fazem parte do desenho dos bairros e do
histórico de Natal, a não ser que cotidiano de quem vive ali. São espaços
levássemos a sério a questão da de desvio por natureza e tal característica
extrapolação proposta na brincadeira das já lhes confere um grande potencial.
205 crianças, aproveitando para revisitar o
Aqui tem muito espaço para esses
passado em que a calçada era rua, e a rua espaços que a gente vê muito lá na
Europa. Lá na França a gente vê,
era calçada.
eles chamam de rua de passeio, né?
É um beco, assim, onde de um lado
Hoje ainda caminhamos por calçadas e e do outro são lojas. Que aqui a
desviamos pela rua. Erramos pelo desvio. gente não vê. Não há investimento.
Uma ruazinha dessa, que não
Mas pude perceber a naturalidade do passa carro, se tivesse um
interesse em transformar o desvio em investimento de estabelecimentos
comerciais né? Mas é assim, escura.
caminho através do discurso daqueles
A falta de iluminação, citada mais de uma
que passearam comigo.
vez em relação aos becos, e o acúmulo de
Primeira coisa, não era pra passar lixo presenciado durante os passeios são
carro. A primeira coisa a ser feita
era proibir que passe carro. exemplos de evidencias da desatenção.
NÃO TE ESCUTO
A trama de desvios propícia à errância no Além da divisão do espaço físico, a zona
centro histórico de Natal é bastante rica. da audição é uma das mais prejudicadas
São inúmeras possibilidades entre becos, quando recorremos aos sons da
calçadas, ruas e desvios. No entanto, experiência. Tive consciência de tal
enquanto parte deles está esquecida em incomodo quando precisei transcrever os
meio ao lixo e o escuro, a outra é dividida diálogos das visitas. Em vários momentos
arbitrariamente com a hegemonia da Era não se podia ouvir a voz daquele que
do Automóvel. caminhava ao meu lado devido aos ruídos
produzido pelos veículos.
ESTACIONADO
Segundo os autores, um passo importante E mesmo quando o convidado escolhia
para a intervenção na paisagem sonora é seguir por vias mais calmas como a Rua
a redução ou a eliminação dos ruídos Frei Miguelinho, na Ribeira, afastada das
urbanos, muitas vezes ocasionados pelo grandes e barulhentas avenidas, ou se
trafego de veículos. lembrava de lugares agradáveis de
contemplação da paisagem como o
Mas eu já começo a pensar em
lugares mais sossegados. Bom, mirante da Igreja de Nossa Senhora do
especificamente onde eu moro, que
Rosário dos Pretos na Cidade Alta, o carro,
minha janela é para um trânsito
muito pesado. Queria um a moto e até mesmo o caminhão, mesmo
pouquinho mais de sossego.
parados, ocupavam a perspectiva.
“Um nível excessivo de ruídos, além de
Esse espaço aqui é muito bonito,
207 acarretar problemas de natureza física e uma pena que durante a semana
psicológica, sobrepõe-se aos sons fique lotado de carros de quem
trabalha aqui por perto.
desejáveis, dificultando ou até mesmo
impossibilitando sua percepção” (EMERY; Durante os passeios, tive a impressão de
RHEINGANTZ, 2001). Quanto mais tal que sempre haveria espaço para mais um
na cidade, dividido em fatias com bordas É, aqui é assim, toda hora você tem
que ter paciência, eu dou umas
de tinta pintadas no chão, e faz parte da rodadas e fico rodando até achar. É
categoria de espaços impessoais das um pouco difícil estacionamento
aqui. A mobilidade daqui no geral é
cidades: padronizados, desabitados, muito difícil.
lotados de dia, vazios pela noite.
A questão dos estacionamentos privados
A ameaça por novos estacionamentos a e da grande quantidade de carros parados
serviço da modernidade segue como nas ruas da região interfere na
receio na boca daqueles que ainda contemplação e percepção da paisagem,
enxergam a beleza das fachadas do dificultando a criação de vínculos
centro. imagéticos e sensoriais; contribui para a
multiplicação de espaços homogêneos e
Olha, isso tudo aí, ainda bem que 208
preservaram as fachadas, né? (Se impessoais, afeta o equilíbrio emocional
referindo a dois sebos localizados ao lidar com a “paciência”, e participa da
em pequenos edifícios antigos). O
povo diz que a Assembleia equação de divisão o espaço entre
Legislativa tá atrás de comprar isso
aqui. Dizem que tá negociando pra
pedestres e motoristas, somando,
derrubar e fazer estacionamento. obviamente, para o lado sobre rodas.
O bar da juventude de Lenilton e os
Além disso, tal situação demonstra a
pequenos sebos da esquina da Rua
escolha de uma parcela significativa de
Vigário Bartolomeu com a Rua Coronel
usuários do centro pelo transporte privado
Cascudo, que provavelmente
em prioridade ao transporte público.
compartilharão do mesmo futuro cinza de
um estacionamento, são exemplos da
lógica de modernização das cidades: o
antigo cede lugar ao novo.
E como é a questão de
estacionamento aqui? É muito carro?
A PÉ
PRECISO
DE CARONA
Apesar dos bairros da Cidade Alta e transporte que hoje não existe mais.
Ribeira receberem um grande fluxo que Durante a infância de Lenilton, o centro
interligam todas as regiões administrativas histórico ainda fazia parte da principal
de Natal e que circulam dentro dos limites área central da cidade, e obviamente a
do centro histórico da cidade, os relatos estação de trem e a antiga rodoviária,
sobre o uso do transporte público por ambas localizadas na Praça Augusto
aqueles que entrevistei ou eram tidos Severo, cumpriam o papel de dar boas-
como uma experiência fadada ao vindas natalenses aos passageiros que
passado, ou deixada em segundo plano. viajavam desde o interior do estado, a
O carro, a carona ou alguém que dirija, exemplo de Lenilton, e desembarcavam
foram os meios citados como prioritários e na capital potiguar.
209 seguros pelos entrevistados.
A minha primeira lembrança é na
rodoviária. Que quando a gente
Onde hoje é o Museu Djalma
chegava aqui tinha um homem que
Maranhão, era uma rodoviária que
dizia: (faz voz de locutor) Estação
foi desativada, mas que tinha função
Rodoviária Presidente Kennedy,
de parar os ônibus. Como lá era o
atenção passageiros… Eu chegava
ponto final, você pegava ônibus
de ônibus ou de trem. Meu pai
mais vago e eu ia para lá para pegar
trabalhava de guarda-freio, que
ônibus.
caminhava em cima do trem para
E além disso, vir pra Ribeira é vir de frear junto com o maquinista.
carro, hoje em dia eu não tenho
Outra lembrança, essa agora de Flávio, diz
mais a coragem de vir de ônibus
como eu vinha quando era mais respeito à aventura mágica que o
nova.
transporte aquático proporcionava em sua
E aí, em 2005 [...] eu já comecei a infância, quando ele saia da Ribeira em
ter amigos na faculdade, então
alguém já tava dirigindo, então a direção à praia da Redinha tomando o
gente vinha.
Potengi como rota.
Eu só venho se tiver uma carona.
Eu tenho a lembrança também de
As lembranças do passado também pegar a lancha da redinha, era um
momento muito mágico. A gente
ajudaram a revelar uma dinâmica do pegava aqui no cais da Tavares de
CAPÍTULO QUATRO
INSEGURANÇA
OUTROS TEMPOS
Era escuro, era difícil de chegar, Quando Lenilton me relatou sobre suas
você só chegava com carro, se
falava que era meio perigoso.
experiências da infância, de que andava
de ônibus sozinho e saia pelo centro da
A gente hoje não anda tanto a pé,
porque a sensação de insegurança é cidade a comprar soldadinhos de plástico
grande.
e bolas de gude, “biloca” como ele disse,
confesso que fiquei surpresa. A ideia de
uma criança de 8 anos fazendo o mesmo
hoje, se apega quase que
instantaneamente a minha preocupação
com a segurança dela.
ABANDONO
dessa história de violência. Você Cabe tanta coisa maravilhosa aí, e tá
tinha uma Natal ainda tranquila. assim, abandonada.
Tal fenômeno não foi particular da capital Olha, a maioria dessas casas são
casas particulares que os donos nem
Potiguar, o processo de decadência dos fazem nada nem ninguém compra
centros urbanos faz parte da história de para fazer algum investimento. Ai,
fica assim, né? Ó. Abandonado.
várias cidades brasileiras.
Porque tá muito maltratada a
Esses novos centros ou polos urbanos se Ribeira, né? Faz pena.
converteram no foco principal de
iniciativas públicas e privadas, Eu me lembro que meu avô dizia
redirecionando os grandes muito [...] que Natal era linda. Os
investimentos, o que intensificou a casarios da antiga Ribeira, subindo,
desvalorização de áreas urbanas todos eram bonitos. Aí as pessoas
centrais, outrora pontos de referência na começaram a descaracterizar tanto,
cidade. Deste modo, o centro primário sabe? Que é uma pena.
da cidade começou a ser identificado
pela concentração de atividades Juliana e Luiz relataram os assaltos que
econômicas informais, pela
gentrificação, pela degradação de seu sofreram na Ribeira, e em consequência 214
patrimônio histórico e pela subutilização de tal violência, ambos demonstraram
e abandono dos seus edifícios.
(ORREGO, 2012, p. 04) receio ao caminhar na região.
USOS
Tárcio contou como sente medo que o Voltando a visitar Jacobs (1961), me
abandono do centro histórico dê chance aproprio de reflexões apresentadas pela
para a tomada do espaço pelas drogas. autora em busca da construção da lógica
que pode explicar a insegurança no centro
A gente tem uma preocupação muito
grande com o crack. [...] Se histórico de Natal.
começar a ficar abandonado essa
coisa aqui, talvez a gente perca pra
Para a autora, mais importante do que a
droga. Como aí, a Praça Padre João
Maria até um dia desses tava. polícia ou mais eficaz do que a iluminação
que levou a vida cotidiana para novas bairro ou região, é necessário o trânsito
da rua e leva com ele a brecha de acesso Para que a expectativa de usuários e olhos
à uma classe de experiência que se abre atentos seja alcançada é interessante que
CAPÍTULO QUATRO
que não contribui para a melhoria da O povo tem medo, mas esse medo é
um medo construído, na verdade.
situação, uma vez que quanto menos
olhos atentos e relações entre pedestres e A construção desse medo, que envolve o
ESPETACULARES
À SUA MANEIRA
para a distinção e o realce dos pontos janela para o rio, traduzem bem o que o
manteve aberto para visitação. O contato grandiosidade, mas que revela interesses
65. Terminal de
Passageiros da
Ribeira, área de livre
acesso ao transeunte.
Acervo pessoal, 2015.
Particularmente para mim é difícil nesse espaço. Que é: Não sei o que
é.
visualizar a região como um produto fiel
do processo de espetacularização das Se a luz surge translúcida em meio ao
do espaço e que assim recebe mais abrandada, ela não deixa dúvidas em
Lira, por exemplo, que dispõe do mesmo que ocupa a Prefeitura Municipal de
INDÚSTRIA
DO PALANQUE
E isso aqui, o centro histórico de da “indústria do palanque” cria normas de
Natal, ó, daqui pra Ribeira até as
Rocas, havia cultura. Uma coisa
ocupação do espaço que preocupam por
normal. Você não tinha esse vetar a “performance do artista popular”,
business de butá um palco, num sei
o que. afastando a sua essência vibrante da rua
e dando espaço a ocupação de tais
Em entrevista com os personagens do
lugares por outros atores, a exemplo dos
Sebo Balalaika, alguns deles
usuários de drogas, ajudando na
mencionaram um incômodo que lhes
sensação de insegurança que acomete a
parece natural a contemporaneidade e
região.
que lhes faz sentir saudade de um
passado mais espontâneo. De que se começar a proibir evento,
de começar a proibir os bares abrir,
221 Hoje tá muito essa indústria do isso aqui vai tomar lugar pra quê?
evento, tem que pedir uma licença, Pro abandono.
num sei o que. Aí, a questão do
espontâneo, assim, tem, tem, mas é
menos, bem menos
eventos e a burocracia que surge com ela. durante os passeios acompanhados foi a
das ruas a essência cultural e boêmia do de que o natalense não se identifica com
224
A PÉ
225
CAPÍTULO QUATRO
226
A PÉ
227
CAPÍTULO QUATRO
228
A PÉ
229
CAPÍTULO QUATRO
230
A PÉ
231
INTERFERÊNCIAS
DE VÍNCULO
MEMÓRIA | CULTURA & BOEMIA | NATUREZA
ARQUITETURA | RESISTÊNCIA
CAPÍTULO QUATRO
MEMÓRIA
Eu sabia que a memória seria uma boa medo da viúva bicho papão e por acreditar
aliada no momento de identificar as que ela possa comer o seu fígado.
experiências daqueles que caminharam
As histórias da juventude também não
ao meu lado ou que cederam um pouco
escaparam aos relatos significativos,
de seu tempo para recordar suas
talvez por ser esse o período da vida em
lembranças mais significativas. Mas não
que mais nos permitimos ao risco e a
podia imaginar o quão expressivas
novas experiências. Como os que
seriam. Nas palavras e no tom da fala de
atravessavam a Ribeira e a Cidade Alta a
cada entrevistado, pude notar que muitas
pé e de madrugada, voltando para casa
das experiências das quais eles mais se
depois de uma festa nos clubes da cidade,
orgulhavam haviam acontecido no
ou a garota que passava horas
passado. 232
caminhando após do fim da aula, pelo
O tempo nos permite perceber a simples prazer em errar sem rumo. Ouvi
experiência ligada à idade. A exemplo das lembranças de rapazes que se despediam
aventuras da infância, quando um passeio das namoradas, “aqui nessa praça”, e que
no rio acontecia por uma lancha mágica, se reuniam com amigos para tocar violão
ou quando um caderno de colorir era e conversar no Grande Ponto depois que
capaz de distrair e fazer a hora correr mais saiam da missa. E quando a sessão de
rápido. Nos faz relembrar quando as luzes cinema acabava, não partiam sem antes
de natal eram vistas de um plano baixo, “traçar” um bom lanche e tomar vitamina
transformando a rua em parte de um de sapoti numa taça riscadinha.
universo lúdico que o adulto já não
Vivem na memória as festas da padroeira
enxerga depois que cresce. A experiência
na Praça André de Albuquerque e os
parece ser mais fácil para o menino, que
parques de diversões que traziam
descomplica a insegurança ao sair
barracas e música para quem passava.
sozinho para comprar biloca no centro,
mas que escolhe não visitar a rua com
A PÉ
Foi na Ribeira a primeira vez que alguém a ocupar outros corpos. A memória, que
subiu para cantar em um palco, que fez segue no passado é capaz de se fazer
um show de verdade, que resolveu presente através do interesse e da
organizar uma festa com os amigos e apreensão de quem ouve. E como o
acabou lotando um salão de beleza, ou narrador conta e leva à frente o que ele
que passava a semana imerso em um extrai da própria experiência ou daquela
intenso Blackout. contada pelo outro, ela estará sempre se
renovando, acumulando novos discursos
Tá doido! Era muito mais vivo!
e novos acontecimentos. Ao narrá-la, a
Na época em que o centro já foi “mais
saudade da Natal da geração de Antônio
bonito, mais prazeroso”, também era a
deixa de ser somente dele, e a vontade de
233 época em que se andava a pé, em que
revisitá-la, mesmo que pela primeira vez,
Natal era coisa bacana. Mas Antônio tem
captura novos ouvintes, novos possíveis
razão quando diz que “cada geração tem
errantes.
a sua cidade”, e que se a atual já não
compartilha as mesmas experiências e
não usa a rua da mesma maneira, é
natural sentir saudades.
NATUREZA
O RIO
Essa ambiência festiva e agradável típica Quando perguntei a Flávio se ele poderia
dos movimentos boêmios e culturais me apresentar, mesmo que em narrativa,
permeia tais eventos e contribui para a um espaço particular da região, ele me
aproximação entre as pessoas e a rua. respondeu que me levaria para ver a
cidade de dentro do rio.
70. Meladinha na mesa, Cidade Alta. A mesma impressão foi passada pela fala
Acervo pessoal, 2015.
de Luiz, em contato com suas lembranças
das aulas de remo.
JANELAS
daquele sábado, todos que ali E acho que muito ligado à essa coisa
da história. Pra mim, a arquitetura é
contemplavam a mesma paisagem se um negócio que influência muito na
aquietaram, pareciam estar imersos em minha vida, em estar em um lugar.
RESISTÊNCIA
Durante a minha apropriação teórica para exemplo, a zona residencial da Cidade
a construção dos conceitos de base deste Alta que parece desconhecida até mesmo
trabalho, li sobre a resistência das zonas àqueles que sentem a região como área
opacas: espaços de criatividade, abertos e apreendida. Mas talvez seja devido a isso
dissensuais que permanecem vivos em que tais zonas revelam uma ambiência
meio aos processos de modernização e diferenciada, intocável, e assim mais
espetacularização das cidades. E também intima e pessoal, como é o caso da Rua
tomei conhecimento da existência de da Misericórdia, única via em que
errantes e vaga-lumes, personagens que presenciei crianças brincando.
permeiam tais áreas e que traduzem a
Assim como o descaso e o abandono
experiência de alteridade na cidade.
permitiram a identificação das áreas
239
Já citei, aqui mesmo nessa narrativa, iluminadas, a resistência nos revela os
parte da minha opinião sobre as zonas vaga-lumes.
opacas do centro histórico. Sinto que
Eu não vô sair do centro não. Eu
devido ao abandono, a insegurança, e ao comecei aqui e vou ficar por aqui.
Até o final. Eu não vô levar meu sebo
investimento em outras áreas de
pro shopping.
interesse, o centro histórico se configura,
A lojinha apertada onde consertam-se
atualmente, como uma grande zona
roupas e calçados, sinaliza com uma luz
opaca. Mas com distinção em níveis de
pequena aquele que resiste há 40 anos.
iluminação que despontam do LED das
A escola que tem no rio o seu sustento e
fachadas da Prefeitura e chegam ao breu
filosofia, mesmo com a passagem e a
total nos becos da região.
vista cortadas, segue ensinando uma nova
As grandes avenidas que se ocupam de forma de olhar, e assim transforma
carros e do comércio, como a Av. Rio diariamente remadores em pequenas
Branco e a Av. Câmara Cascudo, são mais luzes sobre as águas do Rio Potengi. Uma
iluminadas do que as áreas residenciais associação de amigos que se esforça para
de pequenas casas e ruas estreitas, por criar alternativas de lazer mesmo com
CAPÍTULO QUATRO
poucos recursos, canta para que o beco, embriaguez agradável, também segue
aquele que passa despercebido, não resistindo em meio à luz da modernidade.
perca o samba para o crack. Os pequenos Ela surge com o cheiro do peixe no
comércios de bairro que emprestam suas mercado popular, na ladeira que
cadeiras às calçadas observam o jogo de determina o ritmo da caminhada, no calor
cartas improvisado do outro lado da rua. que te obriga a sentar e descansar, na
O bar de esquina com o beco, que apesar vista hipnotizante e na árvore que é capaz
do dono chato, oferecia o necessário para de abrir o telhado de uma casa para seguir
ascender a boemia da região. As zonas polinizando e resistindo em outros jardins.
opacas e os vaga-lumes do centro
A lembrança também está para além do
histórico resistem nesses espaços.
material e é através da narrativa, que ela
240
Espaços em que as regras são burladas e extrapola o corpo individual podendo
que os seus frequentadores aparecem por resistir por mais tempo no discurso do
se sentirem em casa, por saberem que se outro.
tratam de “cantinhos” únicos, repletos de
A seguir, os lambe-lambes produzidos a
uma identidade própria difícil de se
partir das reflexões apresentadas a
encontrar em tempos de cidades cartões
respeito de memória, cultura e boemia,
postais.
natureza, natureza, arquitetura e
Porque ela dizia que as vezes você resistência.
vai em um lugar que parece o
mesmo de outras cidades, sabe? Sugere-se a leitura do Apêndice C para
Que não tem nada de diferente.
Como um Mcdonalds da vida. [...] total compreensão dos conceitos adotados
Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela gostou. na produção dos lambes.
Além dos espaços físicos da arquitetura
construída, a natureza que refresca com a
sombra de uma árvore e que pelo vento
consegue provocar uma sensação de
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CAPÍTULO QUATRO
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5. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Domingo ali, fervilhava de gente. e descobri o encanto de conversar com
falta de algo essencial para o sucesso de bebemos juntos em uma mesa de bar.
uma boa narrativa, seja ela imagética ou Percebi o sotaque forte e me proporcionei
oral: “Personas” ele disse. mais tempo para ouvir do que falar.
Entendo as pessoas como a base material A minha narrativa nada mais é do que um
mais rica deste trabalho, afinal, foi através compartilhamento da narrativa de outras 250
da experiência delas, que hoje eu posso pessoas. A minha reflexão se apoia no que
afirmar ter uma narrativa para ser contada vivi ao lado deles, e no que eles tinham
sobre o centro histórico de Natal. para contar. Entendi que onde fervilha
gente, fervilha a experiência.
Pra mim, as coisas são muito ligadas
às pessoas. Cada canto tem uma E o dar corpo assume o propósito de
situação que eu vivi com alguém,
[..] é alguma coisa que marca. convite à experiência do outro mas ao
Sabe?
mesmo tempo ambiciona uma
Cada pessoa que caminhou a meu lado, ponderação sobre as posturas que
ou que sentou por algum instante entre o tomamos na cidade e como se dá a nossa
meu gravador e eu, foi capaz de me relação com ela. Tentei estimular o
fornecer narrativas que vão muito além de pensamento sobre hábitos urbanos
informações cruciais sobre o centro contemporâneos: por onde caminhamos,
histórico de Natal. Ouvi histórias pessoais por que deixamos de frequentar tal espaço
embaladas em gestos e expressões faciais e quais são os nossos vínculos
que denunciavam previamente o final da estabelecidos.
frase. Reconheci aqueles que já conhecia
A PÉ
aqui oferecida, sinto que meu objetivo foi nos lugares errados motivos para errar
atendido. pelo caminho certo.
Não coube a mim propor soluções ou criar E cabe a nós, seguirmos experienciando o
propostas de intervenções para além do outro lado e que essa experiência, de
efêmero e do crítico. Mas espero ter preferência, seja feita a pé.
conseguido ascender algumas luzes sobre
a importância da pequena escala e da
valorização do sensível. Que de alguma
forma contribua para a construção de uma
nova maneira de pensar, para uma nova
forma de se fazer urbanismo, em que, por
253
exemplo, o transporte ativo faça parte dos
planos de gestão da mobilidade; ou que
mais ruas sejam tomadas, e não só aos
domingos; que a divisão do espaço possa
ser repensada entre carros e pedestres, e
que a lembrança, como parte significativa
da memória, possa ser valorizada.
MANOEL DE BARROS
A PÉ
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261
7. APÊNDICES
APENDICE A. ROTEIRO PASSEIO ACOMPANHADO
1ª ETAPA. CONTEXTUALIZAÇÃO
Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não
precisa ser necessariamente efetuada em campo.
Deixar claro que não existe roteiro pré-estabelecido, nem é meu desejo conhecer 262
algum espaço em específico. O acompanhante tem total liberdade para me levar
aos lugares significativos para ele.
Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto
especial. Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar
que você sinta saudade.
3ª ETAPA. A CAMINHADA
Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não
263
precisa ser necessariamente efetuada em campo.
2ª ETAPA. CAMINHOS
Você tem alguma rua preferida? Ou algum caminho que goste de fazer? Porquê?
Existe algum lugar, ou mais de um, que você tenha algum afeto especial? Que
você mais gosta? Ou ache bonito? Qual é a história desse lugar?
Existe algum espaço ou memória de qual você sente falta? ou Você sente
saudades de algo aqui no centro histórico?
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