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«Manuais Universitários»

GILBERT RYLE

publicado:

INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A — O CONCEITO D E ESPIRITO


INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA
de Gilbert Ryle

a publicar: O CONCEITO D E ESPÍRITO


HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL

de Jean-François Revel

DÍDLIOT~C ft C Á o
FACL: '2 A D 17. tí O L_ D o o .

COLEÇAO

Cr. JUAN JOSÉ MQURi&O MOSQUERA

editores
Título original
T H E CONCEPT OP MIND

© Gilbert R y l e

INTRODUÇÃO
Tradução dt

M. Luísa Nuae»
Este l i v r o oferece aquilo a que se pode chamar, com reservas, uma
teoria do espírito. Mas não dá informações novas acerca dos espíritos.
Possuímos já bastantes conhecimentos sobre os espíritos, os quais não
são derivados nem perturbados pelos argumentos dos filósofos. Os
Capa de argumentos filosóficos que constituem este l i v r o não pretendem aumen-
t a r o que sabemos acerca dos espíritos, mas s i m r e c t i f i c a r a geografia
Mendes de O l i v e i r a
lógica do conhecimento que já possuímos.
Professores e examinadores, magistrados e críticos, historiadores
e romancistas, confessores e sargentos, empregados, patrões e sócios,
pais, apaixonados, amigos e inimigos, todos sabem resolver bastante
bem os seus problemas diários relativos às qualidades de carácter e
inteligência dos indivíduos com quem têm de lidar. Sabem apreciar os
seus actos, avaliar o seu progresso, compreender as suas palavras e
acções, discernir os seus motivos e entender as suas brincadeiras. Se
se enganam, sabem como c o r r i g i r os seus erros. E, o que é mais, podem
influenciar deliberadamente o espírito daqueles com quem contactam
pela crítica, exemplo, ensinamento, sanções, suborno, troça e persuasão,
V F R Q S
modificando assim o seu comportamento à luz dos resultados obtidos.
MC DB EDDCiÇÃO
Tanto ao descrever o espírito dos outros como ao fazer recomenda-
BIBLIOTECA
REG. N/> £ í l í ? ções a seu respeito, estão a manejar com maior ou menor eficiência
conceitos de poderes e operações mentais. Aprenderam como aplicar
em situações concretas qualificações de comportamento mental, como
«cuidadoso», «estúpido», «lógico», «negligente», «habilidoso», «frívolo»,
«metódico», «crédulo», «espirituoso», «com auto-domínio» e milhares
de outros.
Direitos p a r a a língua portuguesa Contudo, uma coisa é saber como aplicar tais conceitos e outra,
reservados por Moraes Editores completamente diferente, saber como relacioná-los uns com os outros
Av. 5 de Outubro, 297-1." D.to e com conceitos de outras espécies. Muitas pessoas podem falar acerta-
Lisboa 1970 damente aplicando conceitos, mas não o podem fazer acerca deles;
8 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A INTRODUÇÃO 9

sabem, pela prática, como lidar com conceitos dentro de campos f a m i - inveterados, não virá, na verdade, reforçar os argumentos rigorosos,
liares, mas não são capazes de estabelecer as regras lógicas que gover- mas enfraquecer a sua resistência.
nam o seu uso. São como as pessoas que conhecem todos os caminhos A l g u n s leitores podem pensar que o t o m deste l i v r o é excessiva-
da sua aldeia, mas que não são capazes de fazer ou ler u m mapa mente polémico. Talvez os conforte saber que as posições contra as
dela, m u i t o menos u m mapa da região ou continente em que essa quais mostro mais calor são posições de que eu próprio f u i vítima. V o u
aldeia se encontra. tentar, principalmente, excluir certas desordens do meu próprio sistema.
Para certos fins, é necessário determinar as coordenadas lógicas Só secundariamente espero ajudar outros teóricos a reconhecer a nossa
dos conceitos que sabemos m u i t o bem aplicar. A s tentativas para doença e a beneficiar da minha receita.
levar a efeito esta operação sobre os conceitos dos poderes, operações
e estados de espírito constituíram sempre uma grande parte do trabalho
dos filósofos. Teorias do conhecimento, lógica, ética, teoria política e
estética são produtos das suas investigações neste campo. Algumas
destas investigações fizeram consideráveis progressos locais, mas este
l i v r o pretende demonstrar que, durante os três séculos da era da
ciência n a t u r a l , as categorias lógicas segundo as quais os conceitos dos
poderes e operações mentais f o r a m coordenados, f o r a m erroneamente
seleccionadas. Descartes deixou, como u m dos seus principais legados
filosóficos, u m m i t o que continua a deturpar a geografia continental
deste tema.
U m m i t o não é, evidentemente, u m a história de fadas. È a apresen-
tação de factos pertencentes a determinada categoria numa linguagem
apropriada a outra. Portanto, r e j e i t a r u m m i t o não é negar os factos,
mas situá-los de novo. E é isto que v o u t e n t a r fazer.
L Determinar a geografia lógica dos conceitos é revelar a lógica das
proposições em que assentam, ou seja, m o s t r a r quais as outras propo-
sições com que são compatíveis e incompatíveis, quais as jproposições
que se deduzem delas e quais aquelas de que são deduzidasTjO t i p o ou
categoria lógica a que u m conceito pertence é o conjunto de processos
pelos quais é logicamente legítimo t r a b a l h a r com ele. Os argumentos-
-base empregados neste l i v r o pretendem, portanto, m o s t r a r as razões
pelas quais certas espécies de operações com conceitos de poderes e
processos mentais são infracções às regras lógicas. Tento usar argu-
mentos de reductio ad ábsurdum, t a n t o para denunciar operações i m -
plicitamente recomendadas pelo m i t o cartesiano, como para indicar
em que tipos lógicos devem ser situados os conceitos em estudo. Não
penso, no entanto, que seja inadequado usar de vez em quando
argumentos de t i p o menos rigoroso, especialmente quando isto parecer
conveniente para f a c i l i t a r ou adaptar. A filosofia é a substituição da
categoria-hábito pela categoria-disciplina e se a persuasão de géneros
conciliatórios facilita o sacrifício de renunciar a hábitos intelectuais
CAPITULO I

O MITO D E DESCARTES

(1) A DOUTRINA OFICIAL

Há uma doutrina acerca da natureza e lugar dos espíritos que t e m


t a n t a preponderância entre especialistas e mesmo leigos, que merece ser
descrita como teoria oficial. Muitos filósofos, psicólogos e profes-
sores religiosos subscrevem, com reservas mínimas, os seus principais
artigos e, embora a d m i t a m que existem certas dificuldades teóricas
nesta teoria, têm tendência para pensar que estas podem ser superadas
com certas modificações à arquitectura da teoria. I r e i defender aqui
que os princípios centrais da d o u t r i n a estão errados e e n t r a m em con-
f l i t o com t u d o o que sabemos sobre os espíritos, quando não estamos
a especular acerca deles.
A d o u t r i n a oficial, que vem principalmente de Descartes, é qualquer
coisa como i s t o : com as excepções duvidosas dos idiotas e das crianças
de colo, todo o ser humano t e m u m corpo e u m espírito. A l g u n s prefe-
r i r i a m dizer que todo o ser humano é simultaneamente corpo e espírito.
O seu corpo e o seu espírito estão geralmente reunidos, mas depois da
morte do corpo o espírito pode continuar a e x i s t i r e a funcionar.
O corpo humano existe no espaço e está sujeito às leis mecânicas
que governam todos os outros corpos existentes no espaço. Os processos
e estados corporais podem ser verificados por observadores externos.
Assim, a vida corporal de u m homem é tão pública como a vida dos
quadrúpedes e répteis e até como a das árvores, cristais e planetas.
Mas os espíritos não existem no espaço e as suas operações não
estão sujeitas a leis mecânicas. O t r a b a l h o de u m espírito não é teste-
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O MITO D E D E S C A R T E S

munhável por outros observadores; o seu curso é privado. Só eu posso pessoa relativos à sua vida interior, mas também não poderiam ser
ter conhecimento directo dos estados e processos do meu próprio espí- descritos entre os acontecimentos mencionados por o u t r e m na b i o g r a f i a
r i t o . U m a pessoa vive portanto através de duas histórias colaterais, da vida pública dessa pessoa. Não podem ser observados nem por intros-
consistindo uma no que acontece no e ao seu corpo, a outra no que pecção nem por experiências de laboratório. São teoricamente flutuantes
acontece no e ao seu espírito. A p r i m e i r a é pública, a segunda privada. e têm sido, através dos tempos, passados dos fisiologistas para os psi-
Os acontecimentos da p r i m e i r a história fazem parte do mundo físico, cólogos e dos psicólogos para os fisiologistas.
os da segunda são acontecimentos do mundo mental. N a base desta representação, em parte metafórica, da bifurcação
Tem sido discutido se uma pessoa é ou pode ser directamente cons- das duas vidas de uma pessoa, há aparentemente uma pretensão mais
ciente de todos ou somente de alguns dos episódios da sua história p r i - profunda e filosófica. Supõe-se que há duas espécies diferentes de exis-
vada, mas de acordo com a doutrina oficial tem conhecimento indubi- tência ou estatuto. O que existe ou acontece pode t e r o estatuto de exis-
tável de pelo menos alguns deste episódios. Pela consciência, auto-cons- tência física ou de existência mental. U m pouco como as faces das moe-
ciência e introspecção está directa e autenticamente ao facto dos actuais das são caras ou coroas, ou como as criaturas vivas são macho ou fêmea,
estados e operações do seu espírito. Pode ter muitas ou poucas dú- assim se supõe que determinada existência é existência física e outra
vidas acerca dos episódios concorrentes ou adjacentes no mundo físico, é existência mental. É característica necessária daquilo que t e m exis-
mas não pode ter nenhumas pelo menos quanto a parte do que está mo- tência física e x i s t i r no espaço e no tempo, e é característica do que t e m •
mentaneamente a ocupar o seu espírito. existência mental existir no tempo mas não no espaço. O que t e m exis-
Ê costume expressar a bifurcação destas duas vidas e destes dois tência física é constituído por matéria ou é uma função da matéria; o
mundos dizendo que as coisas e acontecimentos que pertencem ao mundo que tem existência mental consiste em consciência ou é uma função da
físico, incluindo o próprio corpo, são exteriores, enquanto o trabalho do consciência.
espírito é interior. Esta antítese de exterior e interior deve evidente- Existe, assim, uma oposição de pólos entre espírito e matéria,
mente ser interpretada como uma metáfora, dado que o espírito, não oposição essa que é muitas vezes apresentada do seguinte modo: os ob-
existindo no espaço, não pode ser descrito como estando espacialmente jectos materiais estão situados n u m campo comum, chamado «espaço»,
incluindo em qualquer outra coisa ou como se se passassem coisas espe- e o que acontece a u m corpo numa porção de espaço está mecanicamente
cialmente dentro dele. Mas são comuns os deslises desta boa intenção e relacionado com o que acontece a outros corpos noutras porções de
encontramos teóricos a especular sobre o modo segundo o qual os estí- espaço. Mas os acontecimentos mentais ocorrem em campos isolados,
mulos, fontes físicas que se encontram a metros ou quilómetros de chamados «espíritos», e não há, exceptuando talvez a telepatia, relação
distância da pele da pessoa, podem dar origem a respostas mentais do causal entre o que acontece n u m espírito e o que acontece noutro. So-
seu cérebro, ou como decisões enquadradas no âmbito do seu cérebro mente por intermédio do mundo físico público pode u m espírito influen-
podem comandar movimentos das suas extremidades. ciar o espírito de outra pessoa. O espírito é o seu próprio lugar e, na sua
Mesmo quando «exterior» e «interior» são interpretados como me- vida interior, cada u m de nós vive a vida de u m Robinson Crusoe fan-
táforas, o problema de como o corpo e o espírito de u m indivíduo se tasma. As pessoas podem ver, o u v i r e sacudir o corpo dos outros, mas
interinfluenciam está seriamente carregado de dificuldades teóricas. são irremediavelmente cegas e surdas às operações do espírito dos ou-
O que o espírito quer é executado pelas pernas, braços e língua: tros, e sem acção nelas.
o que afecta o ouvido e a vista t e m algo a ver com as percepções do espí- Que espécie de conhecimento pode ser assegurado sobre o t r a b a l h o
r i t o ; as caretas e os sorrisos denunciam a disposição do espírito e os de u m espírito? Por u m lado, de acordo com a teoria oficial, uma pessoa
castigos corporais conduzem, pelo menos assim se espera, ao aperfeiçoa- tem conhecimento directo da m a i o r i a das espécies imagináveis da activi-
mento m o r a l . Mas as relações efectivas entre os episódios da história dade do seu próprio espírito. Os estados e processos mentais são (pelo
privada e os da história pública permanecem misteriosas, dado que por menos normalmente) estados e processos conscientes e a consciência
definição não podem pertencer a nenhuma delas. Não poderiam ser que os ilumina não pode c r i a r ilusões e não deixa margem a quaisquer
descritas entre os acontecimentos relatados na autobiografia de uma dúvidas. Os pensamentos actuais de uma pessoa, as suas sensações
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e desejos, as suas percepções, recordações e imaginações são intrinseca- privilegiado, as operações de u m espírito são inevitavelmente ocultas
mente «fosforecentes»; a sua existência e natureza são inevitavelmente para qualquer outra pessoa. Os supostos argumentos de que a m o v i -
reveladas aos seus possuidores. A vida i n t e r i o r é uma corrente de cons- mentos físicos similares correspondem operações mentais similares
ciência de t a l espécie que seria absurdo sugerir que o espírito, cuja vida não têm qualquer possibilidade de corroboração experimental. Não
é essa corrente, desconhecesse o que se passa nela. é de estranhar, portanto, que u m adepto da teoria oficial ache difícil
É verdade que a evidência recentemente aduzida por Freud parece resistir a esta consequência das suas premissas, de que não há qualquer
m o s t r a r que existem canais afluentes desta corrente que correm escon- razão de peso para acreditar que existem outros espíritos além do seu.
didos do seu possuidor. A s pessoas são movidas por impulsos cuja exis- Mesmo se prefere acreditar que em outros corpos humanos há espíritos
tência repudiam vigorosamente. Alguns dos seus pensamentos diferem semelhantes ao seu, não pode dizer que é capaz de descobrir as suas
daqueles que confessam e alguns dos actos que pensam t e r desejo de características individuais ou as coisas particulares que esses espíritos
praticar não são na verdade desejados por elas. A s pessoas são profun- fazem ou experimentam. A solidão absoluta é, nesta ordem de ideias,
damente enganadas por algumas das suas próprias hipocrisias e igno- o destino inelutável da alma. Só os nossos corpos se podem encontrar.
r a m efectivamente factos da sua vida mental que, segundo a teoria Come corolário necessário deste esquema geral, está implicitamente
oficial, lhes deveriam ser patentes. Os defensores da teoria oficial têm indicada uma maneira especial de i n t e r p r e t a r os nossos conceitos v u l -
no entanto tendência para manter que de qualquer modo, e em circuns- gares de faculdades e operações mentais. Os verbos, substantivos e
tâncias normais, u m indivíduo deve t e r conhecimento directo t autên- adjectivos com os quais na vida n o r m a l descrevemos a compreensão,
tico do estado actual e da actividade do seu espírito. carácter e acções de mais alto nível das pessoas com quem contactamos,
devem ser interpretados como significando episódios especiais das suas
Para além de estar geralmente em poder destes chamados dados
histórias secretas ou como tendências significativas para que tais epi-
imediatos da consciência, também se supõe que o indivíduo é capaz de
sódios ocorram. Quando se descreve alguém como sabendo, acreditando
exercer de vez em quando uma determinada espécie de percepção inte-
ou julgando alguma coisa, esperando, receando, planeando ou evitando
r i o r ou introspecção. Pode dar uma «vista de olhos» (não óptica) ao que qualquer coisa, projectando isto ou divertindo-se com aquilo, supõe-se
se está a passar no seu espírito. Pode, não só observar e examinar uma que estes verbos indicam a ocorrência de modificações específicas na
f l o r através do seu sentido da vista, escutar e d i s t i n g u i r as notas de u m sua (para nós) oculta corrente de consciência. Só o seu acesso p r i v i l e -
sino através do ouvido, como também olhar reflexiva ou introspectiva- giado a esta corrente, em conhecimento directo e introspecção, poderia
mente, sem quaisquer órgãos físicos dos sentidos, os episódios correntes dar testemunho autêntico de que estes verbos de comportamento mental
da sua vida interior. Também é comum acreditar-se que esta auto-obser- f o r a m correcta ou incorrectamente aplicados. O espectador, seja ele pro-
vação está imunizada contra a ilusão, a confusão ou a dúvida.\0 relato fessor, crítico, biógrafo ou amigo, nunca pode ter a certeza de que os
de u m espírito sobre os seus próprios assuntos é de uma certeza superior seus comentários tenham quaisquer laivos de verdade. E f o i justamente
ao melhor que ele pode fazer através de relatos de assuntos do mundo porque de facto todos sabemos fazer tais comentários e os faze-
físico. As percepções sensoriais podem ser enganadas ou confundidas, mos de uma maneira geral correctamente ou os corrigimos quando se
mas não a consciência e a introspecção. t o r n a m confusos ou errados, que os filósofos acharam necessário cons-
Por outro lado, u m a pessoa não t e m acesso directo a nenhuma t r u i r as suas teorias sobre a natureza e lugar dos espíritos. Sendo de
opinião de que os conceitos de comportamento mental são usados regu-
espécie de conhecimentos sobre a vida i n t e r i o r de outra. Não pode fazer
lar e efectivamente, procuraram estabelecer convenientemente a sua
mais do que t i r a r inferências problemáticas do comportamento físico
geografia lógica. Mas a geografia lógica recomendada oficialmente i m -
observado do corpo de outra pessoa para os seus estados de espírito,
plicaria que não se poderia fazer uso regular ou efectivo destes
os quais, por analogia com o seu próprio comportamento, julgue serem
conceitos de realidade mental nas nossas descrições dos espíritos de
sintomas desse comportamento. O acesso directo à actividade de u m outras pessoas, ou prescrições em seu favor.
espírito é u m privilégio desse próprio espírito; à f a l t a desse acesso
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(2) O ABSURDO DA DOUTRINA OFICIAL esquadrões desfilando, estava a ver o desfile da divisão. O desfile não
era uma parada de batalhões, baterias, esquadrões e u m a divisão. E r a
Ê esta, em linhas gerais, a teoria oficial. Falarei muitas vezes dela, uma parada de batalhões, baterias e esquadrões de u m a divisão.
com exagero deliberado, como do «dogma do Fantasma na máquina». Mais u m exemplo: u m estrangeiro, ao ver o seu p r i m e i r o j o g o de
Espero provar que ela é inteiramente falsa, não em pormenor, mas em críquete, aprende quais são as funções dos batedores, do jogador que
princípio. Não é uma mera reunião de erros particulares. É u m grande maneja a pá, dos que apanham a bola jogada pelo batedor, dos árbitros
erro e u m erro de género especial. É, designadamente, u m erro-catego- e dos marcadores. Dirá então: «Mas não fica ninguém no campo que
r i a . I m a g i n a os factos da vida mental como se pertencessem a u m contribua para o famoso espírito de equipa. Vejo quem faz o lançamen-
tipo ou categoria lógicos (ou classe de tipos ou categorias) quando to, o manejamento da pá e o guarda da meia porta i n f e r i o r ; mas não
efectivamente pertencem a o u t r a categoria. O dogma é portanto u m vejo quem terá por missão f o r m a r o esprit de corps. Mais u m a vez t e r i a
m i t o do filósofo. A o t e n t a r denunciar o m i t o , dir-se-á provavelmente de se lhe explicar que estava a ver as coisas de u m a maneira errada. O
que nego factos bem conhecidos da vida mental dos seres humanos e a espírito de equipa não é uma operação de críquete suplementar às o u -
minha alegação de que apenas aspiro a r e c t i f i c a r a lógica dos conceitos tras tarefas. É s i m , grosso modo, o entusiasmo com que cada t a r e f a
de alcance mental será porventura tomada como u m mero subterfúgio. é feita, e desempenhar uma tarefa com entusiasmo não é o mesmo que
Devo indicar em p r i m e i r o lugar o que pretendo significar com a desempenhar duas tarefas. Certamente que demonstrar espírito de
expressão «Erro-categoria». Fá-lo-ei por uma série de exemplos. equipa não é a mesma coisa que bolar ou defender, mas também não é
A u m estrangeiro que visite pela p r i m e i r a vez O x f o r d ou Cam- uma terceira coisa, de modo a podermos dizer que aquele que bola p r i -
bridge, iremos mostrar u m certo número de faculdades, bibliotecas, meiro bola e depois exibe espírito de equipa ou que o defesa está em
campos de jogos, museus, secções científicas e repartições a d m i n i s t r a - determinado momento a defender e a m o s t r a r esprit de corps.
tivas. Então ele perguntará: «Mas onde está a Universidade? V i onde Estes exemplos de erros-categoria têm uma característica comum
vivem os membros dos Colégios, onde t r a b a l h a o conservador, onde que deve ser notada. Os erros f o r a m feitos por pessoas que não sabiam
é que os cientistas fazem experiências, etc. Mas ainda não v i a U n i - u t i l i z a r os conceitos de Universidade, divisão e espírito de eqvÀpa.
versidade em que residem e t r a b a l h a m os membros da vossa U n i v e r s i - A sua confusão s u r g i u da incapacidade. de usar certos vocábulos de
dade». Tem então que se lhe explicar que a Universidade não é u m a determinada língua. .
instituição colateral, uma contra-partida u l t e r i o r das faculdades, labo- Os erros-categoria de interesse teórico são os produzidos por pes-
ratórios e repartições que ele v i u . A Universidade é precisamente a ma- soas perfeitamente competentes para aplicar conceitos, pelo menos em
neira como tudo o que ele v i u está organizado. Quando se v i r a m essas situações que lhes são familiares, mas que estão ainda sujeitas, nos
coisas e se compreendeu a sua coordenação, está vista a Universidade. seus pensamentos abstractos, a s i t u a r esses conceitos em tipos lógicos
O seu erro assenta na suposição inocente de que era correcto f a l a r da a que eles não pertencem. U m exemplo de u m erro deste género seria
Christ Church, da Bodleian Library, do Ashmolean Museum e da U n i - a seguinte história: u m estudante de ciências políticas aprendeu as
versidade, como se a «Universidade» significasse u m membro extra da principais diferenças entre as constituições inglesa, francesa e a m e r i -
classe da qual estas outras unidades são membros. Ele estava a s i t u a r cana e aprendeu também as diferenças e ligações entre o Ministério,
erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras ins- o Parlamento, os vários Ministros, a M a g i s t r a t u r a e a I g r e j a de I n g l a -
tituições pertencem. t e r r a . Mas ainda se sente embaraçado quando lhe fazem perguntas
E r r o semelhante seria o da criança que, presenceando o desfile de acerca das ligações entre a Igreja de I n g l a t e r r a , o Ministério do I n t e r i o r
uma divisão e a quem tivessem assinalado t a l divisão como batalhões, e a Constituição Britânica. Porque, enquanto a I g r e j a e o Ministério
baterias, esquadrões, e t c , perguntasse quando é que aparecia a divisão. do I n t e r i o r são instituições, a Constituição Britânica não é u m a o u t r a
Essa criança suporia que a divisão era uma coisa à parte das unidades já instituição, no mesmo sentido dessa palavra. Assim, as relações i n t e r -
vistas, em parte semelhante a elas, em parte diferente. Explicar- -institucionais que podem ser afirmadas ou negadas entre a I g r e j a e o
-lhe-íamos o seu erro dizendo-lhe que, ao ver os batalhões, baterias e Ministério do I n t e r i o r , não podem ser afirmadas ou negadas entre qual-

I . P. — 2
18 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A O MITO D E D E S C A R T E S 1

quer deles e a Constituição Britânica. A «Constituição Britânica» não e moral, não poderia aceitar, como Hobbes aceitou, os desencorajante:
é u m t e r m o do mesmo t i p o lógico de «Ministério do Interior» ou de corolários dessas descobertas, ou seja, que a natureza humana diferi
«Igreja de Inglaterra». De u m modo em parte sememante, Fulano pode apenas em g r a u de complexidade do mecanismo de u m relógio. C
ser u m conhecido, u m amigo, u m inimigo ou u m estranho para Cicrano; mental não poderia ser apenas uma variedade do mecânico.
mas não pode ser nenhuma destas coisas em relação ao Contribuinte Ele e outros filósofos que se lhe seguiram, natural mas> errónea
Médio. Ele é capaz de falar acertadamente em certas discussões do mente, a r r a n j a r a m a seguinte escapatória: visto que as [«lavra:
Contribuinte Médio, mas f i c a r i a confuso ao tentar explicar porque não conteúdo mental não devem ser interpretadas como significando ;
poderia encontrá-lo por acaso na r u a , como poderia acontecer com ocorrência de processos não mecânicos; visto que as leis mecânica;
Cicrano. explicam movimentos no espaço como efeitos de outros movimentos n<
É pertinente em relação ao assunto que nos ocupa notar que, en- espaço, outras leis devem explicar operações não espaciais dos espírito.'
quanto o estudante de ciências políticas continuar a pensar na C o n s t i t u i - como efeitos de outras operações não espaciais dos espíritos. A diferen
ção Britânica como a contra-partida de outras instituições, terá tendên- ça entre os comportamentos humanos que descrevemos como inteligen
cia para descrevê-la como uma instituição misteriosamente oculta; e tes e os que descrevemos como não inteligentes, deve ser uma diferença
enquanto Fulano continuar a pensar no Contribuinte Médio como u m de causa; assim, enquanto alguns movimentos da língua e dos lábiot
concidadão, terá tendência para pensar nele como u m homem i m a t e r i a l humanos são efeitos de causas mecânicas, outros devem ser efeitos dt
e fugidio, u m fantasma que está em toda a parte e em parte nenhuma. causas não mecânicas, isto é, alguns são originados por movimentos dt
O meu propósito destrutivo é mostrar que uma família de erros-ca- partículas de matéria, outros são originados por actividades do espírito
tegoria radicais é a fonte da teoria da dupla-vida. A apresentação de A s diferenças entre o físico e o mental eram assim vistas corne
uma pessoa como u m fantasma misteriosamente escondido numa diferenças dentro da e s t r u t u r a comum das categorias de «coisa»
máquina deriva deste argumento. Porque, como é verdade, se os actos «substância», «atributo», «estado», «processo», «mudança», «causa» t
de u m a pessoa pensar, sentir e desejar não podem ser descritos exclu- «efeito». Os espíritos são coisas, mas coisas de espécie diferente dc
sivamente na linguagem da física, da química e da fisiologia, têm por- corpo; os processos mentais são causas e efeitos, mas espécies diferen-
tanto de ser descritos em linguagens paralelas. Assim como o corpo tes de causas e efeitos dos movimentos corporais. E assim sucessiva-
humano é uma unidade complexa organizada, também o espírito mente. Assim, como o estrangeiro esperava que a Universidade fosse um
humano t e m de ser o u t r a unidade complexa organizada, ainda que edifício extra, em parte semelhante a uma faculdade mas também
composto por u m a substância de espécie diferente e com e s t r u t u r a de consideravelmente diferente, também os repudiadores da mecânica
espécie diferente. Ora, mais uma vez, como o corpo humano, t a l como imaginavam os espíritos como centros extra dos processos causais, em
qualquer o u t r a parcela de matéria, é u m campo de causas e efeitos, parte semelhantes a máquinas, mas também consideravelmente diferen-
também o espírito deve ser outro campo de causas e efeitos, tes delas. A sua teoria era uma hipótese para-mecânica.
ainda que (Deus seja louvado!) causas e efeitos não mecânicos.
Que este postulado estava no centro da d o u t r i n a , é demonstrado
pelo facto de ter havido, desde o princípio, uma grande dificuldade
(3) A ORIGEM DO ERRO-CATEGORIA teórica em explicar como o espírito podia influenciar e ser influenciado
pelo corpo. Como pode u m processo mental, por exemplo u m desejo,
U m a das principais origens intelectuais daquilo que tenho ainda dc causar movimentos espaciais, como os movimentos da língua? Como
provar que o erro-categoria cartesiano é, parece ser esta: quando Gali- pode uma mudança física do nervo óptico ter entre os seus efeitos uma
leu mostrou que os seus métodos de descoberta científica eram capazes percepção do espírito de u m feixe luminoso? Esta dificuldade evidente
de estabelecer uma teoria mecânica que abrangeria todos os ocupantes mostra por si própria o molde lógico no qual Descartes c o m p r i m i u a sua
do espaço, Descartes encontrou em si próprio duas razões em conflito. teoria do espírito. E r a o mesmo molde pelo qual ele e Galileu t i n h a m
Como homem de génio científico, não t i n h a o u t r o remédio senão sancio- ajustado as suas teorias mecânicas. Aderindo, ainda que i n v o l u n t a r i a -
n a r as descobertas da mecânica; ao passo que, como homem religioso mente, à gramática da mecânica, tentou evitar o desastre, descrevendo
20 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A O MITO D E D E S C A R T E S 21

os espíritos com u m vocabulário meramente simétrico. As operações do corpos humanos, dado que nunca poderia t e r acesso às causas imate-
espírito t i n h a m de ser descritas por meio dos simples negativos das riais postuladas de algumas das suas expressões. Salvo a seu próprio
descrições específicas feitas para o corpo; não existem no espaço, não respeito, e com reservas, uma pessoa nunca poderia dizer qual a dife-
são movimentos, não são modificações da matéria, não são acessíveis à rença entre u m homem e u m robot. Teria que se a d m i t i r , por exemplo,
observação pública. Os espíritos não são peças do mecanismo de u m que, t a n t o quanto podemos saber, a vida i n t e r i o r das pessoas que são
relógio, são precisamente peças que não pertencem a esse mecanismo. classificadas como idiotas ou loucas é tão racional como a de qualquer
A s s i m representados, os espíritos não são simplesmente fantasmas outra pessoa. Talvez só o seu comportamento seja insólito, isto é, talvez
acorrentados a máquinas: são eles próprios máquinas fantasmas. os «idiotas» não sejam realmente idiotas, nem os «loucos» realmente
E m b o r a o corpo humano seja uma máquina, não é uma máquina loucos. Talvez, também, muitas das pessoas classificadas como sãs
vulgar, dado que algumas das suas operações são governadas por uma sejam na realidade idiotas. De acordo com a teoria, os observadores
o u t r a máquina interna — sendo esta máquina-directriz interna de uma externos nunca poderiam saber em que medida o comportamento ma-
espécie m u i t o especial. É invisível, inaudível e não t e m dimensão ou nifestado por outras pessoas está relacionado com as suas capacidades
peso. Não pode ser desmontada e as leis a que obedece não são as conhe- e processos mentais e assim nunca poderiam saber nem sequer conjec-
cidas pelos engenheiros vulgares. Nada se sabe sobre a forma como go- t u r a r plausivelmente se as suas aplicações dos conceitos de conteúdo
verna a máquina corporal. mental em relação a essas pessoas estariam certas ou erradas. Seria
Há uma segunda dificuldade importante para esta teoria. Dado assim incerto ou impossível a uma pessoa reivindicar para s i própria
que, de acordo com a doutrina, o espirito pertence à mesma categoria sanidade mental ou coerência lógica, visto que estaria impedida de
que o corpo e dado que o corpo é rigidamente governado por leis mecâ- comparar as suas próprias acções com as dos outros. Resumindo, as
nicas, pareceu acertado a muitos teóricos que o espírito fosse s i m i l a r - nossas apreciações sobre as pessoas e suas acções como inteligentes,
mente governado por leis rígidas não-mecánicas. O mundo físico é u m prudentes, virtuosas ou estúpidas, hipócritas ou cobardes, nunca pode-
sitema determinista, t a l como o mundo mental o deve ser também. O r i a m ser feitas e, assim, o problema de estabelecer uma hipótese causal
corpo não pode evitar as modificações a que está sujeito, assim como para servir de base a t a l diagnóstico nunca seria posto. A questão «Em
o espírito não pode evitar a realização do destino que lhe f o i fixado. que é que as pessoas diferem das máquinas?» s u r g i u precisamente
Responsabilidade, escolha, mérito e demérito são p o r t a n t o conceitos porque todos já sabiam aplicar os conceitos de conteúdo mental
inaplicáveis — a menos que se adopte uma solução de compromisso, antes de as novas hipóteses causais terem sido introduzidas. E s t a
dizendo que as leis que governam os processos mentais, diferentemente hipótese causal não podia portanto ser a fonte do critério usado nessas
das que governam os processos físicos, têm u m a t r i b u t o próprio, o de aplicações. Nem, evidentemente, a hipótese causal melhorou em qual-
serem relativamente pouco rígidas. O problema do livre-arbítrio era quer g r a u a nossa maneira de lidar com esses critérios. A i n d a dis-
o problema de como conciliar a hipótese de que os espíritos devem ser tinguimos as ideias de boa e má aritmética, o comportamento polí-
descritos em termos tirados das categorias da mecânica com o conhe- tico do impolítico, a imaginação fértil da f a l t a de imaginação, do
cimento de que o comportamento humano de nível superior não é igual mesmo modo que Descartes os d i s t i n g u i u antes e depois de ter especula-
ao funcionamento da máquina. do acerca de como a aplicabilidade destes critérios era compatível com
o princípio de causalidade mecânica.
É uma curiosidade histórica o facto de nunca se t e r notado
que toda esta argumentação assentava n u m erro. Os teóricos supuseram Descartes i l u d i u a lógica deste problema. E m vez de perguntar por
com razão que nenhum homem bom de cabeça poderia aceitar já as que critério o comportamento inteligente se distingue efectivamente do
diferenças entre, digamos, as expressões racionais e não racionais, ou não inteligente, p e r g u n t o u : «Dado que o princípio da causalidade mecâ-
entre comportamento intencional e automático. Depois disso nada nica não nos diz qual a diferença, que o u t r o princípio causal no-la
haveria a salvaguardar do mecanicismo. A explicação dada pressupunha dirá?» Concluiu que o problema não era de mecânica e supôs que devia
ainda que u m indivíduo nunca poderia, em princípio, reconhecer a ser, portanto, de alguma correspondência da mecânica. Não r a r o a psico-
diferença entre as expressões racionais e irracionais emitidas por outros logia é chamada a desempenhar este papel.
22 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O MITO D E D E S C A R T E S 23

Quando dois termos pertencem à mesma categoria, podem cons- sentidos diferentes em «a maré está a subir», «as esperanças estão
truir-se proposições copulativas que os englobem. Assim, u m comprador a subir», «a média da longevidade está a subir». Pensar-se-ia que
pode dizer que comprou u m luva da mão esquerda e uma luva da mão u m homem estava a dizer uma graça, aliás fraca, se dissesse
direita, mas não que comprou uma luva da mão esquerda, uma luva da que três coisas estão agora a subir, ou seja, a maré, as esperan-
mão d i r e i t a e u m par de luvas. «Ela chegou a casa n u m m a r de lágrimas ças e a média da longevidade. Seria uma graça igualmente boa ou má
e n u m carro descapotável»: é uma anedota bem conhecida baseada no dizer que existem números primos, quartas-feiras, opiniões públicas e
absurdo de j u n t a r termos de tipos diferentes. Seria igualmente ridículo m a r i n h a de g u e r r a ; ou que existem espíritos e corpos. Nos capítulos
c o n s t r u i r : a disjunção: «Ela chegou a casa quer n u m m a r de lágrimas, seguintes tento provar que a teoria oficial assenta n u m conjunto de
quer n u m carro descapotável». É o que faz o dogma do Fantasma na erros-categoria, mostrando que provêm deles corolários logicamente
Máquina. Mantém que existem Corpos e Espíritos; que se produzem absurdos. A. exposição destes absurdos terá o efeito construtivo de
processos físicos e mentais; que há causas mecânicas e mentais dos apresentar parte da lógica correcta dos conceitos de conteúdo mental.
movimentos corporais. A r g u m e n t a r e i que estas e outras ligações aná-
logas são absurdas; deve no entanto notar-se que isto não quer dizer (4) NOTA HISTÓRICA
que qualquer das proposições ilegitimamente ligadas seja absurda em
si própria. Não nego, por exemplo, que existem processos mentais. Fazer Não seria verdade dizer que a doutrina oficial deriva exclusiva-
contas de d i v i d i r é u m processo mental, t a l como dizer uma piada. Mas mente das teorias de Descartes, ou mesmo de uma ansiedade largamente
digo que a frase «existem processos mentais» não significa a mesma espalhada devida às implicações do mecanismo no século X V I I . A
espécie de coisa que é expressa por «existem processos físicos», e por- escolástica e a teologia da Reforma prepararam os intelectos tanto
tanto não faz sentido l i g a r ou desligar as duas. dos cientistas como dos leigos, filósofos e clérigos desse tempo. As
Se a m i n h a argumentação f o r válida, terá interessantes consequên- teorias estoico-agostinianas da Vontade embeberam-se nas doutrinas
cias. P r i m e i r o , o consagrado contraste entre Espírito e Matéria será calvinistas de pecado e graça; as teorias platónicas e aristotélicas
eliminado, não pelas igualmente consagradas absorções do Espírito pela do intelecto deram forma às teorias ortodoxas da imortalidade da
Matéria ou da Matéria pelo Espírito, mas s i m de u m modo inteiramente alma. Descartes estava já a reelaborar as teorias teológicas correntes
diferente. Porque demonstrarei que a aparente oposição dos dois é tão da alma na nova sintaxe de Galileu. O carácter privado da consciência
ilegítima como o seria a oposição entre «ela chegou a casa lavada em lá- defendido pelos teólogos tornou-se no carácter privado da consciência
grimas» e «ela chegou a casa n u m carro descapotável». A crença de que defendido pelos filósofos, e o que t i n h a sido o t r i l h o da Predestinação
há uma oposição diametral entre Espírito e Matéria vem da crença de reapareceu como o t r i l h o do Determinismo.
que são termos do mesmo tipo lógico. Não seria também verdade dizer que o m i t o dos dois mundos não
Seguir-se-á também que t a n t o o Idealismo como o Materialismo trouxe benefícios teóricos. Os mitos dão sempre algumas boas c o n t r i -
são respostas a perguntas inadequadas. A «redução» do mundo material buições enquanto são novos. U m dos benefícios auferidos pelo m i t o
a estados e processos mentais, assim como a «redução» dos estados e para-mecânico foi t o r n a r em parte antiquado o m i t o para-político então
processos mentais a estados e processos físicos, pressupõe a l e g i t i m i - dominante. 0 espírito e as suas faculdades t i n h a m anteriormente sido
dade da disjunção «Ou existem espíritos ou existem corpos (mas não descritos por analogias com superiores ou subordinados políticos. A
ambos)». Seria como dizer: «Ela comprou uma luva da mão direita e linguagem usada era a das leis, da obediência, da colaboração e da
u m a luva da mão esquerda ou u m par de luvas (mas não ambos)». rebeldia, que sobreviveu e ainda sobrevive em muitas discussões éticas
É perfeitamente correcto dizer, com ar lógico, que existem espíri- e em algumas epistemológicas. A s s i m como na Física o novo m i t o das
tos e com outro ar, também lógico, que existem corpos. Mas estas Forças Ocultas era u m melhoramento científico do m i t o das Causas
expressões não indicam duas espécies diferentes de existência, porque Finais, também na teoria antropológica e psicológica o novo m i t o das
«existência» não é uma palavra genérica como «colorido» ou «sexuado». operações secretas, impulsos e actividades constitui u m melhoramento
I n d i c a m dois sentidos diferentes de «existir», t a l como «subir» t e m do antigo m i t o dos ditames, deferências e desobediências.
S A B E R COMO E S A B E R Q U E 25

tenta», «desordenada», «falha de imaginação», «imprudente», «ilógica»,


«sem humor», «sem espírito de observação», «sem sentido crítico»,
«inexperiente», «lenta», «simples», «insensata» e «pouco judiciosa».
É de p r i m o r d i a l importância assinalar desde já que a estupidez não
é a mesma coisa, ou a mesma espécie de coisa, que a ignorância. Não
há incompatibilidade entre estar bem informado e ser estúpido, e uma
pessoa que t e m bom faro para argumentos ou graças pode t e r u m a
cabeça fraca para factos.
CAPITULO II
Parte da importância desta distinção entre ser inteligente e possuir
conhecimentos assenta no facto de que t a n t o os filósofos como os leigos
têm tendência para t r a t a r as operações intelectuais como sendo o
SABER COMO E S A B E R Q U E
âmago do comportamento mental. O que é o mesmo que dizer que têm
tendência para d e f i n i r todos os outros conceitos mentais em termos de
conhecimento. Supõem que o principal exercício do espírito consiste em
(1) PROLOGO encontrar respostas a perguntas e que as outras ocupações são simples-
mente aplicações de verdades dadas, ou mesmo lamentáveis distracções
Neste capítulo tento m o s t r a r que, quando descrevemos pessoas da sua consideração. A ideia grega de que a imortalidade da alma está
exercendo qualidades do espírito, não nos estamos a r e f e r i r a episódios reservada para a parte teórica da alma f o i desacreditada mas não
ocultos, cujos efeitos são os seus actos manifestos e expressões. Refe- dissipada pelo Cristianismo.
rimo-nos aos próprios actos manifestos e expressões. Há, evidentemente, Quando falamos do intelecto, ou melhor, das capacidades e a c t i v i -
diferenças, cruciais para as nossas investigações, entre descrever uma dades intelectuais das pessoas, estamos a referir-nos principalmente
acção feita distraidamente e descrever uma acção fisiologicamente à classe especial de operações que constituem a teorização. O objectivo
similar executada intencionalmente, com cuidado ou habilidade. Mas destas operações é o conhecimento de proposições ou factos verdadeiros.
tais diferenças de descrição não consistem na ausência ou presença de A matemática e as ciências naturais estabelecidas são as realizações-
uma referência implícita a certas acções-sombra que precedem enco- -modelo do intelecto humano. N a t u r a l m e n t e que os primeiros teóricos
bertamente a acção visível. Consistem, pelo contrário, na ausência ou especularam sobre o que constituía a peculiar excelência das ciências
presença de certas espécies de asserções explicativas e proféticas, e disciplinas teóricas, cujo crescimento testemunharam. Estavam
experimentáveis. predispostos para aceitar que era na capacidade de estabelecer teorias
rigorosas que residia a superioridade dos homens sobre os animais, do
(2) INTELIGÊNCIA E INTELECTO homem civilizado sobre o selvagem e até do espírito d i v i n o sobre o
humano. Legaram-nos assim a ideia de que a capacidade para a t i n g i r
Os conceitos de conteúdo mental que escolhi para examinar em o conhecimento das verdades era a propriedade que definia o espírito.
primeiro lugar são os que pertencem àquela família de conceitos As outras capacidades humanas só poderiam ser classificadas como
vulgarmente denominada «inteligência». D o u aqui alguns dos adjectivos mentais se se pudesse demonstrar que eram de a l g u m modo pilotadas
mais determinativos desta família: «inteligente», «sensível», «cuida- pela compreensão intelectual das proposiçõs verdadeiras. Ser racional
doso», «metódico», «inventivo», «prudente», «arguto», «lógico», «espiri- era ser capaz de reconhecer as verdades e as ligações entre elas. A g i r
tuoso», «observador», «crítico», «prático», «vivo», «astucioso», «sensa- racionalmente era p o r t a n t o conseguir que as propensões não teóricas
to», «judicioso» e «escrupuloso». das pessoas fossem controladas pela sua apreensão de verdades acerca
U m a pessoa de deficiente inteligência é descrita como «estúpida» do comportamento.
ou por outros epítetos mais definidos como «bronca», «parva», «desa- O principal objectivo deste capítulo é m o s t r a r que há muitas act'-
26 INTRODUÇÃO À P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 27

vidades que revelam directamente qualidades do espírito, se bem que (3) SABER COMO E SABER QUE

não sejam em s i próprias operações intelectuais, nem sequer efeitos


de operações intelectuais. A prática inteligente não é u m p r i m e i r o passo Quando se descreve uma pessoa por u m ou outro dos epítetos da
da teoria. Pelo contrário, a teorização é uma prática entre outras e inteligência, tais como «sagaz» ou «néscia», «prudente» «ou «impru-
pode ser conduzida inteligente ou estupidamente. dente», a descrição atribui-lhe não o conhecimento ou ignorância desta
E x i s t e uma outra razão pela qual é i m p o r t a n t e c o r r i g i r desde o ou daquela verdade, mas a capacidade ou incapacidade para fazer certas
princípio a d o u t r i n a intelectualista que tenta definir inteligência em espécies de coisas. Os teóricos têm-se preocupado tanto com a tarefa
termos de apreensão de verdades, em vez da apreensão de verdades de investigar a natureza, a origem e as credenciais das teorias que
em termos de inteligência. A teorização é uma operação que muitas adoptamos, que na m a i o r i a dos casos têm ignorado a questão do que é
pessoas podem fazer, e normalmente fazem, em silêncio. A r t i c u l a m em para alguém saber como desempenhar uma tarefa. N a vida comum, pelo
frases as teorias que constroem, mas na m a i o r i a dos casos não dizem contrário, assim como no trabalho especial de ensinar, estamos m u i t o
essas frases em voz alta. Dizem-nas para si próprias, ou f o r m u l a m os mais interessados na competência das pessoas do que no seu repertório
seus pensamentos em diagramas e quadros, mas nem sempre as expõem de conhecimentos, nas operações do que nas verdades que aprendem. N a
por escrito. «Vêem-nas com os olhos do espírito». Muitos dos nossos verdade, mesmo quando estamos interessados nas suas virtudes ou
pensamentos comuns são conduzidos por monólogos interiores ou deficiências intelectuais, estamos menos interessados no conjunto de
solilóquios silenciosos, usualmente acompanhados por u m filme interior verdades que adquirem e retêm do que na sua capacidade para desco-
de imagens visuais. b r i r verdades por si próprias e na sua habilidade para as organizar e
Este hábito de conversar consigo próprio em silêncio não se explorar, quando descobertas. Muitas vezes deploramos a ignorância de
adquire rapidamente nem sem esforço, e é condição necessária para uma pessoa em relação a determinado facto, apenas porque deploramos
o adquirirmos termos anteriormente aprendido a falar inteligente- a estupidez de que a sua ignorância é consequência.
mente em voz alta e termos ouvido e compreendido outras pessoas que Há certos paralelismos entre saber como e saber que, bem como
o façam. Guardar os nossos pensamentos para nós próprios é uma certas divergências. Falamos em aprender como tocar u m instrumento,
realização elaborada. Só na Idade Média se aprendeu a ler sem ser assim como em aprender que determinada coisa é assim; de aprender
em voz alta. Do mesmo modo, u m garoto t e m de aprender a ler em voz como podar árvores, assim como de aprender que os romanos t i n h a m
alta antes de aprender a ler para si próprio e a tagarelar em voz alta u m exército acampado em determinado local; esquecemos como d a r
antes de o fazer para si próprio. Muitos teóricos supuseram que o u m nó simples, ssquecemos que em alemão «faca» é «Messer». Podemos
silêncio em que muitos de nós aprendemos a pensar é uma propriedade não saber como e não saber se. Por outro lado, nunca falamos de uma
que define o pensamento. Platão disse que, ao pensar, a alma está pessoa que acredita ou a l v i t r a como e, embora esteja certo p e r g u n t a r
conversando consigo própria. Mas o silêncio, embora conveniente em pelos motivos ou razões por que alguém aceita u m a proposição, esta
muitos casos, não é essencial, pois é uma restrição da assistência a pergunta não pode ser feita quanto à habilidade de alguém a j o g a r às
u m só beneficiário. cartas ou à sua prudência a fazer investimentos.
A combinação destas duas suposições de que a teorização é a acti- Que é que está implícito nas nossas descrições de pessoas que
vidade principal do espírito e de que é uma operação intrinsecamente sabem como dizer e apreciar piadas, falar gramaticalmente, j o g a r
privada, silenciosa ou interna continua a ser u m dos principais susten- xadrez, pescar ou argumentar? Parte do que se exprime é que, quando
táculos do dogma do fantasma na máquina.VAs pessoas têm tendência elas executam estas operações, tendem a executá-las bem, isto é,
para identificar os seus espíritos com o «lugar» onde têm os seus pen- correcta ou eficientemente ou com êxito. A s suas realizações alcançam
samentos secretos. Chegam mesmo a supor que há u m mistério especial certos níveis ou satisfazem certos critérios. Mas isto não é suficiente.
no modo como tornamos públicos os nossos pensamentos, em vez de Os relógios bem regulados dão horas certas e a foca de circo bem t r e i -
a d m i t i r que empregamos u m artifício especial para os guardarmos nada faz acrobacias de modo perfeito e, no entanto, não dizemos que
para nós próprios. são «inteligentes». Reservamos este título às pessoas responsáveis pelos
28 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 29

seus actos. Ser inteligente não é apenas satisfazer critérios, mas s i m não ser notadas por quem pratica a acção. A r g u m e n t a r e i que a fábula
aplicá-los; é regular as suas acções e não apenas ser regulado. A actua- intelectualista é falsa e que, quando descrevemos u m a acção como
ção de uma pessoa é descrita como cuidadosa ou hábil se nessas opera- inteligente, isso não implica a dupla operação de considerar e executar. x

ções a pessoa é capaz de detectar e c o r r i g i r lapsos, repetir e melhorar os Primeiro, há muitas classes de acções em que a inteligência é
seus êxitos, aproveitar dos exemplos dos outros e assim sucessivamen- revelada, mas cujas regras ou critérios não são formulados. O ser
te. A pessoa aplica critérios actuando criticamente, isto é, tentando inteligente, quando solicitado a c i t a r as máximas ou normas que usa
fazer bem as coisas. para construir e apreciar anedotas, é incapaz de responder. Sabe como
Este ponto é comummente expresso na linguagem vulgar, dizendo- inventar boas piadas e detectar as más, mas não pode dar-nos, nem
-se que uma acção demonstra inteligência se, e apenas quando, quem dar a si próprio, nenhuma receita para elas. Assim, a prática do sentido
pratica a acção está a pensar no que está a fazer enquanto a acção dura de h u m o r não é cliente desta teoria. Os cânones do gosto estético, do
e a pensar de t a l maneira que não p r a t i c a r i a a acção tão bem se não esti- t r a t o social e da técnica inventiva também não são apoiados por ela,
vesse a pensar no que está a fazer. Recorre-se por vezes a esta lingua- sem impedimento do exercício inteligente destes dotes.
gem popular como prova a favor da fábula intelectualista. Os defensores As regras do raciocínio correcto f o r a m estabelecidas pela p r i m e i r a
desta fábula estão prontos a t e n t a r assimilar o saber como ao saber vez por Aristóteles, se bem que as pessoas soubessem evitar e
que, argumentando que a acção inteligente envolve a observância de detectar sofismas antes de terem aprendido as suas lições, t a l como,
regras ou aplicação de critérios. Segue-se que a operação que é carac- desde Aristóteles e incluindo Aristóteles, elas conduzem vulgarmente
terizada como inteligente deve ser precedida de u m reconhecimento a sua argumentação sem fazer qualquer referência interna às suas
intelectual destas regras e critérios; isto é, a pessoa que pratica a acção fórmulas. Não se planeiam os argumentos antes de os construir. N a
deve atravessar p r i m e i r o o processo interno de a d m i t i r para s i própria verdade, se se tivesse que planear o que se v a i pensar antes de o pensar,
certas proposições acerca do que vai ser feito («máximas», «imperati- nunca se chegaria a pensar, porque mesmo este plano não t e r i a sido
vos» ou «normas de conduta», como por vezes se lhes c h a m a ) ; só então planeado.
pode executar a acção de acordo com esses ditames. Deve pregar a si A prática eficiente precede a teoria sobre ela; as metodologias
própria antes de poder praticar. O cozinheiro-chefe tem de repetir as pressupõem a aplicação dos métodos, da investigação crítica de que são
receitas para si próprio antes de poder cozinhar de acordo com elas; produtos. F o i por Aristóteles achar o seu raciocínio e o dos outros umas
o herói deve prestar intimamente ouvidos a alguns imperativos morais vezes inteligente e outras vezes estúpido e f o i por Izaak W a l t o n con-
adequados antes de se a t i r a r à água para salvar o homem que se está a siderar as suas pesquisas e as dos outros umas vezes eficazes e outras
afogar; o jogador de xadrez tem de recapitular de cabeça todas as vezes ineficazes, que ambos puderam d a r aos seus alunos as máximas
regras e máximas tácticas do jogo antes de poder fazer jogadas cor- e prescrições para as suas artes. É p o r t a n t o possível executar i n t e l i -
rectas e engenhosas. Fazer alguma coisa a pensar no que se está a fazer gentemente algumas espécies de operações sem se ser ainda capaz de
é sempre, de acordo com esta fábula, fazer duas coisas, ou seja, consi- considerar quaisquer proposições sobre o modo como devem ser execu-
derar certas proposições ou prescrições apropriadas e pôr em prática tadas. Algumas acções inteligentes não são controladas por nenhuns
o que essas proposições ou prescrições aconselham. P r i m e i r o faz-se u m conhecimentos interiores dos princípios que se lhes aplicam.
bocado de teoria e depois u m bocado de prática.
A objecção crucial à fábula dos intelectualistas é a seguinte: a
*É certo que muitas vezes não só reflectimos antes de agir, mas consideração de proposições é em si própria uma operação cuja execu-
reflectimos no i n t u i t o de agir correctamente. O jogador de xadrez pode ção pode ser mais ou menos inteligente, mais ou menos estúpida. Mas
necessitar de algum tempo para planear as suas jogadas antes de as se, para executar qualquer acção inteligentemente, fosse necessário
fazer. A afirmação geral de que todas as acções inteligentes necessitam executar previamente uma operação teórica que tivesse de t e r sido
de ser prefaciadas pela consideração de proposições adequadas é no executada inteligentemente, haveria uma impossibilidade lógica de
entanto inverosímil, mesmo quando se admite apologèticamente que as quebrar este círculo vicioso.
considerações necessárias são por vezes m u i t o rápidas e podem mesmo Consideremos agora alguns pontos salientes que este retrocesso
30 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 31

levantaria. De acordo com a fábula, sempre que alguém faz qualquer para uma operação ser inteligente, deve ser determinada por uma
coisa inteligentemente, o seu acto é precedido e d i r i g i d o por outro acto prévia operação intelectual. A distinção entre as operações sensatas
interno que considera uma proposição reguladora apropriada ao pro- e as estúpidas não é feita pelos seus antecedentes mas sim pelo processo,
blema prático. Mas o que é que faz com que se considere uma máxima e isto não diz menos respeito às acções intelectuais do que às práticas.
como apropriada, entre muitas outras que o não são? Porque p que «Inteligente» não pode ser definido em termos de «intelectual», ou
o herói não chama ao seu espírito uma receita de cozinha ou umíÉ^ regra «saber como» em termos de «saber que»; «pensar no que estou a fazer»
de lógica f o r m a l ? Talvez o faça, mas então o seu processo intelectual é não implica «pensar o que fazer e fazê-lo». Quando faço qualquer
néscio em vez de sensato. Reflectir inteligentemente sobre a acção é, coisa inteligentemente, isto é, a pensar no que estou a fazer, estou a fa-
entre outras coisas, considerar o que é pertinente e eliminar o que é zer u m a coisa e não duas. A minha acção t e m u m processo ou modo
inapropriado. Teremos então de dizer que, para o herói, reflectir sobre especial, e não antecedentes especiais.
como deve a g i r para o fazer inteligentemente deve ser p r i m e i r o reflectir
sobre a melhor maneira de reflectir sobre como a g i r ? O i n f i n i t o implí- (4) OS MOTIVOS DA FÁBULA INTELECTUALISTA
cito neste retrocesso mostra que a aplicação dos critérios de apropria-
bilidade não inclui a ocorrência de u m processo de considerar este Porque é que as pessoas serão tão fortemente levadas a acreditar,
critério. em face da sua própria experiência quotidiana, que a execução i n t e l i -
Depois, supondo ainda que, para agir racionalmente, eu deva gente de uma operação deve implicar dois processos, u m de fazer e o u t r o
primeiramente ponderar as razões de agir desta maneira, como sou de teorizar? E m parte é porque estão presas ao dogma do «fantasma
então levado a fazer uma aplicação adequada das razões à situação na máquina». Dado que fazer é muitas vezes uma acção muscular
particular da minha acção? N a verdade, a razão ou máxima é inevita- manifesta, ela é descrita como u m simples processo físico. Da suposição
velmente u m a proposição de uma certa generalidade. Não pode envolver da antítese entre «físico» e «mental», conclui-se que a acção muscular
especificações para ajustar todos os pormenores do estado p a r t i c u l a r não pode ser em si própria uma operação mental. O título de «hábil»,
de u m dado assunto. Obviamente, mais uma vez, devo ser sensato e não «engenhoso» ou «gracioso» deve ser obtido através da transferência
estúpido, e este bom senso não pode ser ele próprio u m produto de u m de outro acto correspondente que não acontece na «máquina», mas no
conhecimento intelectual de qualquer princípio geral. U m soldado não «espírito». Porque «hábil», «engenhoso» e «gracioso» são sem dúvida
se t o r n a n u m general perspicaz simplesmente por aprovar os princípios predicados mentais.
estratégicos de Clausewitz; deve também t e r competência para os É evidentemente verdade que quando classificamos de «espirituo-
aplicar. Saber aplicar máximas não pode ser reduzido, ou deriva- sa» ou «delicada» qualquer parcela do comportamento manifesto, não
do, à aceitação dessas ou de quaisquer outras máximas. estamos apenas a considerar os movimentos musculares que presencia-
De u m modo resumido, a afirmação absurda feita pela fábula inte- mos. U m papagaio poderia t e r feito o mesmo comentário na mesma
lectualista é a de que qualquer acção merece o título de inteligente situação sem que lhe atribuíssemos sentido de humor, ou u m indivíduo
devido a certas operações interiores prévias de planeamento do que grosseiro poderia fazer exactamente o mesmo que u m bem educado sem
se v a i fazer. Muitas vezes atravessamos u m processo de planear o que pensássemos que ele era bem educado. Mas se uma e mesma
que vamos fazer e, se somos estúpidos, o nosso plano será estúpido, se expressão vocal é u m rasgo de humor do h u m o r i s t a e apenas uma
somos perspicazes o nosso plano será perspicaz. Também é certo que resposta mecânica quando emitida por u m papagaio, é tentador dizer
nos é possível planear acertadamente e executar estupidamente, isto é, que estamos a a t r i b u i r espírito, não ao que ouvimos, mas a alguma
desprezar os nossos preceitos na prática. Portanto, pelo argumento outra coisa que não ouvimos. Sentimo-nos igualmente tentados a dizer
original, o nosso processo intelectual de fazer planos deve herdar os que o que torna espirituosa uma acção visível ou audível, enquanto o u t r a
seus títulos de perspicácia de outros processos interiores de planear acção similarmente visível ou audível o não é, é que para a p r i m e i r a
o que se planeia e este processo poderia por sua vez ser estúpido ou contribuiu outra acção inaudível e invisível que era o verdadeiro
sensato. O retrocesso é i n f i n i t o e isto reduz ao absurdo a teoria de que, exercício do humor. Mas a d m i t i r , como devemos, que não deve e x i s t i r

FACri.DA m; Ttv. vnri/-< i*-«t 1


32 S A B E R COMO E S A B E R Q U E 33
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

diferença visível ou audível entre u m acto delicado ou espirituoso e é difícil m a t a r o velho m i t o . Somos ainda tentados a a r g u m e n t a r que,
u m acto grosseiro ou sem humor, é não a d m i t i r que a diferença é se as momices do palhaço demonstram cuidado, discernimento, espíri-
constituída pela execução ou não execução de certos outros actos to e apreciação da disposição dos espectadores, deve passar-se na
secretos. cabeça do palhaço uma acção correspondente àquela que t e m l u g a r
A inteligência do palhaço pode ser exibida nas suas piruetas e na pista. Se ele está a pensar no que está a fazer, deve ocorrrer por
cambalhotas. Ele saltita e cai como uma pessoa desajeitada; somente detrás da sua face pintada uma operação-sombra de meditação, que
estas piruetas e cambalhotas são intencionais e são o resultado de nós não presenceamcs, e que calcula e controla as contorções do corpo
muitos ensaios para a t i n g i r o momento aúreo em que as crianças a que assistimos. Claro que pensar pensamentos é a actividade básica
podem vê-lo cair de modo a não se magoar. Os espectadores aplaudem dos espíritos e claro também que o processo de pensar é invisível e
a sua inépcia estudada e apenas aparente, mas não aplaudem qualquer inaudível. Assim, como pode a actuação visível e audível do palhaço
outra acção i n t e r i o r invisível executada «na sua cabeça». É a sua ser o trabalho do seu espírito?
actuação visível que a d m i r a m , não por ser u m efeito de uma outra Para fazer justiça a esta objecção é necessário fazer uma concessão
causa invisível e interna, mas por ser o exercício de uma habilidade. verbal. M u i t o recentemente generalizou-se u m sentido especial das
Ora uma habilidade não é u m acto. Não é portanto nem u m acto teste- palavras «mental» e «espírito». Falamos da «aritmética mental», do
munhável nem não testemunhável. Reconhecer que uma acção é o «ler em espírito», das «lutas do espírito» e sem dúvida que o que é
exercício de uma habilidade é na verdade apreciá-la à luz de u m factor mental neste sentido não é testemunhável. Diz-se que u m rapaz faz
que não poderia ser registado separadamente por uma máquina foto- contas de cabeça ou aritmética mental quando, em vez de escrever ou
gráfica. Mas a razão pela qual a habilidade exercida é uma acção que recitar em voz alta os símbolos numéricos com que faz as operações,
não pode ser registada separadamente por uma máquina fotográfica os diz para si próprio, formulando os seus cálculos em solilóquio silen-
não é por ser u m acontecimento oculto ou fantástico, mas s i m por não cioso. Do mesmo modo, diz-se que uma pessoa lê no espírito de o u t r a
ser de modo nenhum u m acontecimento. É uma predisposição ou com- quando descreve com veracidade o que a outra está dizendo ou pensando
plexo de predisposições, e uma predisposição é u m factor de tipo lógico para s i própria, em imagens visuais ou auditivas. Demonstra-se por-
errado para ser visto ou não, registado ou não. A s s i m como o hábito de tanto facilmente que existem usos especiais dos termos «mental» e
falar alto não é em si próprio ruidoso ou silencioso, dado que não é «espírito». U m rapaz que faz os seus cálculos em voz alta ou no papel
qualquer espécie de termo de que «ruidoso» ou «silencioso» possam pode estar a raciocinar correctamente ou a conduzir as suas operações
ser predicados, ou assim como a predisposição para dores de cabeça metodicamente; o seu cálculo não é uma operação menos intelectual
não é, pela mesma razão, suportável ou insuportável, também as por ser feito em público em vez de o ser em privado. A sua acção é por-
habilidades, gostos e tendências que são exercidos em operações ma- tanto u m exercício de uma faculdade mental no sentido n o r m a l de
nifestas ou internas não são em si próprios manifestos ou internos, «mental».
presenciáveis ou não presenciáveis. A teoria t r a d i c i o n a l do espírito Assim, calcular não acede ao g r a u de pensamento propriamente d i t o
interpretou erradamente a distinção-tipo entre predisposição e exercício quando o seu a u t o r começa a fazê-lo de lábios cerrados e com as mãos
na sua bifurcação mítica das causas mentais não presenciáveis e dos nos bolsos. Cerrar os lábios não faz parte da definição de pensar. U m
seus efeitos físicos testemunháveis. homem pode pensar em voz alta ou m u r m u r a n d o ; pode pensar silen-
As piruetas e cambalhotas do palhaço são o trabalho do seu ciosamente ou ainda com movimentos de lábios suficientemente percep-
espírito, porque são as suas graças, mas as piruetas e cambalhotas tíveis para uma pessoa que saiba ler nos lábios; ou pode, como fazemos
visíveis idênticas de u m homem desajeitado não são o trabalho do espí- quase todos desde a p r i m e i r a infância, pensar em silêncio e com os
r i t o desse homem, porque ele não saltita intencionalmente. S a l t i t a r de lábios imóveis. Estas diferenças são de conveniência social e pessoal,
propósito é u m processo tanto físico como mental, mas não é dois de rapidez e de facilidade. Não é necessário dar-lhes mais importância
processos, como por exemplo u m processo de t e r a intenção de s a l t i t a r no que se refere à coerência, convicção e apropriabilidade das acções
e, como efeito deste, u m outro processo de saltitar. A i n d a neste caso intelectuais executadas, do que à preferência de u m escritor por lápis

i. P. — 3
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMC E S A B E R Q U E 35

ou canetas, por t i n t a invisível em vez de t i n t a n o r m a l . U m surdo-mudo é que se tem a impressão de que isto é uma metáfora apropriada e
fala por sinais feitos com as mãos. Talvez que, quando quer guardar os expressiva? Metáfora, é-o certamente. Ninguém pensa que quando
seus pensamentos para s i próprio, faça estes sinais com as mãos atrás tenho uma música na cabeça u m cirurgião pudesse e x t r a i r uma pequena
das costas ou debaixo da mesa. O facto de que estes sinais poderiam orquestra oculta na minha caixa craniana ou que u m médico aplicando
ser observados por u m a pessoa como Paul P r y não nos levaria a dizer, u m estetoscópio ao meu crânio pudesse ouvir acordes abafados, do
a nós ou à pessoa que faz os sinais, que esta não estava a pensar. mesmo modo que eu oiço o assobio abafado do meu vizinho quando
Este uso especial dos termos «mental» e «espírito» no qual se encosto o ouvido à parede que divide as nossas casas.
significa o que se está a passar «na cabeça de alguém» não pode ser Sugere-se por vezes que a frase deriva das teorias acerca das
usado como evidência do dogma do «fantasma na máquina». É apenas relações entre cérebro e processos intelectuais. É provavelmente des-
u m contágio desse dogma. O truque técnico de e x p r i m i r o nosso pensa- tas teorias que derivam frases como «deu tratos ao miolo para
mento por meio de palavras-imagens auditivas, em vez de palavras resolver u m problema»; apesar disso, ninguém se vangloria de ter
faladas, assegura sem dúvida o sigilo do nosso pensamento, dado que resolvido u m anagrama «nos seus miolos». U m estudante dirá por
as imaginações auditivas de uma pessoa não são vistas ou ouvidas por vezes que resolveu u m pequeno problema de aritmética de cabeça, ainda
o u t r a (nem, como veremos, por ela própria). Mas este segredo não é que para isso não tivesse que usar o seu cérebro; e não é necessário
o que é atribuído aos episódios postulados do fantástico mundo-sombra. esforço ou agudeza intelectual para ouvir uma melodia soar na cabeça.
É simplesmente o carácter privado conveniente que caracteriza as Reciprocamente, a aritmética feita com papel e lápis pode pôr à prova
melodias que oiço na minha cabeça e as coisas que vejo com os olhos o cérebro de uma pessoa, embora não seja feita «de cabeça».
do espírito. Parece ser principalmente em relação aos ruídos imaginados que
Além disso, o facto de uma pessoa dizer coisas a s i própria, na achamos n a t u r a l dizer que têm l u g a r «dentro das nossas cabeças»;
sua cabeça, não implica que esteja a pensar. Pode tagarelar delirante- e, destes ruídos imaginados, principalmente aqueles que imaginamos
mente ou repetir cantilenas para dentro, t a l como pode fazê-lo em por nós próprios, exprimindo-os e ouvindo-os. É nas palavras que
voz alta. A distinção entre falar acertadamente e tagarelar ou entre imagino dizer a m i m próprio, e nas melodias que imagino m u r m u r a r
pensar o que se diz e simplesmente dizer, encurta a distinção entre ou sussurrar a m i m próprio, que penso em p r i m e i r o lugar como n u m
falar em voz alta e falar para si próprio. O que faz de uma operação zumbido que atravessa este estúdio corporal. Forçando um pouco, a
verbal u m exercício do intelecto é independente do que a t o r n a pública frase «na cabeça» é por vezes alargada por algumas pessoas a todos os
ou privada. A aritmética feita com lápis e papel pode ser mais i n t e l i - ruídos fantasiados e mesmo transferida para a descrição de coisas que
gente que a aritmética mental e as cambalhotas públicas do palhaço imagino e vejo; mas voltaremos mais tarde a esta extensão. Que é então
podem ser mais inteligentes do que as que ele « v ê » com os olhos do que nos leva a descrever os nossos actos de imaginação, de dizer ou
espírito ou «sente» nas pernas do espírito se, como pode acontecer ou m u r m u r a r coisas a nós próprios, como coisas que são ditas ou m u r m u -
não, tais imagens das suas momices lhe ocorrem. radas nas nossas cabeças? Primeiro a linguagem tem uma função
negativa indispensável. Quando o ruído das rodas do comboio faz
(5) «NA MINHA CABEÇA» soar na minha cabeça a cantilena «pouca terra, m u i t a terra», o ruído
das rodas é ouvido pelos meus companheiros de viagem, mas t a l não
É conveniente dizer aqui alguma coisa sobre o nosso uso quotidiano acontece com a «pouca terra». O matraquear rítmico enche toda a
da frase «na minha cabeça». Quando faço aritmética mental, é provável carruagem; a minha «pouca terra» não enche o compartimento nem
que diga que t i v e os números com que estive a t r a b a l h a r «na cabeça» qualquer parte dele e assim somos tentados a dizer que, em vez disso,
e não no papel; e se estive a escutar uma área ou uma poesia declamada enche outro compartimento, o qual é uma parte de m i m próprio. Os
é provável que diga mais tarde que ainda tenho os acordes ou rimas ruídos matraqueados têm a sua origem nas rodas e na linha de caminho
«soando na m i n h a cabeça». É «na minha cabeça» que recapitulo os de ferro. A minha «pouca terra» não t e m origem em nenhuma orquestra
Reis de I n g l a t e r r a , resolvo anagramas e componho poesias. Porque fora de m i m , e assim é tentador r e f e r i r este facto negativo dizendo que
36 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A
S A B E R COMO E S A B E R Q U E 37

tem origem dentro de m i m . Mas apenas isto não explicaria porque é porque é uma maneira viva de e x p r i m i r o facto de que a imaginação
que acho que é uma metáfora n a t u r a l dizer que a «pouca terra» está da audição produzida é real. A nossa frase «na minha cabeça» deve ser
a soar na minha cabeça, em vez de dizer que soa na minha garganta, entendida entre aspas, como o verbo « v e r » em frases como «estou a
no tórax ou no estômago. ver» o acidente agora, embora se tivesse dado há quarenta anos. Se
Quando oiço as palavras que alguém pronuncia ou as melodias estivéssemos a fazer realmente aquilo que imaginamos, designadamente
tocadas por uma banda, tenho normalmente uma ideia, por vezes errada, ouvir-nos a nós próprios a dizer ou a m u r m u r a r coisas, então estes
sobre a direcção donde vêm os ruídos e sobre a distância a que a sua ruídos estariam na nossa cabeça no sentido l i t e r a l da frase. Mas visto
fonte se encontra. Mas quando oiço as palavras que eu próprio digo em que não estamos a produzir nem a o u v i r ruídos, mas apenas a i m a g i n a r
voz alta, as melodias que eu próprio entoo, os sons da minha própria que o estamos a fazer, quando dizemos que os números e músicas que
mastigação, respiração e tosse, a situação é completamente diferente, nos imaginamos a m u r m u r a r para nós próprios estão nas nossas cabe-
visto que neste caso os ruídos não têm origem numa direcção qualquer ças, dizemo-lo n u m t o m de voz reservado para expressar coisas que não
ou a qualquer distância de m i m . Não tenho que v o l t a r a cabeça para devem ser tomadas à letra.
ouvir melhor, nem posso aproximar os meus ouvidos da fonte sonora.
•* Disse que há certa tendência para alargar o emprego da frase «na
Além disso, embora possa impedir ou abafar a entrada da voz de outra
minha cabeça» não só com referência a ruídos feitos pelo próprio e
pessoa ou da música de uma banda tapando os ouvidos, esta acção,
produzidos na cabeça, mas também em relação a ruídos imaginados em
longe de d i m i n u i r a ressonância da minha própria voz, aumenta-a. A s
geral e, n u m sentido lato, também a imagens visuais. Suspeito que esta
minhas próprias palavras, assim como outros ruídos produzidos dentro
tendência, se é que tenho razão em pensar que ela existe, deriva do
da minha cabeça, como palpitações, espirros, fungadelas e outros, não
seguinte conjunto de factos f a m i l i a r e s : no caso específico de todos os
são ruídos produzidos na atmosfera, provenientes de uma fonte mais
sentidos localizados na cabeça,*ou somos dotados de u m sistema n a t u r a l
ou menos remota. São produzidos dentro da minha cabeça e ouvidos
de persianas, ou podemos adquiri-lo artificialmente.* Podemos fechar
através dela, embora alguns deles também sejam ouvidos como ruídos
os olhos com as pálpebras ou com as mãos; os lábios protegem a língua;
da atmosfera. Se faço ruídos m u i t o fortes ou agudos, posso sentir as
os dedos podem ser usados para tapar os ouvidos ou o nariz. É deste
vibrações e sacudidelas na minha cabeça no mesmo sentido em que
modo que, para m i m e para o leitor, ouvir, procurar e cheirar podem ser
sinto as vibrações do diapasão na minha mão.
eliminados, fechando estas persianas. Mas as coisas que vejo com os
Neste caso, tais ruídos estão l i t e r a l e não metaforicamente dentro olhos do espírito não são eliminadas quando fecho os olhos. N a verdade,
da minha cabeça. São ruídos reais produzidos dentro da cabeça, que o vejo-as por vezes mais nitidamente sempre que o faço. Para afastar
médico poderia ouvir através do seu estetoscópio. Mas o sentido em a horrível visão do acidente de estrada de ontem, posso mesmo t e r os
que dizemos que o estudante que faz cálculos mentais tem os números, olhos abertos. Isto dá-nos a tentação de descrever a diferença entre
não no papel, mas na cabeça não é u m sentido literal, mas sim u m senti- visões imaginárias e reais, dizendo que as últimas estão do lado de fora
do metafórico pedido de empréstimo àquele. Demonstra-se facilmente das persianas enquanto as primeiras estão do lado de dentro. As últimas
que os números não estão na realidade a ser ouvidos na sua cabeça, da estão fora da minha cabeça, enquanto as primeiras estão dentro dela.
mesma maneira que ouve realmente a sua própria tosse na cabeça. Mas este ponto necessita de u m certo desenvolvimento.
Porque, se assobia ou g r i t a com os ouvidos tapados, pode ensurdecer-se
A vista e o ouvido são sentidos de distância, enquanto o tacto,
em parte ou sentir os ouvidos a zumbir. Mas, ao fazer aritmética mental,
o paladar e o olfacto não o são; o que quer dizer que, quando emprego
«murmura» os números para si próprio, como que numa voz débil, e
normalmente os verbos «ver», «ouvir», «olhar», «escutar», «entrever»,
não se dá qualquer semi-ensurdecimento. Não produz nem ouve ruídos
«ouvir por acaso» e outros, as coisas que dizemos t e r «visto» e
débeis, porque está simplesmente imaginando para si próprio que faz
«ouvido» estão a certa distância de nós. Ouvimos u m comboio a a p i t a r
esses ruídos e u m g r i t o imaginado não é u m g r i t o , nem sequer u m
para o sul e olharmos para u m planeta no céu. Por isso, temos
murmúrio. Mas ele descreve esses números como se estivessem na sua
dificuldade em f a l a r acerca dos objectos que f l u t u a m «diante dos olhos».
cabeça, como eu descrevo a «pouca terra» soando na minha cabeça,
Porque, embora vistos, não estão fora deles. Mas não falamos de provar
38 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 39

ou sentir coisas à distância e se interrogados quanto à distância e estão normalmente exprimindo m u i t o sofisticadamente o que usual-
direcção de uma coisa, não respondemos: «Deixe-me cheirar ou provar». mente expressamos pela frase menos pretensiosa «na cabeça». A frase
É certo que podemos examinar pelo tacto ou quinestèsicamente, mas «no espírito» pode e deve ser sempre dispensada. O seu uso habitua as
quando procuramos por estes meios onde está o i n t e r r u p t o r da luz, pessoas que a empregam à ideia de que os espíritos são «lugares»
vemos que é onde estão as pontas dos dedos. U m objecto manejado está estranhos cujos ocupantes são fantasmas de uma categoria especial.
onde está a mão, mas u m objecto visto ou ouvido não está, n o r m a l - Faz parte da função deste l i v r o mostrar que os exercícios de qualidades
mente, em nenhum l u g a r próximo dos olhos ou dos ouvidos. do espírito não se dão, salvo per accidens, «na cabeça», no sentido
Assim, quando queremos realçar o facto de que qualquer coisa comum da frase, e que aqueles que acontecem no espírito não têm
não está realmente a ser vista ou ouvida, mas que está apenas a ser qualquer prioridade especial sobre os outros.
imaginada como vista ou ouvida, temos tendência para a f i r m a r o seu
estado imaginário negando a sua distância e, por uma f a l t a de proprie-
dade inconveniente, negamos a sua distância afirmando a sua p r o x i m i - (6) O SALDO POSITIVO DE SABER COMO
dade metafórica. «Não lá fora, mas aqui dentro; não fora das persianas
e real, mas dentro delas e irreal», «não uma realidade externa, mas u m
fantasma interno». Não temos este truque linguístico para descrever Espero ter mostrado até agora que o exercício da inteligência não
o que imaginamos sentir, cheirar ou provar. O passageiro de u m navio pode na prática ser analisado como uma operação em série de con-
sente o convés balançar debaixo dele, principalmente nos pés e nas siderar p r i m e i r o prescrições e depois executá-las. Examinámos também
entranhas e, quando desembarca, ainda sente o chão oscilando «debaixo alguns dos motivos que levam os teóricos a inclinar-se para a adopção
dos seus pés». Mas uma sensação quinestésica não é u m sentido de desta análise.
distância e ele não pode menosprezar as sensações imaginárias das suas Mas se a g i r inteligentemente é fazer uma coisa e não duas, e se
pernas, como ilusões, dizendo que o balanço está nas suas pernas e não agir inteligentemente é aplicar critérios na condução da própria acção,
na r u a , porque o balanço que sentiu a bordo era igualmente sentido f a l t a m o s t r a r como este factor caracteriza essas operações que achamos
pelas pernas. Não poderia dizer: «Sinto a outra extremidade do navio hábeis, prudentes, de bom gosto ou lógicas. Porque não é necessário
a balançar», nem poderia descrever o balanço ilusório do chão como que existam diferenças visíveis ou audíveis entre uma acção feita com
«sentido na sua cabeça», mas apenas «sentido nas suas pernas». habilidade e outra por simples hábito, por impulso cego ou n u m
Sugiro, portanto, que a frase «na cabeça» é uma metáfora apro- momento de distracção. U m papagaio pode dizer «Sócrates é mortal»
priada e expressiva, em p r i m e i r o lugar para os ruídos da própria voz imediatamente após alguém ter pronunciado premissas de que esta
vividamente imaginados e, em segundo lugar, para quaisquer ruídos frase pode ser a conclusão. U m rapaz pode, ao mesmo tempo que pensa
ou mesmo imagens visuais, porque nestes últimos casos a negação da no críquete, dar por r o t i n a o mesmo resultado correcto de uma conta de
distância deve ser interpretada como uma afirmação i m a g i n a t i v a e a m u l t i p l i c a r que seria dado por outro rapaz que estivesse a pensar no
proximidade é relativa, não tanto para os órgãos da cabeça, da vista que estava a fazer. Contudo, não dizemos que o papagaio é lógico, nem
e do ouvido, como para os lugares onde se encontram as persianas. descrevemos o rapaz desatento dizendo que está a resolver o problema.
Do ponto de vista verbal, é interessante v e r i f i c a r que as pessoas usam Consideremos em p r i m e i r o lugar u m rapaz que está a aprender a jogar
por vezes «mental» e «simplesmente mental» como sinónimos de «ima- xadrez. Naturalmente que, antes mesmo de ter ouvido falar das regras
ginário». do jogo, pode por acaso fazer uma jogada com o cavalo p e r m i t i d a pelas
Mas não interessa à minha argumentação geral saber se esta diva- regras. O facto de t e r feito uma jogada p e r m i t i d a não implica que
gação filológica está correcta ou não. Servirá para chamar a atenção saiba as regras que permitem fazê-la. N e m é necessário que o especta-
para as espécies de coisas que dizemos estarem «nas nossas cabeças», dor possa descobrir, pelo modo como o rapaz faz esta jogada, qualquer
designadamente coisas como palavras imaginárias, melodias e talvez indício visível que mostre se a jogada é casual ou feita com conhecimen-
recordações. Quando as pessoas empregam a expressão «no espírito» to das regras. No entanto, o rapaz começa depois a aprender o jogo
40 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 41

correctamente e isto implica em geral que receba instruções explícitas (7) CAPACIDADES INTELECTUAIS VERSUS HÁBITOS
acerca de tais regras. Aprendê-las-á provavelmente de cor e ficará então
apto a citá-las quando necessário. Durante os seus primeiros jogos terá A capacidade para aplicar regras é o produto da prática. É p o r t a n t o
provavelmente de repetir as regras em voz alta ou de cabeça e perguntar tentador a f i r m a r que a competência e a habilidade são simples
de vez em quando como devem ser aplicadas a esta ou àquela situação hábitos. São certamente segundas naturezas ou predisposições a d q u i r i -
particular. Mas depressa começará a aplicar as regras sem pensar das, mas isto não quer dizer que sejam simples hábitos. Os hábitos são
nelas. Faz as jogadas permitidas e evita as proibidas; assinala e uma espécie, mas não a única espécie, da segunda natureza, e argu-
protesta quando o seu adversário i n f r i n g e as regras. Mas já não cita mentar-se-á mais tarde que a afirmação comum de que todas as segun-
para s i próprio ou para a assistência as fórmulas em que assentam as das naturezas são meros hábitos oblitera distinções que são de
proibições ou permissões. Tornou-se para ele uma segunda natureza importância v i t a l para as investigações em que estamos empenhados.
fazer o que é p e r m i t i d o e evitar o que é proibido. Nesta fase pode A capacidade para dar de cor as soluções correctas de m u l t i p l i c a -
mesmo perder a sua anterior capacidade de citar as regras. Se lhe ções difere, em certos aspectos importantes, da capacidade para as
pedirem que ensine o u t r o principiante, pode ter esquecido como enu- resolver por meio do cálculo. Quando descrevemos alguém que faz uma
merar as regras e mostrará ao principiante como deve j o g a r fazendo coisa por hábito p u r o ou cego, queremos dizer que a faz automaticamen-
as jogadas correctas e anulando as jogadas erradas do principiante. te e sem ter de t o m a r atenção ao que está a fazer. Não precisa de ter
Mas seria m u i t o possível que u m rapaz aprendesse a j o g a r xadrez cuidado, de exercer vigilância ou crítica. Desde a idade em que aprende-
sem nunca ter ouvido ou lido as regras. Vendo as jogadas feitas por mos a andar podemos fazê-lo sem dar atenção aos nossos passos. Mas
outras pessoas e anotando quais das suas próprias jogadas f o r a m u m alpinista a andar por cima das rochas cobertas de gelo, ao vento e
aceites e quais f o r a m rejeitadas, poderia aprender facilmente a arte de no escuro, não mexe os membros por hábito cego; ele pensa no que
jogar correctamente, ao mesmo tempo que seria absolutamente incapaz está a fazer, está pronto para todas as emergências, economiza o seu
de expor as regras em termos definidos por «correctos » G «incorrectos». esforço, faz testes e experiências; em resumo, caminha com certo g r a u
Todos nós aprendemos as regras do «jogo do anel» e das «escondidas», de habilidade e discernimento. Se se engana, t e m propensão para não
bem como as regras elementares da gramática e da lógica, por este repetir o erro e, se descobre u m novo truque útil, t e m tendência para
processo. Aprendemos como pela prática, auxiliados evidentemente por continuar a usá-lo e para o melhorar. V a i simultaneamente caminhando
críticas e exemplos, mas muitas vezes sem a ajuda de quaisquer lições e ensinando a si próprio como caminhar em condições deste género. Faz
sobre a teoria. parte da essência das práticas meramente habituais que uma acção
Deve notar-se que não se diz que o rapaz sabe jogar, se o mais seja réplica das precedentes. Faz parte da essência das práticas i n t e l i -
que ele pode fazer é r e c i t a r as regras fielmente. Ele t e m de ser capaz gentes que uma acção seja modificada pelas que a precedem. Quem
de fazer as jogadas necessárias. Mas diz-se, que ele sabe j o g a r se, pratica a acção está sempre a aprender.
embora não possa citar as regras, faz normalmente as jogadas p e r m i t i - Esta distinção entre hábitos e capacidades inteligentes pode ser
das, evita as proibidas e protesta se o adversário faz jogadas proibi- exemplificada pela referência à distinção paralela entre os métodos
das. O seu conhecimento do como é exercido principalmente nas jogadas usados para inculcar as duas espécies de segunda natureza. A d q u i r i m o s
que ele faz ou admite ou nas que admite ou veta. Se ele é capaz de obser- hábitos por meio de exercícios, mas adquirimos capacidades inteligentes
v a r as regras, não nos preocupamos em saber se também as pode for- pelo treino. E x e r c i t a r (ou condicionar) consiste na imposição de repeti-
mular. Não é o que ele faz com a sua cabeça ou com a sua língua, mas o ções. O recruta aprende a colocar a arma ao ombro fazendo repetida-
que faz no tabuleiro, que mostra se ele conhece ou não as regras no mente os mesmos .movimentos por números. A criança aprende o
processo executivo de ser capaz de as aplicar. De igual modo, u m es- alfabeto e a tabuada da multiplicação pelo mesmo processo. A prática
tudante estrangeiro pode não saber falar inglês gramaticalmente tão não está aprendida enquanto as respostas do aluno não são automáticas,
bem como uma criança inglesa, porque o que ele domina é a teoria da enquanto não pode dá-las «de olhos fechados», ou seja, «a dormir», como
gramática inglesa. reveladoramente se diz. Por o u t r o lado, treinar, se bem que envolva
42 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 43

bastantes exercícios simples, não consiste em exercício. I m p l i c a o de encher, acender e puxar fumaças de u m cachimbo em tais e tais
estímulo, pela crítica e exemplo, do discernimento do próprio aluno. Ele condições. Estas predisposições são simples e unilaterais e as suas
aprende a fazer coisas pensando no que está a fazer e, assim, todas descrições são quase uniformes.
as operações feitas são em s i próprias uma lição para ele sobre o modo Mas a prática de considerar estes modelos de predisposições sim-
como fazê-las melhor. O soldado que apenas se exercitou em apresentar ples, embora inicialmente seja de algum auxílio, conduz, numa fase
armas correctamente t e m que ser treinado para ser eficiente em t i r o ao mais adiantada, a conclusões erróneas. Há muitas predisposições cujas
alvo e em l e i t u r a de mapas. O exercício dispensa a inteligência, o treino efectivações podem t o m a r uma grande e talvez i l i m i t a d a variedade de
desenvolve-a. Não estamos à espera que o soldado seja capaz de ler formas; muitos conceitos de predisposição são conceitos determináveis.
mapas «de olhos fechados». Quando se diz que u m objecto é duro, não queremos significar apenas
Há mais u m a diferença i m p o r t a n t e entre hábitos e capacidades que r e s i s t i r i a à deformação; queremos dizer também, por exemplo, que
produziria u m som agudo se levasse uma pancada, que nos magoaria
inteligentes, para cujo esclarecimento é necessário dizer algumas pala-
se entrássemos em contacto brusco com ele, que objectos com elastici-
vras quanto à lógica dos conceitos de predisposição em geral. Quando
dade s a l t a r i a m quando nele batessem, e assim por diante, indefinida-
dizemos que o v i d r o é quebrável ou o açúcar solúvel, estamos a usar
mente. Se desejássemos decompor tudo o que está implícito na
conceitos de predisposição, cuja força lógica é a seguinte: a fragilidade
descrição de u m animal como gregário, teríamos, de i g u a l modo, de
do v i d r o nào consiste no facto de ele estar a estilhaçar-se neste momen-
produzir uma série i n f i n i t a de diferentes proposições hipotéticas.
to. Pode ser quebrável sem nunca se ter p a r t i d o . Dizer que é quebrável
Assim, as predisposições de nível mais elevado, às quais esta
é dizer que se em qualquer momento f o r ou t i v e r sido submetido a
análise diz grandemente respeito, não são em geral predisposições
pancadas ou choques, ficará ou terá ficado em fragmentos. Dizer que o
singelas, mas predisposições cujo exercício é indefinidamente hetero-
açúcar é solúvel é dizer que se dissolveria, ou que se teria dissolvido, se
géneo. Quando Jane Austen quis mostrar o tipo específico de orgulho
deitado em água.
que caracterizava a heroína de Orgulho c Preconceito, teve de r e t r a t a r
U m a afirmação que a t r i b u i uma propriedade de predisposição a as suas acções, palavras, pensamentos e sentimentos em milhares de
uma coisa t e m m u i t o , embora não tudo, em comum com uma afirmação situações diferentes. Não há nenhum tipo-padrão de acção ou reacção
que submete essa coisa a uma lei. Possuir uma propriedade de predis- de Jane Austen de que se possa dizer: «O género de orgulho da m i n h a
posição não é estar n u m estado p a r t i c u l a r ou sofrer uma mudança heroína era precisamente a tendência para fazer isto, sempre que se
p a r t i c u l a r ; é estar sujeito ou ter a possibilidade de estar n u m estado verificasse uma situação deste género».
p a r t i c u l a r ou de sofrer u m a mudança particular, quando se verifica Os epistemologistas, entre outros, caem muitas vezes na a r m a d i l h a
uma condição particular. O mesmo é verdade, especificamente, acerca de pensar que as predisposições têm manifestações uniformes. Por
das predisposições humanas, tais como as maneiras de ser das pessoas. exemplo, quando reconhecem que os verbos «saber» e «acreditar» são
O facto de eu ser u m fumador habitual não implica que eu esteja a f u - normalmente usados predisposicionalmente, presumem que deve portan-
m a r neste ou naquele momento; é minha propensão permanente f u m a r to e x i s t i r u m processo intelectual-padrão no qual estas predisposições
quando não estou a comer, a d o r m i r , a dar lições ou a assistir a funerais cognitivas são realizadas. Desprezando o testemunho da experiência,
e quando não estive a f u m a r há m u i t o pouco tempo. tomam como postulado que, por exemplo, u m homem que acredita que a
A o discutir as predisposições é útil fixarmo-nos inicialmente nos t e r r a é redonda deve, de quando em quando, verificar por u m processo
modelos mais simples, tais como a fragilidade do v i d r o ou o hábito cognitivo único, «julgando» ou reafirmando internamente com u m sen-
de f u m a r de u m a pessoa. Porque, ao descrever estas predisposições, t i m e n t o de confiança, que «a t e r r a é redonda». De facto, a verdade é
é fácil decompor as proposições hipotéticas implícitas na atribuição que as pessoas não repisam as suas convicções deste modo e, mesmo
de propriedades predisposicionais. Ser quebrável é precisamente estar que o fizessem e que nós acreditássemos que o fizessem, não fica-
sujeito ou ser susceptível de se desfazer em fragmentos nestas ou ríamos mesmo assim convencidos de que elas acreditassem que a t e r r a
naquelas condições; ser u m fumador é estar sujeito ou ser susceptível é redonda, a menos que as encontrássemos a i n f e r i r , a imaginar, a dizer
•14 S A B E R COMO E S A B E R Q U E 45
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

e a fazer u m grande número de outras coisas. Se as encontrássemos conta mais do que este único êxito. Devemos t o m a r em consideração,
a i n f e r i r , a imaginar, a dizer e a fazer essas outras coisas, ficaríamos por exemplo, os tiros seguintes, o seu passado, as suas explicações ou
então convencidos de que acreditavam que a t e r r a é redonda, mesmo desculpas, os conselhos que deu ao seu colega e u m grande número
que tivéssemos as melhores razões para pensar que interiormente não de outras indicações de várias espécies. Não há nenhum sinal que indi-
repetiram nunca a afirmação original. que se u m homem sabe a t i r a r , mas uma modesta reunião de acções
heterogéneas é geralmente suficiente para t i r a r razoavelmente qual-
N o entanto, muitas vezes u m patinador nos a f i r m a temerària-
quer dúvida sobre se ele sabe ou não a t i r a r . Só então pode ser decidido
mente, a nós ou a s i próprio, que o gelo resistirá, mostrando porém que
se ele acertou no alvo porque teve sorte ou se f o i por t e r pontaria
sente certa apreensão se se conserva na orla da pista, se chama os seus
suficiente para ser bem sucedido na sua t e n t a t i v a . U m bêbado faz a
filhos para perto de si, se mantém o olhar f i x o nos cintos de segurança
única jogada no tabuleiro de xadrez que podia ser feita para d e r r u b a r
e se continuamente fala no que aconteceria se o gelo quebrasse.
o plano de ataque do adversário. Os espectadores persuadem-se de que
(8) O EXERCÍCIO DA INTELIGÊNCIA
isto não f o i devido à inteligência, mas s i m à sorte, se estiverem conven-
cidos de que a m a i o r i a das suas jogadas feitas neste estado quebram
as regras do xadrez ou não têm ligação táctica com a posição do jogo,
A o j u l g a r se as acções de alguém são ou não inteligentes, temos,
e de que ele não seria capaz de repetir a jogada se a situação táctica
como f o i dito, de as olhar de u m modo especial, para além da acção
voltasse a dar-se, que não aplaudiria essa jogada feita por o u t r o
em si. Porque não há actuação particular, manifesta ou interna, que
jogador em situação semelhante, que não poderia explicar porque a
não pudesse ter sido executada acidental ou «mecanicamente» por u m
t i n h a feito ou mesmo descrever qual o perigo que t i n h a ameaçado o r e i .
idiota, por u m sonâmbulo, por um homem em pânico, distraído ou
mesmo em delírio, e por vezes até por u m papagaio. Mas, olhando para O problema dos espectadores não é o da ocorrência ou não
além da acção, não estamos a t e n t a r penetrar numa acção correspon- ocorrência de processos espirituais, mas o da verdade ou falsidade de
dente oculta que desempenhe u m papel da suposta fase secreta da vida certas proposições de «posibilidade» e «pretensão» e certas outras
interior de quem pratica a acção. Estamos a considerar as suas capa- aplicações particulares delas. Porque, de u m modo grosseiro, o espírito
cidades e propensões cuja efectivação esta acção é. A nossa procura não é u m lugar de conjuntos de proposições categóricas não experimen-
não é sobre as causas (e a fortiori não sobre as causas ocultas), mas táveis, mas u m l u g a r de conjuntos de proposições hipotéticas e semi-
sobre as capacidades, habilidades, hábitos, sujeições e tendências. Ob- -hipotéticas experimentáveis. A diferença entre u m a pessoa n o r m a l e
servamos por exemplo u m soldado que acertou n u m alvo. Fê-lo por u m idiota não é que a pessoa n o r m a l seja na realidade duas pessoas,
sorte ou por pontaria? Se f o i por pontaria pode acertar outra vez no enquanto o idiota é só uma, mas s i m que a pessoa n o r m a l pode fazer
alvo ou perto dele, mesmo que o vento sopre, que a distância seja alte- uma porção de coisas que o idiota não pode; e «poder» e «não poder»
rada ou o alvo se mova. Ou se o seu segundo t i r o falhar, o terceiro, não são palavras de ocorrência, mas palavras de modo. Evidentemente
quarto e quinto acertarão provavelmente cada vez mais perto do alvo. que, ao descrever as jogadas efectivamente feitas pelo bêbado e as
Normalmente, o soldado suspende a respiração antes de puxar c ga- feitas pelos outros jogadores, os ruídos efectivamente emitidos pelo
tilho, como fez nesta p r i m e i r a ocasião; está apto a avisar o seu vizinho idiota ou pelo homem normal, não devemos usar apenas expressões
sobre os descontos que devem ser feitos, tendo em conta a refracção, de «possibilidade» e «propensão», mas também expressões como «fez»
o vento, etc. A pontaria é u m complexo de habilidades e a questão de e «não fez». A jogada do bêbado f o i feita irreflectidamente e o homem
saber se o soldado acertou no alvo por sorte ou por boa pontaria é a normal estava a prestar atenção ao que estava a dizer. N o Capítulo V,
mesma de saber se ele possui ou não essa habilidade e, se a tem, se tentarei m o s t r a r que as principais diferenças na descrição de tais
a usou dando o t i r o com cuidado, auto-domínio, atenção às condições ocorrências, tais como «ele fê-lo irreflectidamente» e «ele não o fez de
e pensando nas instruções. propósito», têm de ser explicadas, não como diferenças entre descrições
de ocorrências simples e compostas, mas de u m modo completamente
Para decidir se o facto de ele acertar no alvo f o i u m lance de sorte
diferente.
ou u m bom t i r o , necessitamos, e ele pode necessitar também, de t e r em
46 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 47

Saber como, portanto, é uma predisposição, mas não u m a predis- inferências facilmente refutáveis, estando atenta para fazer face a
posição unilateral, t a l como u m reflexo ou u m hábito. Os actos do seu objecções e resoluta na condução do curso geral do seu raciocínio em
exercício são a observação de regras ou cânones ou a aplicação de direcção à meta final. Argumentar-se-á mais tarde que todas estas
critérios, mas não são operações em série ou a admissão teórica de expressões «pronto», «em guarda», «cuidadoso», «alertado» e «resoluto»
máximas que depois se põem em prática. Além disso, os seus exercícios são expressões semi-predisposicionais e semi-episódicas. Não significam
podem ser manifestos ou encobertos, acções executadas ou acções a ocorrência simultânea de operações-extra mas internas, nem simples
imaginadas, palavras ditas em voz a l t a ou palavras ouvidas na cabeça, capacidades e tendências para executar outros actos, se s u r g i r essa
quadros pintados na tela ou quadros vistos com os olhos do espírito. necessidade, mas algo entre as duas coisas. O automobilista cuidadoso
Ou podem ser amálgamas de ambas as coisas. não está neste momento a imaginar ou a planear o que há-de fazer em
Estes pontos podem ser exemplificados conjuntamente, descrevendo todas as inúmeras contingências que possam s u r g i r de súbito. Além
o que acontece quando u m a pessoa argumenta inteligentemente. Há disso, ele não é simplesmente competente para reconhecer e enfrentar
uma razão especial para seleccionar este exemplo, já que t a n t o t e m sido com êxito qualquer delas, se surgirem. Ele não p r e v i u o b u r r o na
dito da racionalidade do homem; e porque parte, mas apenas parte, do estrada, ainda que não esteja desprevenido se ele aparecer. A sua
que as pessoas entendem por «racional» é «capacidade de raciocinar prontidão para enfrentar tais emergências mostrar-se-ia nos actos que
convenientemente». executaria se elas ocorressem. Mas a sua aptidão também se mostra
E m p r i m e i r o lugar, não faz m u i t a diferença se pensarmos naquele efectivamente pelo modo como desmultiplica e manobra os comandos,
que raciocina a raciocinar para si próprio ou em voz alta, argumentando, mesmo quando não há nenhuma situação crítica.
talvez, perante u m t r i b u n a l imaginário ou diante de u m t r i b u n a l real. N a base de todas as outras características das operações execu-
0 critério pelo qual os seus argumentos são julgados convincentes, tadas por quem raciocina inteligentemente, está a característica p r i -
claros, relevantes c bem organizados é o mesmo para os raciocínios mordial de raciocinar logicamente, isto é, evitar armadilhas e sofismas
silenciosos, declamados ou escritos. A argumentação silenciosa t e m a e produzir provas e inferências válidas, pertinentes ao caso a que se
vantagem prática de ser relativamente rápida, socialmente não incomo- aplicam. Ele observa as regras da lógica, assim como as do estilo, da
dativa e secreta; a argumentação audível ou escrita t e m a vantagem de estratégia forense, da etiqueta profissional e outras. Mas provavel-
ser menos descuidada, por estar sujeita à crítica da assistência e dos mente observa as regras da lógica sem pensar nelas. Não cita as
leitores. Mas em ambas se exercem as mesmas qualidades do intelecto, fórmulas de Aristóteles para si próprio ou para o T r i b u n a l . Aplica na
com a particularidade de que é necessário u m treino especial para prática o que Aristóteles abstraiu na sua teoria sobre tais práticas.
inculcar processos de raciocínio no solilóquio sdencioso. Raciocina por u m processo correcto, mas sem considerar as prescrições
E m segundo lugar, ainda que possa haver algumas fases de de uma metodologia. As regras que observa tornaram-se na sua f o r m a
argumentação tão banais que se poderia chegar a elas por simples de pensar, quando está a pensar com cuidado; não são rubricas
r o t i n a , é provável que muitos destes argumentos nunca tivessem sido externas com as quais t e m de conciliar os seus pensamentos. N u m a
anteriormente estruturados. A pessoa t e m que enfrentar novas objec- palavra, conduz a sua actuação eficientemente e agir eficientemente
ções, i n t e r p r e t a r novas provas, fazer ligações entre elementos numa não é executar duas operações. É executar u m acto de certa maneira
situação em que não t i n h a m sido coordenados previamente. E m resumo, ou com u m certo estilo ou procedimento e a descrição deste modus
t e m de fazer inovações e, ao fazê-las, não está agindo por hábito. Não operandi t e m de ser feita em termos semi-predisposicionais e semi-
está a repetir lances vulgares. Demonstra-se que essa pessoa está a -episódicos, tais como «cuidadoso», «crítico», «engenhoso», «lógico», etc.
pensar no que está a fazer, não só pelo facto de que está agindo sem O que é verdade sobre argumentar inteligentemente é também
precedentes, mas também por estar pronta a remodelar as suas verdade, com as modificações apropriadas, em relação a outras opera-
expressões sobre pontos expostos confusamente, ou a defender-se contra ções inteligentes. O pugilista, o cirurgião, o poeta, o vendedor, aplicam
ambiguidades, ou ainda alertada sobre as possibilidades de explorar os seus critérios especiais na execução das suas tarefas especiais,
estas mesmas ambiguidades, tomando cuidado em não confiar em porque estão a tentar fazer bem as suas tarefas; e são apelidados de
48 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A
S A B E R COMO E S A B E R Q U E 49

inteligentes, hábeis, inspirados ou sensatos, não pelo modo como O ponto central t r a t a d o neste capítulo é de considerável importância.
consideram, se é que consideram, as prescrições para conduzir as suas É u m ataque pelo flanco ao engano-categoria que está na base do
acções especiais, mas pelo modo como conduzem as próprias acções. dogma do «fantasma na máquina». Confiando inconscientemente neste
Quer o pugilista planeie ou não os seus golpes antes de os executar, a dogma, t a n t o os especialistas como os leigos i n t e r p r e t a m constantemen-
sua inteligência a j o g a r o boxe é decidida à luz do modo como luta. Se te os adjectivos com que caracterizamos acções engenhosas, sensatas,
é u m H a m l e t do r i n g , será condenado como u m lutador inferior, embora metódicas, cuidadosas, espirituosas, e t c , como marcando a ocorrência
seja talvez u m brilhante teórico ou crítico. A inteligência na luta é na corrente secreta da consciência de processos especiais que funcionam
exibida a dar socos ou a esquivar-se deles e não na aceitação ou rejeição como precursores fantásticos ou, mais especificamente, como causas
das proposições sobre socos, t a l como a capacidade de raciocinar é ocultas das acções assim caracterizadas. Postulam uma acção-sombra
exibida na formulação de argumentos válidos e na detecção de sofismas interna como o veículo real da inteligência normalmente atribuída ao
e não na admissão das fórmulas lógicas. N e m a habilidade do cirurgião acto manifesto e pensam que deste modo explicam o que faz do acto ma-
funciona na sua língua ao expressar verdades médicas, mas apenas nas nifesto uma manifestação da inteligência. Descreveram o acto manifesto
suas mãos quando fazem os movimentos correctos. como o efeito de u m acontecimento mental, embora evidentemente sejam
Tudo isto é referido, não para negar ou depreciar o valor das obrigados o deter-se antes de pôr a questão seguinte— o que é que
operações intelectuais, mas apenas para negar que a execução das t o r n a os acontecimentos mentais postulados manifestações de i n t e l i -
acções inteligentes envolva a execução adicional de operações intelec- gência e não deficiências mentais?
tuais. Mostrar-se-á mais tarde (Capítulo I X ) que a aprendizagem de E m completa oposição a este dogma, argumento que, ao descrever
quase todas as práticas, por mais simples que sejam, requer alguma as operações do espírito de uma pessoa, não estamos a descrever u m
capacidade intelectual. A capacidade para fazer coisas de acordo com segundo conjunto de operações feitas na sombra. Estamos a descrever
instruções necessita da compreensão dessas instruções. Assim, para certas fases da sua única actuação. Estamos a descrever, designadamen-
a d q u i r i r qualquer competência é necessário ter alguma competência te, o modo pelo qual algumas partes da sua actuação são dirigidas. O
proposicional para ela. Mas isto não quer dizer que o exercício desta sentido em que «explicamos» as suas acções não é aquele que inferimos
competência deva ser acompanhado por exercícios de competência de causas ocultas, mas aquele que classificamos sob proposições
proposicional. E u não poderia t e r aprendido a nadar de bruços se não hipotéticas ou semi-hipotéticas. A explicação não é do t i p o « o v i d r o
tivesse podido compreender as lições dadas sobre essa f o r m a de natação; partiu-se porque uma pedra o atingiu», mas mais aproximada do t i p o
mas não tenho de recitar essas lições quando nado agora de bruços. diferente « o v i d r o partiu-se quando u m a pedra o a t i n g i u porque era
U m homem que sabe pouco ou nada de medicina não poderia ser quebrável».' Não altera nada, em teoria, se as acções que estamos a
u m bom cirurgião, mas a perfeição em c i r u r g i a não é a mesma coisa avaliar são executadas em silêncio na cabeça de quem pratica a acção,
que o conhecimento da ciência médica; nem é u m mero produto dela. t a l como eu, quando devidamente treinado, faço teorias, componho
O cirurgião deve na verdade ter aprendido por instrução, ou pelas suas rimas ou resolvo anagramas. Mas é evidente que faz bastante diferença
próprias induções e observações, u m grande número de verdades. Mesmo na prática, porque o observador não pode a t r i b u i r valores a operações
quando a prática eficiente é a aplicação deliberada de prescrições que outra pessoa consegue esconder para s i própria.
consideradas, a inteligência aplicada em pôr as prescrições em prática
Mas quando uma pessoa fala acertadamente em voz alta, dá nós,
não é idêntica à que está implícita na compreensão intelectual dessas
faz imitações ou esculpe, as acções que presenciamos são elas próprias
mesmas prescrições. Não há contradição nem mesmo paradoxo ao
as coisas que ela está a fazer inteligentemente, embora os conceitos
descrever alguém como m a u praticante daquilo de que é bom pregador.
em cujos termos os físicos ou fisiologistas descreveriam as suas acções
Tem havido críticos literários profundos e originais que f o r m u l a r a m
não eliminem o sentido daqueles que seriam usados pelos seus alunos ou
cânones admiráveis sobre o estilo da prosa em prosa execrável. Tem
professores ao avaliar a sua lógica, estilo ou técnica. A pessoa está
havido outros que empregam uma linguagem brilhante expressando as
activa, física e mentalmente, mas não está sincronizadamente activa
mais disparatadas teorias sobre o que constitui a arte de bem escrever.
em dois «lugares» diferentes ou em dois mecanismos diferentes. Há
i. p. — 4
50 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 51

uma só actividade, mas que é susceptível de requerer e requer mais do tomando o u t r o exemplo, a diferença entre escutar u m orador e a t i n g i r
que u m a espécie de descrição explicativa. T a l como não há diferença o sentido do que ele diz?
aerodinâmica ou fisiológica entre a descrição de u m pássaro «a voar Os defensores da fábula da dupla vida responderão que compre-
para o sul» e de outro a «emigrar», embora haja uma grande diferença ender as jogadas do jogador de xadrez consiste em i n f e r i r das jogadas
biológica entre estas descrições, também não é necessário que haja visíveis feitas no tabuleiro as operações invisíveis que têm l u g a r no
diferenças físicas ou fisiológicas entre as descrições de u m homem a íntimo do jogador. É u m processo de inferência análogo àquele pelo
tagarelar e o u t r o a falar acertadamente, se bem que as diferenças qual inferimos através dos movimentos vistos nos sinais do caminho
lógicas sejam enormes. de ferro as manipulações invisíveis, na câmara de controlo, das alavan-
A afirmação de que «o espírito é o seu próprio lugar», como os teó- cas que não vemos. Esta resposta promete já qualquer coisa que nunca
ricos a podem elaborar, não é verdadeira, porque o espírito não é sequer poderia ser cumprida. Porque desde que, de acordo com a teo-
u m «lugar» metafórico. Pelo contrário, o tabuleiro de xadrez, a t r i b u n a , ria, uma pessoa não pode, em princípio, penetrar no espírito de
a carteira do estudante, a cadeira do juiz, o assento do motorista do outra, t a l como pode v i s i t a r a câmara de controlo, não haveria
camião, o estúdio e o campo de futebol são lugares dessa espécie. São maneira de estabelecer as necessárias correlações entre os m o v i -
lugares onde as pessoas t r a b a l h a m e jogam, estúpida ou inteligente- mentos manifestos e as suas contra-partidas causais secretas. A
mente. «Espírito» não é o nome de outra pessoa que está a t r a b a l h a r analogia das câmaras de controlo falha noutro lugar. A s ligações
ou a divertir-se por detrás de u m biombo impenetrável; não é o nome entre as alavancas e os sinais podem ser facilmente descobertas. Os
de o u t r o l u g a r onde o t r a b a l h o é feito ou onde os jogos são jogados. princípios mecânicos da roldana e da polia e o comportamento dos
E não é também o nome de o u t r a ferramenta com que o t r a b a l h o é feito, metais em tensão e compressão são-nos familiares, pelo menos em
ou de outro utensílio usado para jogar. linhas gerais. Sabemos suficientemente bem como t r a b a l h a a maquina-
r i a dentro da caixa de sinais, como t r a b a l h a por fora e como as duas
(9) COMPREENSÃO E MÁ COMPREENSÃO estão mecanicamente ligadas. Mas a d m i t e m aqueles que acreditam
na fábula do «fantasma na máquina» que ainda ninguém sabe m u i t o
Tem sido m a n t i d o através deste l i v r o que, quando caracterizamos sobre as leis que governam os supostos trabalhos do espírito, enquanto
uma pessoa pelos seus predicados mentais, não estamos a fazer as interacções postuladas entre as operações do espírito e os movimen-
inferências, impossíveis de experimentar, de quaisquer processos f a n - tos da mão são consideradas completamente misteriosas. Não benefi-
tásticos que se dão na sua corrente da consciência que estamos ciando do suposto estatuto mental nem do suposto estatuto físico, não se
impedidos de v i s i t a r . Pelo contrário, estamos a descrever o modo pelo pode esperar que estas interacções obedeçam nem às leis conhecidas
qual essa pessoa conduz partes do seu comportamento predominante- da física, nem às da psicologia ainda por descobrir.
mente público. N a verdade, vamos além daquilo que a vemos fazer ou Daqui se concluiria que ninguém teve ainda a mais leve compre-
daquilo que a ouvimos dizer, mas este i r além não é i r ver o que está ensão daquilo que qualquer o u t r a pessoa jamais disse ou fez. Lemos
por detrás, no sentido de fazer inferências sobre causas ocultas; é i r as palavras que Euclides escreveu e os feitos de Napoleão são-nos
além no sentido de considerar em p r i m e i r o lugar os poderes e propen- familiares, mas não temos a mais pequena ideia do que eles t i n h a m nos
sões de que as suas acções são exercício. Mas este ponto requer maior seus espíritos. N e m qualquer espectador de u m torneio de xadrez ou
desenvolvimento. de u m desafio de futebol teve jamais a menor ideia do que os jogadores
U m a pessoa que não sabe j o g a r xadrez pode, não obstante, assistir pretendiam.
a jogos de xadrez. Vê fazer as jogadas tão claramente como o seu Mas isto é obviamente absurdo. Qualquer pessoa que saiba j o g a r
vizinho que conhece o jogo. Mas o espectador que não sabe j o g a r não xadrez compreende m u i t o bem o que os outros jogadores fazem e u m
pode fazer o que faz o seu vizinho — apreciar a estupidez ou inteligência breve estudo de geometria h a b i l i t a u m aluno v u l g a r a seguir u m a boa
dos jogadores. Qual é a diferença entre ser simplesmente testemunha parte do raciocínio de Euclides. Esta compreensão não requer u m
de uma acção e compreender aquilo de que se é testemunha? Qual é, conhecimento aprofundado das leis da psicologia ainda não estabeleci-
S A B E R COMO E S A B E R Q U E 53
52 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

das. Seguir as jogadas feitas por u m jogador de xadrez não é fazer u m atribuir-lhes processos interiores estreitamente correspondentes seria
diagnóstico, mesmo remoto, da problemática psicológica. N a verdade, efectivamente contrário à evidência.
supondo que uma pessoa pudesse compreender as palavras ou acções A compreensão dos actos e palavras de uma pessoa não é, p o r t a n t o ,
de o u t r a apenas na medida em que pudesse fazer inferências causais de nenhuma adivinhação problemática de processos ocultos, porque esta
adivinhação não existe nem pode existir, enquanto a compreensão existe.
acordo com as leis psicológicas, isso teria a singular consequência de
Evidentemente, faz parte da minha tese geral que os supostos processos
que, se a l g u m psicólogo tivesse descoberto essas leis, nunca poderia
ocultos são eles próprios m i t o s ; não existe nada que possa ser objecto
t r a n s m i t i r as suas descobertas aos amigos. Porque ex hypotesi esses
do diagnóstico postulado. Mas para o f i m que tenho em v i s t a é
amigos não poderiam seguir a exposição dele sobre essas descobertas,
suficiente provar que, se existissem tais operações e estados interiores,
sem i n f e r i r , de acordo com elas, das suas palavras e pensamentos.
uma pessoa não poderia fazer inferências prováveis sobre os aconte-
Ninguém se sente satisfeito com a explicação de que uma pessoa cimentos da vida interior de outra.
seguir o que a outra diz ou faz é fazer inferências, u m pouco à seme- Se compreender não consiste em i n f e r i r ou conjecturar sobre os
lhança das que são feitas pelos vedores a p a r t i r das contracções actos precursores da vida i n t e r i o r das acções manifestas, que será
observadas na v a r i n h a para os cursos de água subterrâneos. Assim, então? Se não requer domínio da teoria psicológica, j u n t a m e n t e com a
faz-se por vezes uma correcção «de consolação», dizendo que desde que capacidade para a aplicar, que conhecimento requer? Vimos que u m
uma pessoa tenha conhecimento directo das correlações entre as suas espectador que não sabe jogar xadrez também não pode seguir o jogo
próprias experiências íntimas 9 as suas acções manifestas, pode com- de outros jogadores; uma pessoa que não sabe ler ou f a l a r sueco não
preender as acções dos outros, atribuindo-lhes uma correlação semelhan- pode compreender o que se diz ou escreve em sueco e uma pessoa cujos
te. Comprender é ainda adivinhar psicologicamente, mas é uma a d i v i - poderes de raciocínio são fracos dificilmente seguirá e reterá os a r g u -
nhação reforçada pela observação directa do adivinhador sobre as mentos dos outros. Compreender faz parte de saber como. O conheci-
correlações entre a sua própria vida interior e a exterior. Mas esta mento que é necessário para compreender acções inteligentes de u m
correcção não vem abolir a dificuldade. género específico é u m certo g r a u de competência na execução de acções
Argumentar-se-á adiante que a apreciação feita por uma pessoa desse género. A crítica competente sobre o estilo da prosa, técnica
das suas próprias acções não difere em natureza das apreciações -Vás experimental ou bordados implica, pelo menos, que quem a faz saiba
escrever, fazer experiências ou coser. A pessoa que faz essa crítica
acções dos outros, mas de momento é suficiente dizer que, mesmo qu?
pode ter aprendido também, ou não, alguma matéria psicológica sobre
uma pessoa gozasse de u m esclarecimento privilegiado na atribuição
o assunto, ou alguma química, neurologia ou economia. Estes estudos
de conceitos de alcance mental aos seus próprios actos, os seus a r g u -
podem, em determinadas circunstâncias, c o n t r i b u i r para a sua aprecia-
mentos supostamente analógicos sobre os processos mentais dos outros
ção sobre o que está a criticar. Mas a única condição necessária é que
seriam completamente enganadores.
tenha domínio da arte ou do processo cujos exemplos está a apreciar.
Se alguém tivesse inspeccionado u m certo número de sinais de
Para uma pessoa perceber as piadas inventadas por outra, a única
caminho de ferro e de caixas de sinais, poderia então, n u m novo caso,
coisa que necessita de ter é sentido de h u m o r e mesmo assim só o
fazer uma inferência, provavelmente certa, dos movimentos dos sinais
género de sentido de h u m o r adequado ao género de piadas de que as
observados para o movimento das alavancas não observado. Mas se só
mesmas são exercício.
tiver examinado uma caixa de sinais sem saber nada sobre os métodos
de uniformização das grandes companhias, a sua inferência será lamen- Evidentemente que executar uma operação inteligentemente não
tavelmente fraca porque terá feito uma vasta generalização baseada é o mesmo que segui-la inteligentemente. Quem pratica a acção está
n u m único exemplo. Mas u m sinal pode ser bastante semelhante a outro a dar origem a alguma coisa, enquanto o espectador está apenas a
em aparência e movimentos e por isso a inferência de uma semelhança contemplar. Mas as regras que observa a pessoa que pratica a acção
correspondente entre os mecanismos t e m alguma força. N o entanto, as e os critérios que aplica são os mesmos que levam o espectador a
aparências observadas e as acções das pessoas diferem m u i t o e assim aplaudir ou a escarnecer. 0 comentador de Platão não necessita de ter
54 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E S A B E R Q U E 55

m u i t a originalidade filosófica, mas se não pode, como acontece com Este facto de que a capacidade para apreciar u m a acção é u m
muitos comentadores, apreciar o vigor, o objectivo ou os motivos de tipo de capacidade para executar, exemplifica u m problema já dis-
u m argumento filosófico, os seus comentários não terão valor. Se os cutido, o de que as capacidades inteligentes não são predisposições
sabe apreciar, então saberá comunicar aquilo que Platão sabia fazer. unilaterais, mas que a d m i t e m uma grande variedade de exercícios mais
Se eu sou competente para j u l g a r as acções do leitor é porque, ou menos diferentes. No entanto, é necessário fazer duas advertências.
presenceando-as, estou alerta para detectar erros e confusões nelas, P r i m e i r o , a capacidade para executar e apreciar uma operação não
mas o leitor também estará alerta ao executá-las. E s t o u pronto a n o t a r envolve necessariamente a capacidade para f o r m u l a r críticas ou lições.
as vantagens que o leitor pode t i r a r do factor sorte, mas o leitor t a m - U m m a r i n h e i r o experiente pode fazer nós bem feitos e perceber se
bém está. O l e i t o r aprende à medida que v a i praticando e eu também alguém os está a fazer correcta ou incorrectamente, com destreza ou
aprendo à medida que o vejo prosseguir. O indivíduo inteligente desajeitadamente. Mas provavelmente será incapaz de executar a difícil
actua com sentido crítico, o espectador inteligente segue a ação tarefa de descrever por palavras como é que os nós devem ser dados.
com espírito crítico. Resumindo, execução e compreensão são sim- Segundo, a capacidade para apreciar uma acção não implica o mesmo
plesmente exercícios diferentes do conhecimento da f o r m a de fazer g r a u de competência do que a capacidade para a executar. Não há génio
uma mesma coisa. O leitor exercita o seu conhecimento de como dar em reconhecer o génio e u m bom crítico dramático pode ser medíocro
u m nó de m a r i n h e i r o , não apenas pelos actos que faz ao dar esse como actor ou dramaturgo. Não haveria professores nem alunos se a
nó, mas também corrigindo os seus erros e imaginando como dar o nó capacidade para compreender operações requeresse uma completa capa-
correctamente, ensinando alunos, criticando os movimentos incorrectos cidade para as executar. Os alunos são ensinados a fazer coisas por
ou desajeitados e aplaudindo os movimentos correctos que os alunos pessoas que sabem melhor do que eles como fazê-las. Os Elementos
fazem, inferindo o erro de u m resultado imperfeito, vaticinando as de Euclides não são u m l i v r o aberto nem fechado para o estudante.
consequências dos lapsos observados, e assim por diante indefinida- U m a característica desta explicação da compreensão f o i t r a t a d a ,
mente. A s palavras «compreender» e «seguir» designam alguns dos embora sob o aspecto errado, por certos filósofos que t e n t a r a m explicar
exercícios do seu conhecimento de como, que o leitor executa sem ter, como u m historiador, estudante ou crítico literário, pode compreender
por exemplo, uma corda na mão. as acções e palavras das personagens de que t r a t a . Aderindo sem
Seria ocioso dizer agora que isto não implica que o espectador ou restrições ao dogma do «fantasma na máquina», estes filósofos f i c a r a m
leitor, ao seguir o que é feito ou escrito, esteja a fazer inferências naturalmente perplexos com as pretensões dos historiadores de inter-
analógicas dos sues próprios processos internos correspondentes para pretar as acções e palavras de personagens históricas como expressões
os processos internos dos autores das acções ou escritos. N e m precisa, dos seus verdadeiros pensamentos, sentimentos e intenções.
embora o possa fazer, imaginar-se a si próprio na pele do autor e na Porque, se os espíritos são impenetráveis uns pelos outros, como
situação em que ele se encontra. Ele está apenas a pensar no que o autor podem os historiadores penetrar no espírito dos seus heróis? E se t a l
da acção está a fazer, sob os mesmos aspectos em que o autor está a penetração é impossível, o trabalho de todos os estudiosos, críticos e
pensar no que está a fazer, salvo se o autor t e n t a r descobrir o que o historiadores tem de ser vão. Eles podem descrever sinais de caminho
o u t r o está a f o r j a r . O a u t o r está a conduzir a acção e o espectador está a de ferro mas não podem nunca começar a interpretá-los como efeitos
segui-la, mas o caminho deles é o mesmo. N e m esta explicação da das operações das caixas de sinais eternamente fechadas.
compreensão requer ou nos encoraja a postular quaisquer afinidades Estes filósofos propuseram a seguinte solução para este espúrio
eléctricas misteriosas entre almas gémeas. Se os corações de dois quebra-cabeças. Se bem que eu não possa presenciar o trabalho do
jogadores de xadrez batem ao mesmo r i t m o , o que não acontecerá se espírito do leitor ou do de Platão, mas apenas as acções manifestas e as
forem adversários, a sua capacidade para seguir o jogo u m do outro palavras escritas que tomo por «expressões» exteriores desse trabalho
não depende desta coincidência valvular, mas da sua competência no interior, posso, por meio de u m esforço adequado e com a prática,
xadrez, do seu interesse neste jogo e da familiaridade adquirida com ordenar deliberadamente essas operações no meu palco privado, como
os métodos de j o g a r do adversário. originando tais acções e palavras. Posso ter pensamentos íntimos, de
56 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A S A B E R COMO E SA.BER Q U E 57

minha própria autoria, que seriam bem expressos pelas frases atribuí- Mas isto implica uma nova suposição injustificável, mas interessante,
das a Platão e posso, de facto ou em fantasia, executar volições próprias ou seja, que a acções e palavras manifestas semelhantes correspon-
que originem ou o r i g i n a r i a m acções iguais àquelas que v i serem dem processos internos semelhantes, suposição esta que é, de acordo
executadas pelo autor. Tendo-me enquadrado numa disposição de com a própria teoria, completamente impossível de verificar. Supõe,
espírito na qual actuo como o leitor ou escrevo como Platão, posso também erradamente, que se conclui do facto de eu atravessar certos
então i m p u t a r ao leitor e a Platão disposições de espírito semelhantes. processos mentais, que deva apreciá-los perfeitamente por aquilo que
Se esta imputação f o r correcta, então, sabendo o que é para m i m estar são, isto é, que não possa i n t e r p r e t a r m a l , ou confundir-me, sobre
numa disposição de espírito que produz essas acções e palavras, posso nada do que acontece na minha própria corrente da consciência. E m
saber também o que era ser Platão a escrever os seus Diálogos e o resumo, toda esta teoria é uma variante da doutrina de que a compreen-
que é, por exemplo, ser como o leitor a dar u m nó de marinheiro. são consiste numa adivinhação causal problemática, reforçada por u m
Reordenando as acções manifestas do leitor, revivo as suas experiên- fraco argumento analógico.
cias íntimas. De certo modo, o estudante de Platão torna-se u m O que faz com que esta teoria seja digna de discussão é que, em
segundo Platão, uma espécie de re-autor dos seus Diálogos e assim, e parte, evita equiparar a compreensão ao diagnóstico psicológico, isto
só assim, compreende os seus Diálogos. é, a inferências causais do comportamento manifesto para processos
Infelizmente, este programa de i m i t a r os processos mentais de mentais de acordo com leis ainda p o r descobrir pelos psicólogos.
Platão nunca poderá ter completo êxito. E u sou, no fundo, u m estudioso E evita esta equiparação fazendo uma suposição para a qual não
inglês de Platão, do século X X , coisa que Platão nunca f o i . A minha está habilitada mas que está à beira da verdade. Supõe que as
cultura, instrução, linguagem, hábitos e interesses são diferentes dos qualidades dos espíritos das pessoas se reflectem nas coisas que
seus e isto prejudicará a fidelidade da minha imitação do seu estado elas dizem ou fazem manifestamente. Assim, os historiadores e estu-
de espírito e portanto o êxito das minhas tentativas para o compreender. diosos, ao estudar os estilos e processos das actividades literárias e
Argumenta-se ainda que isto é, dada a natureza do caso, o mais que eu práticas, estão na pista certa; de acordo com a teoria, por uma infelici-
posso fazer. A compreensão t e m de ser imperfeita. Só sendo realmente dade inevitável, esta pista t e r m i n a no abismo que separa o «físico» do
Platão eu poderia compreendê-lo realmente. «mental», o «exterior» do «interior». Se nesta a l t u r a os defensores
Alguns defensores de teorias deste tipo acrescentam-lhes a l g u m desta teoria tivessem visto que os estilos e processos das actividades
argumentos confortáveis. E m b o r a os espíritos sejam inacessíveis uns das pessoas são a maneira como o seu espírito t r a b a l h a e não apenas
aos outros, pode dizer-se que ressoam, como u m diapasão, em harmonia reflexos imperfeitos dos processos secretos postulados, que se supôs
uns com os outros, embora infelizmente nunca venham a sabê-lo. E u serem o trabalho do espírito, o seu dilema ter-se-ia desvanecido. A s
não posso possuir literalmente em comum as experiências do leitor, pretensões dos historiadores e estudiosos de serem capazes, em
mas algumas das nossas experiências podem de certo modo coincidir, princípio, de compreender o que as suas personagens fizeram ou
ainda que o não possamos saber, de uma forma que seria quase uma escreveram, seriam automaticamente justificadas. Não f o r a m eles que
comunhão genuína. Nos casos mais felizes podemos j u n t a r dois surdos andaram a estudar sombras.
incuráveis a cantar no mesmo t o m e ao mesmo tempo. Mas não vale a As acções inteligentes manifestas não são indicações do t r a b a l h o
pena insistir nos artifícios de uma teoria que é radicalmente falsa. do espírito. Boswell descreveu o espírito de Johnson quando descreveu
Esta teoria é precisamente mais uma t e n t a t i v a falhada para esca- como ele escrevia, falava, comia, se excitava e se encolerizava. A sua
par a u m dilema mítico. Ele presume que a compreensão t e r i a de descrição era, evidentemente, incompleta, dado que obviamente Johnson
consistir em contemplar as operações incognoscíveis de espíritos isola- guardou cuidadosamente para si próprio alguns dos seus pensamentos
dos e tenta remediar este contratempo dizendo que, na f a l t a de t a l e deve t e r havido muitos sonhos, devaneios e conversas silenciosas
conhecimento, posso fazer quase o mesmo contemplando as minhas que só Johnson poderia t e r recordado e só u m James Joyce desejaria
próprias operações espirituais que naturalmente d a r i a m origem a «ex- que ele tivesse recordado.
pressões» manifestas iguais às das pessoas que desejo compreender. Antes de concluirmos esta análise da compreensão, temos de dizer
58 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA S A B E R COMO E S A B E R Q U E 59

qualquer coisa sobre a compreensão parcial e sobre a má compreensão. da língua russa pode i n t e r p r e t a r em sentido errado uma expressão
Já se chamou a atenção para certos paralelismos e divergências russa. Os erros são exercícios de competência.
entre o conceito de saber que e o de saber como. Devemos assinalar ago- As interpretações erradas nem sempre são devidas a imperícia ou
r a mais uma divergência. Nunca falamos de uma pessoa como tendo f a l t a de cuidado do espectador; por vezes são devidas a f a l t a de
conhecimento parcial de u m facto ou de uma verdade, salvo no sentido cuidado, outras à astúcia de quem pratica a acção ou de quem fala.
especial do seu conhecimento parcial de u m conjunto de factos ou Por vezes ambos estão a usar toda a habilidade e cuidado, mas acontece
verdades. Pode dizer-se que u m rapaz t e m u m conhecimento parcial dos que as operações executadas, ou as palavras ditas, podem efectivamente
condados de I n g l a t e r r a , se conhece alguns deles e não conhece os outros. ser interpretadas em dois sentidos diferentes. Os primeiros dez movi-
Mas não se poderia dizer que tem u m conhecimento incompleto de que mentos para dar u m nó podem ser idênticos aos dez primeiros movi-
Sussex é u m condado inglês. Ele t e m conhecimento deste facto ou não mentos de outro nó, ou u m conjunto de premissas adequadas para
estabelecer uma conclusão pode ser igualmente adequado para estabe-
tem. Por o u t r o lado, está certo e é n o r m a l f a l a r de uma pessoa que sabe
lecer outra conclusão. A má interpretação dos espectadores deve então
em parte como fazer qualquer coisa, isto é, que t e m uma capacidade
ser aguda e bem fundamentada. Só é descuidada por ser prematura. A
p a r t i c u l a r n u m g r a u l i m i t a d o . U m jogador de xadrez v u l g a r sabe muito
simulação é a arte de explorar a possibilidade.
bem o jogo, mas u m campião conhece-o melhor e mesmo o campião
É óbvio que, quando a má interpretação é possível, a compreensão
ainda t e m m u i t o a aprender.
também é possível. Seria absurdo sugerir que talvez interpretemos
Isto é válido também, como seria de esperar, para a compreensão.
sempre erradamente as acções que testemunhamos, porque não pode-
U m jogador de xadrez v u l g a r pode seguir em parte a táctica de u m
ríamos aprender a i n t e r p r e t a r m a l sem aprender a i n t e r p r e t a r , processo
campião e talvez depois de m u i t o estudo compreenda completamente de aprendizagem este que implica não i n t e r p r e t a r erradamente. As
os métodos usados por ele em certos jogos especiais. Nunca poderá, más interpretações são em princípio corrigíveis, o que faz parte do
porém, prever como é que o campião fará a sua próxima jogada e nunca valor da controvérsia.
é tão rápido ou seguro nas suas interpretações das jogadas do campião
como o próprio campião a fazê-las ou até a explicá-las. (10) SOLIPS(SMO
Aprender como ou melhorar em capacidade não é o mesmo que
aprender que ou a d q u i r i r informação. A s verdades podem ser trans- Os filósofos contemporâneos têm t r a t a d o do problema do nosso
mitidas, os processos podem apenas ser inculcados e, enquanto o conhecimento do espírito dos outros. Enredados no dogma do «fantasma
treino é u m processo gradual, a comunicação é relativamente rápi- na máquina», acharam impossível descobrir qualquer evidência logica-
da. Faz sentido perguntar em que momento alguém f o i posto ao facto mente satisfatória que autorizasse alguém a acreditar que existem
de uma verdade, mas não em que momento alguém a d q u i r i u uma espíritos além do seu próprio. E u posso presenciar o que o corpo do
capacidade. «Parcialmente treinado» é uma frase com sentido, «par- leitor faz, mas não posso presenciar o que faz o seu espírito e as minhas
cialmente informado» não o é. O treino é a arte de desempenhar tarefas pretensões de i n f e r i r do que o seu corpo faz para o que faz o seu
que os alunos ainda não executaram mas que não serão sempre incapa- espírito f a l h a m todas, dado que as premissas destas inferências são
zes de desempenhar. inadequadas e incognoscíveis.
A noção da má compreensão não levanta dificuldades teóricas Podemos ver agora a nossa saída da suposta dificuldade. Descubro
gerais. Quando a táctica do jogador de cartas é m a l compreendida pelos que existem outros espíritos ao compreender o que as outras pessoas
seus adversários, a manobra que eles pensam discernir é na verdade dizem ou fazem. A o apanhar o sentido do que o leitor diz, ao apreciar
uma manobra possível do jogo, embora o jogador não a faça. Só alguém as suas piadas, ao desmascarar os seus estratagemas no xadrez, ao
que soubesse o jogo poderia i n t e r p r e t a r a jogada corno uma parte da seguir os seus argumentos e ao ouvi-lo apontar falhas nos meus, não
execução da manobra suposta. A má compreensão é u m sub-produto estou a i n f e r i r o trabalho do seu espírito, mas s i m a segui-lo. Certa-
de saber como. Só uma pessoa que tenha pelo menos u m domínio parcial mente que não estou apenas a ouvir os ruídos que o leitor faz, ou
60 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

simplesmente a seguir os movimentos que executa. E s t o u a compreender


o que oiço e vejo. Mas esta compreensão não é i n f e r i r causas ocultas.
È apreciar como as operações são conduzidas. Ser de opinião de que
a m a i o r i a das pessoas t e m u m espírito (embora os idiotas e as crianças
de colo o não tenham) é simplesmente achar que essas pessoas são
capazes e têm propensão para fazer determinadas espécies de coisas,
e chegamos a esta conclusão presenciando as espécies de coisas que elas
fazem. N a verdade, não descobrimos apenas que existem outros espíri-
tos; descobrimos as qualidades específicas do intelecto e o carácter C A P I T U L O I I I

particular das pessoas. De facto, estes assuntos específicos são-nos


familiares m u i t o antes de podermos compreender proposições gerais,
tais como a de que Fulano tem u m espírito ou que existem outros A VONTADE
espíritos além dos nossos, do mesmo modo que sabemos que as pedras
são duras e as esponjas macias, que os gatos são quentes e irrequietos,
que as batatas são frias e inertes, m u i t o antes de podermos aprender a
proposição que diz que os gatos são objectos materiais, ou que a matéria (1) PROLOGO
existe.
Evidentemente que há coisas a respeito do leitor que só poderei A m a i o r parte dos conceitos de conteúdo mental cujo comporta-
saber por ele, porque ele mas diz. O oftalmologista tem de perguntar mento lógico examinamos neste l i v r o são conceitos familiares de todos
aos seus doentes quais as letras que vêem com o olho direito e com o os dias. Todos sabemos como aplicá-los e compreendemos as outras
esquerdo e em que medida as vêem claramente. O médico t e m de ])°csoas quando os aplicam. O que está em questão não é como aplicá-
perguntar ao doente onde tem dores e que espécie de dores. O psicana- mos, mas como classificá-los, ou em que categoria os colocar.
lista tem de i n t e r r o g a r o seu paciente sobre os seus sonhos e devaneios. O conceito de volição é u m caso diferente. Não sabemos como usa-
Se o leitor não d i v u l g a r o conteúdo das suas conversas íntimas consigo do na vida de todos os dias, até porque não o usamos, e consequente-
próprio em silêncio, nem as coisas que imagina, eu não tenho nenhuma mente não sabemos pela prática como aplicá-lo e como não aplicá-lo
outra maneira segura de saber o que o leitor está a dizer ou a i r a d a m e n t e . É u m conceito a r t i f i c i a l . Temos que estudar certas teo-
imaginar para si mesmo. Mas a sequência das sensações do leitor rias especializadas para saber manipulá-lo. Não se conclui, evidente-
e das coisas que imagina não é o único campo em que o seu espírito mente que, pelo facto de ser u m conceito técnico, seja ilegítimo ou
e carácter se mostram. Talvez só para os loucos isto seja mais do que inútil. «Ionização» e «fora de campo» são conceitos técnicos, mas x i n -
u m pequeno recanto desse campo. Descubro m u i t o daquilo que quero bos são legítimos e úteis. «Flogístico» e «Espíritos Animais» eram
saber a respeito das capacidades, interesses, gostos, aversões, métodos conceitos técnicos, embora hoje não t e n h a m utilidade.
e convicções do leitor, observando as suas acções manifestas, das quais
as mais importantes são de longe as suas palavras e escritos. Como (2) O MITO DAS VOLIÇÕES
conduz a sua imaginação, incluindo os monólogos imaginados, é questão
secundária. Durante muito tempo tem-se aceitado como axioma irrefutável
que o Espírito é t r i p a r t i d o em três importantes secções, isto é, que
existem precisamente três classes fundamentais de processos men-
tais. O Espírito ou a A l m a , dizem-nos muitas vezes, são formados por
três partes, a saber, Pensamento, Sensibilidade e Vontade. Ou, mais
solenemente, o Espírito ou a A l m a funcionam de três modos dife-

S I <vl L I O T E C
62 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE 63

rentes irredutíveis: o modo cognitivo, o modo afectivo e o modo v o l i - também movimentos de matéria no espaço ou, no caso privilegiado
tivo. Este dogma t r a d i c i o n a l não só não é evidente em si mesmo, como dos seres humanos, impulsos de outra espécie. De certo modo que per-
é também u m a amálgama de confusões e falsas evidências, de t a l modo manecerá para sempre misterioso, os impulsos mentais, que não são
que é melhor desistir de qualquer t e n t a t i v a no sentido de o remodelar. movimentos da matéria no espaço, podem causar a contracção dos
Deve ser t r a t a d o como uma das curiosidades da teoria. músculos. Descrever u m homem a puxar intencionalmente o g a t i l h o
Contudo, o objectivo principal deste capítulo não é discutir o con- é estabelecer que u m determinado impulso mental causou a contracção
j u n t o da teoria trinitária do espírito, mas s i m discutir, e discutir des- dos músculos do seu dedo. Assim, a linguagem das «volições» é a l i n -
trutivamente, u m a das suas componentes. Espero r e f u t a r a d o u t r i n a guagem da teoria para-mecânica do espírito. Se u m perito fala sem
de que existe u m a Faculdade, Órgão I m a t e r i a l ou Ministério corres- escrúpulos de «volições» ou «actos de vontade», não é necessária mais
pondente à descrição teórica de «Vontade» e que de acordo com ela qualquer evidência para m o s t r a r que ele contradiz completamente o
ocorram processos ou operações correspondentes ao que a teoria des- dogma de que o espírito é u m campo secundário de causas especiais.
creve como «volições». Devo no entanto esclarecer desde o princípio Pode prever-se que ele falará correspondentemente das acções cor-
que esta refutação não invalidará as distinções que correctamente porais como de «expressões» de processos mentais. Provavelmente
fazemos entre acções voluntárias e involuntárias e entre pessoas de também falará afectadamente de «experiências», u m substantivo colecti-
vontade f o r t e e de vontade fraca. Pelo contrário, esclarecer-se-á melhor vo comummente usado para indicar os postulados episódios não físicos
o que significa «voluntário» e «involuntário», «vontade forte» e «von- que constituem o drama-sombra no palco fantástico do tablado mental.
tade fraca», emancipando estas ideias da escravidão de uma hipótese A p r i m e i r a objecção à d o u t r i n a de que as acções manifestas a que
absurda. atribuímos predicados inteligentes são resultados de operações corres-
As volições f o r a m postuladas como actos ou operações especiais pondentes invisíveis é a seguinte: apesar de os autores, desde os
«no espírito», por meio dos quais o espírito traduz as suas ideias em estóicos a Sto. Agostinho, nos terem recomendado que descrevamos o
factos. E u penso em certo estado de coisas a que desejo dar existência nosso comportamento deste modo, ninguém, a não ser para defender
no mundo físico, mas como o meu pensamento e o meu desejo são ino- a teoria, descreve o seu próprio comportamento ou o das pessoas suas
perantes, necessitam da mediação de u m outro processo mental execu- conhecidas por meio destas expressões recomendadas. Nunca ninguém
t i v o . Assim, executo u m a volição que de certo modo põe os meus mús- diz, por exemplo, que às dez horas da manhã estava ocupado a querer
culos em acção. Só quando se produz u m movimento corporal de t a l isto ou aquilo ou que executou cinco volições rápidas e fáceis e duas
volição eu posso ser merecedor de aplausos ou censuras pelo que a volições demoradas e difíceis entre o meio-dia e a hora do almoço.
m i n h a mão ou a m i n h a língua fizeram. U m acusado pode a d m i t i r ou negar que fez qualquer coisa, ou que
É evidente a razão por que rejeito esta história. E l a é u m inevi- a fez de propósito, mas nunca admite ou nega ter tido vontade.
tável prolongamento do m i t o do fantasma na máquina. Supõe que Nem o j u i z nem os jurados necessitam, para aceitar a evidência, o que
existem estados e processos mentais que gozam de u m a espécie de dada a natureza do caso nunca poderia ser alegado, de saber que a
existência e estados e processos corporais que gozam de outra. U m a volição precedeu o disparar do gatilho. Os romancistas descrevem as
ocorrência n u m estado nunca é numericamente idêntica a uma ocor- acções, observações, atitudes, esgares, devaneios, deliberações, escrú-
rência no outro. Assim, dizer que uma pessoa puxou o g a t i l h o inten- pulos e embaraços das suas personagens, mas nunca mencionam as
cionalmente é expressar pelo menos u m a proposição copulativa, a f i r - suas volições. Não saberiam o que dizer sobre elas.
mando a ocorrência de u m acto no estado físico e de o u t r o no estado Por meio de que predicados deveriam elas ser descritas? Podem
mental. E, de acordo com a m a i o r i a das versões deste m i t o , é expre- ser súbitas ou graduais, fracas ou fortes, difíceis ou fáceis, agradáveis
sar u m a proposição causal, afirmando que o acto corporal de puxar ou desagradáveis? Podem ser apressadas, retardadas, interrompidas
o g a t i l h o f o i o efeito de u m acto mental de querer puxar o gatilho. ou suspensas? As pessoas podem ser eficientes ou ineficientes nelas?
De acordo com a teoria, os actos do corpo são movimentos da São fatigantes ou servem de distracção? Posso fazer duas ou sete
matéria no espaço. A s causas destes movimentos devem p o r t a n t o ser simultaneamente? Posso lembrar-me de as executar? Posso executa-
64 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A V O N T A D E 68

-las enquanto penso noutras coisas ou enquanto durmo? Podem t o r - festas observadas as volições de que elas resultam e só então, se t e m
nar-se habituais? Posso esquecer como fazê-las? Posso acreditar erra- quaisquer razões para isso, pode acreditar que a acção manifesta f o i
damente que executei uma quando não o fiz ou que não executei uma uma acção voluntária e não u m reflexo ou acção habitual ou uma
quando na realidade a executei? E m que momento f o r m u l o u o rapaz resultante de certas causas externas. Segue-se que nenhum juiz, pro-
a volição que o fez dar o salto da prancha ? Quando pôs o pé na escada ? fessor ou parente pode jamais saber se as acções que j u l g a merecem
Quando inspirou profundamente pela p r i m e i r a vez? Quando começou aplauso ou censura, porque o mais que pode fazer é conjecturar que
a contar «um, dois, três, largar», mas não largou? Apenas uns escassos a acção f o i voluntária. Mesmo uma confissão feita pela pessoa que
momentos antes de dar efectivamente o salto? Qual seria a sua pró- praticou a acção (se é que tais confissões f o r a m alguma vez feitas)
pria resposta a estas perguntas? dc que executou uma volição, antes da sua mão praticar a acção, não
resolveria esta questão. O acto de fazer a confissão é apenas o u t r a
Os defensores da d o u t r i n a mantêm evidentemente que o desem-
acção muscular manifesta. A curiosa conclusão que daí resulta é que,
penho das volições é afirmado por implicação, sempre que u m acto
embora as volições sejam chamadas a explicar a nossa apreciação das
manifesto é descrito como intencional, voluntário, culpável ou meri- acções, t a l explicação é exactamente aquilo que elas não dão. Se não
tório. A f i r m a m também que qualquer pessoa não só pode, mas é o b r i - tivéssemos bases antecedentes para aplicar conceitos de apreciação
gada a saber que está a querer uma coisa quando a está a querer, dado das acções dos outros, não teríamos nenhumas razões para i n f e r i r
que as volições são definidas como uma espécie de processo consciente. destas acções as volições que se alega serem a sua origem.
Assim, se os homens e mulheres vulgares deixam de mencionar as suas
Nem se poderia sustentar que a própria pessoa que pratica a acção
volições ao descrever o seu próprio comportamento, isto deve ser
possa saber que qualquer das suas acções manifestas é o efeito de uma
devido à sua f a l t a de treino sobre as frases apropriadas à descrição do
dada volição. Supondo, o que não é o caso, que poderia saber de cer-
seu eu interior, como distinto do seu comportamento manifesto. No
teza, quer pelas chamadas expressões directas da consciência, quer
entanto, quando se pergunta a u m defensor da doutrina há quanto
pelas chamadas descobertas directas da introspecção, que executou
tempo executou a sua última volição ou quantos actos de volição exe-
u m acto de vontade de puxar o g a t i l h o precisamente antes de o puxar,
cutou, digamos, ao r e c i t a r uma poesia de trás para a frente, ele con-
isto não provaria que o acto de puxar o g a t i l h o fosse o efeito dessa
fessa encontrar dificuldades para dar a resposta, se bem que estas
volição. Admite-se que a relação entre volições e movimentos é mis-
dificuldades, segundo a sua teoria, não devessem existir.
teriosa e, assim, o mais que a pessoa sabe é que a sua volição poderia
Se os homens vulgares nunca descrevem a ocorrência destes actos, ter t i d o alguns outros movimentos como efeito e o acto de puxar o
de acordo com a teoria, eles deviam, no entanto, ser experimentados gatilho poderia ter tido outras causas.
muito mais frequentemente do que as dores de cabeça ou as sensações E m terceiro lugar, seria impróprio encobrir que se admite que
de aborrecimento. Se o vocabulário vulgar não t e m nomes académicos as relações entre a volição e o movimento são u m mistério. Não é u m
para eles, se não sabemos responder a perguntas simples sobre a sua mistério de tipo não resolvido ,mas solúvel, como o problema da causa
frequência, duração ou intensidade, deve concluir-se que a sua exis- do cancro, mas de outro tipo completamente diferente. A t r i b u i - s e aos
tência não é confirmada no campo empírico. O facto de Platão e A r i s - episódios que se supõe constituírem a actividade do espírito uma espé-
tóteles nunca os terem mencionado nas suas frequentes e complicadas cie de existência, enquanto os que constituem a actividade do corpo
discussões sobre a natureza da alma e as origens do comportamento não são de outra espécie e não se admite u m estado intermédio. Ãs rela-
é devido a qualquer culposa negligência sua das componentes visíveis ções entre corpo espírito são atribuídos laços que não existem. A hipó-
da vida diária, mas à circunstância histórica de que não lhes era f a m i - tese de que devem e x i s t i r quaisquer relações causais entre espírito
l i a r uma hipótese especial cuja aceitação assenta, não na descoberta, e matéria é incompatível com uma das partes da teoria, a de que não
mas na postulação desses impulsos fantásticos. deve haver contradições com outras partes da teoria. Os espíritos,
A segunda objecção é esta: admite-se que uma pessoa nunca pode t a l como são descritos por esta fábula, são o que deveria e x i s t i r se
presenciar as volições de o u t r a ; pode apenas i n f e r i r das acções m a n i - houvesse uma explicação causal para o comportamento inteligente

I. P. — 5
66 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE 07

do corpo humano. E o espírito, como esta fábula o descreve, vive numa a elucidar o uso eficiente deste critério, mas, presumindo tacitamente
base de existência definida como exterior ao sistema causal a que a sua validade, estavam a t e n t a r relacioná-lo com as ocorrências hipo-
o corpo pertence. téticas do padrão para-mecânico. Por u m lado, esta relação nunca
E m q u a r t o lugar, se bem que a função p r i m o r d i a l das volições, poderia ser estabelecida cientificamente, dado que os impulsos postu-
o f i m pelo qual f o r a m postuladas, seja o r i g i n a r os movimentos corpo- lados f o r a m seleccionados por observação científica e, por outro lado,
rais, o argumento, t a l como existe, da sua existência implica que não se poderia usar na prática nem na teoria, visto que não estaria
alguns dos acontecimentos mentais devem resultar também de actos presente nas nossas apreciações das acções, dependente como estaria
de vontade. Postulou-se que as volições são os elementos que t o r n a m da pressuposta validade dessas apreciações. N e m esclareceria a lógica
as acções voluntárias, resolutas, meritórias e maléficas. Mas os predi- desses conceitos de apreciação, já que o emprego inteligente destes
cados destas espécies são atribuídos, não só aos movimentos corporais, antecederia a invenção dessa hipótese causal.
mas também às operações que, de acordo com a teoria, são mentais e
Antes de nos despedirmos da doutrina das volições, é conveniente
não físicas. U m pensador pode raciocinar resolutamente ou imaginar
considerar certos processos bastante familiares e autênticos com os
maldosamente; pode t e n t a r compor uma r i m a e pode concentrar-se
quais as volições são por vezes erradamente identificadas.
meritòriamente sobre a sua álgebra. É porque então alguns processos
M u i t o frequentemente, as pessoas têm dúvidas sobre aquilo que
mentais podem derivar de volições. O que são então as volições em
devem fazer. Tendo considerado várias direcções de acção, selecionam
si próprias? São actos voluntários ou involuntários do espírito? É evi-
ou escolhem por vezes uma destas direcções. Diz-se às vezes que este
dente que qualquer resposta conduz ao absurdo. Se não posso impedir
processo de optar por uma direção ou por u m conjunto de direc-
a vontade de p u x a r o g a t i l h o , seria absurdo descrever esse meu acto
ções de acção é aquilo a que se chama «volição». Mas esta identificação
como «voluntário». Mas se a minha volição de puxar o g a t i l h o é volun-
não resulta, porque a m a i o r i a das acções voluntárias não deriva de
tária, no sentido suposto pela teoria, deve então derivar de uma v o l i -
condições de indecisão e não é portanto o resultado da resolução de
ção prévia e esta de outra, ad inifinitum. Sugeriu-se, para contornar
indecisões. Além disso, é evidente que uma pessoa pode decidir fazer
esta dificuldade, que as volições não podem ser descritas nem como
qualquer coisa, mas falhar, por fraqueza de vontade, na sua realização,
voluntárias nem como involuntárias. «Volição» é u m t e r m o de t i p o
ou pode deixar de a fazer devido a certas circunstâncias ocorridas
inadequado para aceitar qualquer predicado. Assim, parece concluir-se
depois de a sua escolha t e r sido feita, e que impedem a execução do acto
que é também errado aceitar predicados como «virtuoso», «maldoso»,
escolhido. Mas a teoria não pode a d m i t i r que as volições falhem sem-
«bom» e «mau», conclusão esta que embaraçaria os moralistas que
pre no sentido de resultarem em acções, porque t e r i a m de ser postu-
usam as volições como tábua de salvação dos seus sistemas.
ladas outras acções executivas, tendo em conta o facto de que por
E m resumo, a d o u t r i n a das volições é portanto uma hipótese cau- vezes as acções voluntárias são executadas. E, finalmente, o processo
sal adoptada porque se supôs erradamente que a pergunta «que é que de deliberar entre alternativas e optar por uma delas, está ele próprio
t o r n a os movimentos corporais voluntários?» era u m a pergunta cau- sujeito a predicados de apreciação. Mas se, por exemplo, u m acto de
sal. E s t a suposição é, de facto, apenas u m a distorção especial da supo- escolha se pode descrever como voluntário, então, conforme f o i sugerido,
sição geral de que a pergunta «como são aplicáveis ao comportamento ele teria por seu lado que ser o resultado de u m a escolha prévia da
humano os conceitos de conteúdo mental?» é uma pergunta acerca da escolha e esta uma escolha da escolha da escolha...
causalidade desse comportamento. As mesmas objecções impedem a identificação com as volições
Os defensores da d o u t r i n a deviam t e r notado o simples facto de de outros processos familiares, tais como os de t o m a r u m a decisão ou
que eles e todas as pessoas sensíveis sabiam como responder a per- resolução no nosso espírito, de fazer qualquer coisa e os de ganharmos
guntas sobre a voluntariedade e involuntariedade das acções, e sobre coragem ou de nos animarmos a p r a t i c a r qualquer acto. Posso resolver
a resolução ou irresolução das pessoas que as praticam, muito antes sair da cama ou i r ao dentista e posso, cerrando os punhos ou r a n -
de te^em ouvido f a l a r da hipótese dos impulses interiores ocultos que gendo os dentes, encorajar-me a fazê-lo mas desistir. Se a acção não
conduzem às acções. Deviam ter percebido portanto que já não estavam é feita, então, de acordo com a doutrina, a volição para p r a t i c a r esse
68 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE

acto também não f o i executada. Mais uma vez, as operações de resol- consequências que daí resultam. No uso vulgar, dizer que u m espirro
ver e ganhar coragem são membros da classe de acções dignas ou i n - f o i involuntário é dizer que quem o deu não podia evitar fazê-lo e dizer
dignas de elogio e assim não podem constituir o elemento peculiar que uma gargalhada f o i voluntária é dizer que quem a deu podia tê-la
que, de acordo com a doutrina, é a condição comum de uma acção evitado. Isto não é dizer que a gargalhada f o i intencional. Não rimos
ser ou não digna de elogio. de propósito. O rapaz podia t e r feito certa a conta que efectivamente
fez errada. Ele sabia como proceder, mas procedeu m a l . T i n h a compe-
(3) A DISTINÇÃO ENTRE VOLUNTÁRIO E INVOLUNTÁRIO tência para dar u m certo nó, se bem que sem intenção tivesse dado
outro. A sua falha ou lapso f o i culpa dele. Mas quando à palavra
Deve assinalar-se que, enquanto o povo, os magistrados, pais e «voluntário» é dado o seu uso filosófico forçado, de modo que t a n t o os
professores aplicam geralmente as palavras «voluntário» e «involun- actos correctos como os incorrectos, admiráveis e desprezíveis, são
tário» para acções em determinado sentido, os filósofos aplicam-nas descritos como voluntários, parece concluir-se, por analogia com o seu
muitas vezes n u m sentido completamente diferente. uso vulgar, que u m rapaz que faz uma conta certa pode também ser
N o seu emprego mais vulgar, «voluntário» e «involuntário» ^ao descrito como «tendo podido evitá-lo». E s t a r i a então certo p e r g u n t a r :
usados com uma pequena elasticidade, como adjectivos aplicados a «Poderia ele t e r evitado resolver a adivinha?», «Poderia evitar t i r a r a
acções que não deviam t e r sido feitas. Discutimos se a acção de alguém conclusão adequada?», «Poderia ter evitado ser simpático para aquela
f o i voluntária ou não somente quando parece que essa pessoa f o i cul- criança?», «Poderia ter evitado apreender o sentido da anedota?». De
pada dela. A pessoa é acusada de fazer ruído e a culpa é sua se a acção facto, ninguém poderia responder a estas perguntas, ainda que não seja
f o i voluntária, t a l como o r i s o ; a pessoa consegue desculpar-se, se f o r óbvio à p r i m e i r a vista que, se é correcto dizer que alguém podia t e r
capaz de nos convencer que a acção f o i involuntária, como u m espirro. evitado fazer uma conta errada, é incorrecto dizer que poderia t e r
No mesmo sentido, na vida de todos os dias levantamos questões de evitado fazê-la certa.
responsabilidade só quando alguém é acusado, j u s t a ou injustamente, A solução é simples. Quando dizemos que alguém podia ter evitado
de u m delito. Paz sentido, neste caso, perguntar se u m rapaz f o i res- cometer u m lapso ou erro, ou que f o i sua a culpa de o ter cometido,
ponsável por p a r t i r u m vidro, mas não se f o i responsável our acabar queremos dizer que sabia como fazer a coisa certa ou que era compe-
a tempo os seus trabalhos escolares. Não perguntamos 3e> ele teve tente para isso, mas que não exerceu o seu conhecimento ou compe-
a culpa de fazer uma conta de d i v i d i r certa, porque fazer uma °onta tência. Não tentou ou não tentou com suficiente firmeza. Mas quando
certa não é culpa. Se a faz errada, pode justificar-se da sua f a l t a uma pessoa fez a coisa certa, não podemos dizer que sabia como fazê-la
dizendo que não f o i culpa sua, talvez porque não tivesse ainda apren- errada, ou que era competente para fazer erros. Porque fazer erros não
dido como se faz essa conta. é u m exercício do conhecimento do como. N u m certo sentido de «possibi-
N o seu uso vulgar, é portanto absurdo discutir se as acções satis- lidade», é verdade que uma pessoa que fez uma conta certa podia tê-la
fatórias, correctas ou admiráveis são voluntárias ou involuntárias. feito errada, isto é, no sentido de que não está isenta da possibilidade
N e m o ponto em questão é a culpa ou ilibação. Não confessamos a de ser descuidada. Mas, noutro sentido de «possibilidade», p e r g u n t a r :
autoria, nem aduzimos circunstâncias atenuantes, nem alegamos ser «Você poderia ter feito isto errado?», s i g n i f i c a : Você era suficien-
«culpados» ou «não culpados», porque não somos acusados. temente inteligente e experiente e poderia concentrar-se com a firmeza
Mas os filósofos, ao discutirem o que constitui os actos voluntários suficiente para fazer u m cálculo errado?». Esta pergunta é tão
ou involuntários, têm tendência para descrever como voluntários, não idiota como perguntar se os dentes de alguém são suficientemente
só os actos repreensíveis, mas também as acções meritórias, não só as fortes para se quebrarem ao p a r t i r nozes.
coisas cuja culpa pertence a alguém, mas também as coisas que abo- O l a b i r i n t o de problemas largamente espúrios, conhecido como o
nam a favor desse alguém. Os motivos desta extensão inconsciente do problema do L i v r e Arbítrio, deriva em parte deste uso inconsciente-
sentido vulgar de «voluntário», «involuntário» e «responsável» serão mente forçado de «voluntário» e dos consequentes empregos errados de
considerados mais tarde. De momento, é suficiente considerar certas «poderia» e «poderia ter evitado».
70 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A V O N T A D E 71

A p r i m e i r a coisa a fazer é esclarecer o que significam, no seu uso que todos os passos do rapaz f o r a m manifestamente os mesmos que
vulgar não distorcido, as expressões «voluntário», «involuntário», «res- normalmente o fazem chegar à escola a tempo, ou f o r a m os únicos ao
ponsável», «não poderia ter evitado» e «foi culpa sua», porque são alcance dele para remediar as consequências da avaria. Ele não podia
usadas na decisão de questões concretas de culpa e inocência. ter feito mais nada e o professor recomenda-lhe que proceda do mesmo
Se u m rapaz fez u m nó-cego em vez de u m nó direito, convencemo- modo se o caso se repetir de f u t u r o . O seu atraso não f o i o resultado
-nos de que f o i culpa sua a f i r m a r antecipadamente que sabia dar u m de deixar de fazer aquilo de que era capaz. F o i impedido por uma
nó d i r e i t o e a f i r m a r depois que a sua mão não era forçada por factores circunstância que não estava dentro das suas possibilidades modificar.
externos e que não havia outros factores na acção que o pudessem Mais uma vez, o professor está a j u l g a r uma acção com referência às
impedir de d a r o nó correcto. Nós estabelecemos que ele podia capacidades e oportunidades do agente. A desculpa dele de que não
dar nós direitos por sabermos que t i n h a sido ensinado, que t i n h a t i d o podia ter feito melhor dc que fez é aceite. Todo o problema da involun-
prática, que habitualmente os dava bem, ou por sabermos que ele podia tariedade da sua chegada com atraso é decidido sem que se peça ao
detectar e c o r r i g i r nós dados por outros, ou por sabermos que ele podia rapaz que faça qualquer declaração sobre a consciência ou introspecção
envergonhado com o que t i n h a feito e que, sem a ajuda de ninguém, da execução ou não execução de quaisquer volições.
o t i n h a corrigido pelos seus próprios meios. Descobre-se que ele não É completamente indiferente se as acções cuja responsabilidade se
estava a agir sob coacção ou em pânico, em estado f e b r i l ou com os a t r i b u i a uma pessoa são ou implicam operações de solilóquio silencioso
dedos entorpecidos, pelo modo como descobrimos normalmente que ou outras operações com imagens verbais ou não verbais. U m erro de
não se deram quaisquer incidentes excepcionais. Porque tais incidentes cálculo mental é culpa do aluno, na mesma medida que o de u m cálculo
t e r i a m sido tão evidentes que não poderiam ter deixado de ser assinala- escrito. E u m erro cometido na harmonização de cores nos olhos do
dos, pelo menos pelo próprio rapaz. espírito pode merecer a censura de f a l t a de cuidado do mesmo modo que
A p r i m e i r a questão que tivemos de decidir nada t i n h a a ver com a u m erro cometido ao harmonizar cores em tecidos. Se o agente pudesse
ocorrência ou não ocorrência de qualquer episódio oculto na corrente da ter feito melhor do que fez, poderia assim ter evitado fazer essa
consciência do rapaz. Essa questão era a de saber se ele t i n h a ou não harmonização m a l feita, como na realidade aconteceu.
competência necessáriapara dar nós direitos. iNesta fase não perguntá- Além de considerar o sentido v u l g a r de «voluntário», «involuntá-
mos se t i n h a feito ou omitido uma operação privada ou pública, mas s i m rio», «responsável», «minha culpa» e «poderia» ou «não poderia evitar»,
se possuia ou se lhe faltava uma certa capacidade inteligente. O que nos deveríamos também notar o uso v u l g a r de expressões como «esforço
convenceu não f o i o conhecimento (inatingível) da verdade ou falsidade de vontade», «força de vontade» e «irresoluto». Descreve-se uma pessoa
, de uma proposição causa-efeito. mas o conhecimento (atingível) da ver- a proceder resolutamente quando, na execução de tarefas difíceis, de-
dade ou falsidade de uma proposição hipotética parcialmente geral. Não moradas ou desagradáveis, não tem tendência para abrandar os seus
foi, em resumo que ele desse u m nó, direito ou cego, fantasma, por de- esforços ou para deixar que a sua atenção se disperse, quando não se
trás da cena, mas que poderia t e r dado u m nó real com esta corda e que queixa nem pensa muitas vezes nas suas fadigas ou receios, quando
o t e r i a dado nesta ocasião se tivesse prestado atenção ao que estava a não se esquiva nem abandona coisas a que deitou a mão. U m a pessoa
fazer. O lapso f o i culpa sua porque, sabendo como dar o nó, não o deu de vontade fraca, que se d i s t r a i ou desanima facilmente, está pronta
correctamente. a convencer-se de que outra altura será melhor ou que as razões para
Consideremos em seguida o caso de u m acto que por decisão unâ- empreender a tarefa não eram afinal m u i t o fortes. Note-se que tudo
nime não seria culpa de quem o praticou. U m rapaz chega atrasado à isto não faz parte da definição de resolução ou irresolução de que uma
escola e, interrogado, responde que saiu de casa à hora habitual, não resolução deveria efectivamente ser formada. U m homem resoluto pode
perdeu tempo no caminho para o autocarro, esperou-o e apanhou-o à resistir firmemente às tentações de abandonar ou adiar a sua tarefa,
hora do costume. Mas o veículo avariou-se e não pôde completar a embora sem qualquer processo r i t u a l p r e l i m i n a r de levar o seu espírito
viagem. O rapaz fez o resto do caminho correndo o mais rapidamente a completá-la. Mas naturalmente que esse homem também estará dis-
que lhe era possível, mas mesmo assim chegou atrasado. Evidentemente posto a c u m p r i r quaisquer promessas que tenha feito a outros ou a si
72 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE 73

próprio. Correspondentemente, o homem irresoluto faltará provavel- está a fazer voluntária ou involuntariamente. U m a pessoa que franze
mente ao cumprimento das suas numerosas resoluções e a sua f a l t a de as sobrancelhas involutàriamente não é forçada a franzi-las como o
tenacidade mostrar-se-á também em renúncias e afrouxamentos no dono de u m iate pode ser forçado a i r para o m a r . N e m o rapaz des-
decorrer das acções que não f o r a m precedidas por quaisquer compro- cuidado é forçado a dar u m nó cego como o recrutado é forçado
missos públicos ou privados de as cumprir. a ingressar no exército. O próprio f r a n z i r de sobrancelhas é algo
A força de vontade é uma propensão cujo exercício consiste em que uma pessoa faz. Não lhe é feito a ela. Assim, por vezes, a
fixar-se nas tarefas, isto é, em não se desencorajar ou dispersar. pergunta «Voluntário ou involuntário?» significa «A pessoa fê-lo,
A fraqueza de vontade é ter m u i t o pouco desta propensão. As acções ou foi-lhe feito a ela?» ou «Fê-lo de propósito ou inadvertidamente,
nas quais a força de vontade é empregada podem ser de quase todas mecanicamente ou instintivamente?» etc.
as espécies, intelectuais ou manuais, imaginativas ou administrativas. 2) Quando uma pessoa faz qualquer coisa voluntariamente, no
Não é uma predisposição para executar operações ocultas de u m tipo sentido de que a faz ou tenta fazê-la de propósito, a sua acção reflecte
especial. com certeza alguma qualidade ou qualidades do espírito, visto que (e
Por «um esforço de vontade» pretende significar-se u m exercício isto é mais que uma sugestão verbal a r e f e r i r ) em certo g r a u e de u m
particular da tenacidade de propósitos, que ocorre quando os obstácu- modo ou outro ela t e m em mente o que está a fazer. Conclui-se também
los são notavelmente grandes ou as tentações no sentido contrário que, se dominar o vocabulário adequado, pode também descrever sem
m u i t o fortes. Tais esforços podem, mas não necessariamente, ser acom- investigação ou conjecturas aquilo que esteve a t e n t a r fazer. Mas,
panhados por processos especiais, muitas vezes de carácter r i t u a l , de como se argumentará no Capítulo V, estas implicações de v o l u n t a r i e -
encorajamento e fortalecimento para executar o que é necessário fazer. dade não implicam certos corolários de vida dupla como muitas vezes
Mas estes processos não são tanto aspectos pelos quais a resolução se se supõe. F r a n z i r as sobrancelhas intencionalmente não é fazer uma
manifesta, como aspectos pelos quais a irresolução e os receios se coisa com a testa e outra com u m órgão não corporal. «Ele franziu
manifestam. as sobrancelhas intencionalmente» não descreve a ocorrência de dois
Antes de deixarmos o conceito ou conceitos de voluntariedade, há episódios. Relata a ocorrência de u m episódio único, mas de carácter
que esclarecer dois pontos. 1) Opomos muitas vezes coisas feitas m u i t o diferente do descrito por «ele f r a n z i u as sobrancelhas involun-
voluntariamente a coisas sofridas sob compulsão. Alguns soldados são tariamente», se bem que o f r a n z i r das sobrancelhas possa ser fotogra-
voluntários, outros são recrutados. Alguns proprietários de iates vão ficamente o mais semelhante possível.
para o m a r largo voluntariamente, outros são arrastados pelo vento e
pelas marés. A q u i não há questões de culpa ou ilibação. A o perguntar (4) LIVRE ARBÍTRIO
se o soldado se alistou como voluntário, estamos inquirindo se ingressou
no exército porque queria fazê-lo ou porque tinha de o fazer, e neste Assinalou-se que em certas discussões de filósofos sobre a volun-
caso o «tinha de» implica «o que quer que fosse que ele desejasse». tariedade das acções, as palavras «voluntário», «involuntário» e «res-
A o perguntar se o dono do iate f o i para o m a r largo por sua própria ponsável» são usadas, não com as suas restrições vulgares de lapsos ou
vontade ou se f o i arrastado, estamos inquirindo se f o i de propósito ou lapsos aparentes, mas com u m sentido mais vasto que abrange todas
se teria ido mesmo que não quisesse fazê-lo. Más notícias de casa, ou as acções que são julgadas favorável ou desfavoravelmente por qualquer
uma advertência da guarda costeira, tê-lo-iam impedido de p a r t i r ? critério de excelência ou admissibilidade. Nesse sentido, descreve-se
Neste sentido, o que é involuntário não pode ser descrito como uma pessoa a fazer voluntariamente a coisa certa e a fazer também
u m acto. Ser arrastado para o m a r ou ser convocado para o ser- voluntariamente a coisa errada, ou não sendo responsável apenas pelas
viço m i l i t a r é algo que acontece a uma pessoa e não algo que ela acções pelas quais está sujeita a acusação, mas também pelas acções
faz. Neste aspecto, a antítese entre voluntário e involuntário difere que lhe dão d i r e i t o à glória. Isto é, «voluntário» é usado como sinónimo
da antítese que temos em mente quando perguntamos se uma pes- de «intencional».
soa que está a dar u m nó cego ou a f r a n z i r as sobrancelhas o Os filósofos que usaram este sentido forçado t i v e r a m u m f o r t e
74 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE 75

motivo intelectual para o fazerem. Sentiram a necessidade de u m con- seus acólitos entusiastas imaginam que através dela todas as perguntas
j u n t o de termos para d i s t i n g u i r as coisas e ocorrências para as quais têm resposta, pelo alargamento dos seus métodos à resolução de todas
sejam apropriados t a n t o os aplausos como as censuras, daquelas a que as questões. E m certa época, os teóricos i m a g i n a r a m que o mundo todo
nenhum destes se coaduna. Sentiram que sem este conjunto de termos não passava de u m complexo de figuras geométricas, noutra que todo
seria impossível estabelecer quais as qualificações para a associação o mundo podia ser descrito e explicado por proposições de aritmética
do reino do Espírito e esta f a l t a relegaria o Espírito para o reino da pura. A s cosmogonias química, eléctrica, darwiniana e freudiana t a m -
Natureza pura e simples. bém t i v e r a m o seu brilho, mas p o r pouco tempo. « A longo prazo», dizem
A p r i n c i p a l origem do empenho em descobrir alguns elementos sempre os fanáticos, «podemos dar ou pelo menos indicar uma solução
peculiares, presente sempre que o Espírito está presente e ausente para todas as dificuldades, a qual será, sem sombra de dúvida, uma
sempre que o Espírito está ausente, f o i u m sinal de alarme para as solução científica».
teorias do Mecanicismo. Acreditou-se que as ciências físicas t i n h a m A s ciências físicas, lançadas por Copérnico, Galileu, Newton e
estabelecido, ou estavam prestes a estabelecer, que as coisas e acon- Boyle, obtiveram u m domínio mais longo e mais forte sobre os apolo-
tecimentos do mundo exterior são rigidamente governadas por leis gistas da cosmogonia do que quaisquer das suas percursoras ou
susceptíveis de serem descobertas, leis cuja formulação não admite sucessoras. As pessoas têm ainda tendência para t r a t a r as leis
palavras de apreciação. Pensou-se que todos os acontecimentos do mun- da mecânica, não simplesmente como o tipo ideal das leis científicas,
do exterior estavam limitados pelas leis férreas da causalidade mecâ- mas, em certo sentido, como as leis básicas da Naturzea. Têm tendência
nica. A génese, propriedades e decurso destes acontecimentos eram ou para esperar ou recear que a l g u m dia as leis biológicas, psicológicas
seriam totalmente explanados em termos de mensurabilidade e por- e sociológicas sejam «reduzidas» a leis mecânicas, ainda que não tenha
tanto, como se supôs, por forças sem objectivo. ficado esclarecido que espécie de transacção constituirá esta «redução».
Para salvar o nosso d i r e i t o de empregar conceitos de apreciação, Tenho falado do Mecanicismo como de uma teoria. O receio que
o campo da sua aplicação adequada t i n h a de ser mostrado como sentem as pessoas com inclinação filosófica de que tudo se torne
estando situado em qualquer o u t r o lugar diferente do mundo exterior e explicável por leis mecânicas é u m receio infundado. E é-o, não porque
pensava-se que a sua actividade se situava n u m mundo interior de for- a contingência que temem não esteja prestes a dar-se, mas porque não
ças incomensuráveis mas intencionais. Tendo-se já mencionado as «voli- faz sentido falar dela. Os físicos podem encontrar u m dia as respostas
ções» como a energia necessária das forças internas, era n a t u r a l supor para todas as questões físicas, mas nem todas as questões são físicas.
que a voluntariedade, definida em termos de propagação por meio de As leis que eles descobriram e ainda descobrirão podem, no sentido
volições, era o elemento peculiar e comum que produzia as ocorrências metafórico da expressão, governar tudo o que acontece. N a verdade
espirituais. A s proposições científicas e as de apreciação eram, de não ordenam nada do que acontece. As leis da natureza não são decretos.
acordo com esta teoria, distinguidas como sendo, respectivamente, des- U m exemplo pode esclarecer este ponto. U m espectador cientifica-
crições do que acontece no mundo exterior e do que t e m lugar no mundo mente treinado, que não está familiarizado com o xadrez ou com
i n t e r i o r — pelo menos até os psicólogos t e r e m reclamado que as suas qualquer outro jogo, pode olhar para u m tabuleiro de xadrez nos
afirmações eram descrições científicas do que acontece no mundo intervalos entre as jogadas. Ele ainda não vê os jogadores fazerem as
interior. jogadas. Passado a l g u m tempo, começa a n o t a r certas regularidades.
A questão de os seres humanos poderem merecer aplausos ou As peças a que chamamos «bispos» só se movem em diagonal, embora
censuras era consequentemente interpretada como a questão de saber possam andar qualquer número de quadrados de cada vez. Os cavalos
se as volições são ou não efeitos. fazem sempre o salto de cavalo, e assim sucessivamente. Depois de
muitas observações, este espectador terá concluído todas as regras do
(5) AS TEORIAS DO MECANICISMO xadrez e pode então verificar que os movimentos das peças são feitos
por pessoas a quem chamamos «jogadores». Lamenta-os então pelos
Sempre que uma ciência t e m os seus primeiros grandes êxitos, os seus l i m i t e s : «Todas as jogadas que fizeram», diz ele, foram deter-
7(1 A VONTADE
77
INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

minadas por regras inquebrantáveis; a p a r t i r do momento em que tácticos implica saber as regras do jogo, mas não se põe a questão de
u m de vocês põe a mão n u m pião, a jogada que fará com ele pode, na estes princípios serem 'redutíveis' a regras do jogo».
maior parte dos casos, ser exactamente prevista. Todo o desenrolar Este exemplo não pretende sugerir que as leis da física são
daquilo a que tragicamente vocês chamam o vosso 'jogo' estava pré- semelhantes às regras do xadrez. Porque o curso da Natureza não é
-estabelecido sem apelação; não aconteceu nada que não obedecesse a u m jogo e as suas leis não são invenções ou convenções humanas. O que
uma ou outra dessas regras rígidas. U m determinismo impiedoso ditou o exemplo demonstra é o facto de não haver contradição quando se
o jogo, não deixando l u g a r à. inteligência ou intenção. É verdade que diz que u m e o mesmo processo, como por exemplo o movimento do
não tenho ainda a competência necessária para explicar todas as bispo, está de acordo com dois princípios de tipo completamente
diferente, de t a l modo que nenhum deles é redutível ao outro, embora
jogadas que presencio pelas regras que descobri até agora. Mas não
u m pressuponha o outro.
seria científico supor que há jogadas inexplicáveis. Deve haver por-
Daqui derivam duas espécies completamente diferentes de «expli-
t a n t o regras que eu espero descobrir e que completarão satisfatoria-
cações» dos movimentos e nenhuma delas é incompatível com a o u t r a .
mente as explicações que iniciei». Claro que os jogadores se começam
N a verdade, a explicação em termos de cânones tácticos pressupõe a
a r i r e explicam-lhe que, embora todas as jogadas obedeçam a regras,
explicação em termos das regras do xadrez, mas não se deduz das
nenhuma delas é determinada pelas regras. «É verdade que, se começo
regras. Este ponto pode ser expresso de o u t r o modo. U m espectador
por mexer o meu bispo, você pode predizer com segurança que ele
pode perguntar, n u m sentido do «porquê», porque é que o bispo acaba
se deterá numa casa de cor igual à daquela de onde p a r t i u . Isso pode
sempre o seu movimento n u m quadrado da mesma cor daquele em que
ser deduzido das regras. Mas que eu deva deslocar o meu bispo, ou a
começou o jogo. Responder-lhe-iam referindo as regras do xadrez,
que distância, nesta ou naquela fase do jogo, não é estabelecido pelas
incluindo as do desenho do tabuleiro. Ele pode então perguntar, n u m
regras, nem se pode deduzir delas. Fica-nos bastante campo l i v r e para
outro sentido do «porquê», porque é que u m jogador, em determinada
demonstrar inteligência e estupidez e para exercer deliberações e
fase do jogo, movimentou u m dos seus bispos (e não qualquer o u t r a
escolhas. Se bem que não se passe nada de irregular, acontecem muitas
peça) para u m certo quadrado (e não para o u t r o ) . Pode responder-se-
coisas que são surpreendentes, engenhosas ou estúpidas. As regras são
-lhe que f o i para forçar a Rainha do adversário a cessar de ameaçar
as mesmas para todos os jogos de xadrez, desde que ele é jogado, mas
o seu Rei.
quase todos os jogos que t i v e r a m lugar através do tempo se desenrola- Palavras como «explicação», «lei», «regra», «princípio», «porquê»,
r a m de t a l maneira que os jogadores não podem evocar paralelismos «porque», «causa», «razão», «governar», «necessitar», e t c , têm uma
rigorosos. As regras são inalteráveis, mas os jogos não são uniformes. gama de sentidos completamente diferentes. O Mecanicismo parecia
As regras prescrevem o que o jogador não pode fazer. Tudo o mais é ser uma ameaça porque se supunha que o uso destes termos na teoria
permitido, embora muitas jogadas permitidas pudessem representar mecânica era o seu único uso. Todas as perguntas de «porquê» eram
más tácticas, quando executadas. respondíveis em termos de leis de movimento. De facto, pode talvez
«Não há mais regras do jogo par você descobrir e as «explica- responder-se a todas as perguntas sobre os «porquês» de u m tipo nesses
ções» que espera encontrar para as jogadas específicas que nós fazemos termos, e às perguntas sobre os «porque não» de outros tipos pode res-
podem certamente ser descobertas, mas não são explicações em termos ponder-se apenas nesses termos.
de regras, mas em termos completamente diferentes, ou seja, coisas Pode m u i t o bem ser que do princípio ao f i m do Declínio e Queda
como a consideração e a aplicação, por parte do jogador, dos p r i n - do Império Romano Gibbon não tenha nunca i n f r i n g i d o as regras da
cípios tácticos. A sua noção sobre o que constitui uma explicação gramática inglesa. Tudo o que ele escreveu obedecia a estas regras,
é m u i t o estrita. O sentido em que uma regra 'explica' uma jogada feita embora elas não determinassem o que ele devia escrever, nem mesmo o
em conformidade com ela não é o mesmo pelo qual u m princípio táctico estilo em que devia escrever. Apenas p r o i b i a m certos modos de l i g a r as
explica uma jogada, porque toda a jogada que obedece a u m princípio palavras. Conhecendo estas regras e a obediência de Gibbon a elas,
táctico obedece também a uma regra. Saber como aplicar os princípios u m leitor pode predizer que se uma oração t e m como sujeito u m
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A VONTADE 79
78

substantivo p l u r a l , o verbo estará também no plural. A sua predição tem alguma habilidade para lançar as bolas para onde deseja, deve
será uniformemente correcta e não nos sentimos inclinados a lamentar ter conhecimento, pelo método empírico, dos princípios mecânicos que
que a caneta de Gibbon corra por u m t r i l h o fatal. A gramática indica regem as acelerações e desacelerações das bolas. O seu conhecimento
ao leitor que o verbo deve ser no plural, mas não que verbo será. de como executar as suas intenções não está em desacordo com o
U m a passagem a r g u m e n t a t i v a do Declínio e Queda do Império seu conhecimento das leis mecânicas, antes depende desse conhecimen-
Romano pode ser analisada do ponto de vista das regras gramaticais, to das leis mecânicas. A o aplicar conceitos de apreciação ao seu jogo
as quais são observadas na combinação das palavras, e sob o aspecto não estamos preocupados com o facto de que os movimentos por ele
das regras lógicas a que também obedece. Não há conflito ou competi- transmitidos às bolas obedeçam a leis mecânicas, porque poderia não
ção entre estes tipos diferentes de princípios. Todos são igualmente ser de modo algum u m jogo de habilidade se, per impossibile, os i n s t r u -
aplicados na mesma matéria. Todos eles podem p e r m i t i r predições mentos do jogo se comportassem irregularmente.
correctas. Todos podem ser referidos para respostas a perguntas do A interpretação moderna das leis naturais como afirmações, não
mesmo t i p o verbal de «Porque é que Gibbon escreveu isto e não de necessidades, mas de enormes probabilidades é por vezes saudada
qualquer o u t r a coisa?». por fornecer o desejado elemento de não r i g o r na Natureza. Por
As descobertas das ciências físicas não regulam mais a vida, o último, tem-se por vezes a impressão de que podemos ser científicos
sentido, o propósito ou a inteligência do que as regras da gramática reservando algumas poucas ocasiões nas quais os conceitos de apre-
regulam o estilo ou lógica da prosa. I s t o porque as leis da física se ciação podem ser aplicados com propriedade. Este ponto de vista
aplicam tanto ao que é vivo como ao que é inanimado, t a n t o às pessoas absurdo presume que uma acção não pode merecer crítica favorável ou
inteligentes como aos idiotas, assim como as regras de gramática se desfavorável a menos que seja uma excepção às generalizações cientí-
aplicam tanto ao Almanaque Whitakerk como ao Declínio e Queda, ficas. Mas o jogador de bilhar não pede indulgências especiais às leis
t a n t o aos raciocínios da Sr. M a r i a como aos do Sr. Hume.
a da física como também não as pede às leis do bilhar. Porque deveria
O modelo f a v o r i t o a que o imaginário mundo mecanicista é com- fazê-lo? Elas não forçam a sua mão. Os receios expressos por certos
parado é o das bolas de b i l h a r que t r a n s m i t e m o seu movimento umas filósofos moralistas de que as ciências naturais d i m i n u a m o campo
às outras por choque. U m jogo de b i l h a r fornece u m dos exemplos no qual as virtudes morais podem ser exercidas assenta na suposição
mais simples de uma sucessão de acontecimentos, porque para a sua de que há certa contradição em dizer que u m e o mesmo acontecimento
descrição os termos mecânicos são necessários mas não suficientes. é governado tanto pelas leis mecânicas como por princípios morais,
Certamente que em princípio é possível ter u m conhecimento exacto suposição esta tão infundada como a de que u m jogador de golf não
do peso, forma, elasticidade e movimento das bolas, da constituição pode simultaneamente estar de acordo com as leis da balística, obede-
da mesa, das condições da atmosfera, de acordo com leis conhecidas, cer às regras do jogo e jogar com eiegância e habilidade. Não só há
para deduzir de uma posição momentânea das bolas qual será a bastante campo para acções intencionais onde tudo é governado por
posição final. Mas não se conclui daqui que se possa predizer o leis mecânicas, como não haveria lugar para estas acções intencionais
desenrolar do jogo apenas segundo essas leis. U m prognosticador se as coisas não fossem governadas deste modo. A previsibilidade é
científico, ignorante das regras e tácticas do jogo e da destreza condição necessária de fazer planos.
e planos dos jogadores, poderia talvez predizer, desde o princípio de O Mecanicismo é portanto uma simples teoria e, ao passo que há
uma tacada, as posições em que as bolas v i r i a m a ficar antes de ser m u i t o a esclarecer nos conceitos especiais da biologia, antropologia,
dada a próxima tacada, mas não poderia predizer mais nada. O sociologia, ética, lógica, estética, política, economia, h i s t o r i o g r a f i a ,
próprio jogador pode ser capaz de prever com modestas probalidades e t c , não há necessidade da desesperada operação de salvamento de
a espécie de série de carambolas que virá a fazer, porque sabe talvez remover as suas aplicações do mundo real para u m outro mundo
quais as melhores tácticas a aplicar em situações como esta e co- postulado, ou de estabelecer uma divisão entre as coisas que existem
nhece bem a sua própria habilidade, capacidade de resistência, pa- na Natureza e as coisas que existem na não-Natureza. Não é necessá-
ciência, perspicácia e intenções. Deve notar-se que. se o jogador r i o haver antecedentes ocultos das acções manifestas para que quem
80 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA A VONTADE 81

pratica as acções mereça aplausos ou críticas, nem seriam protectores ficientes e observadores-da-rotina. Os movimentos dos corpos celestes
efectivos se existissem. são uma espécie de «relógio». F o i o trabalho humano que fez o resto.
Os homens não são máquinas, nem mesmo máquinas comandadas N e m é o simples animismo p r i m i t i v o que faz com que as crianças
por fantasmas. São homens — uma tautologia que vale a pena por vezes selvagens pensem nos motores como sendo cavalos de ferro. Há m u i t o
lembrar. As pessoas põem frequentemente problemas como este: «Como poucas coisas mais na Natureza que se lhe assemelhem tanto. As
é que o meu espírito atinge a minha mão para ela fazer o que o espírito avalanches e os jogos de b i l h a r estão sujeitos a leis mecânicas, mas que
lhe diz que faça?» Perguntas deste teor são feitas com propriedade não têm qualquer semelhança com o funcionamento das máquinas.
em certos processos em cadeia. A pergunta «O que faz a bala sair do
cano da espingarda?» é bem respondida por « A expansão dos gazes no
cartucho». A pergunta «O que é que faz o cartucho explodir?» é
respondida fazendo referência à percussão do detonador. A pergunta
«Como é que o meu acto de c o m p r i m i r o gatilho faz disparar o detona-
dor?» é respondida por meio da descrição do mecanismo das molas,
alavancas e linguetas entre o g a t i l h o e o cano. Assim, quando se
pergunta «Como é que o meu espírito faz o meu dedo disparar o
gatilho?», a f o r m a da pergunta pressupõe a implicação de u m processo
em cadeia, englobando ainda tensões, escapes e descargas, embora
desta vez «mentais». Mas seja qual f o r o acto ou operação aduzido
como p r i m e i r o passo deste processo em cadeia postulado, a execução
dele tem de ser descrita exactamente do mesmo modo pelo qual na vida
real descrevemos o puxar do g a t i l h o pelo atirador. Dizemos simples-
mente «Ele fê-lo» e não «Ele fez ou foi submetido a qualquer coisa
que o causou».
E m conclusão, isto tem talvez a l g u m valor, se se fizer uma
advertência contra u m sofisma muito popular. O facto de o u v i r dizer
que tudo na Natureza está sujeito a leis mecânicas tenta muitas vezes
as pessoas a dizer que a Natureza é uma grande máquina ou uma con-
glomeração de máquinas. Mas, de facto, há muito poucas máquinas
na Natureza. As únicas máquinas que encontramos são as feitas por
seres humanos, como relógios, moinhos de vento e turbinas. Há m u i t o
poucos sistemas naturais que se assemelhem a estas máquinas, designa-
damente coisas como os sistemas solares. Estes funcionam por si pró-
prios e repetem indefinidamente as mesmas séries de movimentos.
É o funcionamento perfeito, como acontece com poucas coisas não
fabricadas, o funcionamento do «mecanismo de u m relógio.» Na ver-
dade, para fazer máquinas temos de saber como aplicar a Mecânica.
Mas inventar máquinas não é copiar coisas existentes na Natureza
inanimada.
Por paradoxal que possa parecer, devemos observar de preferência
os organismos vivos como exemplos na Natureza de sistemas auto-su-

i. P. — 6
EMOÇAO 8:

lhantes a perturbações ou estados do tempo, condições temporária;


que de certo modo reúnem ocorrências, mas não são em si próprias
ocorrências.

12) SENSAÇÕES VERSUS INCLINAÇÕES

Em inglês, feelings equivale a «sentimentos», expressão que normalmentt


não e m p r e g a m o s em s e n t i d o lato, pelo que t r a d u z i m o s p o r sensação, menos rigorosc
m a s m a i s c o r r e n t e — N. T.

CAPITULO IV
A o falar em sensações, refiro-me às espécies de coisas que as
pessoas descrevem muitas vezes como arrepios, frémitos, palpitações,
formigueiros, f r i o , calor, peso, ânsias, desânimos, tensões, sofrimentos
EMOÇÃO
e choques. Normalmente, quando as pessoas descrevem a ocorrência
de uma sensação, fazem-no por meio de uma frase como esta: «Um
frémito de compaixão», «um, choque de surpresa» ou «um arrepio de
expectativa».
(1) PRÓLOGO
É u m facto linguístico importante que estes nomes para sensações
específicas, tais como picadas, arrepios, enjoos, dores e agonias sejam
também usados como nomes de sensações especificamente corporais.
Neste capítulo vou discutir alguns dos conceitos de emoção e
Se alguém diz que sentiu uma dor, faz sentido perguntar se f o i
sensação. remorsos ou reumatismo, embora a palavra «dor» não seja necessaria-
Esta distinção ó necessária porque os aderentes ao dogma do mente usada no mesmo sentido em ambos estes contextos.
fantasma na máquina podem alegar, em seu apoio, a aceitação da Há mais aspectos em que a maneira como falamos de enjoos de
m a i o r i a dos filósofos de que as emoções são experiências internas aflição é idêntica àquela que usamos para falar de enjoo nas viagens
ou íntimas. A s emoções são descritas como perturbações da corrente por mar. Podemos caracterizá-lo como agudo ou fraco, súbito ou lento,
da consciência, cujos sujeitos não podem evitar registá-las directa- intermitente ou constante. U m homem pode estremecer em resultado
mente. Para as testemunhas externas são, consequentemente, neces- de uma ferroada da sua consciência ou de uma ferroada no dedo. Além
sariamente ocultas. São ocorrências que têm lugar, não em público, disso, podemos muitas vezes localizar, digamos, as sensações de deses-
no mundo físico, mas no mundo secreto e mental, meu ou do leitor. pero na cavidade estomacal ou a sensação de tensão de angústia nos
A r g u m e n t a r e i que a palavra «emoção» é usada para designar músculos dos maxilares e dos pulsos. Outras sensações que não esta-
pelo menos três ou quatro espécies diferentes de coisas a que chamarei mos preparados para localizar em nenhuma parte p a r t i c u l a r do corpo,
«inclinações» (ou «motivações»), «disposições», «agitações» (ou «como- como o ardor do orgulho, parecem i n v a d i r todo o corpo, do mesmo
ções») e «sensações». A s inclinações e disposições, incluindo as agita- modo que o ardor produzido pelo calor.
ções, não são ocorrências, e portanto não têm lugar nem pública nem James identificou audaciosamente as sensações com as sensações
privadamente. São propensões e não actos ou estados. Contudo, são corporais, mas para os nossos objectivos é suficiente mostrar que
propensões de espécies diferentes e as suas diferenças são importantes. falamos t a n t o de sensações como de impressões corporais, se bem que
Por outro lado, as sensações são ocorrências, mas o lugar que a refe- seja possível que existam uns laivos de metáfora quando nos referimos
rência a elas deve t o m a r nas descrições do comportamento humano às primeiras, os quais estão ausentes quando falamos das últimas.
é muito diferente daquele que as teorias clássicas lhe concedem. A s dis- Por outro lado, é necessário fazer justiça ao facto crucial de que
posições ou estados de espírito são diferentes dos motivos, mas seme-
84 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇAO 85

nos referimos a sensações em expressões como «enjoos de aflição» siões particulares, e o sentido em que se diz que ele f o i pontual a u m
e «ardores de orgulho». Distinguimos o ardor do orgulho de u m ardor encontro particular não é o sentido predisposicional, mas s i m activo,
provocado pelo calor e terei que t e n t a r esclarecer o valor de tais dis- de «pontual». «Ele t e m tendência para chegar a horas aos seus encon-
tinções. Espero mostrar que, embora seja inteiramente adequado des- tros» expressa uma proposição geral hipotética que, para ser verdadeira,
crever alguém como sentindo palpitações de compaixão, a sua com- requer que existam proposições categóricas correspondentes do género
paixão não deve ser comparada a uma palpitação ou a uma série de «ele chegou ao encontro de hoje a horas». Assim, argumentar-se-á que
palpitações, t a l como a sua fadiga não pode ser comparada à respira- para u m homem ser vaidoso ou indolente devem e x i s t i r exercícios par-
ção a r f a n t e ; deste modo não haverá consequências decepcionantes ticulares de vaidade ou indolência ocorridos em determinados momen-
pelo facto de a d m i t i r que palpitações, picadas e outras sensações são tos, os quais serão emoções ou sensações afectivas.
sensações corporais.
Este argumento estabelece certamente qualquer coisa, mas não
Portanto, n u m sentido de «emoção», as sensações são emoções. o ponto desejado. Enquanto é verdade que descrever u m homem como
Mas há outro sentido completamente diferente de «emoção», no qual vaidoso é dizer que está sujeito a uma tendência específica, não é ver-
os teóricos classificam como emoção os motivos pelos quais é expli- dade que os exercícios particulares das suas tendências consistam em
cado o comportamento de g r a u mais elevado das pessoas. Quando se registar frémitos ou pontadas particulares. Pelo contrário, ao o u v i r
descreve u m homem como vaidoso, delicado, avaro, patriótico ou indo- dizer que u m homem é vaidoso, esperamos que ele, na p r i m e i r a opor-
lente, está a explicar-se porque é que ele conduz as suas acções, deva- tunidade, se comporte de certa maneira, designadamente falando m u i t o
neios e pensamentos de certo modo e, de acordo com a terminologia de si próprio, procurando a companhia de pessoas importantes, rejei-
padrão, vaidade, delicadeza, avareza, p a t r i o t i s m o e indolência são tando críticas, procurando exibir-se e evitando conversas sobre o mé-
consideradas como uma espécie de emoção. Por esses motivos, chama- r i t o dos outros. Esperamos também que ele ceda à tentação de inven-
-se-lhes sensações. Mas há aqui uma grande confusão verbal, associada t a r certas coisas sobre os seus próprios êxitos, que evite recordar os
a uma grande confusão lógica. Para começar, quando se descreve seus fracassos passados e que planeie o seu próprio êxito f u t u r o . Ser
alguém com uma pessoa vaidosa ou indolente, as palavras «vaidoso» vaidoso é ter tendência para a g i r destas e doutras maneiras semelhan-
e «indolente» são usadas para significar traços mais ou menos dura- tes. Esperamos também que o homem vaidoso sinta certas angústias
douros do seu carácter. Neste sentido, pode dizer-se que u m homem e alvoroços em determinadas situações. Esperamos que sinta uma
foi vaidoso desde a infância ou indolente durante metade das suas sensação aguda de desânimo quando uma pessoa i m p o r t a n t e esquema
férias. A sua vaidade e indolência são propriedades predisposicionais o seu nome e que se sinta alegre ao saber dos infortúnios dos heus
que não podem ser englobadas em expressões como «sempre que sur- rivais. Mas as sensações de despeito e alegria não são mais indicativos
g i r a m situações de determinada espécie, ele tentou salientar-se» ou directos de vaidade do que os actos públicos de gabarolice ou actos
«sempre que teve de escolher entre fazer uma coisa difícil e não a fazer íntimos de devaneio. De facto, são indicativos menos directos, por
furtou-se a fazer a coisa difícii». Frases começadas por «sempre que» razões fáceis de perceber.
não são descrições de ocorrências singulares. A s explicações de tempo
Alguns teóricos objectarão que falar de u m acto de gabarolice
e causa usadas neste sentido significam tendências ou propensões e
como de u m exercício directo da vaidade é deixar de fora o factor
não podem portanto significar a ocorrência de sensações. São expres-
principal da situação. Quando explicamos porque é que u m homem se
sões elípticas de proposições gerais hipotéticas de certa espécie e não
vangloria, dizendo que é por causa da sua vaidade, esquecemos que
podem ser interpretadas como expressando narrativas categóricas de
uma predisposição não é u m acontecimento e não pode portanto ser
episódios.
uma causa. A causa da sua gabarolice tem de ser u m acontecimento
Objectar-se-á no entanto que, além do uso predisposicional da anterior a ele começar a vangloriar-se. Ele é levado a vangloriar-se por
terminologia causal ou de motivo, deve haver também u m uso activo algum «impulso» efectivo, designadamente u m impulso de vaidade.
correspondente da mesma. Porque u m homem que é pontual no sentido A s s i m as efectivações imediatas ou directas da vaidade são impulsos
predisposicional do adjectivo terá tendência para ser pontual em oca- particulares de vaidade e estes são sensações. O homem vaidoso é u m
EMOÇÃO
86 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A 8'

homem que t e m tendência para registar sensações particulares de vezes por hora e se as sente nas costas ou na testa. Mas é evidente qu<
vaidade; estas levam-no ou impelem-no a vangloriar-se ou talvez a sua única resposta a tais perguntas específicas será que não se dé
a t e r vontade de se v a n g l o r i a r e a fazer todas as outras coisas que conta de experimentar quaisquer palpitações ou vertigens peculiares
dizemos serem feitas por vaidade. quando se dedica ao seu passatempo f a v o r i t o . Pode descrever uma
Deve notar-se que este argumento toma como certo que explicar sensação de contrariedade quando os seus estudos são interrompidos
u m acto como feito p o r certo m o t i v o , neste caso por vaidade, é d a r e uma sensação de alívio no peito quando as distracções são elimina-
uma explicação causal. Isto significa que se supõe que u m espírito, das. Mas não existem sensações peculiares de interesse pela Lógica
neste caso o espírito do gabarola, é u m campo de causas especiais. Simbólica, que possam ser descritas por ele. Quando não é pertur-
É por isso que se diz que uma sensação de vaidade é a causa i n t e r i o r bado no prosseguimento do seu passatempo, não sente quaisquer
de uma gabarolice manifesta. A r g u m e n t a r e i em poucas palavras que perturbações.
explicar u m acto como feito por certo m o t i v o não é a mesma coisa que Suponhamos, contudo, que tais sensações se produziam, talvez de
dizer que o v i d r o se p a r t i u porque uma pedra o a t i n g i u , mas dar u m a dois em dois ou de vinte em vinte minutos. Deveríamos esperar que ele
explicação de u m tipo completamente diferente do facto de o v i d r o se discutisse e estudasse o assunto nos intervalos entre estas ocorrências
ter p a r t i d o quando a pedra o a t i n g i u , porque era quebrável. T a l como e diríamos correctamente que ele continuaria depois a discutir e a
não há outras efectivações momentâneas da fragilidade do vidro, como estudar o assunto com interesse nele. Este ponto estabelece por si
por exemplo desfazer-se em fragmentos quando atingido, também não próprio a conclusão de que fazer qualquer coisa por u m motivo é compa-
é necessário postular outras efectivações momentâneas da vaidade tível com estar l i v r e de sensações particulares enquanto se faz essa
crónica, tais como gabar-se, devanear sobre hipotéticos êxitos ou evitar coisa.
conversas sobre o mérito dos outros. Evidentemente que as teorias clássicas de motivações não f a l a m de
Mas antes de desenvolver este argumento quero m o s t r a r como modo tão grosseiro de vertigens e agitações. Falam mais moderada-
é intrinsecamente inverosímil a perspectiva de que, de cada vez que
mente de desejos, impulsos ou estímulos. Assim, há sensações de carên-
u m homem vaidoso se comporta vaidosamente, experimenta u m palpi-
cia, designadamente aquelas a que chamamos «ânsias», «desejos ar-
tação ou picada p a r t i c u l a r de vaidade. Falando dogmàticamente, o
dentes» e «desejos febris». Assim, façamos a pergunta do seguinte
homem vaidoso nunca se sente vaidoso. Certamente que, quando con-
modo: «Estar interessado na Lógica Simbólica é equivalente a estar
trariado, sente u m ressentimento agudo e quando tem u m êxito ines-
sujeito ou propenso a sentir certas ânsias especiais, t o r t u r a s , sofrimen-
perado sente-se eufórico. Mas não há qualquer estremecimento ou
tos ou grandes desejos?», e «Trabalhar na Lógica Simbólica por inte-
dor especial a que possamos chamar uma «sensação de vaidade». N a
resse nela implica sentir grande desejo antes de começar qualquer t r a -
verdade, se t a l sensação específica reconhecível existisse e o homem
balho sobre ela?» Se se obtém uma resposta a f i r m a t i v a , então não pode
vaidoso a experimentasse constantemente, ele seria a p r i m e i r a pessoa
haver resposta para a p e r g u n t a : «Porque motivo o estudante trabalha
e não a última a reconhecer que era vaidoso.
no assunto nos intervalos entre esses desejos?» E se dizer que o seu
Tomemos outro exemplo. U m homem está interessado na Lógica
interesse era forte significa que as supostas sensações eram agudas e
Simbólica. Lê regularmente livros e artigos sobre o assunto, discute-o,
frequentes, chegar-se-á à conclusão absurda de que quanto mais forte-
resolve problemas sobre ele e despreza leituras sobre outros assuntos.
mente u m homem estiver interessado n u m assunto, t a n t o mais a sua
De acordo com o ponto de vista que aqui se contesta, deve portanto
atenção será distraída dele. Chamar a uma sensação «aguda» é dizer
experimentar constantemente impulsos de um. género peculiar, desig-
que é difícil não lhe prestar atenção, e prestar atenção a uma sensação
nadamente sensações de interesse pela Lógica Simbólica e, se o seu
não é a mesma coisa que prestar atenção a u m problema de Lógica
interesse é m u i t o f o r t e , estas sensações devem ser m u i t o agudas e
Simbólica.
m u i t o frequentes. Ele deve portanto ser capaz de nos dizer se estas
sensações são súbitas como uma pontada ou demoradas como uma dor, Devemos pois rejeitar a conclusão do argumento que tentou provar
se se sucedem umas às outras várias vezes por m i n u t o ou só algumas que as expressões de causa ou m o t i v o são nomes de sensações, ou antes,
88 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 89

de tendências para t e r sensações. Mas o que é que estava errado no ar- são explicações do segundo tipo e não do p r i m e i r o . É talvez mais que
gumento que levou a esta conciusão? ' u m simples facto linguístico que u m homem que refere o m o t i v o pelo
Há pelo menos dois sentidos completamente diferentes nos quais qual fez qualquer coisa está, como se diz em linguagem vulgar, a d a r
se diz que uma ocorrência é «explicada», e correspondentemente há a «razão» da acção. Deve notar-se também que há inúmeras espécies
também dois sentidos inteiramente diferentes em que perguntamos diferentes de tais explicações das acções humanas. U m a contracção
«porque» se deu a ocorrência e dois sentidos também diversos em que muscular pode ser explicada por u m reflexo, o enchimento de u m
dizemos que ela «aconteceu» porque estas ou aquelas circunstâncias I cachimbo por u m hábito inveterado, a resposta a u m a carta por u m
se v e r i f i c a r a m . O p r i m e i r o é o sentido causal. Perguntar porque é que motivo. Algumas das diferenças entre reflexos, hábitos e motivos terão
o v i d r o se p a r t i u é perguntar o que causou a sua f r a c t u r a , e explicamos de ser descritas numa outra frase.
neste sentido o facto de o v i d r o se t e r p a r t i d o quando dizemos que uma A questão a debater agora é a seguinte: A frase «Ele vangloriou-se
pedra o a t i n g i u . A proposição de explicação começada por «porque» des- por vaidade» deveria, sob u m certo aspecto, ser interpretada como
creve u m acontecimento, designadamente o acontecimento que deu querendo dizer «Ele vangloriou-se e a causa de o fazer f o i a ocorrência
lugar à quebra do vidro, como causa de u m efeito.. nele de uma sensação ou impulso p a r t i c u l a r de vaidade». Sob o u t r o
Mas m u i t o frequentemente procuramos e obtemos explicações aspecto, deve interpretar-se como querendo s i g n i f i c a r «Ele v a n g l o r i o u -
\ de ocorrências n o u t r o sentido de «explicação». Perguntamos porque -se ao encontrar u m estranho e o seu acto satisfaz assim a proposição-
é que o v i d r o se fez em cacos quando atingido pela pedra e obtemos -lei de que sempre que se lhe depara uma oportunidade de conseguir
a resposta de que isso aconteceu porque o v i d r o era quebrável. Que- a admiração e inveja dos outros, ele faz t u d o o que pensa que possa
brável é aqui u m adjectivo de predisposição, o que é o mesmo que produzir essa admiração e inveja».
dizer que descrever o v i d r o como quebrável é a f i r m a r uma proposição O meu p r i m e i r o argumento a favor da segunda interpretação de
geral hipotética sobre o v i d r o . Assim, quando dizemos que o v i d r o se tais frases é que nunca ninguém poderia saber ou sequer conjecturar
p a r t i u porque era quebrável, a proposição começada por «porque» não racionalmente que a causa das acções manifestas de alguém fosse a
refere u m acontecimento ou uma causa, mas estabelece uma proposição- ocorrência nesse alguém de uma sensação. Mesmo se a pessoa referisse,
-lei. Diz-se comummente de explicações desta segunda espécie que dão a o que nunca acontece, que tenha experimentado u m frémito de vaidade
«razão» pela qual o v i d r o se p a r t i u quando atingido. precisamente antes de se vangloriar, isto seria u m a evidência m u i t o
Como funciona a proposição-lei geral hipotética? E l a diz, gros- fraca de que esse frémito tivesse causado a acção, visto que, por t u d o
seiramente, que o vidro, se atingido bruscamente ou torcido, não se o que sabemos, a causa era u m entre milhares de outros acontecimentos
dissolveria ou evaporaria, mas que se f a r i a em fragmentos. O facto de sincrónicos. Sob este ponto de vista, a imputação de motivos não seria
o v i d r o se t e r feito em pedaços em determinado momento, quando susceptível de quaisquer verificações directas e nenhuma pessoa razoá-
atingido por uma pedra particular, é explicado, neste sentido de «ex- vel confiaria em t a l imputação. Seria como a d i v i n h a r onde está a água
plicar», quando o p r i m e i r o acontecimento, ou seja, o impacto da pedra, em sítios onde a abertura de poços é proibida.
satisfaz a prótase da proposição geral hipotética e quando o segundo Mas, de facto, nós descobrimos os motivos das outras pessoas.
acontecimento, ou seja, a fragmentação do v i d r o , satisfaz a sua f O processo de os descobrir não está imunizado contra o erro, mas
apódose. os erros também não são incorrigíveis. Este processo é, ou é semelhante,
Isto pode ser agora aplicado à explicação de acções provenientes a u m processo indutivo, que resulta no estabelecimento de proposições-
de motivos específicos. Quando perguntamos «Porque é que alguém -leis e na sua aplicação como «razões» para acções particulares. O que
agiu de determinado modo?», esta pergunta pode ser, t a n t o quanto a é estabelecido em cada caso é ou inclui uma proposição geral hipotética
linguagem o permite, quer uma pergunta sobre a causa porque agiu ! de certa espécie. A atribuição de u m m o t i v o a u m a acção p a r t i c u l a r
desse modo, quer uma pergunta sobre o carácter da pessoa que praticou não é uma inferência causal de u m acontecimento não presenceado, mas
a acção, tendo em conta que agiu desse modo nessa ocasião particular. a submissão de uma proposição episódica a uma proposição-lei. Ê por-
Sugiro, mas não tentarei provar, que as explicações através dos motivos tanto análoga à explicação de acções e reacções por reflexos e hábitos
yu INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A
EMOÇÃO 91

ou à explicação da quebra do v i d r o por referência à sua qualidade leis de âmbito mais l i m i t a d o são submetidas a leis mais gerais. Não
de ser quebrável. regista uma série cronológica de fases cada vez mais p r i m i t i v a s (

O modo pelo qual uma pessoa descobre os seus motivos remotos embora pudesse fazê-lo se lhe fizessem perguntas completamente dife-
é o mesmo pelo qual descobre os dos outros. A quantidade e qualidade rentes: «Qual f o i a p r i m e i r a coisa a despertar o seu interesse neste
das informações a que t e m acesso diferem nos dois casos, mas os seus problema? E naquele?».
artigos são em geral do mesmo género. Ê verdade que uma pessoa t e m No caso de qualquer acção, tomada por si própria, sobre a qual
u m fundo de recordações das suas próprias acções, pensamentos, fan- seja n a t u r a l perguntar «Por que motivo f o i feita?», é sempre possível
tasias e sensações e pode executar experiências de se imaginar a si que tivesse sido feita, não por u m motivo mas por força do hábito. Seja
própria enfrentando tarefas e oportunidades que efectivamente não se o que f o r que faço ou digo, é sempre concebível, embora quase sempre
deram. Pode assim basear as suas apreciações sobre as suas inclinações falso, que o tenha feito ou dito sem qualquer consciência. A execução
duradouras, cujos pormenores lhe f a l t a m para a apreciação das inclina- de u m a acção por u m motivo é diferente da sua execução por
ções dos outros. Por outro lado, as suas apreciações das suas próprias hábito. Mas as espécies de coisas que pertencem a uma classe também
inclinações não podem provavelmente ser imparciais e não está em posi- pertencem a outra. Assim, dizer que uma acção f o i feita pela força
ção favorável para poder comparar as suas próprias acções e reacções do hábito é dizer evidentemente que uma predisposição específica ex-
com as dos outros. E m geral, pensamos que u m espectador i m p a r c i a l e plica a acção. Acredito que ninguém pense que o hábito é o nome de
perspicaz é melhor j u i z dos motivos predominantes de uma pessoa do u m acontecimento peculiar interno ou de uma classe de acontecimentos.
que ela própria, bem como dos seus hábitos, capacidades e fraquezas, Perguntar se uma acção f o i feita pela força do hábito ou por bondade
opinião esta que é directamente contrária à teoria que sustenta que a de coração é portanto perguntar qual das duas predisposições especí-
pessoa que pratica u m a acção t e m u m acesso privilegiado às chamadas ficas constitui a explicação da acção.
fontes das suas próprias acções e que em consequência desse acesso é ca- Finalmente, devemos considerar por meio de que experiências
paz e t e m obrigação de descobrir sem inferências ou investigações decidiríamos uma disputa sobre o motivo pelo qual uma pessoa fez
por que motivos t e m tendência para agir de determinado modo e por que qualquer coisa. Por exemplo, se u m homem abandonou u m emprego
motivo agiu assim numa ocasião p a r t i c u l a r . bem pago por u m cargo oficial relativamente humilde por patriotismo
Veremos mais tarde (Capítulo V ) que uma pessoa que faz ou ou por desejo de ficar isento do serviço m i l i t a r . Talvez comecemos por
experimenta qualquer coisa, estando atenta ao que está a fazer ou lho perguntar, mas, nesta matéria, as suas confissões, a nós ou a ele
àquilo a que está sujeita, pode em geral responder a perguntas sobre próprio, têm muitas probalidades de não ser francas. E m seguida,
esse incidente sem inferências ou investigações. Mas o que lhe dá tentamos, não necessariamente sem êxito, resolver a questão, conside-
estas respostas prontas, pode, e muitas vezes dá aos seus companheiros, rando se as suas palavras, acções, embaraços, e t c , nesta ou n o u t r a
as mesmas respostas. Não t e m para isso que ser detective nem os ocasião, se enquadram na hipótese de que ele é fisicamente cobarde
outros o são. e contrário à incorporação ou se se coadunam com a hipótese de
Existe outro argumento que vem em apoio desta tese. U m a pessoa que ele é relativamente indiferente ao dinheiro e que sacrificaria fosse
que responde a uma interrogação pode dizer que esteve a escavar uma o que fosse para ajudar a ganhar a guerra. Isto é, tentamos concluir
vala para encontrar a larva de uma certa espécie de insecto, que andava por indução os traços predominantes do seu carácter. Aplicando então
à procura dessa larva para saber de que fauna ou flora ela era parasita, os resultados da nossa indução à sua decisão p a r t i c u l a r , isto é, expli-
que estava a tentar saber de que modo a larva era parasita para provar cando como chegou a ela, não o forçamos a recordar as ânsias e
uma certa tese ecológica e que queria experimentar esta hipótese para frémitos que sentiu ao t o m a r a decisão, nem provavelmente nos dare-
provar uma certa hipótese sobre a Selecção N a t u r a l . E m cada fase mos ao trabalho de i n f e r i r a sua ocorrência. E há u m a razão especial
declara os seus motivos ou as razões para prosseguir as suas investiga- para não prestarmos muita atenção às sensações experimentadas por
ções. E cada razão que dá é de u m nível mais elevado de generalidade uma pessoa cujos motivos estão em estudo, ou seja, a de que sabemos
do que a precedente. Submete u m interesse a outro, u m pouco como as que sensações vivas e frequentes são experimentadas por pessoas
92 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 93

sentimentais cujas acções positivas mostram claramente que o seu como distraído ou perturbado pela f i l a n t r o p i a ou pela vaidade, porque
p a t r i o t i s m o é por exemplo uma auto-indulgência fingida. Mostram-se não está de modo a l g u m distraído ou perturbado. O seu espírito t e m
abatidas quando sabem que a situação do seu país é desesperada, mas u m só objectivo. A filantropia e a vaidade não são ataques ou
os seus apetites não são afectados, nem a r o t i n a da sua vida modificada. distúrbios.
O seu peito dilata-se ao ver passar uma parada m i l i t a r , mas evitam Como as próprias palavras «distracção» e «agitação» indicam, as
desfilar eles próprios. São como os espectadores de teatro ou como os pessoas nestas condições estão, para usar uma metáfora arriscada,
leitores de romances, que também sentem angústias, entusiasmos, a l - sujeitas a forças opostas. As duas espécies radicais de tais conflitos são
voroços e frémitos de desespero, indignação, hilaridade e desgosto, as seguintes: ou uma inclinação v a i contra outra, ou uma inclinação
com a diferença de que os espectadores de teatro e os leitores de é contrariada pelos duros factos da vida. U m homem que quer v i v e r no
romances têm a noção de que essas sensações são fingidas. campo e que quer manter uma posição que exige que viva na cidade,
Dizer, portanto, que u m certo motivo é u m traço do carácter de t e m inclinações de direcções opostas. U m homem que quer viver e está
alguém, é dizer que esse alguém tem inclinação para fazer determinadas a morrer, está impossibilitado pelos factos de fazer o que quer. Estes
espécies de coisas, certas espécies de planos, ceder a certas espécies de exemplos m o s t r a m uma característica importante das agitações, ou
devaneios e também, é certo, sentir determinadas espécies de sensações seja, que elas pressupõem a existência de inclinações que não são
em certas situações. Dizer que fez qualquer coisa por u m motivo é dizer por si próprias agitações, t a l como os redemoinhos pressupõem a
que essa acção, feita nas suas circunstâncias particulares, era precisa- existência de correntes que não são por si próprias redemoinhos. U m
mente a espécie de coisa que essa pessoa t i n h a inclinação para fazer. redemoinho é uma condição-interferência que exige a existência, diga-
É o mesmo que dizer «ele faria isso». mos, de duas correntes, ou de uma corrente e uma rocha. U m a agitação
necessita da existência de duas inclinações ou de u m a inclinação e de
(3) INCLINAÇÕES VERSUS AGITAÇÕES
u m impedimento concreto. O sofrimento de uma certa espécie é a afeição
impedida pela morte de alguém. A expectativa de u m certo género é
a esperança com a interferência do receio. U m a vítima despedaçada
Completamente diferentes das inclinações são os estados ou dispo-
entre o p a t r i o t i s m o e a ambição t e m de ser patriótica e ambiciosa.
sições de espírito das pessoas descritas como agitadas, perturbadas,
distraídas ou incomodadas. E s t a r ansioso, assustado, chocado, excitado, Hume, seguindo Hutcheson, f o i parcialmente sensível a estas dis-
abalado, espantado, na expectativa, sobressaltado ou i r r i t a d o , são tinções entre inclinações e agitações, quando notou que algumas
espécies familiares de agitações. São comoções, cujos graus de pertur- «paixões» são intrinsecamente calmas, enquanto outras são violentas.
bação são ordinariamente caracterizados como graus de violência. Pode N o t o u também que uma paixão calma podia «vencer» u m a paixão
dizer-se a respeito de cada u m deles que uma pessoa está demasiado violenta. Mas esta antítese entre «calmo» e «violento» sugere uma
perturbada para pensar ou agir correctamente, demasiado assustada simples diferença de g r a u entre duas coisas da mesma espécie. A s
para p r o f e r i r uma palavra ou demasiado excitada para ser capaz de se agitações podem ser violentas ou moderadas, as inclinações não podem
concentrar. Quando se diz que as pessoas estão mudas de espanto ou ser uma coisa nem outra. A s inclinações podem ser relativamente fortes
paralisadas pelo t e r r o r , a agitação específica está, com efeito, a ou relativamente fracas, mas esta diferença não é de g r a u de pertur-
descrever-se como extremamente violenta. bação. É uma diferença de g r a u de eficácia, o que é uma espécie de
diferença completamente diversa. Hume usava a palavra «paixão» para
Este ponto indica já parte da diferença entre inclinações e agita-
designar coisas pelo menos de dois tipos diferentes.
ções. Seria absurdo dizer que o interesse de uma pessoa pela Lógica
Simbólica era tão violento que ela não se podia concentrar na Lógica Quando se descreve u m homem como m u i t o avarento e u m pouco
Simbólica ou que alguém era demasiado p a t r i o t a para ser capaz de apreciador da jardinagem, parte do que se diz é que o p r i m e i r o m o t i v o
trabalhar pelo seu país. A s inclinações não são perturbações e, assim, é mais f o r t e do que o segundo, no sentido de que a maior parte do seu
não podem ser perturbações violentas ou moderadas. U m homem cujo comportamento interno e externo é d i r i g i d o mais fortemente no sentido
motivo dominante é a f i l a n t r o p i a ou a vaidade não pode ser descrito de enriquecer do que no da jardinagem. Além disso, quando surgem
94 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 95

situações nas quais uma ligeira perda financeira seria acompanhada «aborrecido», «excitado» e «embaraçado». Usamo-las por vezes para
de u m melhoramento para o seu j a r d i m , é provável que ele desista das significar disposições temporárias, como quando dizemos que alguém
orquídeas e guarde o dinheiro. Mas diz-se mais do que isso. Para se se sentiu embaraçado durante alguns minutos ou aborrecido durante
poder descrever u m homem como m u i t o avarento, esta propensão deve uma hora. Usamo-las às vezes para susceptibilidades a estados de
dominar todas ou quase todas as suas outras inclinações. Mesmo se espírito, como quando dizemos que alguém se embaraça com os elogios,
o descrevermos como u m pouco apreciador de jardinagem, isso indica isto é, que normalmente fica embaraçada quando é elogiada. De igual
que este m o t i v o domina uma série de outras inclinações. As intensidades modo, «reumático» significa por vezes «ter u m ataque de reumático» e
dos motivos são as suas intensidades relativas vis-à-vis de outros outras xter propensão para ter ataques de reumático». « A I r l a n d a é
motivos especificados, ou de todos os outros motivos, ou da maior parte chuvosa» pode significar que neste momento chove lá bastante ou que
dos outros motivos. Elas são em parte determinadas pelo modo como a habitualmente chove m u i t o nesse país. È evidente que as susceptibili-
pessoa d i s t r i b u i as suas actividades internas e externas e, o que é dades a agitações específicas estão na mesma posição geral em relação
apenas u m caso especial, pelos resultados das competições entre as às inclinações, ou seja, que ambas são propensões gerais e não ocorrên-
suas inclinações quando as circunstâncias provocam tais competições, cias. A ansiedade sobre o resultado de uma guerra ou o sofrimento
isto é, quando não podemos fazer duas coisas para as quais sentimos pela morte de u m amigo podem marcar uma pessoa durante meses ou
inclinação. N a verdade, dizer que os motivos de uma pessoa têm t a l e anos. Essa pessoa tem recaídas de ansiedade ou continua a sofrer.
t a l intensidade é simplesmente dizer que ela tem tendência para dis- Dizer que uma pessoa f i x o u vexada durante dias ou semanas pela
t r i b u i r as suas actividades desta e daquela maneira. crítica de alguém sobre ela não é dizer que durante todos os momentos
Por vezes, u m m o t i v o p a r t i c u l a r é tão f o r t e que domina sempre, desse tempo esteve de mau humor, teve pensamentos de ressentimento
ou quase sempre, os outros motivos. O avarento ou o santo sacrificariam ou registou sensações de ofensa, porque de vez em quando ela também
talvez tudo, mesmo a própria vida, de preferência a perderem o que esteve na disposição de comer, de t r a t a r dos seus negócios e de jogar
mais estimavam. T a l homem poderia, se a vida lhe fosse propícia, nunca os seus jogos. O que isto quer dizer é que ela está sujeita a recair nesta
ser seriamente agitado ou distraído, dado que nenhuma outra inclina- disposição e que continua enquadrada no estado de espírito em que
ção f o i suficientemente séria para competir ou entrar em conflito com não pode evitar sentir a insistência incómoda da injustiça que sofreu.
os desejos do seu coração. Ele não poderia e n t r a r em conflito consigo Não pode evitar fantasiar intermitentemente justificações e represálias.
próprio. Não pode mesmo tentar a t r i b u i r motivos dignos de crédito à pessoa
U m dos usos mais populares de palavras como «emoção», «emocio- que a criticou ou reconhecer qualquer propriedade na sua crítica. E
nal», «comovido», etc. descreve as agitações ou outras disposições de dizer que ela continua a recair nesta disposição é descrevê-la em termos
espírito em que as pessoas se encontram de vez em quando, ou às quais predisposicionais. Quando as susceptibilidades a disposições específicas
estão sujeitas. Por uma pessoa altamente emocional significa-se co- são crónicas, chamam-se traços de carácter.
mummente uma pessoa que se enfurece ou se enerva frequente e Mas que espécie de descrição estamos a fazer, quando dizemos
violentamente. Se por qualquer razão este uso for escolhido como que alguém, em determinado momento e por u m período longo ou
padrão ou sentido próprio de «emoção», então os motivos ou inclinações curto, esteve numa disposição p a r t i c u l a r ? Parte da resposta será dada
não são de modo a l g u m emoções. A vaidade não seria uma emoção, na alínea (4) deste capítulo. A q u i basta m o s t r a r que embora as
embora a contrariedade o fosse. E s t a r interessado pela Lógica Simbó- disposições, como as anomalias ou estados do tempo, sejam condições
lica não seria uma emoção, se bem que ser perturbado por outros temas de duração relativamente curta, não são incidentes determinados, se
o fosse. Mas a questão não é t e n t a r desbastar as ambiguidades da bem que resultem em incidentes determinados.
palavra «emoção» e assim é melhor dizer que os motivos são, se o Do facto de uma pessoa ter t i d o uma indisposição de estômago
preferirem, emoções, mas não no sentido em que as agitações são durante uma hora, não se conclui que tenha t i d o uma grande dor ou
emoções. uma série de pequenas dores durante uma hora. Talvez não tenha tido
Devemos d i s t i n g u i r dois modos diferentes de usar palavras como mesmo dores nenhumas. N e m se conclui que se tenha sentido doente,
96 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 97

que tenha vomitado ou que esteja pálida. É suficiente que uma ou outra andar a pé anda porque quer andar, mas u m homem perplexo não
destas ou outras ocorrências adequadas se tenham dado. Não há u m franze as sobrancelhas por querer parecer perplexo ou porque isso
episódio único cuja ocorrência seja condição necessária ou suficiente signifique parecê-lo, embora o actor ou o hipócrita possam f r a n z i r as
de ter uma indisposição digestiva. Portanto, «indisposição digestiva» sobrancelhas porque querem parecer perplexos. A razão destas dife-
não assenta em nenhum episódio único. Do mesmo modo, uma pessoa renças é simples. E s t a r distraído não é a mesma coisa que estar
de m a u h u m o r ou alegre pode dizer ou não certas coisas, falar n u m sequioso na presença de água potável. É como estar sequioso na
certo t o m de voz, fazer esgares ou gesticular de certa maneira, t e r ausência de água potável ou na presença de água estagnada, fi querer
certos devaneios ou registar certas sensações. E s t a r mal-humorado ou fazer alguma coisa sem ser capaz de a fazer ou querer fazer uma coisa
alegre requer uma ou outra destas e ainda outras acções e reacções, mas e ao mesmo tempo não a querer fazer. É a conjunção de uma inclinação
não há nenhuma delas que seja condição necessária e suficiente de estar para se comportar de certo modo com uma inibição para se comportar
mal-humorado ou alegre. O «mau-humor» e a «hilaridade» não signifi- desse modo. As pessoas agitadas não podem pensar no que vão fazer
cam portanto qualquer acção ou reacção específica. ou no que vão pensar. O comportamento vacilante e sem objectivo
determinado, t a l como a paralisia do comportamento, são sintomas de
E s t a r mal-humorado é estar na disposição de a g i r ou reagir de
agitações, do mesmo modo que dizer uma graça não é u m sintoma mas
u m modo ou outro, os quais só vagamente podem ser descritos, embora
um exercício do sentido de humor.
se reconheçam com facilidade sempre que surjem conjunturas de certa
espécie. Isto mostra que palavras de disposição como «tranquilo» e Os motivos não são pois agitações, sequer moderadas, nem as
«jovial», incluindo palavras que se referem a agitações, como «incomo- agitações são motivos. Mas as agitações pressupõem motivos, ou antes,
dado» e «saudoso», significam estar sujeito a essas agitações. Mesmo pressupõem tendências de comportamento cujos motivos são para nós
estar escandalizado durante u m breve momento ou em pânico é, em a espécie mais interessante. Os conflitos dos hábitos com outros
relação a esse momento, estar sujeito a fazer algumas coisas tais como hábitos ou dos hábitos com factos desfavoráveis ou dos hábitos com
assumir uma atitude rígida, ou dar g r i t i n h o s , ou não ser capaz de os motivos são também condições de comoção. U m fumador inveterado
acabar uma frase, ou de se lembrar onde é a saída de emergência em numa parada, ou sem fósforos, encontra-se nesta situação. Há no
caso de fogo. entanto u m assunto linguístico que dá origem a certa confusão.
E x i s t e m palavras que significam t a n t o inclinações como agitações,
Certamente que não se pode descrever uma pessoa como estando
além de outras que significam apenas agitações e outras ainda que
numa disposição particular, a menos que u m número adequado de
significam apenas inclinações. Palavras como «inquieto», «ansioso»,
episódios a propósito se verifique. «Eie está a ser cínico» ou «Ele
está nervoso», não significa apenas «Ele faria...» ou «Ele não «desolado», «excitado» e «alarmado» significam sempre agitações.
poderia...». Alude ao comportamento efectivo e menciona sujeições. Frases como «apreciador de pesca», «apaixonado pela jardinagem»,
Ou antes, alude ao comportamento efectivo como consequência destas «com vocação para bispo» nunca significam agitações. Mas palavras
sujeições. Isto explica em conjunto o que acontece e autoriza a fazer como «amor», «querer», «desejo», «orgulhoso», «ardente» e m u i t a s
previsões do que acontecerá se... ou do que aconteceria se.... É como outras significam por vezes agitações que são resultantes dessas
dizer: «O copo era suficientemente quebrável para se p a r t i r quando inclinações e interferências ao seu exercício. Assim, «faminto» no sen-
aquela pedra o atingiu». tido de estar com fome significa possivelmente «Está a comer ou
comeria com vontade mesmo sem quaisquer temperos, e t c » . Mas isto é
Mas se bem que as agitações, t a l como outras disposições, sejam
condições de sujeição, não são propensões para agir intencionalmente diferente do sentido no qual se pode dizer que uma pessoa está «dema-
de certos modos. U m a mulher torce as mãos angustiada, mas não siado f a m i n t a para se concentrar no seu trabalho». F a m i n t o , neste
dizemos que a angústia é o m o t i v o pelo qual ela torce as mãos. N e m segundo sentido, é uma angústia, e para ela e x i s t i r deve haver a
perguntamos com que finalidade u m homem embaraçado cora, gagueja, conjugação do apetite com a impossibilidade de comer. De modo seme-
se contorce ou se mostra desassossegado. U m indivíduo que gosta de lhante, o sentido em que u m rapaz t e m orgulho na sua escola é diferente

I. P. — 7
98 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 99

do sentido em que fica mudo de orgulho quando lhe dão u m lugar situação na qual essa pessoa pudesse beneficiar a sua carreira e ajudar
inesperado na equipa da escola. o seu partido, ela f a r i a ambas as coisas em vez de fazer uma e não
Para e l i m i n a r u m possível equívoco, deve assinalar-se que nem fazer a outra.
todas as agitações são desagradáveis. A s pessoas sujeitam-se volunta- A s disposições, pelo contrário, monopolizam. Dizer que uma pessoa
riamente à expectativa, à fadiga, à incerteza, à perplexidade, ao receio está em determinada disposição é, com reservas para as disposições
e à surpresa quando p r a t i c a m pesca à linha, remo, quando v i a j a m , complexas, dizer que não está em nenhuma outra. E s t a r na disposição
resolvem problemas de palavras cruzadas, quando fazem alpinismo e de a g i r e reagir de determinado modo não é estar também na disposição
ouvem anedotas. Vemos que esses frémitos, êxtases, surpresas, d i v e r t i - de a g i r e reagir de muitas outras maneiras. E s t a r na disposição de
mentos e libertações são agitações pelo facto de podermos dizer que conversar não é estar na disposição de ler, escrever ou aparar relva.
alguém está demasiado arrebatado, d i v e r t i d o ou aliviado para agir, Falamos das disposições em termos tirados dos termos em que falamos
pensar ou conversar coerentemente. Descrevemos então essa pessoa do tempo e por vezes falamos do tempo em termos tirados da fraseologia
como estando «perturbada» no sentido de «excitada» e não como das disposições. Não mencionamos disposições do tempo, a não ser
motivada no sentido de «desejosa de fazer ou obter qualquer coisa». que ele mude. Se hoje o tempo aqui está bastante chuvoso, é porque
hoje não cai uma chuva miudinha aqui. Se Fulano estava carrancudo
(4) DISPOSIÇÕES ontem à noite, é porque não estava alegre, melancólico, sereno ou sociá-
vel ontem à noite. Mais, t a l como o tempo desta manhã, numa
Descrevemos comummente as pessoas como estando em determina- determinada localidade, influenciava do mesmo modo todas as locali-
das alturas, p o r períodos de tempo mais ou menos longos, em certas dades da vizinhança, assim a disposição de uma pessoa, durante u m
disposições. Dizemos, por exemplo, que u m a pessoa está deprimida, dado período, influencia todas ou a maior parte das suas acções e
feliz, t a c i t u r n a ou inquieta e que esteve assim durante minutos ou reacções durante esse período. O seu trabalho, o seu jogo, a sua conversa
durante dias. Só quando u m a disposição é crónica usamos tais palavras e os seus gestos, os seus apetites e devaneios, tudo reflecte a sua
de disposição como descrições de carácter. U m a pessoa pode estar susceptibilidade, jovialidade ou depressão. Qualquer deles pode servir
melancólica hoje, sem ser melancólica. de barómetro para todos os outros.
A o dizer que u m a pessoa está numa certa disposição, estamos a A s palavras de disposição são palavras de tendência de c u r t a
dizer algo bastante geral. Não estamos a dizer que essa pessoa está duração, mas diferem das palavras de motivo, não só pela c u r t a duração
sempre ou frequentemente a fazer uma única coisa, mas que está na da sua aplicação, como pelo seu uso ao caracterizar o «conjunto» t o t a l
disposição de espírito de dizer, fazer e sentir u m a grande variedade de de uma pessoa durante esse c u r t o prazo. U m pouco como o navio no seu
coisas relacionadas de u m modo vago. U m a pessoa n u m a disposição todo segue o r u m o sudeste, balançando ou vibrando, a pessoa no seu todo
de espírito frívola está com mais disposição para dizer graças do que está nervosa, serena ou melancólica. A sua própria inclinação corres-
habitualmente, diverte-se mais do que habitualmente com as graças pondente será descrever todo o mundo como perigoso, agradável ou sem
dos outros, está na disposição de t r a t a r de importantes assuntos de esperança. Se está j o v i a l , acha t u d o mais agradável do que habitual-
negócios sem ansiedade e de se entregar de alma e coração a jogos mente e, se está m a l humorada, não só o t o m de voz do patrão e o pró-
infantis e assim sucessivamente. prio laço do sapato lhe parecem injustos para com ela, como tudo parece
A disposição momentânea de uma pessoa é de uma espécie diferente conjurar-se para lhe fazer injustiças.
dos motivos que a impulsionam. Podemos dizer de uma pessoa que é A s palavras que referem disposições são normalmente classificadas
ambiciosa, leal ao seu partido, humana e interessada na entomologia e como nomes de sensações. Mas se a palavra «sensação» f o r usada com
que é todas essas coisas, em certo sentido, ao mesmo tempo, mas não r i g o r , esta classificação é completamente errónea. Dizer que u m a pessoa
que essas inclinações são ocorrências ou estados simultâneos, visto que está feliz ou descontente não é simplesmente dizer que ela t e m arrepios
não são de modo nenhum ocorrências ou estados. Mas se surgisse uma ou frémitos frequentes ou contínuos. N a verdade, não é sequer dizer
100 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 1Q1

isso, porque não retiraríamos a nossa afirmação ao ouvir dizer que a Antes de voltarmos à associação de «sentir» com as palavras de
pessoa não t i n h a tido tais sensações e não ficaríamos convencidos de disposições, devemos considerar algumas diferenças entre confissões
que estava feliz ou descontente apenas pela sua confissão de que t i n h a como «Eu tenho uma comichão» e «Eu sinto-me doente». Se uma pessoa
tido essas sensações aguda e frequentemente. Estas poderiam ser t e m uma comichão é porque t e m uma comichão e se t e m uma comichão,
sintomas de indigestão ou intoxicação. sente-a. Mas se sente doente, pode não estar doente e se está doente
As sensações, n u m sentido estrito, são coisas que vêm e vão, pode não se sentir doente. Sem dúvida uma pessoa sentir-se doente é
aumentam e d i m i n u e m nalguns segundos. Magoam ou causam descon- em parte uma evidência de estar doente. Mas sentir uma comichão não
tentamento. Sentimo-las em todo o corpo ou em determinada parte é uma evidência de ter uma comichão, t a l como dar u m soco não é uma
dele. A vítima pode dizer que sente guinadas contínuas ou que as evidência da ocorrência de u m soco. E m «sentir uma comichão» e «dar
sente apenas de tempos a tempos. Ninguém descreveria a sua felicidade u m soco», comichão e soco são acusativos cognatos dos verbos «sentir»
ou descontentamento nestes termos. U m a pessoa diz que se sente feliz e «dar». O verbo e o seu acusativo são duas expressões para a mesma
ou infeliz, mas não que se sente continuamente assim ou que se sente coisa, como cs verbos e os seus acusativos em «Eu tive u m sonho» ou
persistentemente feliz ou infeliz. Se uma pessoa está demasiadamente «Eu fiz u m a pergunta».
satisfeita para cismar n u m malogro, não está a experimentar uma Mas «doente» e «capaz de t r e p a r às árvores» não são acusativos
sensação tão violenta que a impeça de pensar em qualquer outra coisa cognatos do verbo «sentir». Assim, não significam sensações dentro
e p o r t a n t o que não possa pensar no malogro. Pelo contrário, sente dos limites da gramática, como «comichão» significa uma sensação
mais prazer do que habitualmente em todas as coisas que faz e em dentro dos limites da gramática. U m o u t r o ponto puramente g r a m a t i c a l
todos os pensamentos que tem, incluindo os pensamentos a respeito do mostra a mesma coisa. É indiferente dizer «Eu sinto uma comichão»
malogro. Não se importa t a n t o com o pensamento dele como habitual- ou «Eu tenho uma comichão», mas «Eu tenho...» não pode ser com-
mente. pletado por «...doente», «...capaz de trepar à árvore», «...feliz» ou
Os principais motivos por que se classificam as disposições como «infeliz». Se tentarmos reconstituir o paralelo verbal empregando os
sensações parecem ser duplos. (1) Os pensadores sentiram-se constran- substantivos abstractos apropriados, encontramos mais uma incon-
gidos a situá-las n u m dos seus três ramos p e r m i t i d o s : Pensamento, gruência. «Eu sinto felicidade», «Eu sinto doença» ou «Eu sinto
Vontade e Sentimento. E como as disposições não se ajustam a nenhum capacidade para t r e p a r às árvores», se s i g n i f i c a m alguma coisa, não
dos dois primeiros, devem servir ao terceiro. Não precisamos de perder significam de modo nenhum o mesmo que «Eu sinto-me feliz, doente,
tempo com este motivo. (2) U m a pessoa numa disposição indolente, ou capaz de t r e p a r às árvores».
fútil ou depressiva, com a perfeita correcção idiomática, confessa o Por o u t r o lado, além destas diferenças entre os diferentes usos de
seu estado de espírito dizendo «Eu sinto preguiça» ou «Começo a «Eu sinto...», há também importantes analogias. Se uma pessoa diz
sentir-me fútil» ou «Ainda me sinto deprimido». Como podem tais que t e m uma comichão, não lhe perguntamos pela sua evidência, nem
expressões ser idiomàticamente correctas, se não descrevem a ocorrên- lhe pedimos que se certifique dela. A n u n c i a r uma comichão não é
cia de sensações? Se «Eu sinto u m formigueiro» anuncia uma sensação proclamar os resultados de uma investigação. U m a comichão não é
de formigueiro, como pode «Eu sinto-me cheio de energia» deixar de qualquer coisa estabelecida por testemunho cuidadoso ou qualquer
anunciar uma sensação de energia? coisa inferida através de indícios, nem louvamos pelos seus poderes de
Mas este exemplo começa a fazer com que o argumento pareça observação ou raciocínio as pessoas que nos dizem que sentem comichão
inverosímil. A energia não é, obviamente, uma sensação. De igual modo, ou palpitações. O mesmo é verdade sobre as confissões de disposições.
se o paciente diz «Sinto-me doente» ou «Sinto-me melhor», ninguém Se uma pessoa diz «Sinto-me aborrecida» ou «Sinto-me deprimida» não
classificará a doença ou convalescença como sensações. «Ele sentiu-se lhe perguntamos pela evidência nem lhe pedimos que se certifique
estúpido» ou «capaz de trepar às árvores» ou «quase a desmaiar» são disso. Podemos acusá-la de nos enganar ou de se enganar a si própria,
outras utilizações do verbo «sentir» em que os acusativos do verbo não mas não a acusamos de t e r sido descuidada nas suas observações ou
são nomes de sensações. imprudente nas suas inferências, visto que não pensamos que a sua
102 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 103

confissão f o i u m a descrição de observações ou conclusões. A pessoa Sob certos aspectos, as confissões de disposições, como «sinto-me
não f o i u m b o m ou m a u detective. Não f o i de modo nenhum u m bem disposto», assemelham-se mais aos anúncios de sensações como
detective. Nada nos surpreenderia mais do que ouvi-la dizer «Sinto-me «Sinto uma comichão» do que a expressões como «Sinto-me melhor» ou
deprimida» no t o m v i v o e judicioso de u m detective, u m investigador «Sinto-me capaz de trepar às árvores». T a l como seria absurdo dizer
de microscópio, u m diagnosticador, embora este t o m de voz seja «Sinto uma comichão mas talvez a não tenha», também seria absurdo
absolutamente adequado a «Eu sentia-w,e deprimido» ou« Ele sente-se dizer «Sinto-me bem disposto mas talvez o não esteja». No entanto,
deprimido». Se a confissão é feita como deve ser, deve ser d i t a n u m t o m não seria absurdo dizer «Sinto-me melhor mas talvez esteja pior» ou
de voz deprimido. Deve ser feita a u m simpatizante e não descrita a «Sinto-me capaz de trepar às árvores mas talvez não o pudesse fazer».
u m investigador. Confessar «Sinto-me deprimido» é fazer u m a das Pode mostrar-se esta diferença de outro modo. Por vezes é n a t u r a l
coisas, isto é, uma das coisas coloquiais de que a depressão é a dizer «Sinto-me capaz de comer u m boi» ou «Sinto-me como se a m i n h a
disposição para fazer. Não é uma peça da premissa científica «desde temperatura tivesse voltado ao normal». Mas m u i t o poucas vezes
que», mas u m a parte da melancolia coloquial. É por isso que, se estamos seria n a t u r a l , sa é que alguma vez o poderia ser, dizer «Sinto-me como
desconfiados, não perguntamos «realidade ou ficção?», «verdadeiro ou se estivesse neurasténico» ou «Sinto-me como se estivesse aborrecido»,
falso?», «digno ou indigno de confiança?», mas «sincero ou fingido?». t a l como não seria n a t u r a l dizer «Sinto-me como se tivesse uma dor».
A confissão verbal das disposições não exige perspicácia mas s i m Não se ganharia m u i t o em discutir as razões por que usamos o verbo
franqueza. V e m do coração e não da cabeça. Não é u m a descoberta mas «sentir» nestes diferentes sentidos. Ele é também usado em muitos
s i m u m a não-dissimulação voluntária. outros. Posso dizer «sentir uma protuberância no colchão», «Sentir
Evidentemente que as pessoas têm de aprender a usar apropria- frio», «Senti-me indisposto», «Senti os músculos das maxilas entor-
damente as expressões de confissão e podem não aprender m u i t o bem pecidos», «Senti-me enjoado», «Senti o meu queixo com o meu polegar»,
estas lições. Aprendem-nas através das discussões vulgares sobre as «Senti a alavanca mover-se em vão», «Senti como se qualquer coisa
disposições dos outros e através de fontes mais fecundas como os
importante estivesse para acontecer», «Senti que havia u m a falha
romances e o teatro. Aprendem através das mesmas fontes como l u d i -
qualquer no argumento», «Senti-me completamente à vontade» «Senti
b r i a r os outros e a s i próprias por meio de confissões falsas feitas no
que ele estava zangado». U m a característica comum a muitos destes
t o m adequado e com outros acompanhamentos convenientes.
usos é que o i n t e r l o c u t o r não deseja que lhe façam mais perguntas.
Se levantarmos agora a questão epistemológica de «como é que a
Seriam perguntas que não poderiam t e r resposta nem poderiam ser
pessoa descobre em que disposição está?», podemos responder que, se
feitas. Que ele tenha sentido é o suficiente para acabar com quaisquer
o sabe, o que pode não acontecer, adquire esse conhecimento exacta-
discussões. Que ele simplesmente sentisse é suficiente para nos m o s t r a r
mente do mesmo modo pelo qual nós o adquirimos. Como vimos, uma
que quaisquer discussões não deveriam sequer começar.
pessoa não se lamenta dizendo «Sinto-me aborrecida» porque descobriu
que estava aborrecida, t a l como o homem sonolento não boceja porque Os nomes das disposições não são p o r t a n t o nomes de sensações.
descobriu que estava com sono. Pelo contrário, t a l como o homem Mas estar numa disposição particular é estar nas disposições, entre
sonolento descobre que está com sono por observar, entre outras coisas, outras coisas, de sentir certas espécies de sensações em determinadas
que está a bocejar, também o homem aborrecido sabe que está nesta espécies de situações. E s t a r numa disposição indolente é, entre outras
disposição, se é que o sabe, por descobrir, entre outras coisas, que diz coisas, ter tendência para t e r sensações de cansaço nos membros quando
aos outros e a s i próprio sorumbàticamente «Sinto-me aborrecido» ou tem de se fazer a l g u m trabalho, ter sensações confortáveis de relaxa-
«Que aborrecido que eu estou!» Fazer uma t a l confissão não é apenas mento quando se v o l t a à cadeira de repouso, não t e r sensações electri-
u m indicativo digno de confiança entre muitos outros. É o p r i m e i r o e o zantes quando o jogo começa, e assim sucessivamente. Mas não
melhor indicativo, dado que é expresso por palavras e proferido volun- pensamos sobretudo nestas sensações quando dizemos que sentimos
tariamente e se destina a ser ouvido e compreendido. Não exige trabalho preguiça. De facto, só m u i t o raramente damos atenção a sensações
de pesquisa. deste género, salvo quando são anormalmente agudas.
104 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 105

Serão os nomes das disposições nomes de emoções ? A única respos- certo sentido «em», no joelho d i r e i t o ou na cavidade estomacal? A
ta tolerável é que certamente o são, no sentido em que algumas pessoas resposta é que aprendemos t a n t o a localizar sensações como a fazer o
usam por vezes a palavra «emoção». Mas devemos acrescentar que neste seu diagnóstico fisiológico imperfeito por u m processo experimental
sentido uma emoção não é qualquer coisa que possa ser separada do empírico, reforçado normalmente por lições aprendidas dos outros. A
pensamento, do devaneio, de fazer qualquer coisa voluntariamente, de dor existe no dedo em que vejo a agulha. E l a está nesse dedo e só a
gesticular ou sentir angústias ou inquietações. Ter uma emoção, neste extracção da agulha a aliviará. De modo semelhante, o peso que sinto
sentido, ao qual nos referimos normalmente em termos como «estar no estômago é reconhecido como u m sinal de indigestão, porque está
aborrecido», é estar na disposição de ter certas espécies de pensamentos relacionado com a f a l t a de apetite, sujeição a náuseas consequentes,
e não outras, bocejar e não r i r , conversar com delicadeza afectada e alívio através de certos medicamentos e de sacos de água quente. Frases
não f a l a r com animação, sentir-se abatido e não j o v i a l . O aborrecimento como «uma guinada de dor de dentes» envolvem já hipóteses causais
não é o único ingrediente, incidente ou característica que se pode notar e por vezes essas hipóteses estão erradas. U m soldado ferido pode dizer
em tudo o que a sua vítima faz ou sofre. É antes o complexo temporário que sente uma pontada de reumatismo na perna direita, quando já não
dessa totalidade. Não é como uma lufada de ar, u m raio de sol, u m t e m a perna direita e quando «reumatismo» é o diagnóstico errado da
chuveiro a boa temperatura. É como o f r i o da manhã. dor que sente.
De igual modo, quando uma pessoa descreve u m arrepio de inquie-
(5) AGITAÇÕES E SENSAÇÕES tação ou u m abalo de comiseração, não está simplesmente a descrever
uma sensação. Está a fazer u m diagnóstico dela, mas u m diagnóstico
No princípio deste capítulo, tentei esclarecer o que significa, por que não se exprime em termos de perturbação fisiológica. E m alguns
exemplo, descrever u m certo ardor como u m ardor de orgulho ou uma casos, o seu diagnóstico pode ser errado. Pode diagnosticar como
vertigem como uma vertigem de ansiedade. É útil, para começar, inquietação dos remorsos o que na verdade é uma inquietação de receio
assinalar que, de uma maneira geral, as palavras que completam a frase e o que pensa ser uma sensação de desânimo pode ser na realidade uma
«sofrimento de...» ou «arrepio de...» são nomes de agitações. A r g u - sensação de inferioridade. Pode até a t r i b u i r à dispepsia u m a sensação
mentarei agora que as sensações estão intrinsecamente relacionadas que é na verdade u m sinal de ansiedade, ou a t r i b u i r à excitação sensa-
com as agitações e não com as inclinações, salvo nos casos em que as ções de palpitações causadas pelo excesso de fumo. N a t u r a l m e n t e que
inclinações são factores das agitações. Não estou, no entanto, a t e n t a r estes diagnósticos errados são mais comuns nas crianças do que nos
estabelecer uma nova hipótese psicológica. Estou apenas a tentar adultos e mais frequentes em pessoas em situações inéditas do que em
mostrar que faz parte da lógica das nossas descrições das sensações que pessoas vivendo a sua vida n o r m a l . Mas o ponto a que se quer chegar
elas sejam sinais de agitações e não exercícios de inclinações. é que, se ligamos uma sensação a uma condição fisiológica ou u m a
Vimos que de certo modo muitas das palavras usadas para designar sensação a u m estado emocional, estamos a aplicar uma hipótese
sensações-sentimentos são também usadas para designar sensações causal. A s dores não vêm já catalogadas como «reumatismo» nem as
corporais. U m a palpitação pode ser de ansiedade ou de cansaço corporal. palpitações trazem já o rótulo de «compaixão».
U m homem pode contorcer-se de embaraço ou com dores de estômago. Por outro lado, seria absurdo falar de alguém a t e r uma sensação
U m a criança não sabe por vezes se o aperto que sente na garganta é física ou psíquica propositadamente, ou perguntar a alguém porque
u m sinal de angústia ou de doença. é que teve uma pontada. E m vez disso, a ocorrência de uma sensação
Antes de considerar o nosso problema especial «Por que critério física ou psíquica é reconhecida como t a l , dizendo-se, por exemplo, que
chegamos a classificar algumas sensações como sensações «de surpresa» a corrente eléctrica provocou u m a sensação de f o r m i g u e i r o ou que o
ou «de desgosto?», consideremos a pergunta anterior a esta: «Através som duma sirene provocou uma sensação de mal-estar no meu estômago,
de que critério chegamos a classificar certas sensações corporais, como quando ninguém deduziria u m motivo para sentir este f o r m i g u e i r o ou
por exemplo guinadas de dor de dentes ou enjoos de mar?» N a verdade, este mal-estar. Por outras palavras, as sensações não se encontram
qual será o critério pelo qual localizamos sensações como estando em entre as espécies de coisas das quais faz sentido perguntar por que
106 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA EMOÇÃO 107

motivos acontecem. O mesmo é verdade, pelas mesmas razões, a respeito apetite do seu possuidor por chocolates, nem m u d a m o t o m de voz das
de outros sinais de agitações. N e m as minhas pontadas, nem os meus suas conversas. Os sentimentais são pessoas que cedem a sensações
estremecimentos, nem os meus sentimentos de mal-estar ou o meu m a l - induzidas sem a d m i t i r o carácter fictício das suas agitações.
-estar corporal, nem as minhas sensações de alívio, nem mesmo os
meus suspiros de alívio, são coisas que eu faça por u m a razão; (6) SATISFAÇÃO E CARÊNCIA

consequentemente, não são coisas das quais se possa dizer que as faço
inteligentemente ou estupidamente, com êxito ou sem ele, cuidadosa ou As palavras «prazer» e «desejo» desempenham u m importante
descuidadamente — ou que na verdade as faça. Não são bem n e m m a l papel na terminologia dos filósofos moralistas e em certas escolas
dirigidas, pois não são dirigidas de modo algum, se bem que os estre- psicológicas. É i m p o r t a n t e indicar com brevidade algumas das diferen-
mecimentos do actor e os suspiros do hipócrita possam ser bem o u m a l ças entre a suposta lógica do seu uso e a sua lógica efectiva.
dados. Não f a r i a sentido dizer que alguém t e n t o u t e r u m a pontada, E m p r i m e i r o lugar, parece que de u m a maneira geral se supõe que
embora não fosse disparatado dizer que t e n t o u fingi-la. «prazer» e «desejo» são sempre usados para significar sensações. E
Este ponto mostra porque é que estava certo sugerirmos, como certamente que há sensações que podem ser descritas como sensações
atrás fizemos, que as sensações não pertencem directamente a simples de prazer e de desejo. A l g u n s frémitos, choques, exaltações, comichões
inclinações. U m a inclinação é uma certa espécie de propensão o u aptidão são sensações de deleite, surpresa, alívio e divertimento. E as ânsias,
para fazer certas espécies de coisas propositadamente. Estas coisas inquietações, t o r t u r a s e desejos ardentes são sinais de que se quer
podem p o r t a n t o ser descritas como sendo feitas p o r esse motivo. São qualquer coisa que f a l t a . Mas os transportes, surpresas, alívios e
exercícios da predisposição a que chamamos «motivação». A s sensa- tristezas de que tais sensações são diagnóstico ou falso diagnóstico,
ções não provêm de motivos e não estão p o r t a n t o entre os exercícios como sinais, não são em s i próprios sensações. São agitações ou disposi-
possíveis de tais propensões. A teoria m u i t o difundida de que u m ções tais como os entusiasmos e tristezas que a criança revela pelas suas
motivo, t a l como a vaidade ou a afeição, é antes de tudo u m a predispo- cabriolas e lamúrias. A nostalgia é u m a agitação a que em certo sentido
sição para experimentar certas sensações específicas, é p o r t a n t o absur- se pode chamar «desejo». Mas não é simplesmente uma sensação ou
uma série de sensações. Além de experimentar sensações, a pessoa
da. Há, é certo, tendências para t e r sensações. Ter vertigens ou
saudosa não pode também evitar pensar e sonhar com a sua casa,
reumático são tendências desse género. Mas não tentamos modificar as
resistindo a sugestões para prolongar a sua ausência e mostrando-se
tendências deste género com conselhos.
indiferente aos divertimentos pelos quais habitualmente t i n h a entu-
A o que as sensações pertencem causalmente é às agitações. São
siasmo. Se estas tendências e outras semelhantes não estivessem pre-
sinais de agitações, do mesmo modo que as dores de estômago são
sentes, não diríamos que essa pessoa t i n h a saudades, quaisquer que
sinais de má digestão. Grosso modo, ao contrário do que a teoria
fossem as sensações relatadas.
dominante sustenta, não agimos propositadamente porque experimenta-
mos sensações, nem temos estremecimentos ou arrepios por sermos «Prazer» é pois usado por vezes para indicar determinadas espé-
impedidos de actuar propositadamente. cies de disposições, como o júbilo e o divertimento. É usado de acordo
com elas para completar descrições de certas sensações como estreme-
Vale a pena assinalar, antes de abandonarmos esta parte do
cimentos, ardores e arrepios. Mas há outro sentido no qual dizemos que
assunto, que podemos provocar em nós próprios sensações genuínas
uma pessoa que está absorvida em certa actividade, como o g o l f ou a
e agudas pelo simples facto de nos imaginarmos em circunstâncias de
argumentação, e que t e m relutância em p a r a r essa actividade ou até
agitação. Os leitores de romances e os espectadores de t e a t r o sentem
em pensar em qualquer o u t r a coisa, «tem prazer em» ou «experimenta
verdadeiras angústias e acelerações reais do coração, t a l como podem
satisfação» em fazer o que está a fazer, embora não esteja abalada ou
derramar lágrimas verdadeiras e carregar o sobrolho sem fingimento. f o r a de s i em qualquer g r a u e não esteja p o r t a n t o a experimentar
Mas as suas tristezas e indignações são fantasiadas. Não afectam o qualquer sensação particular.
108 109
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO

Sem dúvida que o jogador de g o l f absorvido no jogo experimenta corações. Só os teóricos são suficientemente m a l orientados para identi-
numerosos estremecimentos e ardores de arrebatamento, excitação e f i c a r deleites ou satisfações com sensações. Que esta classificação é
auto-aprovação no decorrer do jogo. Mas se lhe perguntarem se expe- disparatada demonstra-se pelos factos 1) - de que t e r satisfação em
r i m e n t o u satisfação nos períodos do jogo entre a ocorrência de tais fazer escavações não é fazê-las e, ao mesmo tempo, t e r u m a sensa-
sensações, obviamente ele responderá que sim, porque teve satisfação ção (agradável); e 2) - que o deleite, divertimento, etc. são disposições
de t e n t a r concentrar-se no jogo. Concentrou-se nele sem se forçar a isso. e que estas não são sensações. Demonstra-se o mesmo pelas seguintes
Provavelmente teria sido u m esforço concentrar-se em qualquer outra considerações: faz sempre sentido perguntar, relativamente a qualquer
coisa. sensação física ou psíquica, se o seu possuidor experimentou satisfação
Neste sentido, ter satisfação em fazer alguma coisa, querer fazê-la em a ter, não gostou de a t e r ou se preocupou de qualquer modo
e não querer fazer qualquer outra, são modos diferentes de e x p r i m i r com ela. A maior parte das sensações físicas e psíquicas não dão
a mesma coisa. E este próprio facto linguístico exemplifica u m satisfação nem causam aversão. É até excepcional dar-se-lhes qualquer
ponto importante. U m a aspiração não é a mesma coisa, nem sequer atenção. Isto aplica-se a frémitos, estremecimentos e ardores t a n t o
é semelhante, a u m estremecimento ou a u m ardor. Mas o facto de uma como a excitações. A s s i m , mesmo se o que u m a pessoa sentiu é
pessoa t e r inclinação para fazer o que está a fazer e não ter inclinação adequadamente descrito como u m frémito de prazer ou, mais especifi-
pelo contrário, pode ser expresso indiferentemente por «ele t e m satis- camente, como u m f o r m i g u e i r o de divertimento, é ainda adequado
fação em fazê-lo», por «ele está a fazer o que quer fazer» e por «ele perguntar se gostou ou não da anedota mas também se gostou da
não quer parar». É uma propensão preenchida para a g i r e reagir na sensação de hilaridade que ela lhe provocou. Não ficaríamos m u i t o
qual estas acções e reacções são consideradas. surpreendidos ao ouvi-la responder que gostou t a n t o da anedota que a
Vemos assim que «prazer» pode ser usado para significar pelo sensação de hilaridade chegou a ser desconfortável, ou ao o u v i r o u t r a
menos dois tipos completamente diferentes de coisas. pessoa que esteve a chorar de desgosto dizer que o acto de chorar, em
(1) Há o sentido no qual esta palavra é comummente substituída si, f o i ligeiramente agradável. Discuto na alínea 4) deste Capítulo os
por «ter satisfação» e «gostar». Dizer que u m a pessoa teve satisfação dois motivos principais pelos quais as disposições são erradamente
em fazer escavações não é dizer que esteve a fazer escavações e a classificadas como sensações. Os motivos para classificar «satisfação»
experimentar, ao mesmo tempo, qualquer o u t r a coisa como acompanha- como vocábulo para u m a sensação são paralelos, embora não idênticos,
mento ou efeito de fazer escavações; é dizer que se entregou de todo o visto que t e r satisfação não é uma disposição. Pode estar-se ou não
coração à sua tarefa, isto é, que se entregou querendo entregar-se s na disposição de t e r satisfação com alguma coisa.
não querendo fazer qualquer o u t r a coisa (ou nada) em vez disso. O Considerações semelhantes que não necessitam de ser desenvolvidas
seu acto de fazer escavações f o i uma propensão realizada. Fazer esca- m o s t r a r i a m como «aversão», «querer» e «desejo» não denotam angústia
vações f o i para ela u m prazer e não u m veículo para o seu prazer. ou t o r t u r a s (Deveria mencionar-se que «dor», no sentido em que digo
(2) Há o sentido de «prazer» no qual esta palavra é comummente que tenho dores no estômago, não é o oposto de «prazer». Neste sentido,
substituída por «encanto», «transporte», «exultação» e «júbilo». Todos uma dor é uma sensação de u m género especial que, normalmente, não
estes são nomes de disposições que significam agitações. «Demasiada- gostamos de t e r ) .
mente encantado para falar coerentemente» e «doido de alegria» são Gostar e não gostar, alegria e desgosto, desejo e aversão não são
expressões legítimas. E x i s t e m certas sensações ligadas a tais disposi- portanto episódios «internos» que nem o seu possuidor testemunha
ções que são normalmente descritas como «frémitos de prazer» ou nem as outras pessoas presenciam. Não são de modo a l g u m episódios
«ardores de prazer» e assim sucessivamente. Deve notar-se que, embora e p o r t a n t o não fazem parte das espécies de coisas que podem ou não
falemos de frémitos de prazer que nos atravessam ou de ardores de ser presenceadas. Certamente que u m a pessoa pode, usualmente, mas
prazer que aquecem os nossos corações, não falamos vulgarmente de não sempre, dizer sem investigações se t e m ou não prazer numa coisa
prazeres ou de u m prazer que nos atravessa ou que aquece os nossos e qual é a sua disposição nesse momento. Mas outras pessoas também
110 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA EMOÇÃO 111

o podem dizer, desde que a pessoa em questão seja franca para elas do hábito e ao mesmo tempo notar que o estou a fazer e mesmo
e não use u m a máscara. Se a pessoa não é franca com os outros nem considerar como o acto está a ser praticado. Posso ser u m espectador
consigo própria, ambas as partes terão que fazer uma investigação para das minhas acções habituais e reflexas e mesmo seu diagnosticador
saber isso e é mais provável que as outras pessoas o consigam do que a sem que estas acções deixem de ser automáticas. Mais ainda, esta
própria. atenção perturba por vezes o automatismo.
Reciprocamente, as acções feitas por motivos podem ainda ser
(7) O CRITÉRIO DOS MOTIVOS singelas no sentido de que quem as pratica não conjugou, nem prova-
velmente poderia conjugar, a sua acção com uma operação secundária
Temos argumentado até agora que explicar uma acção feita por de dizer a s i próprio ou aos outros o que está a fazer, ou porque o está
certo m o t i v o não é relacioná-la com uma causa oculta, mas s i m subme- a fazer. N a verdade, mesmo quando uma pessoa faz comentários inte-
tê-la a u m a propensão de tendência de comportamento. Mas isto não é riores ou verbais sobre as acções decorrentes, esta segunda operação
suficiente. E x p l i c a r uma acção como devida a u m hábito, a u m instinto de comentar é habituaimente, ela própria, singela. A pessoa não pode
ou a u m reflexo enquadra-se nesta fórmula, embora façamos uma também comentar os seus comentários aã infinitum. O sentido em que
distinção quanto às acções feitas, digamos por vaidade ou afeição, das uma pessoa está a pensar no que está a fazer, quando a sua acção não
feitas automaticamente por qualquer daqueles mesmos motivos. Mas se classifica como automática mas s i m feita por u m motivo, é que ela
não se deve supor que as duas classes são demarcadas e separadas uma actua mais ou menos cuidadosamente, com sentido crítico, consistente
da o u t r a como o dia equatorial da noite equatorial. Fundem-se u m a na e propositadamente, advérbios estes que não significam a ocorrência
o u t r a como na I n g l a t e r r a o dia se funde na noite. A amabilidade funde- prévia ou simultânea de operações adicionais de resolver, planear ou
-se na delicadeza através do crepúsculo da consideração e a delicadeza cogitar, mas s i m que a acção não é feita inconscientemente, mas s i m
funde-se na disciplina através do crepúsculo da etiqueta. A disciplina n u m certo estado de espirito positivo. A descrição deste estado não
de u m soldado entusiasta não é a mesma de u m soldado simplesmente necessita de mencionar quaisquer episódios além do próprio acto, se
dócil. bem que o assunto não fique esgotado por esta referência.
Quando dizemos que alguém age de certo modo pela simples força E m resumo, a classe de acções feitas por motivos coincide com a
do hábito, parte do que temos em mente é que, em circunstâncias classe de acções que se podem descrever como mais ou menos i n t e l i -
semelhantes, esse alguém actua sempre exactamente da mesma manei- gentes. Qualquer acto feito por u m m o t i v o pode ser apreciado como
r a ; que actua desse modo quer esteja ou não a prestar atenção ao que relativamente sagaz ou estúpido e vice-versa. A s acções feitas por
está a fazer; que não está a t o m a r cuidado com a sua actuação ou a simples força de hábito não são caracterizadas como sensatas ou tolas,
t e n t a r co rri g i- la ou melhorá-la, e que pode, depois do acto consumado, se bem que quem pratica a acção possa m o s t r a r inteligência ou estu-
desconhecer que o fez. Dá-se muitas vezes a estas acções o nome pidez ao f o r m a r ou não e x t i r p a r o hábito.
metafórico de «automáticas». Os hábitos automáticos são muitas vezes Mas isto vem levantar mais uma questão. Duas acções feitas pelo
inculcados por simples disciplina e só por u m a contra-disciplina se pode mesmo motivo podem m o s t r a r dois graus diferentes de competência,
e x t i r p a r o hábito formado. e duas acções com o mesmo g r a u de competência podem ser feitas por
Mas quando dizemos que alguém age de certo modo por a m b i - motivos diferentes. Ser entusiasta de remo não implica ser perfeito
ção ou sentido de justiça, negamos implicitamente que a acção f o i ou eficiente neste desporto, e de duas pessoas igualmente exímias nele
meramente automática. Insinuamos em p a r t i c u l a r que a pessoa que uma pode remar por desporto e a o u t r a por uma questão de saúde ou
p r a t i c o u a acção estava de algum modo a pensar ou a prestar de glória. Isto é, as capacidades com que as coisas são feitas são
atenção ao que estava a fazer e que não t e r i a agido desse modo se não características pessoais de uma espécie diferente dos motivos ou incli-
estivesse a pensar no que estava a fazer. Mas a verdadeira força da nações que são as razões porque são feitas; e distinguimos os actos
expressão «a pensar no que está a fazer» é u m pouco enganadora. feitos pela força do hábito das acções não automáticas pelo facto de
Certamente que posso subir uma escada a dois e dois por força que estas últimas são exercícios simultâneos de ambos. A s coisas
112 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇAO 113

feitas em completa inconsciência não são feitas com método nem por -disciplina podem ser mais eficientes do que as empregadas por u m a
razões, embora possam ser eficazes e incluir processos complexos. pessoa cujo ideal era a, elevação de sentimentos. Contudo, no caso do
A o a t r i b u i r u m m o t i v o específico a uma pessoa, estamos a des- proprietário do hotel, t e r i a havido uma inclinação cuja intensidade
crever as espécies de coisas que ela t e m tendência para tentar fazer relativa, vis-à-vis das outras inclinações, não seria criticada nem
ou ocasionar, ao passo que ao a t r i b u i r - l h e uma competência específica regulada, ou seja, o seu desejo de se t o r n a r rico. Este m o t i v o
estamos a descrever os métodos e a eficiência dos métodos por meio podia ser, embora não houvesse necessidade disso, m u i t o f o r t e nele. Se
dos quais conduz os seus esforços. Ê a distinção entre objectivos e assim fosse, podíamos chamar-lhe «violento», mas não lhe chamaríamos
técnicas. A expressão mais comum de «meios e fins» é muitas vezes m a l ainda «sensato». Para generalizar este ponto, uma parte do que se quer
aplicada. Se u m homem diz uma graça sarcástica, a sua acção não pode significar quando se diz que qualquer inclinação é excessivamente
ser dividida em degraus e patamares e o juízo segundo o qual ela f o i f o r t e em determinada pessoa é que essa pessoa t e m tendência para
feita por ódio pode ainda ser distinguido do juízo de que f o i feita por a g i r de acordo com essa inclinação mesmo quando também se sente
ingenuidade. inclinada a enfraquecer essa inclinação, agindo deliberadamente de
Aristóteles compreendeu que ao f a l a r de motivos estamos a falar modo diferente. U m homem é escravo da nicotina ou de u m p a r t i d o
de predisposições de uma certa espécie, espécie esta diferente da com- político, se não consegue fazer as diligências suficientes pelas quais
petência. Compreendeu também que qualquer motivo, diferentemente apenas a intensidade destes motivos poderia ser reduzida, mesmo quan-
de qualquer competência, é uma propensão da qual fez sentido dizer do t e m uma segunda ordem de inclinações para a reduzir. O que está a
que em determinado homem, em determinada circunstância da vida, ser descrito neste caso faz parte do que vulgarmente se chama auto-
esse motivo é demasiadamente forte, demasiadamente fraco ou nem -domínio e quando o que vulgarmente se denomina «impulso» é
uma coisa nem outra. Parece sugerir que, ao avaliarmos a m o r a l como irresistível, e portanto incontrolável, é uma tautologia dizer que é
distinta da técnica, os méritos e deméritos das acções, estamos a co- demasiadamente forte.
mentar em excesso a intensidade própria ou inadequada das inclinações
de que são os exercícios. Não estamos agora a preocupar-nos com (8) AS RAZÕES E AS CAUSAS DAS ACÇÕES
questões de ética ou com perguntas acerca da natureza das questões
éticas. O que é relevante para a nossa investigação é o facto, reconheci- A r g u m e n t e i que explicar uma acção como feita por u m m o t i v o
do por Aristóteles como p r i m o r d i a l , de que as intensidades relativas específico não é descrever uma acção como efeito de u m a causa
das inclinações são variáveis. Mudanças de ambiente, de companhia, específica. Os motivos não são acontecimentos e não são portanto do
idade e saúde, críticas externas e exemplos, podem modificar o equilí- tipo adequado às causas. A expansão de uma expressão-motivo é uma
brio do poder das inclinações que constituem uma faceta do carácter de proposição do género lei e não a descrição de u m acontecimento.
uma pessoa. Mas a sua preocupação a respeito desta faceta pode modi- Mas o facto geral de que uma pessoa está disposta a agir desta ou
dicá-la. U m a pessoa pode achar que t e m m u i t o entusiasmo por conver- daquela maneira em tais ou tais circunstâncias não conta para essa
sas fúteis e que não presta a devida atenção ao bem-estar das outras pessoa fazer uma coisa p a r t i c u l a r n u m determinado momento, t a l como
pessoas e pode, embora não necessite de o fazer, desenvolver uma incli- o facto de o v i d r o ser quebrável não conta para o facto de se t e r p a r t i d o
nação de segunda ordem para fortalecer algumas das suas propensões às dez horas da noite. T a l como o impacto da pedra às dez horas da
mais fracas e enfraquecer algumas das mais fortes. Pode tornar-se não noite f o i a causa de o v i d r o se p a r t i r , também qualquer antecedente de
apenas u m crítico académico, mas u m modificador executivo do seu uma acção causa ou ocasiona que a pessoa a pratique quando e onde a
próprio carácter. Evidentemente que a sua segunda ordem de motivos faz. Por exemplo, u m homem passa o sal ao seu vizinho de mesa, por
para disciplinar a p r i m e i r a ordem de motivos pode ainda ter por motivo delicadeza. Mas a sua delicadeza é simplesmente a sua inclinação para
a prudência ou a economia. U m proprietário de hotel ambicioso pode passar o sal quando ele é preciso, assim como executar milhares de
disciplinar-se em amabilidade, consideração e probidade, apenas pelo outros actos de cortesia da mesma espécie geral. Deste modo, além da
desejo de aumentar os seus rendimentos, e as suas técnicas de auto- pergunta «Porque razão ele passou o sal?», há uma pergunta comple-

I. P. — 8
114 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A EMOÇÃO 115

tamente diferente: «O que é que fez passar o sai àquele vizinho nesse impulsos, descritos como sensações, que impelem à acção, são mitos
momento?» A esta pergunta responde-se provavelmente com «Ele ouviu para-mecânicos. Isto não significa que as pessoas nunca actuem n u m
o seu vizinho pedi-lo» ou «Ele reparou no olhar do seu vizinho percor- impulso de momento, mas apenas que não devíamos tolerar as histórias
rendo a mesa» ou qualquer coisa deste género. tradicionais acerca dos antecedentes ocultos tanto das acções delibera-
Estamos perfeitamente familiarizados com as espécies de aconte- das como das impulsivas.
cimentos que induzem ou ocasionam que as pessoas façam coisas. Se Consequentemente, se bem que a descrição do comportamento de
não o estivéssemos, não poderíamos levá-las a fazer o que desejamos mais alto nível das pessoas requeira certamente uma menção às emo-
c as relações vulgares entre as pessoas não poderiam existir. Os com- ções nos dois primeiros sentidos, esta menção não implica inferências
pradores não poderiam comprar, os oficiais não poderiam comandar, de estados ou processos ocultos interiores. A minha descoberta dos
os amigos não poderiam conversar, as crianças não poderiam brincar, motivos e disposições do leitor não é análoga à descoberta não
a menos que soubessem como levar as outras pessoas e elas próprias a verificável do vedor; é em parte análoga às minhas induções sobre os
fazer coisas em conjunturas particulares. hábitos, instintos e reflexos do leitor, em parte às minhas inferências
O objectivo de mencionar estas importantes trivialidades é duplo. sobre as suas doenças e dipsomania. Mas em circunstâncias favoráveis
O p r i m e i r o é m o s t r a r que o facto de uma acção t e r uma causa não entra descubro mais directamente as disposições e inclinações do leitor. Oiço
em conflito com o facto de ela ter u m motivo, mas está já prescrito as suas confissões coloquiais, as suas interjeições e o seu t o m de voz.
na prótase da proposição hipotética que estabelece o motivo. O segundo Vejo e compreendo os seus gestos e expressões faciais. Digo «compre-
é m o s t r a r que, quando chegamos a querer ouvir falar das causas ocultas endo», não em sentido metafórico, porque as interjeições, tons de voz,
e fantásticas das acções, já sabemos exactamente que espécies de gestos e esgares são em si próprios meios de comunicação. Aprendemos
acontecimentos públicos e familiares são as coisas que levam as pessoas a produzi-los não propriamente por estudo mas por imitação. Sabemos
a agir de modos particulares em momentos particulares. como simular, fingindo-os, e sabemos em certa medida evitar mos-
Se a d o u t r i n a do fantasma na máquina fosse verdadeira, não só trarmo-nos, revestindo máscaras. Não é só pelo seu vocabulário que
as pessoas seriam mistérios absolutos umas para as outras, como os estrangeiros são difíceis de compreender. A minha descoberta dos
seriam também absolutamente insociáveis. N a verdade, são relativa- meus próprios motivos e disposições não é diferente, em espécie,
mente sociáveis e relativamente fáceis de compreender. embora esteja m a l colocado para ver os meus próprios esgares e gestos
ou para o u v i r o meu t o m de voz. Os motivos e as disposições não são
(9) CONCLUSÃO as espécies de coisas que poderiam encontrar-se entre as intimações
directas da consciência ou entre os objectos de introspecção, como as
Há dois sentidos completamente diferentes do termo «emoção» formas fictícias do Acesso Privilegiado são geralmente descritas. Não
pelos quais explicamos o comportamento das pessoas por referência às são «experiências», t a l como os hábitos ou doenças também não são
emoções. N o p r i m e i r o sentido referimo-nos aos motivos e inclinações «experiências».
pelos quais as acções mais ou menos inteligentes são feitas. No
segundo sentido referimo-nos às disposições, incluindo as agitações
ou perturbações das quais alguns movimentos sem objectivo são s i -
nais. E m nenhum destes sentidos afirmamos ou insinuamos que o
comportamento manifesto é o efeito de u m a perturbação sentida na
corrente da consciência da pessoa que pratica a acção. N u m terceiro
sentido de «emoção», angústias ou sofrimentos são sensações ou emo-
ções mas não são, salvo per accidens, coisas por referência às quais
possamos explicar o comportamento. São coisas que requerem diagnós-
tico e não coisas necessárias ao diagnóstico do comportamento. Os
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 117

do que dizer que não é usada para u m episódio. E x i s t e m muitas espécies


diferentes de palavras de predisposição. Os passatempos não são a
mesma espécie de coisas que os hábitos e ambos são diferentes da habi-
lidade, da afectação, dos costumes, das fobias e dos negócios. A constru-
ção de u m ninho é uma qualidade diferente do facto de ele ser forrado de
penas, t a l como ser bom condutor de electricidade é diferente de ser
elástico.
Há no entanto uma importância especial em chamar a atenção para
CAPITULO V o facto de que os conceitos principais em cujos termos descrevemos
especificamente o comportamento humano são conceitos predisposicio-
nais, dado que a voga da fábula para-mecânica levou muitas pessoas
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS a i g n o r a r o modo como estes conceitos realmente se comportam e a
interpretá-los como artigos das descrições de causas ocultas e efeitos.
Frases que contêm estas palavras predisposicionais f o r a m interpretadas
como sendo descrições categóricas de factos particulares, mas não teste-
(1) PRÓLOGO munháveis, em vez de serem matérias de facto experimentáveis, abertas
à hipótese e a que chamarei afirmações semi-hipotéticas. O antigo erro
Já t i v e ocasião de a f i r m a r que u m certo número de palavras de t r a t a r o termo «Força» como denotando uma actividade oculta que
que usamos comummente para explicar e descrever o comportamento exerce força, f o i desmascarado pelas ciências físicas, mas os seus cor-
das pessoas significa predisposições e não episódios. Dizer que uma respondentes sobrevivem em m u i t a s teorias do espírito e talvez estejam
pessoa sabe qualquer coisa ou aspira ser alguma coisa não é dizer apenas moribundos na Biologia. 0 alcance deste ponto não deve ser
que em determinado momento essa pessoa está a fazer ou a sofrer seja o exagerado. O vocabulário que usamos para descrever especificamente
que for, mas sim que é capaz de fazer certas coisas quando surje a o comportamento humano não consiste apenas em palavras predispo-
necessidade e que tem propensão para fazer e sentir certas coisas em sicionais. O j u i z , o professor, o romancista, o psicólogo e o homem da
situações de certa espécie. r u a são também obrigados a empregar uma larga gama de palavras
episódicas, quando f a l a m de como as pessoas agem ou reagem ou deve-
Isto é, em si, m u i t o mais do que u m facto sem interesse da gra-
r i a m fazê-lo. Estas palavras episódicas, não menos do que as palavras
mática vulgar. Os verbos «saber», «possuir» e «aspirar» não se compor-
predisposicionais, pertencem a uma variedade de tipos e veremos que
t a m como os verbos «correr», «acordar» ou «picar». Não podemos dizer:
o esquecimento de algumas diferenças de tipo alimentou e f o i alimen-
«Ele soube isto e aquilo durante dois minutos, depois parou e começou
tado pela identificação do m e n t a l com o fantástico. Adiante, ainda
outra vez a saber depois de u m momento de descanso», «Ele aspirou
neste capítulo, discutirei dois tipos principais de palavras episódicas
gradualmente a ser bispo» ou «Ele está agora comprometido em ter
mentais. Não sugiro que não existam outras.
uma bicicleta». N e m é uma particularidade das pessoas que descrevemos
em termos de predisposição. Usamos mais estes termos para descrever
animais, insectos, cristais e átomos. Estamos constantemente a querer (2) A LÓGICA DAS FRASES PREDISPOSICIONAIS
falar do que se pode esperar que aconteça, assim como do que efectiva-
mente acontece. Estamos constantemente a querer dar explicações de Quando dizemos que uma vaca é u m r u m i n a n t e ou que u m homem
incidentes assim como a relatá-los, e estamos constantemente a querer é u m fumador de cigarros, não estamos a dizer que a vaca está a r u m i -
dizer como é que as coisas podem ser conduzidas e a dizer o que está nar agora ou que o homem está a f u m a r u m cigarro agora. Ser u m
a acontecer com elas. Aliás, classificar simplesmente uma palavra como ruminante é ter tendência para r u m i n a r de vez em quando e ser fumador
significando uma predisposição não é ainda dizer muito mais sobre ela de cigarros é ter o hábito de f u m a r cigarros.
118 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 119

A tendência para r u m i n a r e o hábito de f u m a r cigarros podia não diferentes. Os teóricos que reconhecem que «saber» e «acreditar» são
existir se não existissem certos processos ou episódios como r u m i n a r comummente usados como verbos predisposicionais, estão aptos não
e f u m a r cigarros. «Ele está a f u m a r u m cigarro agora» não diz a mesma a n o t a r este ponto mas a supor que devem existir actos correspondentes
espécie de coisa que «Ele é u m fumador de cigarros», mas se afirmações de saber ou apreender e estados de acreditar. E o facto de que uma pes-
como a p r i m e i r a não fossem por vezes verdadeiras, afirmações como soa nunca pode encontrar outra a executar estes actos erroneamente
a segunda não poderiam ser verdadeiras. A frase «fumar u m cigarro» postulados, ou em tais estados, leva-a a considerar que estes actos
t e m usos episódicos e, derivados destes, usos de afirmação de tendências. e estados se localizam na g r u t a secreta da pessoa que p r a t i c a a acção.
Mas isto nem sempre acontece. Há m u i t a s expressões de afirmação de U m a suposição semelhante levaria à conclusão de que se ser solici-
tendências e capacidades que não podem ser também empregadas em tador é u m a profissão, devem verificar-se certas actividades profissio-
descrições de episódios. Podemos dizer que qualquer coisa é elástica, nais de solicitar, e como nunca se encontra u m solicitador nesse acto,
mas quando nos pedem que digamos por meio de que acontecimentos mas s i m em muitas espécies de coisas diferentes, como defender pessoas
especiais se realiza esta potencialidade, temos de mudar o nosso voca- e reconhecer assinaturas, a sua única actividade profissional de solicitar
bulário e dizer que o objecto se c o n t r a i depois de ter sido esticado, que deve ser de t a l espécie que é como que feita por detrás de uma p o r t a
alarga depois de t e r sido comprimido ou que recentemente saltou quando fechada à chave. A tentação de i n t e r p r e t a r palavras predisposicionais
submetido a u m impacto súbito. Não há nenhum verbo activo corres- como palavras episódicas e ainda outra tentação de postular que qual-
pondente a «elástico», no sentido em que «está a ruminar» corresponde quer verbo que t e m u m uso predisposicional deve t e r também u m uso
a «é u m ruminante». Nern a razão deste não paralelismo é difícil episódico correspondente são duas fontes de u m e mesmo mito? Mas não
de encontrar. Há muitas reacções diferentes que esperamos de u m são as suas únicas fontes.
objecto elástico, enquanto, resumidamente, há apenas uma que espe-
É necessário discutir agora com brevidade uma objecção geral que
ramos de uma c r i a t u r a que nos f o i descrita como ruminante. De igual
é feita por vezes a todo o programa de falar de capacidades, tendências,
modo, há uma larga gama de acções e reacções previsíveis da descrição
sujeições e propensões. Diz-se tautologicamente que as potencialidades
de alguém como «ávido», enquanto, resumidamente, apenas esperamos
não são nada de efectivo. Não existem no mundo, além do que existe
uma espécie de acção de alguém descrito como «um fumador de cigar-
e acontece, quaisquer outras coisas que poderiam ser ou acontecer. Dizer
ros». E m resumo, algumas palavras predisposicionais são altamente
de u m homem que está a d o r m i r que sabe ler francês, ou de u m torrão
genéricas o u determináveis, enquanto outras são altamente especí-
de açúcar seco que é solúvel na água parece pretender a t r i b u i r u m a t r i -
ficas ou determinadas. Os verbos com que descrevemos os diferentes
buto e depois armazenar esse a t r i b u t o . Mas u m a t r i b u t o ou caracteriza
exercícios das tendências, capacidades e sujeições genéricas diferem
ou não caracteriza uma coisa. Nãc pode ser simplesmente uma conta
dos verbos com que nomeamos as predisposições, enquanto os verbos
em depósito. Ou, por outras palavras, uma frase i n d i c a t i v a e a f i r m a t i v a
correspondentes às predisposições altamente específicas podem ser os
com sentido deve ser ou verdadeira ou falsa. Se é verdadeira, a f i r m a
mesmos. U m amassador pode estar a amassar pão agora,mas u m mer-
que uma determinada coisa ou coisas t e m ou têm u m certo carácter. Se
ceeiro não pode ser descrito como estando agora a «fazer mercearia»,
é falsa, então a coisa perde esse carácter. Mas não há tempo intermé-
mas apenas como estando a vender açúcar, a pesar chá ou a embrulhar
dio entre uma afirmação ser verdadeira ou falsa, e assim não há nenhum
manteiga neste momento. E x i s t e m palavras intermédias. Com restrições
modo pelo qual u m assunto descrito por uma afirmação possa esqui-
falaremos de u m médico empenhado agora em medicar alguém, embora
var-se à disjunção de ser simplesmente capaz ou sujeito a ter ou care-
não possamos f a l a r de u m solicitador a solicitar agora, mas apenas
cer de carácter. U m relógio pode d a r a hora que é ou a que não é. Mas
a fazer u m esboço de uma a r b i t r a g e m ou a defender u m cliente.
não pode dar uma hora que podia ser correcta mas que não é correcta
Palavras predisposicionais como «saber», «acreditar», «aspirar»,
nem incorrecta.
«inteligente» e «humorista» são palavras predisposicionais determiná-
veis. Significam capacidades, tendências ou propensões para fazer, não Esta objecção é válida para uma espécie de explicação destas
apenas coisas de u m a única espécie, mas coisas de muitas espécies afirmações, como a de que o açúcar é solúvel ou que o homem adorme-
120 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 121

eido sabe ler francês, isto é, uma explicação que interpreta tais «uma lei», a menos que seja uma asserção hipotética «variável» ou
afirmações como afirmações de factos positivos extra. N a realidade, «aberta», isto é, uma frase cujo p r i m e i r o termo pode i n c l u i r pelo menos
este f o i o erro das teorias da antiga Escola, que i n t e r p r e t a m palavras uma expressão como «qualquer» ou «sempre que». É em v i r t u d e desta
predisposicionais como designando acções ou causas ocultas, isto é, característica que uma lei se aplica a exemplos, se bem que o seu texto
coisas que t i n h a m l u g a r numa espécie de limbo. Mas a verdade é os não mencione. Se sei que qualquer pêndulo mais comprido que o u t r o
que frases que contêm palavras como «podia», «seria capaz de» e oscila mais lentamente do que u m mais pequeno, numa quantidade pro-
«faria... se» não descrevem factos passados n u m limbo, o que não i m - | porcional ao seu excesso de comprimento, ao encontrar u m pêndulo dez
plica que tais frases não desempenhem o seu próprio papel. O papel de centímetros maior do que u m o u t r o pêndulo particular, posso i n f e r i r
descrever factos positivos é apenas uma das muitas funções das frases. em que proporção a sua oscilação será mais lenta. Saber a lei não i m -
Não é necessário qualquer argumento para demonstrar que as plica que já se tenha encontrado estes dois pêndulos. O estabelecimento
frases interrogativas, imperativas e optativas são usadas com fins da lei não implica u m a descrição da existência desses dois pêndulos.
diferentes dos de p a r t i c i p a r ao interlocutor a existência ou ocorrência Por o u t r o lado, saber o u mesmo compreender a lei implica saber que
de coisas. Infelizmente torna-se necessário apresentar alguns argumen- podem e x i s t i r certos factos positivos particulares que se ajustam à
tos para m o s t r a r que existem muitas frases indicativas com sentido prótase e p o r t a n t o se ajustam também à apódose da l e i . Temos de
(afirmativas e negativas) que têm outras funções além da de descrever aprender a usar as afirmações de factos positivos particulares antes
factos. A i n d a subsiste a suposição absurda de que todas as asserções, de aprendermos a usar as asserções das leis que se aplicam ou poderiam
verdadeiras ou falsas, a f i r m a m ou negam que o objecto mencionado ou aplicar a esses factos. A afirmação das leis pertence a u m nível dife-
um conjunto de objectos possuem u m a t r i b u t o específico. De facto, algu- rente e mais complicado do da afirmação dos factos que se ajustam
mas asserções exprimem ideias deste género e outras não. Os livros de a elas.
aritmética, álgebra, geometria, jurisprudência, filosofia, lógica f o r m a l As afirmações das leis são verdadeiras ou falsas, mas não a f i r m a m
e teoria económica contêm poucas, se é que contêm algumas, asserções verdades ou falsidades do mesmo t i p o das expressas pelas afirmações
factuais. É p o r isso que chamamos «abstractos» a estes assuntos. Os dos factos a que se aplicam ou a que se supõe aplicarem-se. Têm f u n -
livros sobre física, meteorologia, bacteriologia e filologia comparada ções diferentes. A diferença crucial pode ser demonstrada do seguinte
contêm m u i t o poucas destas asserções, se bem que nos digam onde modo: pelo menos parte do objectivo de tentar estabelecer leis é des-
podem ser encontradas. Os manuais técnicos, trabalhos de crítica, ser- cobrir como i n f e r i r de factos positivos particulares outros factos da
mões, discursos políticos e mesmo os guias de Caminho de Ferro podem mesma natureza, como explicar factos positivos particulares por refe-
ser mais ou menos instrutivos e sê-lo numa grande variedade de aspec- rência a outros e como provocar e evitar estados particulares. U m a lei
tos, mas ensinam-nos algumas verdades singulares, categóricas, a t r i b u - é usada, por assim dizer, como u m cartão de assinante que autoriza
tivas ou relacionais. o seu possuidor a passar das afirmações de factos concretos para outras
Deixando de lado a maior parte das frases que têm u m papel afirmações também concretas. Permite-lhe também d a r explicações
diferente do de descrever factos, trataremos agora das leis. Porque de factos dados e provocar estados desejados, usando o que existe ou
embora as asserções que mencionam que os indivíduos têm capacidades, acontece. N a verdade, não admitiríamos que u m estudante t i n h a apren-
susceptibilidades, tendências e outras qualidades não sejam em s i pró- dido uma lei se o mais que ele fosse capaz de fazer fosse recitá-la. T a l
prias estabelecimentos de leis, têm características que podem apresen- como para que u m estudante possa ser classificado como sabendo as
t a r algumas particularidades das asserções-lei em discussão. regras da gramática, da multiplicação, do xadrez ou da etiqueta é
As leis são muitas vezes estabelecidas em frases gramaticais no necessário que ele esteja apto a aplicar essas regras em operações con-
indicativo simples, mas podem também ser estabelecidas, entre outras í cretas, também para ser qualificado como conhecedor de u m a l e i deve
formas, em orações hipotéticas do t i p o «qualquer coisa que seja deste ser capaz e e3tar p r o n t o a aplicá-la em inferências concretas de e para
e daquele modo é assim e assim» ou «se u m corpo é deixado sem apoio factos positivos particulares, explicando-os e talvez provocando-os ou
cai a t a l velocidade acelerada». Não chamamos a uma oração hipotética evitando-os. E n s i n a r uma lei é, pelo menos inter alia, ensinar como

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
B I B L I O T E C A
122 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 123

fazer coisas novas, teórica e praticamente, com factos positivos par- «Para que serve esta terceira entidade não observada, mas postulada?»,
ticulares. a única resposta dada é «Para nos p e r m i t i r demonstrar, a p a r t i r das
Insiste-se por vezes em que, se descobrirmos uma lei que nos habi- doenças, a existência das bactérias». A legitimidade da inferência é
l i t a a i n f e r i r de doenças de certas espécies a existência de bactérias suposta durante todo o tempo. O que é gratuitamente subentendido
de certos espécies, é porque descobrimos uma nova existência, ou é qualquer coisa que parece reduzir as orações começadas por «por-
seja, uma relação causal entre tais bactérias e tais doenças e que tanto» e «se qualquer» a orações do tipo «eis um...», ou seja, oblite-
consequentemente sabemos agora o que não sabíamos antes, que não rando as diferenças de funções entre argumentos e narrativas. Mas
existem apenas pessoas doentes e bactérias, mas também que existe t a l como u m bilhete de Caminho de Ferro não pode ser «reduzido»
uma ligação intangível e invisível entre elas. A s s i m como os comboios a contrapartidas singulares das viagens que são possíveis por meio
não podem mover-se a não ser que existam linhas sobre as quais eles se dele e t a l como as viagens de Caminho de Ferro não podem ser «redu-
movam, também se alega que os bacteriologistas não podem passar da zidas» a contrapartidas singulares das estações de Caminho de Ferro
observação clínica dos pacientes à predição das observações das bac- em que essas viagens começam e acabam, assim as afirmações de leis
térias ao microscópio, a menos que exista, se bem que não possa ser não podem ser «reduzidas» às contrapartidas das inferências e expli-
observado, u m laço efectivo entre os objectos destas observações. cações que p e r m i t e m e as inferências e explicações não podem ser
Neste caso não há objecção ao emprego da expressão f a m i l i a r «reduzidas» às contrapartidas das afirmações concretas que consti-
«relação causal». Os bacteriologistas descobrem relações causais entre t u e m a sua meta. O papel da oração de a f i r m a r factos é diferente do
as bactérias e as doenças, visto que isto é apenas uma maneira de dizei' papel de a f i r m a r u m argumento a p a r t i r de uma afirmação concreta
que estabelecem leis e desse modo fornecem a s i próprios «bilhetes- para outra afirmação concreta e ambos são diferentes da função de
-inferência» que os h a b i l i t a m a i n f e r i r as doenças a p a r t i r das bacté- dar garantias para tais argumentos. Temos de aprender a usar frases
rias, explicar doenças por afirmações a respeito das bactérias e assim com a p r i m e i r a função antes de aprendermos a usá-las com a segunda,
sucessivamente. Mas dizer que se o bacteriologista descobriu u m a lei e temos de aprender a usá-las no p r i m e i r o e segundo sentido antes
encontrou u m a terceira existência não observável, é simplesmente que possamos usá-las no terceiro. È certo que há m u i t a s outras funções
recair no velho hábito de i n t e r p r e t a r afirmações hipotéticas gerais desempenhadas pelas orações, que não nos interessa agora considerar.
como afirmações categóricas particulares. È como dizer que uma regra Por exemplo, as orações que ocupam estas páginas não têm nenhumas
de gramática é u m nome e x t r a mas não mencionado de u m verbo, ou das funções que têm vindo a descrever.
que u m a regra de xadrez é u m jogador de xadrez e x t r a mas invisível. Podemos v o l t a r agora a considerar as afirmações predisposicio-
È recair no velho hábito de supor que todas as espécies de frases desem- nais, isto é, as que dizem que uma mencionada coisa, a n i m a l ou
penham o mesmo papel, a saber, o de a t r i b u i r u m predicado a u m pessoa têm uma certa capacidade, tendência ou propensão ou estão
objecto mencionado. sujeitos a certas susceptibilidades. É evidente que tais afirmações não
A metáfora f a v o r i t a « A s linhas da inferência» é enganadora pre- são leis, porque mencionam coisas ou pessoas particulares. Por outro
cisamente neste aspecto. A s l i n h a s de Caminho de Ferro existem no lado, parecem-se còm as leis por serem «variáveis» ou «abertas». Dizer
mesmo sentido em que os comboios existem e descobrimos que elas que este torrão de açúcar é solúvel é dizer que se dissolveria se fosse
existem do mesmo modo por que descobrimos que os comboios existem. mergulhado em qualquer sítio ou em qualquer tempo em qualquer
A afirmação de que o comboio anda de u m lado para o outro implica quantidade de água. Dizer que o homem adormecido sabe francês é
que existe u m conjunto de linhas observáveis entre os dois lugares. dizer, por exemplo, que se em qualquer a l t u r a ele f o r abordado em
Assim, falar das «linhas de inferência» sugere que i n f e r i r as bactérias francês, ou se lhe mostrarem u m j o r n a l francês, ele responderá p e r t i -
das doenças não é na realidade i n f e r i r mas descrever uma terceira nentemente em francês, agirá apropriadamente ou traduzirá correcta-
entidade, que não é argumentar «porque isto e aquilo, t a l e tal», mas mente para a sua própria língua. Isto é, evidentemente, demasiadamente
relatar «existe u m elo não observado entre isto observado assim e preciso. Não retiraríamos a nossa afirmação de que sabe francês ao
assim e aquilo observado assim e assim». Mas se então perguntarmos descobrir que não responde pertinentemente quando está a d o r m i r ,
125
INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS

distraído, embriagado ou em pânico, ou ao descobrir que não traduz pelas quais se fazem as inferências vulgares, terão de fornecer certos
correctamente obras altamente técnicas. Não esperamos mais do que carris adicionais para j u s t i f i c a r as suas próprias inferências peculiares
aquilo que ele consegue habitualmente ao falar francês ou ao compre- da legitimidade das inferências vulgares para os carris que, segundo
endê-lo. «Sabe francês» é uma expressão vaga, mas para muitos fins, os seus postulados, conduzem inferências. Esta postulação de u m a
não obstante ser vaga, é útil.
hierarquia i n f i n i t a de carris dificilmente poderia ser a t r a c t i v a mesmo
Sugeriu-se que as afirmações predisposicionais sobre indivíduos para os que são atraídos pela p r i m e i r a fase.
determinados, embora não sejam leis em si próprias, são deduções para As afirmações predisposicionais não são nem descrições de estados,
leis e assim temos de aprender algumas leis provavelmente imperfeitas nem assuntos observados ou observáveis, nem ainda descrições de
e vagas, antes de podermos fazer tais afirmações predisposicionais. Mas estados ou assuntos inobserváveis ou inobservados. Não n a r r a m i n c i -
em geral o processo de aprendizagem faz-se de outro modo. Aprende- dentes. Mas a sua função está intimamente ligada às n a r r a t i v a s de
mos a fazer u m número de afirmações predisposicionais acerca dos
incidentes porque, se são verdadeiras, são justificadas p o r incidentes
indivíduos antes de aprendermos as leis que estabelecem as relações
narrados. «Fulano esteve agora a f a l a r ao telefone em Francês»
gerais entre tais afirmações. Achamos que alguns indivíduos são
j u s t i f i c a o que é afirmado por «Fulano sabe francês» e u m a pessoa que
ovíparos e cobertos de penas antes de aprendermos que qualquer
descobriu que Fulano sabe francês não precisa de mais nenhum dado
indivíduo que t e m o corpo coberto de penas é ovíparo.
para poder argumentar da sua leitura de u m telegrama em francês que
A s afirmações predisposicionais sobre coisas e pessoas particulares ele o compreendeu. Saber que Fulano sabe francês é estar na posse
são também afirmações semelhantes às leis, dado que em parte as desse dado e esperar que ele compreenda o telegrama é j o g a r com ele.
usamos de modo semelhante. Aplicam-se ou correspondem a acções,
Deve notar-se que não há incompatibilidade em dizer que as
reacções e estados do objectivo. São bilhetes-inferência que nos a u t o r i -
afirmações predisposicionais não n a r r a m incidentes e em a d m i t i r o
zam a predizer, descrever com efeito retroactivo, explicar e modificar
facto patente de que as frases predisposicionais podem t e r tempos. «Ele
estas acções, reacções e estados.
f o i fumador de cigarros durante u m ano» e «a borracha começou a
Naturalmente que os que se entregam à superstição de que todas as perder a sua elasticidade no verão passado» são afirmações predispo-
orações indicativas verdadeiras ou descrevem existências ou r e l a t a m sicionais perfeitamente legítimas. E se nunca fosse verdade que u m
ocorrências, quererão que frases como «este f i o conduz electricidade»
indivíduo pudesse aprender qualquer coisa, não e x i s t i r i a a profissão
ou «fulano sabe francês» sejam interpretadas como t r a n s m i t i n d o i n -
de professor. Podem e x i s t i r bilhetes-inferência a curto-prazo, a longo
formações concretas do mesmo t i p o das t r a n s m i t i d a s por «este f i o
prazo, ou sem prazo. U m a regra de críquete pode ser i m p o r t a n t e apenas
está a conduzir electricidade» e «fulano está a falar francês». Como
durante u m período experimental e o próprio clima de u m continente
poderiam estas afirmações ser verdadeiras a menos que houvesse
pode mudar de época para época.
alguma coisa a acontecer, mesmo que infelizmente acontecesse por de-
trás da cena? Eles têm ainda de concordar que muitas vezes sabemos (3) CAPACIDADES MENTAIS E TENDÊNCIAS
que u m fio conduz electricidade e que os indivíduos sabem francês sem
primeiro termos descoberto quaisquer acontecimentos inobserváveis. Temos à nossa disposição uma gama i n f i n i t a m e n t e vasta de termos
Têm de a d m i t i r também que a utilidade teórica de descobrir quaisquer predisposicionais para f a l a r acerca de coisas, c r i a t u r a s vivas e seres
acontecimentos inobserváveis e invisíveis consistiria apenas em nos humanos. Alguns deles podem ser aplicados indiferentemente a todas
h a b i l i t a r a fazer exactamente estas previsões, d a r estas explicações e as espécies de coisas. Por exemplo, algumas peças de metal, alguns
fazer modificações que já fazíamos e muitas vezes sabemos que estamos peixes e alguns seres humanos pesam 65 quilos. São elásticos e combus-
habilitados a fazer. Finalmente, t e r i a m de a d m i t i r que estes processos tíveis e t o d o eles, se deixados sem apoio, caem á mesma média de
s

postulados são em s i próprios, na melhor das hipóteses, coisas que se aceleração. Outros termos predisposicionais podem ser aplicados apenas
inferem do facto de podermos predizer, explicar e modificar as acções a certas espécies de coisas. Por exemplo, «hibernar» pode ser aplicado
e reacções observáveis dos indivíduos. Mas se pedem «linhas» efectivas com verdade ou falsidade apenas a criaturas vivas, e «conservador»
126 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 127

pode ser aplicado com verdade ou falsidade somente a seres humanos, pode nadar (se quiser aprender)»; «Você pode nadar (quando t i v e r
não idiotas, não infantis e não bárbaros. Trataremos apenas de uma persistência)»; «Ela pode nadar (porque o médico anulou a sua p r o i -
classe r e s t r i t a de termos predisposicionais, ou seja, os apropriados bição) », etc. O p r i m e i r o exemplo estabelece que não se deve i n f e r i r
apenas à caracterização de seres humanos. N a verdade, a classe que que, se é uma pedra, não f l u t u a ; o segundo nega a existência de u m
vamos t r a t a r é ainda mais r e s t r i t a do que essa, dado que nos interessam impedimento físico; o último a f i r m a a cessação de u m impedimento
apenas os termos que se coadunam com a caracterização de verbos disciplinar. A terceira, quarta e quinta afirmações são i n f o r m a t i v a s
de comportamento humano como os que exprimem qualidades do i n - acerca de qualidades pessoais e dão espécies diferentes de informações.
telecto e do carácter. Não nos interessam, por exemplo, os meros Para m o s t r a r as diferentes intensidades de alguns destes usos
reflexos peculiares aos homens ou quaisquer partes do equipamento diferentes de «pode» e «é capaz» é conveniente fazer uma breve inves-
fisiológico que possam ser peculiares à anatomia humana. É certo que tigação sobre a lógica daquilo a que por vezes se chama «palavras
os limites desta restrição são confusos. Os cães, t a l como as crianças, modais», como «pode», «deve», «é necessariamente», «não é necessaria-
são treinados para responder a palavras de comando, a indicações e ao mente» e «não é necessariamente não». U m a afirmação com o signi-
toque da campainha para as refeições. Os macacos aprendem a usar ficado de que qualquer coisa deve ser ou é necessariamente, funciona
instrumentos e mesmo a construí-los. Os gatinhos são brincalhões e os como aquilo a que chamei «bilhete-inferência». A u t o r i z a a inferência
papagaios imitadores. Se nos agrada dizer que o comportamento dos de coisas por qualquer outra coisa que pode estar ou não especifi-
animais é i n s t i n t i v o , enquanto parte do comportamento dos seres h u - cada na afirmação. Quando a afirmação significa que uma coisa não
manos é racional, embora levando em conta uma i m p o r t a n t e diferença é necessariamente ou não pode ser, funciona como uma autorização
ou família de diferenças, esta é uma diferença de limites, que por sua para i n f e r i r que não é esse o caso. A l g u m a s vezes é necessário recusar
vez são também confusos. Quando, exactamente, é que a faculdade de t a l licença para i n f e r i r que uma determinada coisa não está em certo
imitação i n s t i n t i v a da criança se t o r n a histriónica e racional? E m que caso, e normalmente pomos esta recusa em palavras dizendo que pode
idade é que a criança deixa de responder à campainha que a chama ser esse o caso ou que possivelmente é o caso. Dizer que qualquer coisa
para as refeições como u m cão e começa a responder-lhe como u m anjo ? pode estar no caso de não implica que esteja, que não seja esse o caso ou
Qual é exactamente a linha l i m i t e entre os subúrbios da cidade e o ainda que esteja na expectativa entre ser e não ser o caso, mas somente
campo ? que não se pode i n f e r i r de qualquer outra coisa, especificada ou não,
se essa coisa está no caso de.
ÍJDado que todo este l i v r o é uma discussão do comportamento lógico
de alguns dos termos principais, predisposicionais e ocorrentes por Esta consideração geral aplica-se também a muitas frases come-
meio dos quais falamos acerca do espíritõj tudo o que é necessário çadas por «se... então». U m a frase de «se... então» pode quase sempre
nesta secção é indicar algumas diferenças gerais entre os usos de alguns ser parafraseada por uma oração contendo uma expressão modal e
dos nossos termos predisposicionais seleccionados. Não se faz qualquer vice-versa. As orações hipotéticas e modais têm a mesma intensidade.
tentativa no sentido de discutir todos estes termos ou mesmo todos os Tomemos qualquer frase vulgar de «se... então», como por exemplo
tipos destes termos. «se passar por baixo do escadote terei complicações durante o dia»,
Muitas afirmações predisposicionais podem ser, embora não ne- e consideremos como poderíamos expressar coloquialmente a sua con-
cessitem de ser e normalmente não sejam, expressas com a ajuda de tradição. Não va e a pena j u n t a r u m «não» ao verbo da prótase, ao da
]

«sabe ou pode», «poderia» e «é capaz». «Ele é u m nadador», quando apódose, ou a ambos ao mesmo tempo, porque os resultados destas três
não significa que é u m perito, quer simplesmente dizer que ele sabe operações seriam igualmente afirmações supersticiosas. Resultaria,
nadar. Mas as palavras «sabe ou pode» e «é capaz» são usadas de m u i - mas não seria conveniente nem coloquial, dizer «não, não sucederá que
tos outros modos, como se mostra pelos seguintes exemplos. «As pedras se passar por baixo do escadote terei complicações». Vulgarmente,
podem f l u t u a r (porque a pedra-pomes flutua)»; «aquele peixe pode rejeitaríamos a superstição dizendo «não, eu posso passar por baixo do
nadar (porque não está inválido, embora esteja agora inerte no l o d o ) » ; escadote sem ter complicações», ou, para generalizar a rejeição, «as
«Fulano sabe nadar (porque aprendeu e não esqueceu)»; «Cicrano complicações não acontecem necessariamente às pessoas que passam
128 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 129

por baixo dos escadotes». Coloquialmente, a afirmação supersticiosa dizer que ele nunca f o i ensinado a nadar ou que nunca teve prática de
o r i g i n a l podia ter sido expressada assim: «Eu não poderia ter passado nadar, ao passo que dizer que uma pessoa sabe nadar implica que apren-
por baixo do escadote sem ter complicações durante o dia». Há apenas deu a nadar e não o esqueceu. A capacidade para a d q u i r i r capacidades
uma diferença estilística entre as frases «se... então» e as frases por meio de aprendizagem não é na verdade uma particularidade huma-
modais. na. Os cachorros podem ser ensinados ou treinados a pedir, assim como
Não se deve contudo esquecer que existem outros usos de «ser», se ensina as crianças a andar e a usar colheres. Mas alguns tipos de
«deve» e «pode» onde não há esta equivalência. «Se» significa por vezes aprendizagem, incluindo o medo como a maior parte das pessoas
«mesmo que». É também usado muitas vezes para e x p r i m i r compromis- aprende a nadar, implica a compreensão e aplicação de instruções
sos, ameaças e apostas condicionais. «Pode e «deve» são por vezes orais ou pelo menos de demonstrações organizadas. Admite-se que uma
usados como veículos de permissões não teóricas, ordens e vetos. É c r i a t u r a que pode aprender coisas por estes processos t e m indubita-
certo que há semelhança entre dar e recusar licenças para i n f e r i r ou velmente u m espírito, enquanto a possibilidade de aprendizagem do cão
dar e recusar licenças para fazer outras coisas, mas também há grandes ou da criança nos deixa hesitantes sobre se se pode dizer ou não que
diferenças. Por exemplo, não descrevemos como verdadeiras ou falsas já se qualificam como tendo esta qualidade.
as recomendações do médico, tais como «o doente deve estar na cama, Dizer que Cicrano pode nadar (porque pode aprender a nadar)
pode d i t a r cartas, mas não deve fumar», ao passo que é absolutamente é dizer que é competente para seguir e aplicar certas instruções e
n a t u r a l descrever como verdadeiras ou falsas orações como «um silo- demonstrações, embora ainda não tenha começado a fazê-lo. Seria
gismo pode ter duas premissas universais», «as baleias não podem errado predizer acerca dele o que seria certo predizer sobre u m idiota,
sobreviver sem v i r à superfície de vez em quando», «um corpo em queda a saber que, visto que ele se debate agora imponentemente na água,
livre sofre aceleração» e «não acontecem necessariamente desastres d u - continuará a fazê-lo depois de ter recebido instrução.
rante o dia às pessoas que passam por baixo de escadotes». Os usos Dizer que o leitor pode nadar (se t e n t a r ) é usar uma espécie inter-
éticos de «deve», «pode» e «não pode» têm afinidades com todas elas. mediária bastante interessante da palavra «pode». Enquanto Fulano
Estamos prontos a discutir a verdade de afirmações éticas que incluem não tem que t e n t a r nadar agora e Cicrano não pode ainda nadar, embora
tais palavras, mas fazer tais afirmações é regular partes do comporta- o tente com persistência, o leitor sabe o que fazer, mas só o faz quando
mento das pessoas diferentes das suas inferências. Tendo ambas estas aplica todo o seu espírito à tarefa. O leitor compreendeu as instruções
características, parecem-se com as recomendações feitas aos médicos e demonstrações, mas ainda tem de dar a si próprio a prática na sua
pelos compêndios, em lugar de se parecerem com as instruções sobre aplicação. Esta aprendizagem de aplicar instruções por prática delibe-
regimes a seguir feitas pelo médico aos seus doentes. As afirmações rada, e talvez difícil e alarmante, é uma coisa que consideramos peculiar
éticas, distintas das ordens e censuras particulares ad hominem, devem às criaturas com espírito. Demonstra qualidades de carácter, se bem
ser consideradas como garantias dirigidas aos dadores potenciais de que de uma ordem diferente das demonstradas pelo cachorro que
ordens ou censuras, isto é, não como bilhetes-acções pessoais, mas mostra ter capacidade e coragem mesmo nas suas brincadeiras, dado
como bilhetes de injunção impessoais, não como imperativos mas como que o novato se obriga a si próprio a fazer algo de difícil e alarmante
«leis» que só coisas como imperativos e punições podem satisfazer. T a l com a intenção de desenvolver as suas capacidades. Dizer que ele pode
como as leis estatutárias, não devem ser interpretadas como ordens, nadar, se tentar, é p o r t a n t o dizer t a n t o que pode compreender as
mas como licenças para dar e reforçar ordens. instruções como que pode treinar-se intencionalmente na sua aplicação.
Podemos agora deixar esta discussão geral das espécies de funções Não é difícil pensar em muitas outras utilizações de «pode» e «é
desempenhadas pelas frases modais e v o l t a r a considerar certas dife- capaz». E m «Fulano tem sido capaz de nadar desde pequeno, mas agora
renças específicas entre algumas frases seleccionadas de «pode» usadas pode inventar novos estilos», temos uma delas. «Pode inventar» não
para descrever qualidades pessoais. significa «aprendeu e não esqueceu como inventar». N e m é de modo
Dizer que Fulano sabe nadar difere de dizer que u m cachorro sabe algum como «pode» em «pode espirrar». A i n d a em «pode vencer todos
nadar. Porque dizer que u m cachorro sabe nadar é compatível com menos os campeões de natação», «pode» não t e m a mesma intensidade
130 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 131

do que em «pode nadar» ou em «pode inventar». É u m «pode» que se necessário notar outras diferenças entre estes dois sentidos de «pode»
aplica às corridas de cavalos. e o sentido em que é verdade dizer que uma pessoa não pode resolver
Há mais u m a característica de «pode» que é de uma pertinência u m anagrama incorrectamente, ganhar uma corrida malogradamente,
especial para o nosso tema central. Dizemos frequentemente de uma pes- encontrar u m tesouro inutilmente ou demonstrar u m teorema não váli-
soa ou de uma acção de u m animal que pode fazer qualquer coisa no sen- do. Porque este «não pode» é u m «não pode» lógico. Não diz nada sobre
t i d o de que a pode fazer correctamente ou bem. Dizer que u m a criança as competências ou limitações das pessoas, mas apenas que, por
pode soletrar uma palavra é dizer que ela pode, não apenas t r a n s m i t i r exemplo, «resolver incorrectamente» é uma expressão que se contradiz
uma ou o u t r a colecção de letras, mas uma colecção certa numa ordem a s i própria. Veremos mais tarde que a aspiração dos epistemologistas
certa. Dizer que ela pode dar u m nó direito não é simplesmente dizer que, sobre uma certa espécie de observações incorrigíveis deriva em parte
quando brinca com bocados de fio, dá por vezes nós corredios e outras de não notarem que, n u m dos seus sentidos, «observar» é u m verbo de
vezes nós cegos mas que os nós corredios são dados sempre, ou quase êxito e assim o seu sentido em «observação de u m erro» é uma expres-
sempre, que se lhe pede que os dê e quando a criança tenta fazê-los. são tão contraditória como «prova não válida» ou «cura sem êxito».
Quando usamos, como fazemos muitas vezes, a frase «pode dizer» Mas t a l como «argumento não válido» e «tratamento sem êxito» são
como u m a paráfrase de «saber» significamos por «dizer», «dizer cor- expressões logicamente permitidas, também «ineficiente» ou «observa-
rectamente». Não dizemos que uma criança pode ou sabe dizer as horas, ção ineficaz» são expressões permitidas, quando «observar» não é
quando tudo o que ela pode é fazer ao acaso afirmações sobre as horas usado como descobrir mas como u m verbo de «procura».
marcadas pelo relógio, mas só quando diz as horas em conformidade Já se disse o suficiente para m o s t r a r que há uma grande variedade
com a posição dos ponteiros do relógio ou a posição do sol, qualquer de tipos de «pode» e que dentro destas classes há uma grande variedade
que seja esta posição. de tipos de expressões de capacidade e expressões de sujeição. Somente
Muitos dos verbos de acção com que descrevemos pessoas e por algumas destas expressões de capacidade e sujeição são peculiares às
vezes, com restrições, animais, significam a ocorrência, não exactamen- descrições dos seres humanos, mas mesmo nestas existem vários tipos.
te de acções, mas de acções convenientes ou correctas. Significam A s tendências são diferentes das capacidades e das susceptibilida-
realizações. Verbos como «soletrar», «agarrar», «resolver», «encontrar», des. «Faria se...» difere de «poderia» e «faz regularmente... quando»
«ganhar», «curar», «riscar», «enganar», «persuadir», «chegar» e inúme- difere de «pode». Grosseiramente, dizer «pode» é dizer que não há a
ros outros não significam apenas que certa acção f o i feita, mas que certeza de que qualquer coisa não seja assim, enquanto dizer «tem
alguma coisa foi levada a b o m termo pela pessoa que a fez. São verbos tendência para» ou «é propenso a» é dizer que há grandes probabilida-
de êxito. Mas os êxitos devem-se por vezes à sorte. U m jogador de des de que seja ou tivesse sido de t a l ou t a l modo. Assim, «tem
críquete pode deitar u m poste abaixo com uma jogada descuidada. M a s
tendência para» implica «pode» mas não está implícito em «pode». «Fiel
quando dizemos que pode realizar coisas de uma certa espécie, tais t e m tendência para ladrar quando há luar», diz mais do que «não é
como resolver anagramas ou curar ciática, queremos dizer que se pode verdade que se há luar Fiel está silencioso». A u t o r i z a o ouvinte, não
confiar em que seja razoavelmente bem sucedido, mesmo sem a ajuda só a confiar no seu silêncio, mas, positivamente, a esperar latidos.
da sorte. Ele sabe como chegar a b o m termo em situações normais. Mas há muitos tipos de tendências. A tendência do Fiel para t e r
Também usamos expressões correspondentes de insucesso, como sarna no verão (a menos que siga uma dieta especial) não é da mesma
«falhar», «soletrar mal», «renunciar», «perder», «perder u m a jogada», espécie da sua tendência para l a d r a r quando há luar (a menos que o
e «fazer contas erradas». B u m facto importante o de uma pessoa, se seu dono seja duro para com ele). O pestanejar de uma pessoa a
pode soletrar ou calcular, poder também soletrar m a l ou fazer cálculos intervalos regulares é uma espécie de tendência diferente da tendência
errados. Mas o sentido de «pode» em «pode soletrar» e «pode calcular» para pestanejar quando está embaraçada. Podemos chamar a esta
é completamente diferente do seu sentido em «pode soletrar mal» e última tendência o que não chamaríamos à primeira, u m «maneirismo»
«pode calcular erradamente». U m é uma competência, o outro não é ou uma «afectação».
uma competência, mas s i m uma sujeição. Para certos fins é também Distinguimos algumas tendências de comportamento de outras
132 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A 133
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS

chamando a umas «hábitos puros» e a outras «gostos», «interesses», obrigado a fazê-lo, mas que t e m tendência a fazê-lo com o espírito
«inclinações» e «passatempos» e ainda a outras «empregos» e «ocupa- concentrado nessa acção, que t e m tendência para ficar absorto em
ções». Pode ser u m hábito puro vestir a meia direita antes da esquerda, devaneios e recordações sobre a pesca à linha e para se absorver em
u m passatempo i r pescar quando o trabalho e o tempo o permitem e conversas e livros sobre o assunto. Mas isto não é tudo. U m repórter
u m emprego conduzir camiões. Evidentemente que é fácil pensar em consciencioso t e m tendência para o u v i r intencionalmente as palavras
linhas divisórias do comportamento regular em cuja classificação pode- dos oradores públicos, embora não o fizesse se não fosse obrigado a
mos hesitar. Os empregos de algumas pessoas são o seus passatempos
s
isso. Não o faz quando não está de serviço. Nas horas de folga está
e os empregos e passatempos de algumas pessoas são hábitos puros. talvez habituado a dedicar-se à pesca à linha. Não t e m de t e n t a r con-
Mas somos bastante claros acerca das distinções entre os próprios centrar-se na pesca como t e m de t e n t a r concentrar-se nos discursos.
conceitos. U m a acção feita por hábito puro é uma acção que não é Concentra-se nela sem tentar. Isto é uma grande parte do que significa
feita propositadamente e a pessoa que a pratica não necessita de ser «entusiasta de».
capaz de a descrever, mesmo imediatamente após tê-la praticado. O Além dos hábitos puros, empregos e interesses, existem m u i t o s
seu espírito pode ter estado concentrado em qualquer outra coisa. A s ac- outros tipos de tendências de nível mais elevado. A l g u m a s regularidades
ções praticadas como parte do emprego de uma pessoa podem ser feitas de comportamento são aderências a resoluções ou políticas impostas a s i
por hábito puro. Por outro lado, a pessoa não as faz quando não está no própria pela pessoa que pratica as acções. A l g u m a s são aderências a
emprego. O soldado não marcha quando está em casa de licença, mas códigos ou religiões inculcadas por outros. A s paixões, as ambições, as
só quando sabe que t e m de m a r c h a r ou que deve marchar. Ele retoma vocações, as fidelidades, as devoções e as negligências crónicas são
e abandona o hábito conforme veste ou despe a farda. tendências de comportamento, mas m u i t o diferentes umas das outras.
Os exercícios dos passatempos, interesses e gostos são feitos, como Dois exemplos podem servir para m o s t r a r algumas das diferenças
costumamos dizer, «por prazer». Mas esta frase pode ser enganadora, entre capacidades e tendências, ou entre competências e propensões:
visto que sugere que estes exercícios são feitos como uma espécie de a) tanto as habilidades como as inclinações podem ser simuladas, mas
investimento do qual se espera u m dividendo. A verdade é o inverso, usamos nomes pejorativos como «charlatão» e «impostor» para designar
designadamente que fazemos estas coisas porque gostamos de as fazer os intrujões que pretendem ser capazes de executar certas coisas com
ou porque queremos fazê-las e não porque gostamos ou queremos êxito, ao passo que usamos o termo pejorativo de «hipócrita» para os
alguma coisa acessória a elas. Investimos o nosso capital relutante- intrujões que afectam motivos e hábitos; b) Os epistemologistas têm
mente na esperança de obter dividendos que farão com que o desembolso inclinação para t o r n a r e m confusas, para s i próprios e para os seus
tenha valido a pena e, se nos fosse oferecida a possibilidade de obter leitores, as diferenças entre conhecimento e convicção. Alguns sugerem
os dividendos sem investir o capital, abster-nos-íamos de bom grado que diferem apenas em g r a u e outros que diferem pela presença de
de fazer o desembolso. Mas o pescador à linha não aceitaria nem alguns ingredientes introspectáveis de saber o que está ausente na
compreenderia uma oferta dos prazeres sem as actividades desta pesca. convicção e vice-versa. Parte desta confusão é devida ao facto de
É em pescar à linha que ele tem satisfação e não em alguma coisa que suporem que «saber» e «acreditar» significam ocorrências, mas mesmo
a pesca à linha ocasiona. quando se verifica que são verbos predisposicionais t e m ainda de se
Dizer que alguém está agora a sentir satisfação ou aborrecimento verificar que são verbos predisposicionais de tipos completamente
com alguma coisa, implica que lhe está a dar atenção. Haveria uma diferentes. «Saber» é u m verbo que indica capacidade e é u m verbo
contradição em dizer que a música lhe agradou, embora não tivesse de capacidade de uma espécie especial que é usado para s i g n i f i c a r que
prestado atenção ao que ouviu. Não haveria no entanto contradição a pessoa descrita pode fazer coisas com êxito ou fazê-las bem feitas.
em dizer que ele esteve a o u v i r a música mas que não gostou nem Por outro lado, «acreditar» é u m verbo de tendência, que não implica
desgostou dela. De acordo com isto, dizer que alguém é apreciador que qualquer coisa tenha sido feita com êxito ou de maneira certa.
ou entusiasta da pesca à linha implica não apenas que t e m tendência «Convicção» pode ser qualificada por adjectivos como «obstinado»,
para empunhar a cana de pesca no r i o , quando não é forçado nem «hesitante», «firme», «inabalável», «estúpido», «fanático», «sincero»,
134 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 135

«intermitente», «apaixonado» e «infantil», alguns dos quais, ou todos, dando com as afirmações de outras pessoas nesse sentido e opondo-
se podem aplicar a substantivos como «confiança», «fidelidade», «in- -se a afirmações em contrário, t i r a n d o consequências da proposição
clinação», «resolução», «aversão», «esperança», «hábito», «zelo» e o r i g i n a l e assim por diante. Mas é também ter propensão para
«paixão». A s convicções, t a l como os hábitos, podem ser inveteradas, p a t i n a r cautelosamente, para se sentir apavorado, para viver na
adquiridas e abandonadas, podem cegar e obcecar, como os partidaris- imaginação de possíveis desastres e para a d v e r t i r os outros patinadores.
mos, devoções e esperanças. Podem não ser reconhecidas ou confes- È uma propensão não só para t o m a r certas atitudes teóricas como
sadas, como as aversões e fobias. Podem ser contagiosas, como as modas também para t o m a r certas atitudes executivas e imaginativas e para
e os gostos. Podem ser induzidas por artifícios, como as fidelidades e t e r certas sensações. Mas estas coisas penduram-se todas n u m cabide
animosidades. Pode forçar-se uma pessoa a não acreditar ou rogar-lhe predisposicional comum. A frase «gelo fino» s u r g i r i a em descrições
que não acredite em certas coisas e ela pode tentar, com ou sem êxito, semelhantes de pavores, de advertências, de patinagem cautelosa, de
deixar de acreditar. U m a pessoa diz por vezes sinceramente: «Não posso declarações, de inferências, de aquiescências e de objecções.
deixar de acreditar nisto ou naquilo». Mas nenhuma destas frases U m a pessoa que sabe que o gelo está fino, e que se preocupa em
ou as suas negativas são aplicáveis ao saber, visto que saber é estar saber se ele está fino ou espesso, estará evidentemente pronta a a g i r
preparado para fazer qualquer coisa bem feita, e não t e r tendência e reagir de acordo. Mas dizer que se mantém nos limites do campo
para a g i r ou reagir de certos modos. porque sabe que o gelo está fino, é empregar u m sentido completamente
Esquematicamente, «acreditar» é da mesma família das palavras de diferente de «porque» ou dar uma «explicação» inteiramente diferente
motivo, enquanto «saber» é da mesma família das palavras de h a b i l i - da t r a n s m i t i d a p o r dizer que se mantém nos limites do campo porque
dade. Assim, perguntamos como é que u m a pessoa sabe isto, mas acredita que o gelo está fino.
apenas porque é que ela acredita naquilo, t a l como perguntamos como
(4) OCORRÊNCIAS MENTAIS
é que u m a pessoa dá u m nó corredio, mas perguntamos porque é que
ela quer d a r u m nó corredio, ou porque é que dá sempre nós cegos.
As habilidades têm métodos, enquanto os hábitos e inclinações têm Há muitas maneiras pelas quais descrevemos pessoas com empe-
origens. De i g u a l modo, perguntamos o que faz com que a pessoa nhadas nisto agora, passando por aquilo frequentemente, tendo gasto
acredite ou receie coisas mas não o que a faz saber ou realizar coisas. vários minutos numa actividade ou sendo rápidas ou lentas a obter
Evidentemente, convicção e conhecimento (quando é conhecimento u m resultado. U m a sub-classe i m p o r t a n t e de tais ocorrências é a que
de que) actuam no mesmo campo. A s espécies de coisas que podem ser mostra qualidades de carácter e inteligência. Deve notar-se que uma
descritas como sabidas ou desconhecidas podem também ser descritas coisa é dizer que certas acções e reacções humanas m o s t r a m qualidades
como acreditadas ou não, u m pouco como as espécies de coisas que de carácter e inteligência e outra, completamente diferente, por uma
podem ser fabricadas são também espécies de coisas que podem infeliz moda linguística, dizer que se produzem actos ou processos
ser exportadas. U m homem que acredita que o gelo está perigosa- mentais. A última expressão pertence tradicionalmente à fábula dos
mente delgado faz advertências, patina cautelosamente e responde dois mundos, a fábula de que certas coisas existem ou acontecem «no
a perguntas pertinentes, do mesmo modo que u m homem que sabe mundo físico» enquanto outras existem e acontecem, não nesse mundo,
que o gelo está perigosamente delgado. E se lhe perguntarem se o sabe mas n o u t r o lugar metafórico. A rejeição desta fábula é perfeitamente
por u m facto, ele pode dizer que s i m sem hesitação, embora fique compatível com manter-se a distinção f a m i l i a r entre, digamos, p a i r a r
embaraçado se lhe perguntarem como o descobriu. e falar acertadamente, ou entre uma crispação nervosa e u m sinal.
Poderia dizer-se que a convicção é como o conhecimento e diferente E a aceitação histórica dos dois mundos não esclarece nem consolida,
da confiança nas pessoas, do zelo pelas causas e do vício do fumo, por em qualquer sentido, esta distinção.
ser proposicional. Mas isto, embora não m u i t o errado, é m u i t o restrito. Começo por considerar u m conjunto de conceitos que podem ser
Certamente que acreditar que o gelo está perigosamente fino é não t e r todos subordinados ao título útil, por ser vago, de «dar por isso».
hesitações em dizer a s i próprio e aos outros que ele está fino, concor- Poderiam também ser descritos como «conceitos de atenção». Refiro-me
136 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 137

aos conceitos de notar, t e r cuidado, atender, aplicar o espírito, concen- que tenha também estado a olhar para os seus dedos a t r a b a l h a r ou a
t r a r , pôr o coração em alguma coisa, pensar no que se está a fazer, ' olhar qualquer outra coisa a t r a b a l h a r . Fazer qualquer coisa com
vigilância, interesse, concentração de espírito, estudar e tentar. «Au- atenção não consiste em r e u n i r u m a acção executiva a uma acção
sência de espírito» é uma frase usada por vezes para significar uma teórica de investigação, exame minucioso ou «cogitação». Se assim
condição na qual as pessoas agem ou reagem sem atenção ao que estão fosse, fazer qualquer coisa com atenção i m p l i c a r i a fazer u m número
a fazer, ou sem darem pelo que está a acontecer. Não podemos, sem i n f i n i t o de coisas com atenção.
cair no absurdo, descrever alguém como estando inconscientemente Os motivos para descrever erradamente a atenção em linguagem
a ponderar, procurar, experimentar, debater, planear, executar ou contemplativa derivam em parte da tradição geral intelectualista, se-
apreciar. U m homem pode m u r m u r a r ou estar desassossegado d i s t r a i - gundo a qual a função essencial do espírito é teorizar e a contemplação
damente, mas se está a fazer u m cálculo ou a investigar, é supérfluo
metafórica é a essência de teorizar. Mas existe outro m o t i v o e este mais
dizer que está a dar alguma atenção ao que está a fazer.
respeitável. É inteiramente verdade que se u m a pessoa fez ou sofreu
«Dar por isso», aplicar o espírito nalguma coisa, pode, em todos os qualquer coisa e deu atenção ao que estava a fazer ou a sofrer, pode
casos, v a r i a r de g r a u . U m motorista pode g u i a r u m carro com m u i t o dizer o que esteve a fazer ou a sofrer (na condição de t e r aprendido a
cuidado, com cuidado razoável ou com apenas algum cuidado, e u m
dizer) e pode dizê-lo sem rebuscar evidências, sem fazer quaisquer
estudante pode concentrar-se m u i t o ou pouco. U m a pessoa nem sempre
inferências e sem mesmo se preocupar momentaneamente com o que
pode dizer se está a aplicar todo o seu espírito ou só parte dele à tarefa
deve dizer. T e m sempre as explicações na ponta da língua e dá-as sem
a que se entrega. A criança que tenta decorar u m poema pode pensar
hesitações ou procuras, como diz qualquer coisa que lhe é f a m i l i a r
que está a prestar toda a atenção porque f i x o u os olhos na página,
ou óbvia. E como os nossos modelos padrão de evidência são tirados
m u r m u r o u as palavras, f r a n z i u as sobrancelhas e tapou os ouvidos.
do campo das coisas familiares, vistas de pontos de v i s t a vantajosos,
Mas se, sem t e r havido quaisquer distrações ou interrupções, ainda não
à luz do dia, gostamos naturalmente de descrever todas as capacidades
consegue recitar o poema, dizer de que constava ou descobrir o que
está m a l nas versões erróneas recitadas pelos seus companheiros, a sua para dizer coisas sem trabalho ou hesitação como p a r t i n d o de alguma
afirmação de que esteve a prestar toda a atenção será rejeitada pelo coisa, como por exemplo ver. Por isso gostamos de f a l a r de « v e r »
professor e talvez mesmo r e t i r a d a por ele próprio. implicações e de « v e r » anedotas. Mas embora as referências de ver
coisas familiares em circunstâncias favoráveis possam ser exemplifica-
Algumas considerações tradicionais sobre a consciência f o r a m ,
das, não podem elucidar sobre as noções de f a m i l i a r i d a d e e evidência.
pelo menos em parte, tentativas para esclarecer os conceitos de atenção,
tentando usualmente isolar u m único ingrediente comum a todos eles. Teremos de considerar mais tarde como a aptidão para dizer o que
Este ingrediente comum t e m sido normalmente descrito na linguagem f o r a m as acções e reacções de uma pessoa está implícita em lhes prestar
da contemplação ou da inspecção, como se parte da diferença entre ter atenção. É necessário assinalar aqui que a aptidão para responder a
uma comichão e notá-la, ou entre ler u m parágrafo e estudá-lo, consistis- perguntas sobre as próprias acções não esgota o facto da atenção que
se no facto de que t e r uma comichão e ler o parágrafo têm lugar, lhes prestamos. Conduzir u m carro com cuidado reduz o risco de
metaforicamente, à luz do dia e sob os olhares das pessoas em questão. t acidente, assim como habilita o m o t o r i s t a a responder a perguntas
Mas assim como a atenção é uma espécie de inspecção ou vigilância, sobre as suas acções. A p l i c a r o nosso espírito a coisas não nos h a b i l i t a
a inspecção e a vigilância são em si próprias exercícios da atenção, apenas a fazer relatórios verídicos sobre elas e a distracção é revelada
dado que se descrevemos uma pessoa l i t e r a l ou metaforicamente como por outras coisas além de estar desorientado no banco das testemunhas.
u m espectador, é sempre pertinente perguntar se f o i u m espectador O conceito de atenção não é, salvo per accidens, u m conceito cognitivo.
cuidadoso ou descuidado, vigilante ou sonolento. Que alguém olhasse >
As investigações não são as únicas ocupações em que aplicamos o nosso
cuidadosamente para u m pássaro no relvado, não implica que tivesse
espírito.
estado também a «olhar» metaforicamente o seu olhar. E o facto de
Podemos v o l t a r agora a uma nova característica do comportamento
que aplicou o seu espírito ao desenho que esteve a fazer não implica
lógico dos conceitos de atenção. Quando uma pessoa v a i a cantarolar
138 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 139

entre dentes enquanto anda, está a fazer duas coisas ao mesmo tempo, pratica a acção. Não só que assobiar com concentração é uma operação
podendo qualquer delas ser i n t e r r o m p i d a sem se interromper a outra. em série, cujos membros ocorrem em «lugares» diferentes, como t a m -
Mas quando se fala de u m a pessoa a prestar atenção ao que está a bém que a descrição do assobio como feito concentradamente mencio-
dizer ou a assobiar, não dizemos que está a fazer duas coisas ao mesmo na u m a ocorrência manifesta e faz uma afirmação hipotética em aberto
tempo. Essa pessoa não poderia parar a sua l e i t u r a e continuar a sobre o seu autor. A c e i t a r a p r i m e i r a sugestão seria recair no m i t o dos
dar-lhe atenção ou t i r a r as mãos dos comandos do seu carro continuando dois mundos. Envolver-nos-ia também na dificuldade especial de que,
a t e r cuidado, se bem que pudesse, evidentemente, continuar a ler dado que pôr o espírito em alguma coisa seria nesse caso uma actividade
cessando de prestar atenção ou continuar a guiar, mas deixando de diferente da actividade manifesta, d i t a do espírito, seria impossível
tomar cuidado. V i s t o que o uso destes pares de verbos activos como explicar porque é que essa actividade do espírito não pode realizar por
«ler» e «prestar atenção» ou «guiar» e «tomar cuidado» podem sugerir si própria, t a l como se pode cantarolar sem andar. Por outro lado,
que devem e x i s t i r dois processos simultâneos e provavelmente conjuga- aceitar o sentido predisposicional seria, aparentemente, envolver-nos
dos, sempre que ambos os verbos são usados adequadamente, pode ser em dizer que, embora uma pessoa possa ser descrita como estando a
útil lembrar que a substituição de u m verbo de atenção por u m advérbio assobiar agora, não pode ser convenientemente descrita no acto de se
de atenção é apenas idiomática. Diremos habitualmente «ler atenta- concentrar ou t o m a r cuidado. E sabemos m u i t o bem que tais descrições
mente», «guiar cuidadosamente» e «aprender estudiosamente» e este são legítimas. Mas este ponto deve ser examinado mais pormenori-
uso t e m o mérito de sugerir que o que se descreve é u m a operação com zadamente.
u m carácter especial e não duas operações executadas em «lugares» Se queremos saber se alguém esteve a notar o que esteve a ler,
diferentes com u m cabo especial a ligá-las. contentamo-nos geralmente em d i c i d i r a questão fazendo-lhe pergun-
tas não m u i t o tempo após a leitura. Se não nos pode dizer nada
O que é então este carácter especial? A pergunta causa perplexi-
sobre a essência ou a redacção do capítulo, se não encontra erros noutras
dade dado que o modo pelo qual os advérbios de atenção q u a l i f i c a m os
passagens que contradizem o capítulo o r i g i n a l ou se mostra surpresa
verbos activos a que estão ligados parece completamente diverso do
ao ser informado de alguma coisa já mencionada nele, então, a menos
modo pelo qual os outros advérbios q u a l i f i c a m os seus verbos. Pode
que entretanto tenha sofrido a l g u m abalo ou esteja agora excitado ou
descrever-se u m cavalo a correr rápida ou lentamente, suave ou
sonolento, convencemo-nos de que não notou o que leu. N o t a r o que
sacudidamente, a d i r e i t o ou de través, e a simples observação, ou mesmo
se lê implica estar preparado para satisfazer alguns testes subsequentes.
u m filme, pode habilitar-nos a decidir sobre o modo como o cavalo
De u m modo semelhante, certos acidentes ou quase-acidentes conven-
corria. Mas quando se descreve u m homem a g u i a r cuidadosamente, cer-nos-iam de que o m o t o r i s t a não estava a t o m a r cuidado. Tomar
a assobiar com concentração ou a comer distraidamente, o carácter cuidado implica estar preparado para certas espécies de emergências.
especial desta actividade parece i l u d i r o observador, a câmara e o Mas isto não pode ser tudo. Para u m a só coisa há muitos outrcp
dictafone. U m f r a n z i r de sobrancelhas, o aspecto t a c i t u r n o e a fixidez verbos de processo que podem significar propriedades predisposicionais,
do olhar podem ser talvez evidências de concentração do espírito, mas embora não possam ser classificados como verbos de atenção. «Ele está
podem também ser simulados ou podem ser puramente habituais. E m a m o r r e r agora», «chegar a » , «enfraquecer», «ele está a ser hipnotizado
qualquer dos casos, ao descrever u m a pessoa a aplicar o espírito à agora», «anestesiado», «imunizado», são descrições de ocorrências cuja
sua tarefa não queremos dizer que é isto que ela parece ou aparenta verdade requer algumas afirmações hipotéticas experimentais para
enquanto empenhada nela. Não afirmaríamos que ela se t i n h a estado poderem ser verdade. E, por outro lado, não só é admissível descrever
a concentrar simplesmente por nos dizerem que a sua expressão e alguém como estando a pensar no que está a dizer ao mesmo tempo
movimentos t i n h a m sido tranquilos. Mas se não se pode presenciar o que nota a dureza da cadeira, ou começando e deixando de se concentrar,
carácter especial, parece que somos forçados a dizer que há, não só uma mas é adequado ordenar ou pedir a alguém que aplique o seu espírito,
operação oculta, concomitante com a operação a que é atribuída, como mas não ordenar-lhe que seja capaz ou susceptível de fazer coisas.
que esta operação é uma propriedade predisposicional da pessoa que Sabemos também que pode ser mais fatigante ler atentamente do
140 141
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

que ler desatentamente. Assim, enquanto estamos com certeza a dizer ser ao mesmo tempo n a r r a t i v a , explicativa e condicionalmente profética
algo de predisposicional ao aplicar u m conceito de atenção a u m a sem ser uma reunião conjuntiva de sub-afirmações separáveis. Todas
pessoa, estamos também, sem dúvida, a dizer algo de episódico. Estamos as afirmações de que uma coisa é assim porque se dá o caso de o u t r a
a dizer que essa pessoa fez o que fez n u m estado de espírito específico coisa ser deste ou daquele modo requerem, para serem verdadeiras,
e, enquanto a especificação do estado de espírito requer menção aos t a n t o que certos factos obtenham uma licença como que essa licença
modos pelos quais f o i capaz, apta ou susceptível de agir e reagir, a sua exista, para i n f e r i r u m do outro. N e m esta afirmação é do género
actuação nesse estado de espírito f o i em s i uma ocorrência crono- de que u m opositor possa dizer que parte dela era verdadeira e o u t r a
metrável. parte falsa.
Para finalizar, é possível, mesmo que não m u i t o comum, que duas A acusação coloquial «Você teria perdido o último comboio» não
ou mais acções manifestas, feitas em estados de espírito completamente só censura o culpado por ter perdido o comboio mas também declara
diferentes, sejam tão semelhantes quanto se queira, fotográfica ou que se podia esperar que assim acontecesse. O erro que essa pessoa
radiofònicamente. U m a pessoa que toca um trecho musical n u m piano cometeu f o i precisamente uma das coisas que podiam t e r sido previstas.
pode fazê-lo para seu próprio prazer, para agradar à assistência, para E r a mesmo dele fazer o que fez. A acusação i n c l u i u m a afirmação
praticar, com o objectivo de se i n s t r u i r , sob coacção, parodiando o u t r o hipotética em aberto, parcialmente satisfeita. Não é, nem poderia ser,
pianista, completamente distraída ou por mera r o t i n a . Assim, dado que completamente satisfeita, porque também se poderia prever que se ele
as diferenças entre estas acções nem sempre podem ser registadas tivesse ido a uma cabine telefónica (o que provavelmente não fez) não
fotográfica ou radiofònicamente, sentimo-nos tentados a dizer que t e r i a t i d o dinheiro trocado e se tencionasse selar u m a carta (o que
consistem na ocorrência simultânea de algumas acções e reacções provavelmente não fez) ter-lhe-ia faltado a última f r a n q u i a . Chamarei
internas, somente detectáveis por quem as executa, ou ainda na a afirmações como «Você teria feito o que fez» semi-hipotéticas ou
satisfação por meio de acções manifestas de diferentes afirmações afirmações categóricas mistas. Muitos dos exemplos dados ordinaria-
hipotéticas em aberto. Por outras palavras, a descrição do pianista a mente de afirmações categóricas são categóricos mistos.
tocar «Lar, Doce L a r » como uma demonstração de como este trecho Correspondentemente, dizer que alguém fez u m a coisa prestando
deve ser tocado t e m uma complexidade interna respeitante a u m atenção ao que estava a fazer, não é apenas dizer que estava p o r
determinado elemento pelo qual difere da descrição do mesmo pianista exemplo apta a fazer u m a grande variedade de tarefas e testes
a tocar «Lar, Doce L a r » parodiando outro pianista, embora do ponto associados que podiam ter surgido mas que provavelmente não o fez.
de v i s t a de testemunho as duas execuções sejam semelhantes. Deverão È dizer também que t i n h a aptidão para executar a tarefa que efectiva-
estas descrições complexas de ocorrências exteriormente similares ser mente realizou. Estava na disposição ou estado de espírito de fazer,
interpretadas como conjunções de acções manifestas similares com se necessário, muitas coisas que efectivamente podem não t e r sido
ocorrências ocultas diferentes, ou devem as suas diferenças ser inter-
exigidas e estava ipso facto na disposição ou estado de espírito de fazer,
pretadas de o u t r o modo? A f i r m a m factos positivos duplos ou apenas
pelo menos, esta acção que efectivamente f o i requerida. Estando nesse
factos positivos simples com diferentes fundamentos-inferências l i -
estado de espírito, faria o que fez, assim como, se necessário, f a r i a
gados ?
muitas outras coisas, nenhuma das quais se a f i r m a que fez. A sua
Nenhuma das opções parece aceitável, se bem que a segunda dê descrição de t e r o espírito no que estava a fazer é mais u m relato
uma parte indispensável da resposta. Como muitas dicotomias, a explicativo de u m a ocorrência efectiva do que u m a previsão condicional
dicotomia dos lógicos «OM categórico ou hipotético» necessita de ser de outras ocorrências.
diferenciada. Temos de t r a t a r aqui de uma classe de afirmações cujo A s afirmações deste tipo não são peculiares às descrições de acções
papel é precisamente evitar este abismo. Salvo para aqueles que se e reacções de mais alto nível das pessoas. Quando se diz que u m torrão
deixem levar pelas dicotomias, não há nada de escandaloso na noção de açúcar se está a dissolver, está a dizer-se algo de mais episódico
de que uma afirmação pode ser, sob certos aspectos, u m a afirmação do que quando se diz que é solúvel. Mas diz-se qualquer coisa de mais
de factos em b r u t o e, sob outros, licenças-inferências, ou que pode predisposicional do que quando o descrevemos como húmido. Quando
142 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 143

se descreve u m a ave a emigrar, diz-se algo de mais episódico do que nota, porque para a ordem ser obedecida ou desobedecida deve ser
quando é descrita como migratória, mas algo de mais predisposicional compreendida, especificando-se o que deve ser feito com atenção. Tanto
do que quando é descrita a voar para a A f r i c a . O torrão de açúcar e a o aluno, como o revisor tipográfico, como o doente do oftalmologista,
ave fariam na situação dada o que realmente fizeram, assim como devem saber ler cuidadosamente u m certo parágrafo. O aluno desobede-
muitas outras coisas especificáveis, em certas condições especificáveis, cerá às instruções se notar as gralhas e não notar o argumento; o revi-
f a r i a m aquilo que na realidade não chegaram a fazer. sor tipográfico desobedecerá se atender ao argumento mas não detectar
A descrição de uma ave como migratória t e m uma complexidade as gralhas, enquanto ao doente do oftalmologista não se pede que relate
m a i o r do que descrevê-la a voar em direcção à A f r i c a , mas esta maior nem o argumento nem as gralhas, mas somente a desfocagem ou a
complexidade não consiste em n a r r a r u m número maior de incidentes. nitidez, a cor preta ou cinzenta, a obliquidade ou a verticalidade das
Só é necessário que aconteça u m a coisa, designadamente que n u m letras impressas. Isto é verdade, manifestamente, para a atenção em
momento p a r t i c u l a r a ave esteja a voar para o Sul. « É migratória» geral. Não se pode descrever uma pessoa como simplesmente tendo
não relata mais factos, mas apenas u m facto de alcance maior do que interesse, estando absorvida ou tentando-o. Deve estar, por exemplo, a
o contado por «está a voar para o Sul». Pode ser errada noutros ler u m a r t i g o de fundo com interesse, a pescar com a r absorto ou a
aspectos e i n s t r u t i v a noutros. t e n t a r trepar a esta árvore. «Gostar» e «não gostar» requerem de modo
Este ponto está ligado com u m uso m u i t o comum de «porque», semelhante u m suplemento do i n f i n i t o de u m verbo activo, como «na-
que é diferente de todos os usos anteriormente destacados. Ambas a dar», «ouvir Bach» e «não fazer nada».
afirmações « A ave está a voar para o Sul» e « A ave está a emigrar^ Quando se descreve uma pessoa a aplicar o seu espírito a qualquer
são relatos episódicos. A pergunta «Porque está a ave a voar para o acção ou reacção especificável, é legítimo dizer, em certo sentido do
Sul?» poderia ser respondida correctamente p o r : «Porque está a emi- verbo, que está a «pensar» ou a «prestar atenção» ao que está a fazer
grar». Aliás, o processo de e m i g r a r não é diferente do de voar para o ou a experimentar ou a «aplicar o seu espírito». Isto não significa
Sul. N e m a frase «porque está a emigrar», visto que relata u m episódio, necessariamente que esteja em comunhão consigo própria acerca do
diz a mesma espécie de coisa que «porque é migratória». Devemos dizer que está a fazer ou a experimentar. Não necessita, embora possa,
que «está a emigrar» descreve u m processo de voo em termos que são m u r m u r a r para si própria comentários, críticas, instruções, encoraja-
em parte anedóticos, mas que também são em parte proféticos e explica- mentos ou diagnósticos, embora, se o fizer, possa perguntar-se outra
tivos. Não estabelece uma lei mas descreve u m acontecimento em termos vez com propriedade se está a pensar ou não naquilo que está a
que estão impregnados de u m a lei. O verbo «emigrar» t r a n s m i t e uma m u r m u r a r . Pode pensar-se, por vezes que uma pessoa habituada a
mensagem biológica, t a l como o verbo «dissolver» t r a n s m i t e uma men- monologar, como Hamiet, não está a aplicar o seu espírito a uma dada
sagem da química. «Está a emigrar» j u s t i f i c a a inferência «é tarefa, precisamente porque o está a aplicar à tarefa secundária de
migratória», t a l como «está a dissolver-se» j u s t i f i c a a inferência «é monologar acerca da tarefa primária, e por vezes uma pessoa que devia
solúvel». tentar conversar em francês distrair-se efectivamente do assunto, con-
Igualmente, quando se pergunta porque é que uma pessoa está a versando consigo própria na sua própria língua acerca do modo pelo
ler certo l i v r o , é muitas vezes correcto responder «porque está interes- qual se está a conduzir. Pensar ou prestar atenção ao que se está a
sada no que está a ler». Mas estar a ler o l i v r o interessada não é fazer fazer não implica fazer constante ou periodicamente lances de prosa
ou sofrer duas coisas, t a l como o interesse ser a causa da leitura. O inteligente. Pelo contrário, fazer lances de prosa inteligente é precisa-
interesse explica a leitura do mesmo modo geral, embora não do mente u m exemplo entre outros de pensar ou prestar atenção ao que se
mesmo modo específico, pelo qual o emigrar explica o voar para o Sul. está a fazer, visto que é dizer coisas pensando no que se está a dizer.
Assinalei u m facto sobre os conceitos de atenção, designadamente É uma espécie e não uma condição causal da actuação cuidadosa. Mas
que é adequado ordenar ou pedir a alguém que preste atenção, tome evidentemente que dizer didàcticamente, dar e receber inteligentemente,
cuidado, tome nota, estude muito, etc. Mas é evidente que não podemos é muitas vezes uma orientação indispensável para a execução. Há
ordenar a uma pessoa simplesmente que preste atenção e que tome muitas coisas que não podemos fazer, ou pelo menos fazer bem, a não
144 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 145
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS

ser que prestemos atenção a instruções apropriadas e oportunas, mesmo De igual modo, u m i m i t a d o r expressa apenas algumas palavras ou
quando temos de ser nós próprios os autores dessas instruções. E m faz alguns gestos, mas pronuncia essas palavras ou faz esses gestos
tais casos, tentar fazer u m a coisa implica t a n t o t e n t a r d a r a si próprio para representar as palavras e gestos do autor o r i g i n a l . Se o a u t o r
as instruções certas na a l t u r a devida, como tentar segui-las. o r i g i n a l tivesse falado ou agido de qualquer outro modo, o i m i t a d o r
Devemos considerar agora u m tipo de acção que, embora completa- teria também feito o mesmo. Ele não t e m de dizer simultaneamente a
mente de carácter não inventivo, envolve u m certo g r a u de atenção, si próprio ou aos seus companheiros que este é o modo pelo qual o a u t o r
porque as acções i n s t i n t i v a s e puramente habituais ou reflexas não o r i g i n a l falou ou gesticulou. M o s t r a r como ele falou ou encolheu os
envolvem atenção. U m soldado que f i x a a sua baioneta em obediência ombros não t e m necessidade de ser prefaciado ou acompanhado por
a uma ordem pode fazê-lo através dos mesmos movimentos do que u m qualquer comentário, dado que a habilidade descritiva é m u i t a s vezes
outro que a f i x a com qualquer outro propósito. «Obedientemente» não i n f e r i o r à habilidade histriónica. O i m i t a d o r produz as suas palavras
significa u m modo muscular especial de actuação nem denota ou implica ou encolhimentos de ombros como fac-símiles dos do sujeito imitado,
qualquer auto-comunhão ou auto-instrução. Se não lhe f o i ordenado que mas não t e m de a f i r m a r correntemente que esses actos são fac-símiles.
fizesse esses movimentos e se realmente os faz, eles não explicam o f i x a r Mas qual é a intensidade desta palavra «como» quando dizemos
da baioneta, dado que seguir as próprias instruções seria simplesmente que uma pessoa faz algo como a acção ordenada ou como u m fac-símile
u m o u t r o exemplo de actuar obedientemente. Aliás, f i x a r a baioneta ou como prática, ou como u m meio para u m f i m , ou como u m jogo, ou,
obedientemente é certamente fixá-la com o pensamento, em certo sen- em geral, como execução de u m programa específico? Qual é a diferença
tido de que isto f o i o que lhe mandaram fazer. Não o t e r i a feito se a entre fazer certos movimentos por simples mecanismo e tentar satisfa-
ordem tivesse sido diferente ou m a l ouvida, e se lhe perguntassem por- zer certos requisitos específicos, fazendo provavelmente movimentos
que o fez, responderia sem hesitação fazendo referência à ordem. perfeitamente similares? Ou qual é a diferença entre f i x a r baionetas
N e m está a fazer duas coisas, como f i x a r a baioneta e obedecer em conformidade com uma ordem e f i x a r baionetas com o f i m de l u t a r ?
a uma ordem, do mesmo modo que a ave a emigrar não estava a voar Não é suficiente, embora seja verdade, dizer que o soldado f i x a
para o Sul e a fazer ou a sofrer alguma coisa mais. E l e obedece à a sua baioneta com u m propósito, designadamente com o propósito de
ordem fixando a sua baioneta. A pergunta «Ele deu atenção à ordem?» fazer o que lhe f o i d i t o ou com o propósito de se defender, dado que a
é satisfatoriamente respondida p o r : «Sim, ele f i x o u a baioneta no mo- nossa questão significa que, dado que « A ave está a emigrar» e «O
mento em que a ordem f o i dada». Mas certamente que podia não t e r soldado está a f i x a r a sua baioneta obedientemente», ambas são a f i r m a -
ouvido a ordem e ter fixado a baioneta simplesmente por brincadeira e ções categóricas mistas. Qual é então a diferença assinalada entre elas,
acontecer que isso fosse feito no momento certo. Nesse caso, seria falso quando dizemos que o soldado está, mas a ave não está, a aplicar o seu
dizer que f i x o u a baioneta em obediência a uma ordem. espírito ou a actuar com u m propósito?
Podíamos dizer que o seu objectivo primário era obedecer a quais- Pelo menos uma parte mínima da resposta é esta: dizer que u m
quer ordens que lhe fossem dadas pelo seu sargento. Se perguntamos torrão de açúcar está a dissolver-se, uma ave a emigrar ou u m homem
« A que estava a aplicar o seu espírito?», a resposta é «Às ordens». a pestanejar, não implica que o açúcar tenha aprendido a tornar-se
Estava disposto a f i x a r a baioneta se fosse isso que o sargento lhe líquido, que a ave tenha aprendido a voar para o s u l no Outono ou
ordenasse. A descrição do seu estado de espírito contém uma referência que o homem tenha aprendido a pestanejar quando está assustado. Mas
directa às ordens e apenas uma referência indirecta, porque condicional, dizer que u m soldado f i x o u obedientemente a sua baioneta ou que a
ao acto de f i x a r a baioneta. A sua acção de f i x a r a baioneta é, por f i x o u para se defender, implica que aprendeu algumas lições e não as
assim dizer, executada entre parêntesis. Ele faz isso como a coisa esqueceu. O novo recruta, ao o u v i r a ordem de f i x a r a baioneta ou ao
particular efectivamente ordenada. Está no estado de espírito de fazer ver u m soldado i n i m i g o aproximar-se, não sabe o que fazer com a sua
seja o que f o r que lhe ordenem, incluindo f i x a r a baioneta. Este acto baioneta, como o fazer e quando o deve fazer ou não. Pode,nem sequer
de f i x a r é condicionalmente retro-previsível como u m valor da condição saber como i n t e r p r e t a r as ordens ou obedecer-lhes.
variável que f o i cumprido. Nem todas as capacidades adquiridas ou propensões podem ser
i. p. — 1 0
146 INTRODUÇÃO À P S I C O L O G I A PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 147

classificadas como qualidades do espírito. O hábito de adormecer para tenha ocorrido que pode aparecer u m b u r r o de uma r u a lateral. Pode
o lado d i r e i t o não é uma qualidade da inteligência ou do carácter. O estar pronto para tais contingências sem as ter previsto. Na verdade,
hábito de dizer «Tralará» em voz alta ou para si próprio ao o u v i r a poderia tê-las previsto sem estar pronto para as enfrentar.
palavra «Tralari» é u m hábito peculiar que adquirimos embora não d i - Atrás, neste mesmo capítulo, ocupei-me em explicar porque é que,
gamos que é u m acto peculiar que aprendemos. Ê u m hábito que se r a d i - embora aplique o espírito a uma tarefa, isso não consiste em conjugar
ca, mas não tentámos radicá-lo nem o usamos ou aplicamos normalmen- uma operação de inspecção ou investigação com a execução de uma
te. Aprender coisas de cor sem t e n t a r fazê-lo é o ponto em que a aprendi- tarefa, ainda que esperemos que. uma pessoa que aplica o seu espírito
zagem desaparece. Até mesmo aprender poemas de cor, quando feito a qualquer coisa seja capaz de nos dizer, sem investigação, em que
com aplicação, embora seja uma f o r m a p r i m i t i v a de aprender, dá está empenhada ou ocupada. Prestar atenção não é uma operação se-
origem não só à capacidade superficial para r e c i t a r esses poemas, como cundária de teorizar, se bem que pareça i m p l i c a r ter na ponta da
também à capacidade mais valiosa para aprender outras espécies de língua as respostas a perguntas teóricas sobre a operação primária.
coisas de cor, assim como a capacidade ainda mais valiosa de o r i g i n a r Como posso ter conhecimento do que fiz ou senti sem estar distraído,
todas as espécies de capacidades para estudar. É uma lição p r i m i t i v a a menos que fazer ou sentir alguma coisa com o meu espírito nela
que se t o r n a i n s t r u t i v a em geral. incorpore pelo menos a l g u m estudo do que estou a fazer ou a sentir?
Como poderia descrever agora o que não inspeccionei previamente?
As crianças, os semi-analfabetos, os soldados antiquados e alguns
pedagogos têm tendência para supor que ser ensinado ou treinado U m a parte da resposta parece ser esta: nem todas as conversas,
consiste em se t o r n a r capaz, simplesmente, de produzir o eco exacto e sobretudo a maior parte das conversas rudimentares, consistem em
das lições ensinadas. Mas isto é u m erro. Não diríamos que uma criança comunicar assuntos de conhecimento. Por exemplo, não começamos por
fez mais do que começar a aprender a tabuada da multiplicação se tudo dizer à criança os nomes das coisas em que ela não tem interesse de
o que ela pudesse fazer fosse recitá-la do princípio ao f i m correctamen- momento. Começamos por lhe dizer os nomes das coisas nas quais ela
te. Não a aprendeu bem a não ser que possa dar prontamente a resposta t e m interesse. O uso dos nomes das coisas é assim injectado no interesse
certa a qualquer problema fácil de multiplicação (inferior a 12x13) e pelas coisas. De u m modo paralelamente semelhante, damos à criança
a não ser que possa aplicar a sua tabuada para dizer, por exemplo, instruções, conselhos, demonstrações, repreensões e encorajamentos
quantos dedos dos pés há numa sala onde estão seis pessoas. N e m se sobre o que ela está a t e n t a r fazer. Não esperamos até que esteja desocu-
diz que u m homem é u m alpinista se pode trepar apenas às mesmas pada para lhe ensinar como as coisas devem ser feitas. N e m o facto de o
rochas em que aprendeu a trepar, nas mesmas condições em que f o i ensino ser concorrente com a acção a d i s t r a i necessariamente dessa
ensinado e fazendo exactamente os mesmos movimentos que fez ao ser acção. Tentar agir de acordo com os ensinamentos faz parte de t e n t a r
ensinado. Aprender é tornar-se capaz de fazer coisas correctas ou fazer a coisa, e a criança, ao mesmo tempo que aprende a fazer a coisa,
apropriadas em quaisquer situações de certas espécies gerais. Ê estar aprende também a compreender melhor e a aplicar as lições, ao fazê-la.
preparado para chamadas variáveis dentro de certas classes. A p a r t i r desta a l t u r a , ela aprende também a desempenhar o papel duplo
de i n s t r u t o r e aluno, aprende a ensinar-se a si própria e a prestar
Descrever alguém a fazer uma coisa com u m certo g r a u ou uma
atenção ao seu próprio ensino, isto é, a fazer seguir as suas acções
certa espécie de atenção não é apenas dizer que teve alguma preparação
às suas palavras.
para isso, mas que está efectivamente a responder a uma chamada
concreta e satisfazendo assim aquilo que satisfaria ou satisfará em U m bom árbitro não toca o seu apito a todos os momentos do
resposta a quaisquer outras chamadas da mesma classe que possam jogo, nem o jogador bem treinado deixa de aplicar o seu espírito ao
ter surgido ou que venham a surgir. Está n u m estado de espírito de jogo todas as vezes que presta atenção ao apito do árbitro; antes pelo
«aptidão» porque faz o que faz com prontidão, porque t a n t o faz o que contrário, mostra que não está a aplicar o espírito ao jogo, a menos
faz com aptidão para o fazer precisamente nesta situação, como está que atenda ao apito do árbitro. Todos nós estamos treinados em certo
apto a fazer algumas de quaisquer outras coisas que possa ser solicitado g r a u para sermos os nossos próprios árbitros e embora não estejamos
a fazer. Descrever u m m o t o r i s t a a t o m a r cuidado não implica que lhe durante todo o tempo, ou durante a m a i o r parte dele, a tocar os nossos
148 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 149

próprios apitos, estamos na maior parte das vezes aptos ou semi-aptos


é próprio dizer de alguém que marcou u m golo em determinado mo-
a tocá-los se a situação o exigir e aptos também a agir de acordo com
mento, resolveu anagramas repetidas vezes, que compreendeu r a p i -
eles quando são tocados.
damente u m anedota ou encontrou rapidamente o dedal. A l g u m a s
As intervenções do árbitro no jogo são normalmente peremptórias palavras desta classe significam apogeus ou desenlaces mais ou menos
em vez de serem descritivas ou informativas. Ele está a l i para assegurar súbitos; outras significam procedimentos mais ou menos prolongados. O
o prosseguimento do jogo e não para esclarecer os jornalistas sobre dedal é encontrado, o adversário deu xeque-mate ou venceu a corrida
o que está a acontecer. Ele toma decisões e aplica sanções em vez de n u m momento especificável, mas o segredo pode ser guardado, o i n i m i g o
fazer relatos. Mas estar apto a t o m a r uma decisão apropriada quando manter a distância ou o comando ser conservado durante u m longo
o estado do jogo o exige, é também estar apto a fazer u m relato se os lapso de tempo. A espécie de êxito que consiste em divisar o falcão
jornalistas o reclamarem. Ele sabe que ordens deve dar e assim sabe difere deste modo da espécie de êxito que consiste em não o perder
que factos relatar. Mas não t e m de estudar as suas ordens para j u n t a r de vista.
certos factos. Resumidamente, necessita apenas de ajustar o seu t o m
Os verbos com que vulgarmente expressamos estas obtenções e
de voz para dizer prosaicamente o que de o u t r o modo teria sido d i t o
conservações são verbos activos como «ganhar», «descobrir», «encon-
peremptoriamente ou regulado incisivamente. Dizer coisas no modo
trar», «curar», «convencer», «provar», «enganar», «desvendar», «sal-
indicativo é dizê-las de modo mais sofisticado, porque mais desapai-
vaguardar» e «ocultar». E este facto g r a m a t i c a l fez com que as pes-
xonado.
soas, à excepção de Aristóteles, esquecessem as diferenças de compor-
De modo semelhante, se devidamente treinados, podemos, na maior tamento entre verbos desta classe e outros verbos de actividade ou
parte das vezes, dar a nós próprios ordens formais, sugestões e veredic- processo. Por exemplo, as diferenças entre dar u m pontapé e fazer uma
tos mais ou menos pertinentes e contribuintes seja para o que f o r com ferida, entre t r a t a r e cicatrizar, entre perseguir a caça e encontrá-la,
que nos estejamos a ocupar de momento. Quando fazemos a transição de entre a g a r r a r e conservar seguro, entre escutar e ouvir, olhar e ver,
fazer a nós próprios a advertência pertinente ou dizer coisas judiciosas, v i a j a r e chegar têm sido interpretadas, se é que f o r a m notadas, como
para fazer aos interrogadores (que podemos também ser nós próprios) diferenças entre espécies coordenadas de actividade ou processo, quan-
as descrições correctas, não temos de fazer pesquisas, mas temos de nos do de facto as diferenças são de outro género completamente diferente.
e x p r i m i r de u m modo diferente. Saber o que responder pertinentemente F o i sempre mais fácil menosprezar estas diferenças, visto que m u i t a s
a alguns requisitos é saber também o que responder pertinentemente vezes pedimos emprestados verbos de realização para significar a exe-
a outros requisitos. Quando não podemos falar m u i t o a nós próprios cução da tarefa correspondente quando há esperanças de êxito. Pode
do que estamos a fazer como explicadores ou juízes, a inventar anedotas, descrever-se u m corredor a ganhar a c o r r i d a desde o princípio, apesar
ler caracteres ou compor versos, também não podemos dizer muito a de poder não a ganhar no f i m , e u m médico pode gabar-se de que está
quem nos interroga acerca do que estamos a fazer. Falamos então de a curar o seu doente de penumonia, quando o seu t r a t a m e n t o não
«inspiração» e «intuição» e isso isenta-nos de termos de responder a resulta de facto no restabelecimento previsto. «Ouvir» é muitas vezes
perguntas. usado como sinónimo de «escutar», e «emendar» como sinónimo de
«tentar emendar».
(5) REALIZAÇÕES
U m a grande diferença entre a intensidade lógica de u m verbo de
tarefa e o verbo correspondente de realização é que ao aplicar u m verbo
Existe uma outra classe de palavras episódicas que merece uma
de realização estamos a a f i r m a r que certo estado de u m assunto vai
atenção especial para o f i m que temos em vista, especialmente a classe
para além do que consiste na execução, se houver alguma da actividade
de palavras episódicas que rotulámos noutro lugar de «palavras de
subordinada da tarefa. Porque, para u m corredor ganhar, não basta
realização», «palavras de êxito» ou «palavras de conseguiinento», j u n -
que corra, mas também que os seus r i v a i s cheguem à meta depois dele.
tamente com as suas antíteses, as «palavras de malogro» ou «palavras
Para u m medido efectuar uma cura, o seu paciente deve ser t r a t a d o e
de perda». Estas são palavras episódicas genuínas, porque certamente
ficar bom de novo. Para uma pessoa que procura encontrar u m dedal é
PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 151
150 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

ninho lenta ou rapidamente, sistemática ou casualmente. Os advérbios


necessário que esse dedal esteja no lugar indicado por ela no momento
adequados aos verbos de tarefa não o são, em geral, aos verbos de
em que o indica, e para u m matemático provar u m teorema este deve ser
realização. E m p a r t i c u l a r os advérbios de atenção como «cuidadosamen-
verdadeiro e concluir-se das premissas através das quais ele tenta de-
te», «atentamente», «estudiosamente», «vigilantemente», «consciencio-
m o n s t r a r que o teorema se conclui. U m a n a r r a t i v a auto-biográfica dos
samente» e «persistentemente» não podem ser usados para qualificar
exercícios e sensações de uma pessoa que pratica acções não diz, em s i ,
verbos cognitivos como «descobrir», «provar», «resolver», «detectar»
se conseguiu levar a b o m t e r m o o que estava a t e n t a r fazer. E l a pode
ou «ver», t a l como não podem qualificar verbos como «chegar»,
reivindicar precipitadamente b êxito esperado, mas retirará as suas
«reparar», «comprar» ou «conquistar».
reivindicações se descobrir que, apesar de t e r feito o melhor que podia,
alguma coisa correu m a l . R e t i r o a m i n h a afirmação de t e r visto u m a E x i s t e m muitos verbos episódicos que são usados para descrever
gralha tipográfica ou de que convenci u m leitor se descobrir que não assuntos da vida i n q u i s i t i v a dos seres humanos, e o facto de não se notar
havia g r a l h a ou que o leitor deu o seu voto ao meu adversário. que alguns deles são verbos de realização f o i a origem de algumas
U m a consequência deste ponto geral é que é sempre significativo, confusões g r a t u i t a s e, de acordo com elas, de algumas teorias mistério.
embora nem sempre verdadeiro, a t r i b u i r u m êxito, t o t a l ou parcialmen- Postulou-se que alguns actos cognitivos e operações especiais corres-
te, à sorte. U m relógio pode ser reparado por u m golpe do acaso e o pondiam a verbos como «ver», «ouvir», «provar», «deduzir» e «recor-
tesouro pode ser desenterrado pela p r i m e i r a pàzada. dar», do mesmo modo pelo qual os actos e operações familiares
Segue-se também que pode haver realizações que não são precedidas correspondem a expressões como «dar pontapés», «correr», «olhar»,
pela execução de tarefas. Por vezes encontramos coisas sem procurar, «escutar», «altercar» e «dizer», como se descrever u m a pessoa a olhar
obtemos entrevistas sem as pedir e chegamos a conclusões verdadeiras e a ver fosse o mesmo que descrevê-la a passear e a falar, em vez de ser
sem termos pesado a evidência. Resultados assim obtidos sem trabalho como descrevê-la a pescar à linha e a apanhar o peixe ou a procurar
são muitas vezes descritos como «dados». U m a boa pescaria é «dada», e a encontrar. Mas os verbos de percepção não podem, como os verbos
u m a pescaria u m pouco mais difícil é «oferecida», uma pescaria difícil de procura, ser classificados por expressões como «com êxito», «em
é «feita». vão», «metodicamente», «ineficazmente», «laboriosamente», «preguiço-
Quando se descreve uma pessoa que l u t o u e ganhou ou que viajou samente», «rapidamente», «cuidadosamente», «relutantemente», «zelo-
e chegou, não se diz que fez duas coisas, mas que fez uma coisa com u m samente», «obedientemente», «deliberadamente» ou «confiantemente-.
certo desfecho. De igual modo, uma pessoa que tentou e falhou não Não se baseiam em acções ou modos de estar ocupado. A fortiori não
trocou uma ocupação por outra, mas fez uma coisa que f o i u m malogro. significam acções secretas ou modos de estar intimamente ocupado.
Assim, ao passo que esperamos que uma pessoa que tentou realizar Para falar claro, não pertencem ao vocabulário do jogador, mas s i m
alguma coisa seja capaz de nos dizer, sem investigações, em que estava ao do árbitro. Não são tentativas, mas coisas conseguidas por tentativas
empenhada, não esperamos necessariamente que seja capaz de nos dizer ou por sorte.
sem investigação se a realizou. As realizações e os malogros não são
Os epistemologistas confessaram por vezes que acharam as supos-
ocorrências que possam ser objecto daquilo a que muitas vezes se
tas actividades cognitivas de ver, ouvir e i n f e r i r u m tanto elusivas.
chama, erradamente, «revelação imediata». Não são actos, exercícios,
Se diviso u m falcão, descubro o falcão mas não me descubro a m i m
operações ou execuções, mas, com reserva para as realizações consegui-
próprio a ver o falcão. O acto de eu ver o falcão parece ser u m a espécie
das por sorte, o facto de que certos actos, operações, exercícios e
de processo estranhamente transparente no aspecto de que, enquanto
actuações t i v e r a m certos resultados.
u m falcão é detectado, nada mais é detectado como resposta ao verbo
É por isso que podemos dizer significativamente que alguém tentou
em «ver u m falcão». Mas o mistério desvenda-se quando percebemos
em vão ou com êxito, mas não a t i n g i u o seu objectivo em vão ou com
que « v e r » , «divisar» e «descobrir» não são palavras de processos de
êxito, que o médico t r a t o u o seu doente com ou sem assiduidade, mas
experiência ou de actividade. Não simbolizam acções ou reações con-
não que o curou com ou sem assiduidade, que alguém sondou a sebe
fusamente indetectáveis, do mesmo modo que «ganhar» não simboliza
lenta ou rapidamente, sistemática ou casualmente, mas não que v i u o
152 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 153

uma parte da corrida confusamente indetectável, ou «abrir» uma fecha- a sua doença ou ganhar uma corrida sem ser o p r i m e i r o a chegar à meta.
dura u m a parte não descrita de d a r a volta à chave. A razão porque Não há decerto incompatibilidade entre perder uma corrida e r e i v i n d i c a r
não posso d a r comigo a ver ou a deduzir é porque estes verbos são do tê-la ganho, ou entre t e r agravado uma doença e gabar-se de a t e r
t i p o errado para completar a frase «apanhar-me a...». As perguntas curado. Dizer simplesmente «eu vejo u m falcão» não implica que esteja
«o que está a fazer?» e «o que estava ele a experimentar?» não podem u m falcão no lugar designado, embora dizer com verdade «eu vejo u m
ser respondidas por «a ver», «a concluir» ou «a dar xeque-mate». falcão» o implique.
A distinção entre verbos de tarefa e verbos de realização, ou Esta assimilação de certos verbos chamados cognitivos à classe
verbos de «tentar» e verbos de «conseguir», dá lugar a o u t r a confusão geral dos verbos de realização esclarece tudo. O facto de que o compor-
teórica. Compreendeu-se há m u i t o tempo que verbos como «saber», tamento lógico de «deduzir» é sob certos aspectos semelhante ao de
«descobrir», «resolver», «provar», «perceber», «ver» e «observar» (pelo «tomar nota», «dar xeque-mate», «abrir uma fechadura» não implica
que seja semelhante em todos os aspectos. N e m chegar a uma conclusão
menos em certos usos clássicos de observar), não podem ser qualificados
é, sob todos os aspectos, como chegar a Paris. A minha argumentação
por advérbios como «erroneamente» e «incorrectamente». Interpretando
teve a intenção principal de m o s t r a r não só porque é errado, mas
automaticamente estes verbos e outros semelhantes como significando
também porque é tentador, postular acções e reacções misteriosas como
géneros especiais de operações ou experiências, alguns epistemologistas
correspondendo a cercas palavras episódicas familiares e descritivas.
sentiram-se na obrigação de postular que as pessoas possuem certos
processos especiais de inquirição, seguindo 0 3 quais não estão sujeitas
ao risco de errar. Não necessitam, e na verdade não podem, executá-los
cuidadosamente, porque eles não dão oportunidade para se t e r cuidado.
A impossibilidade lógica de u m a descoberta «infrutífera» ou de uma
prova não ser válida f o i m a l interpretada como uma impossibilidade
quase-causal de se enganar. Se apenas se seguisse o caminho certo, se
só se desse a primazia à faculdade adequada, não poderiam deixar de
se seguir observações perfeitas ou intuições auto-evidentes. Deste modo,
os homens são por vezes infalíveis. De igual modo, se acertar no alvo
fosse interpretado como uma espécie especial de t e n t a t i v a e se c u r a r
fosse interpretado como u m a espécie especial de tratamento, então,
visto que logicamente nada poderia ser uma falta, seguir-se-ia que
e x i s t i r i a m modos de t e n t a r e t r a t a r que seriam à prova de erro.
E x i s t i r i a m alguns atiradores temporariamente infalíveis e alguns médi-
cos ocasionalmente infalíveis.
Outros epistemologistas, sentindo aversão à atribuição de i n f a l i b i -
lidade, mesmo temporária, dos seres humanos, t o m a r a m uma posição
igualmente impossível. Interpretando outra vez automaticamente os
verbos de realização como simbolizando espécies especiais de operações
ou experiências, a f i r m a r a m que as operações e experiências em que
assentam não são ao f i m e ao cabo à prova do erro. Podemos saber o
que não é, provar coisas falazmente, resolver problemas erradamente
e ver n u m lugar o que não está lá para ser visto, o que é o mesmo que
dizer que podemos acertar «fora» do alvo, curar u m paciente agravando
AUTO-CONHECIMENTO 155

Privilegiado aos seus próprios actos, o que torna o seu autoconheci-


mento superior em qualidade, t a l como prioritário em génese, à sua
compreensão de outras coisas. Posso duvidar da evidência dos meus
sentidos, mas não dos veredictos de consciência ou da introspecção.
Admitiu-se sempre uma limitação ao poder do espírito de descobrir
estados e operações mentais, designadamente que, ao passo que posso
ter conhecimento directo dos meus próprios estados e operações, não o
posso t e r no que se refere às outras pessoas. Sou consciente das minhas
CAPITULO VI
próprias sensações, volições, emoções e pensamentos e verifico intros-
pectivamente alguns deles. Mas não posso observar introspectivamente
ou t e r consciência do trabalho do espírito de outrem. Posso convencer-
AUTOCONHECIMENTO -me de que as pessoas têm u m espírito por inferências complexas e
efémeras do que o corpo delas faz.
Esta teoria do duplo Acesso Privilegiado ganhou t a n t a força nos
pensamentos dos filósofos, psicólogos e muitos leigos, que se pensa
(1) PROLOGO
frequentemente que é suficiente dizer em nome do dogma do espírito,
como se ele fosse u m segundo palco, que a sua consciência e introspec-
U m a consequência n a t u r a l da teoria de que o espírito constitui ção descobre as cenas desempenhadas nele. Com vista ao que estou a
u m mundo diferente do «inundo físico» é a teoria de que existem argumentar, a consciência e a introspecção não podem ser aquilo que
processos de descobrir o conteúdo deste o u t r o mundo, processos estes tem sido descrito oficialmente, visto que os seus supostos objectos são
que são contrapartidas dos nossos processos de descobrir o conteúdo mitos. Mas os defensores do dogma do fantasma na máquina têm
do mundo físico. Descobrimos pela percepção dos sentidos o que existe tendência para argumentar que os objectos imputados à consciência
e acontece no espaço. Assim, o que existe ou acontece no espírito deve e à introspecção não podem ser mitos, visto termos consciência deles
também ser descoberto por meio da percepção, mas de uma espécie e podermos observá-los introspectivamente. A realidade destes objectos
diferente e refinada, que não requer o funcionamento dos grosseiros é garantida por credenciais veneráveis destes supostos modos de os
órgãos corporais. descobrir.
Mais que isto, pensou-se que era necessário m o s t r a r que o espírito Neste capítulo, tento portanto m o s t r a r que as teorias oficiais da
possui poderes de aprender os seus próprios estados e operações, consciência e introspecção são confusões lógicas. Mas, evidentemente,
superiores aos que possui para apreender factos do mundo externo. Se não tento estabelecer que não sabemos ou não podemos saber o que há
eu sei, acredito, conjecturo ou até sinto curiosidade pelas coisas que
para saber a respeito de nós próprios. Pelo contrário, tentarei m o s t r a r
estão fora de m i m , supõe-se que devo t e r apreensões constantes à prova
como atingimos esse conhecimento, mas somente depois de ter provado
de erro das minhas próprias acções cognitivas.
que não se atinge este conhecimento por consciência ou introspecção,
Portanto, sustenta-se muitas vezes (1) que o espírito não pode como estes supostos Acessos Privilegiados são normalmente descritos.
deixar de t o m a r constantemente conhecimento de todos os supostos
Para que algum leitor não se sinta desanimado ao pensar que está
ocupantes do seu palco íntimo e (2) que pode também examinar, por
privado do Acesso Privilegiado ao seu suposto mundo interior, posso
uma espécie de percepção não sensorial, pelo menos alguns dos seus
acrescentar a consoladora promessa de que, na descrição que farei do
próprios estados e operações. Supõe-se, além disso, que tanto estas
autoconhecimento, o conhecimento do que há para saber acerca das
constantes tomadas de conhecimento (geralmente chamadas «consciên-
outras pessoas e o método de o descobrir é m u i t o semelhante. As
cia») , t a l como a percepção i n t e r i o r não sensorial (geralmente chamada
espécies de coisas que posso descobrir sobre m i m próprio são as mesmas
«introspecção») estão isentas de erro. O espírito t e m u m duplo Acesso
espécies de coisas que posso descobrir sobre as outras pessoas e os meto-
AUTO-CONHECIMENTO 157
156 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

para indicar que alguém chegou à fase de prestar atenção às suas


dos de as descobrir são exactamente os mesmos. U m a diferença residual
próprias qualidades de carácter e inteligência, independentemente de
no fornecimento dos pormenores indispensáveis faz alguma diferença de
estar ou não embaraçado com as opiniões das outras pessoas a seu
g r a u entre o que posso saber acerca de m i m próprio e o que posso saber
acerca de outrem, mas nem todas estas diferenças são a favor do auto- respeito. Quando o rapaz começa a notar que t e m j e i t o para a mate-
conhecimento. Sob certos aspectos bastante importantes, é mais fácil mática ou que t e m menos saudades de casa do que a maior parte das
para m i m saber o que quero saber acerca de outrem do que descobrir as pessoas suas conhecidas, começa a ser «autoconsciente» nesse sentido
mesmas espécies de coisas sobre m i m mesmo. Noutros aspectos também mais vasto.
importantes, é mais difícil. Mas, em princípio e na prática, os processos A autoconsciência, neste sentido lato, é certamente de importância
de Fulano descobrir coisas sobre Fulano são os mesmos por meio dos p r i m o r d i a l para o comportamento na vida e o seu conceito é p o r t a n t o
quais Fulano descobre coisas acerca de Cicrano. Abandonar a esperança de importância para a Ética. Mas o seu uso ingénuo não implica
do Acesso Privilegiado é também abandonar o receio do isolacionismo doutrinas especiais acerca de como uma pessoa f o r m u l a e verifica as
epistemologista. Perdemos o amargor com a doçura do Solipsismo. suas opiniões sobre as suas próprias qualidades de carácter e inteligên-
cia ou como as compara com as das pessoas suas conhecidas.
(2) CONSCIÊNCIA Os vocábulos freudianos «Inconsciente» e «Subconsciente» estão
estreitamente ligados a este uso de «consciente», porque pelo menos
Antes de começar a discutir o conceito ou conceitos dos filósofos parte do que se significa ao descrever o ciúme, as fobias e os impulsos
sobre a consciência, é conveniente considerar alguns sentidos em que eróticos como «inconscientes» é que as suas vítimas não reconhecem a
as palavras «consciente» e «consciência» são usadas, quando indepen- sua força ou até a sua existência e de u m certo modo não quererão
dentes de teorias especiais, na vida comum. reconhecê-las. Elas esquivam-se a uma parte da tarefa de analisarem
(a) A s pessoas f a l a m muitas vezes deste modo: «Eu estava que espécie de pessoas são ou d e t u r p a m sistematicamente as suas
consciente de que a mobília t i n h a sido restaurada» ou «Eu estava apreciações. A pergunta epistemológica de como é que uma pessoa
consciente de que ele estava menos afável do que de costume». Neste f o r m a opiniões certas ou erradas sobre as suas próprias predisposições
sentido, a palavra «consciente» é usada em vez das palavras «descobrir», não é, ou não necessita de ser, secundada pelo conceito freudiano da
«compreendi» e «achei», para indicar uma certa nebulosidade e conse- etiologia, pelo diagnóstico, prognóstico e cura das tendências para se
quente incapacidade de e x p r i m i r a apreensão. A mobília pareceu de
esquivar ou deturpar tais opiniões.
certo modo diferente, mas o observador não poderia dizer qual era a
(d) Completamente diferente dos usos precedentes de «consciente»,
diferença, ou a atitude do homem era pouco cortês n u m certo número
de aspectos, mas a pessoa que falava com ele não poderia enumerá-los «autoconsciente» e «inconsciente» é o uso em que se diz que uma
ou especificá-los. Se bem que existam problemas filosoficamente inte- pessoa entorpecida ou anestesiada perdeu a consciência dos pés até aos
ressantes acerca da imprecisão, assim como da inexprimibilidade das joelhos. Neste sentido, «consciente» significa «sensitivo» ou «sensível»
coisas nebulosas, o uso de «consciente» não implica a existência de e «inconsciente» significa «anestesiado» ou «insensível». Dizemos que
quaisquer faculdades, métodos ou vias de apreensão especiais. A q u i l o uma pessoa perdeu a consciência quando deixou de ser sensível a
de que estamos conscientes, neste sentido, pode ser u m facto físico ou quaisquer bofetadas, ruídos, picadas ou cheiros.
u m facto relativo ao estado de espírito de alguém. (e) Diferente, embora estreitamente ligado a este último uso, é o
(b) Usa-se muitas vezes «consciente» e «auto-consciente» ao des- sentido no qual se pode dizer que uma pessoa está inconsciente de uma
crever o embaraço mostrado por pessoas, especialmente pessoas jovens, sensação física, quando não lhe dá atenção. U m a pessoa que v a i a andar
que se preocupam com as opiniões das outras sobre as suas qualidades empenhada numa acalorada discussão pode estar inconsciente da sensa-
de carácter ou intelecto. A timidez e a afectação são modos pelos quais ção de ter bolhas nos calcanhares e o leitor destas palavras, quando co-
a autoconsciência, neste sentido, é vulgarmente mostrada. meçou a ler esta frase, estava provavelmente inconsciente das sensações
(c) «Autoconsciente» é por vezes usado n u m sentido mais geral, musculares e epidérmicas do seu pescoço ou do seu joelho esquerdo. U m a
158 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTO-CONHECIMENTO 159

pessoa pode também não ter consciência de que está a f r a n z i r as sobran- no íntimo. Mas alguns pontos são suficientemente claros. Não se supõe
celhas, a bater o compasso da música ou a resmungar. que, quando estou a procurar, digamos, a resposta a u m enigma e estou
«Consciente» neste sentido significa «atento» e faz sentido dizer ipso facto consciente de o estar a fazer, estou a executar simulta-
que uma sensação é notada a custo, mesmo quando é moderadamente neamente dois actos de atenção, u m referente ao enigma e outro à
aguda, designadamente quando a atenção da vítima está fortemente minha procura acerca dele. Nem, para generalizar este ponto, se supõe
fixada em qualquer o u t r a coisa. Reciprocamente, uma pessoa pode que o meu acto de procurar e o meu autoconhecimento dessa operação
prestar m u i t a atenção a sensações fantasiadas. Quando por exemplo são para m i m actos distintos ou processos indissoluvelmente ligados.
está com medo de ter apendicite, estará agudamente consciente de dores Recorrendo necessariamente a comparações, supõe-se que os processos
no abdómen que não são de modo a l g u m agudas. Neste sentido também, mentais são fosforescentes como as águas dos mares tropicais que se
uma pessoa pode estar intensamente consciente, pouco consciente ou t o r n a m visíveis pela luz emitida por elas próprias. Ou, para usar outra
completamente inconsciente de sensações tais como formigueiros de comparação, os processos mentais são «ouvidos por acaso» pelo espírito
ansiedade ou vertigens de dúvida. do qual são processos, u m pouco como a pessoa que fala ouve por acaso
O facto de uma pessoa prestar atenção às suas sensações or- as palavras que pronuncia.
gânicas e do espírito não implica que esteja isenta de e r r a r acerca Quando pela p r i m e i r a vez o conceito de consciência dos epistemo-
delas. Pode enganar-se acerca das suas causas e das suas localizações. logistas se tornou popular, parece ter sido em parte por uma aplicação
Além disso, pode enganar-se acerca de serem reais ou fictícias, como transformada da noção Protestante de consciência. Os Protestantes
acontece com os hipocondríacos. «Prestar atenção» não denota u m sustentaram que u m homem podia saber qual o estado moral da sua
comportamento p a r t i c u l a r de certezas cognitivas. alma e os desejos de Deus, sem a ajuda de confessores e directores
Os filósofos, principalmente a p a r t i r de Descartes, t r a b a l h a r a m espirituais. Falavam portanto da «luz» dada por Deus à consciência
nas suas teorias do conhecimento e do comportamento com u m conceito privada. Quando se pensou que as representações do mundo mecânico
de consciência que tem relativamente pouca afinidade com quaisquer de Descartes e Galileu t o r n a v a m necessário que se salvasse o espírito
dos conceitos acima descritos. Usando a noção de espírito como se do mecanicismo representando-o como u m outro mundo, sentiu-se a ne-
fosse u m segundo teatro, os episódios nele decorridos gozam do suposto cessidade de explicar como é que o conteúdo deste mundo espiritual
estatuto de «mental» e falta-lhes correspondentemente o suposto esta- podia ser verificado, não só sem ajuda de estudo, como também sem
t u t o de «físico». Pensadores de muitas espécies consideraram-no como o auxílio do sentido de percepção. A metáfora da «luz» parecia ser
a propriedade positiva principal destes episódios que, quando ocorrem, particularmente apropriada, desde que a ciência de Galileu t r a t o u tão
ocorrem conscientemente. Os estados e operações de u m espírito são vastamente do mundo óptico descoberto. A consciência f o i levada a
estados e operações de que esse espírito é necessariamente «sabedor», representar no mundo mental o papel desempenhado pela luz no mundo
em certo sentido desta palavra, e este conhecimento não pode ser mecânico. Neste sentido metafórico, pensou-se que o conteúdo do mundo
ilusório. As coisas que u m espírito faz ou experimenta são conhecidas mental era autoluminoso ou refulgente.
dele próprio e supõe-se que esta característica destes actos e sensações Este modelo foi de novo empregado por Lo,cke quando descreveu
se verifica não apenas algumas vezes, mas sempre. Faz parte da a análise deliberada e observacional que u m espírito pode fazer de vez
definição de que são mentais que a sua ocorrência implique que sejam em quando sobre os seus estados correntes e sobre o seus processos.
dados ao conhecer. Se eu penso, espero, lembro, desejo, lamento, oiço Chamou a esta suposta percepção interior «reflexão» (a nossa «intros-
u m ruído ou sinto uma dor, devo ipso facto, sabê-lo. Mesmo se sonho pecção»), pedindo emprestada a palavra «reflexão» ao fenómeno f a m i -
que vejo u m dragão, devo ter conhecimento da minha visão do liar óptico das reflexões na face dos espelhos. O espírito pode «ver» ou
dragão, embora admita muitas vezes que posso não saber que estou a «olhar para» as suas próprias operações, à luz dada por elas próprias.
sonhar. O m i t o da consciência é uma peça para-óptica.
É naturalmente difícil, se se nega a existência do segundo teatro, Estas imagens de «ouvir por acaso», «fosforescência» ou «auto-
explicar o que significa descrever os episódios que se supõe terem lugar luminosidade», sugerem outra distinção que deve ser feita. Ê certa-
160 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 161

mente verdade que quando faço, sinto ou presencio alguma coisa, e isto será provavelmente interpretado como u m argumento de que os
poderia dar e normalmente dou uma atenção rápida retrospectiva ao processos mentais são, n u m certo sentido depreciativo, inconscientes,
que fiz, senti ou presenciei. Guardo, na m a i o r parte das vezes, uma talvez do mesmo modo que muitas vezes não posso descrever os meus
espécie de rasto ou vestígio daquilo de que me ocupo, de modo que, se movimentos habituais ou reflexos. Para me salvaguardar desta inter-
me perguntarem o que acabei de ouvir, ver ou dizer, posso dar nor- pretação errónea, direi em p r i m e i r o lugar, m u i t o sumariamente, que
malmente uma resposta correcta. É certo que nem sempre posso na maioria dos casos sabemos em que estamos ocupados, mas que não
relembrar efectivamente o passado imediato ou ainda, poucos momentos é necessário qualquer alusão a fosforescências para explicar como ob-
depois de ter sido acordado de manhã, não me recordo de que me estava temos esse conhecimento. E m segundo lugar, que saber aquilo em que
a recordar de que me t i n h a recordado... de ouvir bater à porta. U m estamos ocupados não implica uma supervisão ou u m a análise incessan-
acontecimento daria origem a uma série i n f i n i t a de recordações dele, te e efectiva dos nossos actos e sensações, mas a propensão, inter alia,
não me deixando l u g a r para prestar atenção a quaisquer outros para os confessar, quando estamos na disposição de o fazer. E , em
acontecimentos subsequentes. Há portanto u m sentido próprio no terceiro lugar, que o facto de que em geral sabemos aquilo em que
qual se pode dizer que sei em que é que se esteve a ocupar o estamos ocupados não implica que encontremos por acaso quaisquer
meu n o t a r ou semi-notar, designadamente que poderia fazer o seu acontecimentos em estado de fantasma.
relato de memória, se para t a l houvesse ocasião. Isto não exclui a A objecção radical à teoria de que o espírito deve saber aquilo em
possibilidade de que posso por vezes fazer u m relato errado, porque que está ocupado, porque os acontecimentos mentais são, por definição,
mesmo as reminiscências recentes não estão isentas de descuido ou de conscientes ou metaforicamente autoluminosos, é que tais aconteci-
influências. mentos não existem. Não são ocorrências que tenham l u g a r n u m mundo
O objectivo de mencionar este facto de que poderíamos geralmente, de segundo estatuto, dado que nem esse estatuto nem esse mundo
se necessário, relatar em que é que acabámos de estar ocupados, é que existem e, consequentemente, não há necessidade de modos especiais de
a consciência, como normalmente se descreve, difere desta conservação nos reconhecermos a nós próprios como cidadãos desse mundo. Mas
da memória dos factos em u m ou dois aspectos importantes. E m p r i - existem também outras objecções que não dependem da aceitação ou
meiro lugar, de acordo com a teoria, os processos mentais são cons- da rejeição do dogma do fantasma na máquina.
cientes, não no sentido de que os descrevemos ou poderíamos descrever Primeiro, e este argumento deve ser entendido apenas como per-
post mortem, mas no sentido de que as comunicações das suas próprias suasivo, ninguém que não esteja comprometido com uma teoria f i l o -
ocorrências são propriedades das próprias ocorrências e portanto não sófica tentará sustentar quaisquer das suas asserções de facto dizendo
são posteriores a elas. Os supostos veredictos da consciência, se pudes- que descobriu «pela consciência» ou «por uma comunicação directa
sem ser expressos verbalmente, seriam expressos no presente e não no da consciência» ou «por conhecimento imediato». Apoiará algumas
pretérito perfeito. Supõe-se, além disso, que ao estar consciente dos das suas asserções de facto dizendo que vê, ouve, sente, cheira ou prova
meus estados e actos mentais presentes, sei o que estou a experimentar isto e aquilo. Apoiará outras afirmações, de modo mais tentador, d i -
e a fazer n u m sentido não predisposicional de «saber», o que quer dizer zendo que se lembra de ver, ouvir, sentir, cheirar ou provar. Mas se
que não é simplesmente o caso de que eu poderia, se a ocasião se lhe perguntarem se realmente sabe, acredita, infere, receia, lembra
proporcionasse, dizer a m i m próprio ou a o u t r e m o que estou a experi- ou cheira alguma coisa, nunca responde: «Ah, claro que s i m , porque
mentar ou a fazer, mas que tenho conhecimento activo dessas experiên- estou consciente e mesmo agudamente consciente disso». Essa resposta
cias ou acções. E m b o r a não se produza u m acto duplo de atenção, seria, de acordo com a doutrina, a sua apelação f i n a l .
mesmo quando descubro que o meu relógio parou, estou a descobrir Segundo, supõe-se que o facto de eu estar consciente dos meus
simultaneamente que estou a descobrir que o meu relógio parou." U m a estados e operações mentais é o meu conhecimento deles ou é o campo
verdade acerca de m i m próprio dardeja ou cintila em m i m no mesmo necessário e suficiente para esse conhecimento. Mas dizer isto é abusar
momento em que uma verdade sobre o meu relógio é verificada por m i m . da lógica e mesmo da gramática do verbo «conhecer». Saber e ser igno-
A r g u m e n t a r e i que a consciência, descrita deste modo, é u m m i t o rante é saber e não saber que qualquer coisa é, como por exemplo que
i . P. — 1 1
162 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 163

aquele estrondo é o r i b o m b a r do trovão ou que aquela superfície colo- posição de dizer: «Aqui estou eu a notar o facto de que estou a deduzir
r i d a é a casca do queijo. E é precisamente neste ponto que a metáfora isto e aquilo disto e daquilo». E então nunca mais se p a r a r i a . Teria
da luz é inútil. A boa iluminação ajuda-nos a ver a casca do queijo, de haver u m número i n f i n i t o de cascas de cebola da consciência a
mas não poderíamos dizer « A luz era demasiadamente má para que eu envolver qualquer estado ou processo mental. Se se rejeita esta con-
pudesse conhecer a casca do queijo», visto que conhecer não é o mesmo clusão, terá de se a d m i t i r que alguns elementos dos processos mentais
que olhar para e o que é conhecido não é a mesma espécie de coisa do não são em s i coisas de que possamos ser conscientes, designadamente
que o que é iluminado. É verdade que podemos dizer «Devido à escu- aqueles elementos que constituem os supostos auto-reconhecimentos
ridão não pude reconhecer o que v i como uma casa de queijo», mas extremos dos processos mentais e então «consciente» não poderia con-
ainda desta vez reconhecer o queijo não é outra acção óptica. Não t i n u a r a fazer parte da definição de «mental».
pedimos uma lâmpada para nos ajudar a ver e outra para nos Portanto, o argumento de que os acontecimentos mentais são
ajudar a reconhecer o que vemos. Assim, mesmo que existisse autênticos, porque as comunicações da consciência são testemunhos
alguma analogia entre uma coisa ser iluminada e u m processo mental directos indiscutíveis da sua existência, deve ser rejeitado. O mesmo
ser consciente, não se concluiria que o possuidor do processo o reco- acontece com o argumento parcialmente paralelo das descobertas da
nhecesse por aquilo que ele era. Posso explicar de u m modo concebível introspecção.
como é que os processos mentais são discerníveis, mas possivelmente
não poderia descobrir verdades e evitar c o r r i g i r erros acerca delas. (3) INTROSPECÇÃO

Também não há contradição em a f i r m a r que alguém pode enga-


nar-se ao reconhecer o seu estado de espírito por aquilo que é. N a ver- «Introspecção» é u m termo técnico com pouco uso nas descrições
dade, é notório que as pessoas fazem isso constantemente. Supõem erra- que as pessoas fazem de si próprias, quando não se t r a t a de especia-
damente que sabem coisas que efectivamente são falsas. Iludem-se listas. O adjectivo «introspectivo» é mais usado, vulgarmente n u m sen-
sobre os seus próprios motivos. Surpreendem-se a notar que o relógio tido inofensivo, para significar que alguém dá mais atenção do que
parou, sem terem, conforme pensam, t i d o conhecimento de que estava é costume aos problemas teóricos e práticos acerca do seu próprio
a t r a b a l h a r . Não sabem que estão a sonhar, quando efectivamente o carácter, capacidade, deficiências e singularidades. Faz-se muitas vezes
estão, e por vezes não têm a certeza de não estar a sonhar quando na a sugestão adicional de que a pessoa está anormalmente ansiosa acerca
realidade estão acordadas, e negam de boa-fé que estão i r r i t a d a s ou destes assuntos.
excitadas quando agitadas de u m destes modos. Se a consciência fosse O termo técnico «introspecção» tem sido usado para designar
aquilo que se diz ser, estas falhas e erros do reconhecimento seriam uma suposta espécie de percepção. Supõe-se que se uma pessoa estiver
logicamente impossíveis. n u m momento particular a escutar uma flauta, a saborear u m vinho
Finalmente, mesmo se o auto-reconhecimento, que se supõe ser ine- ou a olhar para uma queda de água, poderá «olhar», n u m sentido não
rente a qualquer estado ou processo mental, não f o r descrito como óptico, para alguns estados ou processos mentais decorrentes nela
necessitando de u m acto separado de atenção ou como constituindo uma própria. O estado ou processo está a ser investigado deliberada e aten-
operação cognitiva separada, aquilo de que se está consciente n u m tamente e pode p o r t a n t o ser incluído numa lista dos objectos da sua
processo de i n f e r i r é, digamos, diferente do acto de inferir, mas o meu observação. Por o u t r o lado, a introspecção é descrita como uma obser-
acto de i n f e r i r é talvez de premissas geométricas para conclusões geo- vação sob muitos aspectos, de sentido diferente. As coisas que se olham
métricas. A expressão verbal da minha inferência deveria ser «Pj-qua ou escutam são objectos públicos observáveis, em princípio, por qual-
este triângulo é equilátero, cada u m dos seus ângulos t e m 60 graus», quer observador convenientemente situado, ao passo que se supõe que
mas a expressão daquilo de que estou consciente deveria ser «Aqui estou só o possuidor de u m estado ou processo mental é capaz de o observar
eu a dizer isto e aquilo, disto e daquilo». Mas, se assim fosse, pare- introspectivamente. Também no caso da percepção dos sentidos, ela
ceria que f a r i a sentido perguntar se, de acordo com a doutrina, não implica o funcionamento de órgãos corporais, tais como os olhos, os
estou também consciente de estar consciente de i n f e r i r , isto é, em ouvidos ou a língua, enquanto a introspecção implica o funcionamento
164 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 165

de órgãos não corporais. Por último, a percepção dos sentidos nunca falarmos de atenção indivisa sugere que a divisão da atenção constitui
está isenta da possibilidade de embotamento ou mesmo de ilusão, ao uma possibilidade, se bem que algumas pessoas descrevessem a divisão
passo que, de acordo, sob certo aspecto, com as teorias mais arrojadas, da atenção como u m comutador alterno que ligasse e desligasse
a capacidade de uma pessoa observar os seus processos mentais é sem- a atenção, em vez de se fazer a sua distribuição simultânea. Mas m u i t a s
pre perfeita. Pode não t e r aprendido como explorar essa capacidade ou pessoas que começam por confiar em que fazem introspecção, t a l como
como d i s c r i m i n a r as suas descobertas, mas está imunizada contra quais- ela é descrita oficialmente, acabam por t e r dúvidas sobre se a fazem,
quer obstáculos de surdez, estigmatismo, daltonismo, encadeamento ou quando se convencem de que t e r i a m de estar a prestar atenção a duas
muscae volitantes. Nestas teorias, a percepção interna é u m padrão de coisas ao mesmo tempo para a poderem fazer. Têm mais a certeza de
percepção verídica, com a qual a percepção dos sentidos nunca pode que não prestam atenção a duas coisas simultaneamente do que a têm
rivalizar. de estar a fazer introspecção.
Supõe-se que as descobertas da introspecção diferem, pelo menos Contudo, mesmo se se a r g u m e n t a r que ao fazer introspecção es-
n u m aspecto, dos supostos veredictos da consciência. A introspecção tamos a prestar atenção a duas coisas ao mesmo tempo, admitir-se-á
é uma operação atenta que só se executa ocasionalmente, enquanto se que há u m certo l i m i t e para os números de actos possíveis simultâneos
supõe que a consciência é u m elemento constante de todos os processos da atenção e daqui se conclui que deve haver alguns processos mentais
mentais e cujas revelações não necessitam de ser captadas por actos que não podem ser objecto de introspecção, designadamente as intros-
especiais de atenção. Além disso, fazemos introspecção com a intenção pecções que incorporam o número máximo possível de actos simultâneos
de encontrar resposta para problemas particulares, ao passo que esta- de atenção. Levantar-se-ia então a questão, para os defensores da teoria,
mos conscientes de desejar ou não fazê-lo. Todas as pessoas estão cons- de saber como é que se descobriria que estes actos estavam a ocorrer,
tantemente conscientes quando acordadas mas só fazem introspecção visto que se este conhecimento não era adquirido introspectivamente,
aquelas que de tempos a tempos se interessam pelo que se passa no seu seguir-se-ia que o conhecimento de uma pessoa sobre os seus processos
espírito. mentais não poderia ser sempre baseado na introspecção. Mas se este
Admitir-se-ia que só as pessoas com u m treino especial pudessem conhecimento nem sempre assenta na introspecção, é lícito perguntar
falar de «fazer introspecção», mas em frases do género de «Deu con- se alguma vez isso acontece. E s t a objecção poderia ser contrariada
sigo a preocupar-se com a maneira de fazer isto ou aquilo» ou «Quando por recurso à outra forma de Acesso Privilegiado. Sabemos que fazemos
dou comigo em pânico faço isto e aquilo», o homem v u l g a r exprime introspecção, não por fazermos introspecção das nossas introspecções,
pelo menos parte do que a palavra significa. mas pelos testemunhos directos da consciência. Para os hóspedes de
Supondo agora (a sua negação constitui o objectivo negativo deste Caribdes, Cila parece ser o mais hospitaleira possível.
l i v r o ) que existem acontecimentos da postulada categoria fantasma, Quando os psicólogos eram menos cautelosos do que se t o r n a r a m
haveria ainda objecções a fazer à afirmação inicialmente plausível de depois, costumavam sustentar que a introspecção era a principal fonte
que existe também uma espécie de percepção capaz de contar quais- das informações empíricas acerca do t r a b a l h o do espírito. N a t u r a l m e n t e ,
quer destes acontecimentos como objectos da sua propriedade. Para não se sentiam embaraçados ao descobrir que os factos empíricos des-
uma só coisa, que seria a ocorrência de t a l acto de percepção interna, critos por u m psicólogo entravam por vezes em conflito com os relata-
seria necessário que o observador pudesse prestar atenção a duas coi- dos por outra pessoa. Censuravam-se uns aos outros, muitas vezes
sas ao mesmo tempo. E s t a r i a , por exemplo, a resolver levantar-se cedo justamente, por terem declarado que t i n h a m descoberto por introspec-
e ao mesmo tempo a observar o seu acto de resolver, a prestar atenção ção precisamente os fenómenos mentais que as suas teorias pré-concebi-
ao programa de se levantar cedo e a ter como objecto de percepção o das os t i n h a m levado a esperar encontrar. A i n d a se dão disputas sobre o
acto de prestar atenção ao acto de estar atento a este programa. Esta que no fundo poderia ser solúvel por meio da introspecção, se as teorias
objecção não é talvez logicamente fatal, visto que se poderia argumentar da vida i n t e r i o r e da percepção interna fossem verdadeiras. Os teóricos
que certas pessoas podem, depois de alguma prática, combinar a atenção discutem, por exemplo, se existem actividades da consciência distintas
ao domínio de u m carro com a atenção a uma conversa. O facto de das do intelecto e distintas da h a b i t u a l deferência em relação aos tabus.
166 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 167

Porque é que eles não olham e vêem? Ou, se o fazem, porque é que dos objectos da retrospecção. Posso surprender-me a devanear do
as suas descrições não correspondem a e3sas acções? Mais uma vez, mesmo modo que a coçar-me, posso dar comigo empenhado n u m
muitas pessoas que fazem teoria acerca do comportamento humano, monólogo silencioso do mesmo modo que a dizer alguma coisa em
declaram que existem certos processos sui generis correspondentes à voz alta.
descrição de «volições». A r g u m e n t e i que tais processos não existiam. É verdade e importante que o que recordo é sempre algo expres-
Porque argumentamos acerca da existência destes processos, quando sável sob a f o r m a de «eu próprio a fazer isto ou aquilo». Não me
a questão se poderia decidir tão facilmente como a questão de saber recordo do ribombar de u m trovão, mas de ter ouvido o ribombar do
se a cebola cheira ou não na despensa? trovão, ou dou comigo a praguejar, mas não apanho o leitor, no mesmo
Há uma última objecção a fazer contra os defensores da introspec- sentido, a praguejar. Os objectos da minha retrospecção são partes da
ção, a que f o i feita por Hume. E x i s t e m alguns estados de espírito que minha autobiografia mas, embora pessoais, não necessitam de ser,
não podem ser examinados calmamente, visto que estarmos nesses embora possam ser, partes íntimas ou silenciosas dessa autobiografia.
estados implica que não estejamos calmos ou o facto de estarmos calmos Posso lembrar-me de ter visto coisas t a l como me posso recordar de ter
implica que não estejamos nesses estados. Ninguém poderia analisar imaginado coisas, os meus actos manifestos t a l como as minhas sensa-
introspectivamente o estado de pânico ou fúria, visto que o carácter ções. Posso descrever os cálculos que estive a fazer de cabeça mas
desapaixonado da observação científica não é, pela própria definição de também posso descrever os cálculos que f i z no caderno.
«pânico» ou «fúria», o estado de espírito em que se encontra a vítima A retrospecção suportará uma parte da carga que f o i atribuída
de tais perturbações. Igualmente, já que uma explosão de alegria à introspecção, mas não toda, e em particular não suportará a parte
não é o estado de espírito de u m experimentalista prudente, o d i v e r t i - que se refere a parcelas filosoficamente preciosas ou frágeis. À parte
mento causado por uma anedota também não é u m acontecimento sobre o facto de que mesmo a recordação imediata pode estar sujeita a
o qual se possa fazer introspecção. Estados de espírito com estas evaporações e diluições, por muito exactamente que possa recordar uma
agitações mais ou menos violentas só podem ser examinados em acção ou sensação, posso ainda enganar-me quanto ao reconhecimento
retrospectiva. Aliás, esta restrição não t e m qualquer consequência da sua natureza. Se a dor que senti ontem e lembro hoje foi de
desastrosa. Não estamos menos informados sobre o pânico ou sobre compaixão genuína ou de culpa não é necessariamente mais óbvio para
a alegria do que sobre outros estados de espírito. Se a restrospecção m i m pelo facto de a sua memória ser vívida. A s crónicas não são
nos pode dar os pormenores de que necessitamos para o conhecimento explicativas daquilo que relatam. O facto de a retrospecção ser auto-
de certos estados de espírito, não há razão para que não se faça o biográfica não implica que nos faculte u m Acesso Privilegiado a factos
mesmo com todos eles. E parece que isto é sugerido pela frase popular de u m estatuto especial, mas dá-nos certamente u m conjunto de porme-
«dar consigo a fazer isto ou aquilo». Surpreendemo-nos a fazer qualquer nores que contribuem para a apreciação do nosso próprio comportamen-
coisa, continuamos e ultrapassamos, e o facto já se está a afastar de nós. to e das qualidades do nosso espírito. U m Diário não é uma crónica de
Surpreendo-mc a deambular por u m caminho nas montanhas depois, episódios fantasmagóricos, mas é uma fonte valiosa de informações
ou talvez m u i t o pouco tempo depois, de t e r começado a deambular ou sobre o carácter, inteligência e carreira da pessoa que o escreve.
surpreendo-me a cantar u m a ária somente quando as primeiras notas
f o r a m já entoadas. A retrospecção imediata ou demorada é u m processo (4) AUTOCONHECIMENTO SEM ACESSO PRIVILEGIADO
genuíno que está l i v r e das perturbações resultantes da suposição de
que a atenção se divide multiplamente. Está também isenta das d i f i -
Argumentou-se de vários modos que quando falamos do espírito
culdades resultantes da suposição de que as agitações violentas pode-
de uma pessoa não estamos a falar de u m segundo palco de incidentes
r i a m ser objecto de uma análise calma feita durante essas agitações.
de estatuto especial, mas de certos modos pelos quais os incidentes da
Portanto, parte do que as pessoas têm em mente quando falam sua única vida são ordenados. A sua vida não é uma série dupla de
vulgarmente de fazer introspecção é este processo autêntico de retros- acontecimentos que têm lugar em duas espécies de substâncias dife-
pecção. Mas não há nada de intrinsecamente fantasmagórico acerca rentes, mas sim uma concatenação de acontecimentos cujas diferenças
168 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 169

entre umas classes e outras consistem largamente na aplicabilidade ou palavras, respostas absurdas. Sugerem que, para uma pessoa saber
inaplicabilidade a elas de tipos logicamente diferentes de proposições- que tem preguiça ou que fez uma soma cuidadosamente, deve ter dado
-leis e proposições semelhantes a leis.. A s asserções acerca do espírito uma espreitadela num quarto sem janelas, iluminado por uma espécie
de uma pessoa são portanto asserções especiais sobre essa pessoa. de luz peculiar, a que só ela tem acesso. E quando a pergunta é
Assim, as perguntas acerca das relações entre uma pessoa e o seu interpretada deste modo, as perguntas paralelas «Que conhecimento
espírito, como as que se fazem acerca das relações entre o seu corpo pode uma pessoa ter do trabalho de um outro espírito?» e «Como é que
e o seu espírito, são totalmente inadequadas, e são tão inadequadas como o consegue?» parecem excluir pelas suas próprias palavras qualquer
a pergunta: «Quais são as transacções entre a Câmara dos Comuns resposta, porque sugerem que uma pessoa só podia saber que outra
e a Constituição Britânica?» estava com preguiça ou que tinha feito uma soma cuidadosamente,
Segue-se que há uma incorrecção lógica quando se diz, como os espreitando para um quarto secreto, ao qual, ex hypothesi, não tem
teóricos frequentemente fazem, que o espírito de alguém sabe isto ou acesso.
escolheu aquilo, embora esse facto possa, se assim se desejar, ser De facto, o problema não é desta espécie. É simplesmente a pergun-
classificado como um facto mental dessa pessoa. No mesmo aspecto, y ta metodológica de como estabelecemos e aplicamos certas espécies de
é também em parte impróprio falar dos meus olhos a ver isto ou do proposições semelhantes a leis acerca do comportamento manifesto e
meu nariz a cheirar aquilo. Deveríamos antes dizer que eu vejo isto ou V privado das pessoas. Aprecio a habilidade e táctica de um jogador de
cheiro aquilo e que estas asserções acarretam alguns factos relativos xadrez, vendo-o a ele e a outros a jogar xadrez, e sei que um certo
aos meus olhos e ao meu nariz. Mas a analogia não é exacta, porque ao aluno meu é preguiçoso, ambicioso ou espirituoso, seguindo o seu tra-
passo que os meus olhos e o meu nariz são órgãos dos sentidos, o «meu balho, as suas desculpas, ouvindo as suas conversas e comparando as
espirito» não significa «outro órgão». Significa a minha capacidade ou suas acções com as dos outros. E não faz muita diferença se esse aluno
propensão para fazer certas espécies de coisas e não uma peça de um for eu. Neste caso, posso na verdade ouvir mais conversas dele, porque
aparelho pessoal sem o qual não faria ou não poderia fazer essas coisas. sou o destinatário dos seus monólogos silenciosos e tomo nota das suas
Igualmente, a Constituição Britânica não é uma outra instituição desculpas, porque nunca estou ausente quando ele as dá. Por outro
política funcionando lado a lado com o funcionalismo civil, a Magis- lado, a minha comparação das suas acções com as dos outros é mais
tratura, a Igreja, o Parlamento e a Família Real. Não é a soma dessas difícil, dado que o próprio examinador tem de se submeter ao exame,
instituições ou o elo de ligação entre elas. Podemos dizer que a Inglater- o que torna difícil manter a neutralidade e exclui o comportamento do
ra foi às urnas eleitorais mas não podemos dizer que a Constituição candidato ser bem visto, quando sob interrogatório.
Britânica fez o mesmo, embora o facto de a Inglaterra ter ido às urnas Repetindo um ponto já focado, a questão não é a pergunta-total
pudesse ser descrito como um facto constitucional da Inglaterra. «Como é que eu descubro que eu e você temos um espírito?» mas a
Efectivamente, se bem que nem sempre seja conveniente evitar a classe de perguntas específicas do tipo «Como é que eu descubro que sou
prática, há um considerável arrojo lógico no uso dos substantivos mais altruísta do que você, que sei fazer bem divisões mas faço mal
«espírito» e «espíritos». A linguagem facilita que se interpretem propo- equações de cálculo diferencial, que você sofre de certas fobias e tem
sições impropriamente lógicas de conjunções, disjunções e causa-efeito, ^tendência para se esquivar a certas espécies de factos, que me irrito
tais como: «Isto e aquilo teve lugar não no meu corpo mas sim no meu 2 " mais facilmente que a maioria das pessoas mas que sou menos sujeito
espírito», «O meu espírito fez a minha mão. escrever», «O corpo e o O ^ j Ç * "a cair em pânico, vertigens ou estados de morbidez?» Além dest.s
espírito de uma pessoa actuam um sobre o outro», etc. Quando é x ' : p e r g u n t a s puramente pre&sjosiciojttais, existe também uma classe de
exigida clareza lógica, devíamos seguir o exemplo dos romancistas, •tf? perguntas sobre acções particulares e ocorrências do tipo «Como é que
biógrafos e autores de diários, que apenas falam das pessoas a fazer eu descubro que percebi a anedota e você não, que a sua acção foi mais
ou a experimentar coisas. corajosa do que a minha, que o serviço que lhe prestei foi prestado por
A s perguntas «Que conhecimento pode uma pessoa ter do trabalho um sentido de dever e não na esperança de glória, que se bem que não
do seu próprio espírito?» e «Como o obtém?» sugerem, pelas próprias tenha compreendido completamente o que foi dito na altura, consegui
170 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 171

compreendê-lo quando pensei nisso depois, enquanto você compreendeu preendeu o argumento se ela pudesse responder a todas as perguntas-
desde o início, que eu estava melancólico ontem?» Perguntas desta -teste sobre ele, mas sem descrever nenhum estalido de compreensão.
espécie não oferecem qualquer mistério. Sabemos m u i t o bem o que Por outro lado, deveria também notar-se que, embora não haja modo
fazer para encontrar as respostas a elas e, embora não possamos muitas de especificar a quantos ou a quais sub-testes uma pessoa deve ser
vezes resolvê-las definitivamente e tenhamos que nos deter em meras capaz de responder para ser qualificada como tendo compreendido
conjecturas, mesmo assim não temos dúvidas sobre a espécie de perfeitamente o argumento, isto não implica que u m número i n f i n i t o de
informações que seriam necessárias para satisfazer os nossos requisitos, sub-testes seja sempre suficiente. Para concluir se u m rapaz sabe fazer
se as pudéssemos obter, e sabemos como obtê-las. Por exemplo, depois contas de d i v i d i r , não lhe pedimos que faça u m milhão, u m m i l h a r ou
de escutar u m argumento, o leitor a f i r m a que o compreendeu perfeita- mesmo u m cento de problemas diferentes de divisão. Não ficaríamos
mente, mas pode ter-se iludido ou t e n t a r iludir-me. Se então nos sepa- completamente convencidos depois de o ter conseguido uma vez, mas
ramos por u m dia ou dois, já não posso saber se o leitor o compreendeu depois de vinte já o estaríamos, desde que as divisões fossem c r i t e r i o -
ou não perfeitamente, mas ainda sei que espécie de testes esclareceriam samente variadas e que o rapaz não as tivesse feito antes. U m bom
este ponto. Se o leitor tivesse repetido o argumento pelas suas próprias professor, que não se limitasse a registar as soluções correctas e
palavras ou se o tivesse traduzido para francês, se tivesse inventado incorrectas do rapaz mas que observasse também o seu processo de
exemplos concretos apropriados das generalizações e abstracções con- chegar a elas, convencer-se-ia m u i t o mais depressa e ainda mais
tidas no argumento, se tivesse sustentado correctamente outras conse- depressa se convenceria se fizesse com que o rapaz descrevesse e
quências dos diferentes aspectos do argumento e indicado pontos em justificasse as operações inerentes que executou, se bem que muitos
que esta teoria era incompatível com outras, se tivesse inferido cor- rapazes saibam fazer contas de d i v i d i r e não possam descrevê-las nem
rectamente da natureza do argumento as qualidades de inteligência e j u s t i f i c a r as operações executadas ao fazê-las.
carácter do seu a u t o r e previsto de modo exacto o desenvolvimento
Quando muito, descubro os meus motivos e os do leitor, se bem
subsequente da sua teoria, então não me seria necessária mais nenhuma
que não exactamente do mesmo modo por que descubro as minhas e as
evidência de que o leitor o t i n h a compreendido perfeitamente. E
suas capacidades. A grande diferença prática é que não posso pôr o
exactamente as mesmas espécies de testes convencer-me-iam de que
sujeito à prova, por meio das minhas perguntas, sobre as suas inclina-
eu o t i n h a compreendido perfeitamente. As únicas diferenças seriam
ções, como posso fazer a respeito das suas capacidades. Para descobrir
que eu não t e r i a provavelmente exprimido em voz alta as minhas
se o leitor é pretensioso ou p a t r i o t a , tenho ainda de observar o seu
deduções, exemplos, e t c , mas tê-las-ia dito para m i m próprio mais
comportamento, comentários, procedimento e t o m de voz, mas não o
superficialmente, em monólogo silencioso, e ter-me-ia provavelmente
posso submeter a testes ou experiências que o reconheçam como t a l .
convencido mais facilmente da minha completa compreensão do que
O leitor t e r i a u m m o t i v o especial para respoder a certas experiências
da do leitor.
de u m modo particular. Talvez por mera presunção, t e n t a r i a comportar-
E m resumo, faz parte do significado de «Você compreendeu» o -se modestamente ou por mera modéstia poderia t e n t a r comportar-se
poder fazer isto e aquilo, e que o f a r i a dadas tais e tais condições, presunçosamente. Não obstante, a observação diária serve normalmente
e o teste para saber se compreendeu é uma classe de acções que satisfaz para esclarecer estas questões. Ser pretencioso é ter tendência para se
a apódose destas afirmações gerais hipotéticas. Deveria notar-se, por vangloriar das próprias qualidades, desprezar ou r i d i c u l a r i z a r as defi-
u m lado, que não há nenhuma acção de núcleo singular, quer seja ciências dos outros, devanear a respeito de t r i u n f o s imaginários, entre-
manifesta, quer se passe dentro da cabeça, que determine que uma gar-se a reminiscências de t r i u n f o s reais, enfastiar-se rapidamente com
pessoa compreendeu u m argumento. Mesmo se essa pessoa disser que conversas desfavoráveis a si próprio, esbanjar quando acompanhado
sentiu u m estalido ou teve u m clarão de compreensão, e se realmente de pessoas importantes e economizar quando na companhia de pessoas
assim aconteceu, teria ainda de dar o u t r a prova de ter compreendido o humildes. Os testes para saber se uma pessoa é pretensiosa são as
argumento se achasse que não podia parafraseá-lo, exemplificá-lo, acções que pratica e as reações que manifesta em tais circunstâncias.
desenvolvê-lo ou remodelá-lo, e essa pessoa concordaria que outra com- Não são precisas muitas anedotas, zombarias ou delações da pessoa
172 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 173

sujeita a observação para que o observador vulgar possa decidir-se, a pudesse ser uma simulação, não poderiam ser simulações todas as
menos que aconteça que o candidato e o examinador sejam idênticos. acções e reacções? Não poderiam todas as apreciações de comportamen-
A averiguação das capacidades mentais e das propensões de uma to dos outros e de nós próprios ser uniformemente ilusórias ? A s pessoas
pessoa é u m processo indutivo, uma indução para proposições do tipo de sentem por vezes u m embaraço análogo acerca da percepção dos sen-
leis a p a r t i r de acções e reacções observadas. Tendo averiguado estas tidos, porque visto não haver nada que impeça qualquer aparência
qualidades duradouras, explicamos uma acção ou reacção particular sensível particular de ser uma ilusão, parece não haver nada que
aplicando o resultado dessa indução ao novo exemplo, salvo quando impeça que todas elas sejam ilusões.
confissões sinceras nos dão a explicação sem necessidade de investiga- Contudo, o perigo da ilusão universal é vazio de sentido. Sabemos
ção. Estas induções não são evidentemente levadas a efeito em condições o que é simular. É comportar-se deliberadamente do mesmo modo que
de laboratório, t a l como as previsões dos pastores sobre o tempo e a se comportam as pessoas que não estão a simular. Simular contrição
compreensão de u m médico sobre a constituição particular de u m é usar gestos, maneiras de falar, palavras e acções iguais às das
paciente, mas são normalmente bastante fidedignas. Igualmente, as pessoas que estão contritas. Tanto o hipócrita como a pessoa que é
características atribuídas por examinadores perspicazes que conhecem iludida devem portanto saber o que é estar c o n t r i t o e não simplesmente
bem as pessoas examinadas e que têm uma razoável s i m p a t i a pelos saber o que é simular estar contrito. Se vulgarmente não classificás-
candidatos, têm tendência para ser mais ou menos certas. A s dos exa- semos correctamente as pessoas contritas como contritas, não podería-
minadores inferiores tendem a dispersar-se mais largamente da ordem mos ser levados a pensar que o hipócrita estava realmente contrito.
devida. O objectivo destes truísmos é recordar-nos de que na vida real Além disso, sabemos o que é ser hipócrita, ou seja, parecer movido por
estamos completamente familiarizados com as técnicas de avaliar as u m motivo diferente do m o t i v o real. Sabemos que espécie de truques
pessoas e explicar as suas acções, se bem que de acordo com a teoria são usados pelo hipócrita. Possuímos, embora n e m sempre o possamos
padrão essas técnicas não pudessem existir. aplicar, o critério pelo qual podemos j u l g a r se estes truques estão ou
Há uma classe de pessoas cujas qualidades e estados de espírito não a ser usados e se estão a ser usados inteligente ou estupidamente.
são particularmente difíceis de apreciar, designadamente as que simu- Assim, podemos umas vezes, e outras não, detectar as hipocrisias, mas
l a m qualidades que não têm e dissimulam qualidades que possuem. mesmo quando não podemos, sabemos que espécies de indicações suple-
Refiro-me aos hipócritas e charlatães, às pessoas que s i m u l a m motivos mentares, se pudéssemos obtê-las, denunciariam o hipócrita. Por exem-
e disposições e às que s i m u l a m capacidades. I s t o passa-se com muitos plo, gostaríamos de ver como ele actuaria se lhe dissessem que a causa
de nós em alguns trechos da vida e com alguns de nós em muitos trechos pela qual finge devoção exige metade da sua f o r t u n a ou da sua vida.
da vida. È sempre possível simular motivos e capacidades diferentes O mais que necessitamos, embora frequentemente não o possamos
dos reais ou simular intensidades de motivos e níveis de capacidades obter, é u m experimentam crucis, t a l como o médico frequentemente
diferentes das intensidades e níveis reais. O teatro não poderia existir necessita, mas não pode obter, u m experimentum crucis para decidir
se não fosse possível fazer tais simulações e fazê-las eficientemente. entre dois diagnósticos. Estabelecer que há h i p r o c r i s i a e charlatanismo é
Além disso, é sempre possível a uma pessoa enganar-se a s i própria ou uma tarefa indutiva que difere das tarefas indutivas vulgares de deter-
às outras pessoas, representando u m papel (o que não acontece com os m i n a r motivos e capacidades apenas por ser u m a segunda ordem de i n -
espectadores no teatro, visto que pagaram para ver representar pessoas dução. É t e n t a r descobrir se alguém está a t e n t a r modelar as suas acções
que se anunciam a s i próprias como actores). Assim, parece à p r i m e i r a pelo que eu e ela descobrimos indutivamente ser o comportamento das
vista que nunca se pode t e r conhecimento certo do próprio espírito ou pessoas que não estão a simular. Quando nós e o hipócrita aprendemos
do espírito dos outros, visto que não há uma espécie de comportamento como é demonstrada a hipocrisia, temos que enfrentar uma segunda or-
observável de que possamos dizer: «Provavelmente ninguém poderia dem de hipócritas, o simulador duplo, que aprendeu a não actuar como a
f i n g i r isso». É evidente que não nos sentimos normalmente embaraçados primeira ordem de hipócritas. Não há mistério na simulação, se bem
na prática por esta possibilidade, mas algumas pessoas sentem u m que seja uma tautologia dizer que a simulação habilidosa é difícil dc
embaraço teórico, visto que, se qualquer acção ou reacção particular detectar e que a simulação eficaz é a que não é detectada.
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Até agora temos vindo a analisar principalmente as espécies de estas iluminações quando elas se produziram e que não as estava a ter
autoconhecimento e de conhecimento dos outros que consistem na quando não se produziram?» «Você teve a intuição de que estava a
avaliação mais ou menos judiciosa das propensões duradouras e das ter a intuição de que estava a assobiar?» ou «O seu conhecimento de
capacidades, j u n t a m e n t e com a aplicação dessas avaliações à explicação que alguma coisa está a acontecer nem sempre é u m assunto de
de episódios particulares. Temos analisado de que modo interpretamos iluminação que se produz em si?»
ou compreendemos comportamentos. Mas existe ainda outro sentido Quando se descreve uma pessoa como não se surpreendendo quando
de «saber» no qual se diz comummente que uma pessoa sabe o que está alguma coisa acontece, ela pode também ser descrita como tendo-a es-
a fazer, a pensar ou a sentir nesse momento e este sentido está mais perado ou tendo estado preparada para ela. Mas usamos o verbo «espe-
perto daquilo que a teoria da fosforescência da consciência t e n t o u des- rar» pelo menos em dois sentidos nitidamente diferentes. Por vezes que-
crever, mas sem conseguir. Para mostrar a força deste sentido de «sa- remos dizer que n u m momento p a r t i c u l a r a pessoa considerou e aceitou
ber» deveríamos considerar em p r i m e i r o lugar certas espécies de situa- a proposição de que o acontecimento t e r i a lugar, de certeza ou prova-
ções nas quais uma pessoa admite que não sabia, na a l t u r a , o que estava velmente. Neste sentido, haveria uma resposta à pergunta «Qual o
a fazer, embora o que estivesse a fazer não fosse u m automatismo mas momento exacto em que fez essa previsão?» Mas outras vezes s i g n i f i -
uma operação inteligente. Apresenta-se u m anagrama a uma pessoa que camos que, quer tenha ou não atravessado esse processo de fazer t a l
está a t e n t a r resolver u m problema de palavras cruzadas. Depois de uma previsão, a pessoa estava continuamente preparada ou pronta para que
pausa maior ou menor, obtém a resposta, mas nega ter conhecimento a coisa acontecesse. O j a r d i n e i r o que, neste sentido, espera a chuva,
de ter dado quaisquer passos especiais ou de ter seguido qualquer não necessita de desviar repetidamente a sua atenção das tarefas de
método específico para a conseguir. Pode mesmo dizer que estava a jardinagem para prognósticos orais ou silenciosos sobre a chuva. Ape-
pensar e que sabia o que estava a pensar acerca de outra parte do nas deixa o regador na arrecadação das ferramentas, veste a sua
problema. Ficará surpreendida de certo modo ao saber que andava à gabardine, transplanta mais plantas novas, etc. Prevê a chuva, não
procura da resposta para o anagrama, porque não t i n h a conhecimento por meio de presságios verbais ocasionais ou constantes, mas fazendo
de ter executado quaisquer operações de ordenar e desordenar ou de a j a r d i n a g e m adequada à circunstância. Durante toda a tarde está
ter considerado quaisquer agrupamentos errados de letras. Se a solução pronto e a aprontar-se para a chuva. Pode objectar-se: «Mas pode estar
é correcta a pessoa pode repeti-la várias vezes no decurso da resolução a considerar constantemente a proposição de que choverá. É o que o
da totalidade do problema. Os nossos ditos de espírito apanham-nos faz conservar a sua gabardine e ter o regador na arrecadação». Mas
muitas vezes de surpresa do mesmo modo. a resposta a isto é fácil: «Diga-me em que momentos particulares ele
Usualmente não nos surpreendemos ao dar connosco a assobiar, disse a si próprio ou aos outros que ia chover e diga-me então se ele
a planear ou a i m a g i n a r alguma coisa e dizemos, se nos perguntam, que estava ou não à espera que chovesse nos intervalos entre esses prognós-
não estamos surpreendidos, porque sabíamos que estávamos a fazer ticos». Prognosticou que choveria neste e naquele momento porque
estas coisas enquanto as estávamos a fazer. Que espécie de corolário estava à espera da chuva durante todo o tempo e conservou a sua
estamos a acrescentar quando dizemos: «Eu fiz assim e assim e sabia gabardine vestida e o regador na arrecadação pela mesma razão. Neste
na a l t u r a o que estava a fazer»? A resposta tentadora é dizer: «Bem, sentido, «esperar» é usado para significar não uma ocorrência, mas
enquanto estava a fazer a coisa devo ter t i d o uma iluminação ou uma uma condição permanente ou u m estado de espírito. Está toda a tarde
visão do que estava a fazer, ou se a acção era prolongada devo ter no estado de espírito de dizer certas coisas no f u t u r o em certas con-
mantido esse clarão ou visão de que a estava a fazer». Aliás, estas tingências, assim como de conduzir as suas operações de j a r d i n a g e m
metáforas de clarões ou visões deixam-nos inquietos porque o r d i n a r i a - de certos modos, de conservar a sua gabardine vestida, etc. Esperar,
mente não nos recordamos de nenhuma destas ocorrências, mesmo neste sentido, é estar preparado; e fazer advertências públicas ou p r i v a -
quando estamos absolutamente certos do que estávamos a fazer durante das é apenas uma espécie de medida de precaução entre outras. Assim,
a acção. Além disso, se tais iluminações ou clarões tivessem existido, quando dizemos que o j a r d i n e i r o não f o i apanhado de surpresa pela
s u r g i r i a mais uma vez a mesma pergunta. «Você sabia que estava a ter chuva ou que t i n h a a certeza de que choveria, ou que estava pronto
176 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 177

para a chuva, não nos estamos a referir, salvo per accklens, a quaisquer o exigir, designadamente quando completou o passo número dois,
iluminações interiores de previsão ou a quaisquer expressões orais ou e o que está implícito na frase anterior é que a pessoa está apta a dizer
silenciosas ditas no f u t u r o . Todas as suas actividades da tarde, t a n t o a si própria ou aos outros o que teria feito se não tivesse sido impedida.
de h o r t i c u l t u r a como verbais, f o r a m executadas n u m estado de espírito Enquanto empenhada n u m dado passo, está preparada para o que vem
de expectativa da chuva. ou pode v i r a seguir e, quando realmente assim acontece, não se
Esta lição pode ser aplicada ao nosso problema. Há muitas tarefas, surpreende. Neste sentido, deve ser sensível ao que está a fazer durante
em que de vez em quando nos empenhamos, cuja execução requer todo o tempo, mesmo que a sua atenção esteja concentrada na sua tarefa
aplicação contínua. Dar o segundo passo requer que se tenha dado o e não d i v i d i d a entre a tarefa e quaisquer contemplações ou relatos do
primeiro. Por vezes os primeiros passos estão para os últimos como os seu prosseguimento.
meios para os fins, t a l como pomos a mesa para t o m a r uma refeição. Noutros casos, como quando profere subitamente u m dito de espíri-
Por vezes os primeiros passos têm uma relação diferente com os to não premeditado, surpreende-se ao descobrir o que fez e não se
últimos. Não comemos o p r i m e i r o prato para comermos o segundo, nem descreveria a si própria como sabendo o que estava a fazer enquanto
começamos a entoar uma melodia para acabar de a cantar. Muitas o fez, ou mesmo como tendo estado a t e n t a r dizer uma piada. O mesmo
vezes u m empreendimento, apesar de exigir a aplicação contínua, só é verdade a respeito de outros actos súbitos feitos por u m impulso de
artificialmente é divisível em passos ou frases, mas continua a fazer momento. A acção pode muito bem ser aquela que deve ser executada,
sentido dizer que poderia interromper-se subitamente, quando apenas mas o sujeito não sabe como chegou a fazê-la, porque não estava
metade ou três quartos dele estavam realizados. Mas se o sujeito está preparado para ela. O não estar preparado para ela não é o efeito nem
a fazer uma operação em série, com certo g r a u de atenção, deve, em a causa de não saber o que estava a fazer, é a mesma coisa diferente-
certo sentido, ter em mente, em qualquer fase, o que deve ser feito a mente expressa.
seguir e o que já f o i feito antes. Deve conservar vestígios do que já con- Diferentemente do homem que com surpresa dá consigo a p r o f e r i r
seguiu e de que deve esperar ou mesmo ter a intenção de a t i n g i r as fases u m d i t o de espírito inesperado, o homem que procura u m novo
posteriores à presente. Expressa-se por vezes isto dizendo que em argumento sabe m u i t o bem o que está a fazer. Pode f i c a r surpreendido
qualquer desses empreendimentos, que são executados mais ou menos pela conclusão a que chega, mas não se surpreende por descobrir que
inteligentemente, o sujeito deve ter tido desde o princípio u m plano ou chegou a uma conclusão. A sua operação progressiva de raciocínio f o i
programa do que irá fazer e deve consultar continuamente este plano uma demonstração do seu esforço para chegar a uma conclusão. Assim,
à medida que progride. E isto acontece frequentemente. Mas não pode quando soube o que estava a fazer, não no sentido de que t i n h a de
acontecer sempre e, mesmo quando acontece, esta interpretação e con- d i l u i r as suas considerações de premissas noutros actos de considerar
sulta dos programas não é suficiente para explicar o prosseguimento as suas considerações acerca deles — não necessita de t e r t i d o tais
contínuo e metódico do empreendimento, visto que i n t e r p r e t a r e consul- saídas laterais, iluminações ou visões — mas no sentido de que estava
t a r planos são também operações em série, praticadas inteligente e preparado não só para os passos de raciocínio que t i n h a de dar, mas
consecutivamente, e seria absurdo sugerir que uma série i n f i n i t a de também para uma variedade de outras eventualidades, muitas das quais
operações em série deve preceder a acção inteligente de qualquer nunca acontecem, t a l como ser interrogado sobre o que estava a fazer,
operação em série. N e m sequer as consultas intermitentes de u m plano que justificação t i n h a para seguir este caminho em vez daquele e assim
explicam como sabemos o que fazer entre as consultas, como sabemos sucessivamente. A teoria da fosforescência da consciência era em parte
que artigos dos planos devemos consultar em diferentes fases da uma t e n t a t i v a para i n t e r p r e t a r conceitos de estados de espírito como
tarefa ou como sabemos que o que estamos a fazer agora está de acordo «preparado», «pronto», «alerta», «ter em mente», «não f i c a r i a «sur-
com o plano recentemente consultado. preendido», «esperar», «imaginar» e «ter consciência de» como conceitos
O sentido principal em que uma pessoa empenhada numa tarefa de acontecimentos internos especiais.
não repentina tem em mente o que deve ser feito em fases mais A mesma espécie de explicação é válida para o não-esquecer.
avançadas é que está pronta a dar o passo número três quando a ocasião Quando uma pessoa empenhada numa conversa chega ao meio de uma
i. p. — 1 2
178 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 179

frase, normalmente não esqueceu como essa frase começou. E m certo mente, as primeiras partes da conversa e estão preparadas em certa
sentido mantém uma continuidade com o que já disse. Aliás, seria medida para as partes que se seguem, embora não tenham de dizer a
absurdo sugerir que essa pessoa acompanha todas as palavras que diz si próprias como esperam que a frase ou a conferência continuem.
por uma repetição interna de todas as expressões precedentes. Ã parte a Evidentemente, o estado de espírito da pessoa que ouve é considera-
impossibilidade física de recitar as dezassete palavras anteriores no velmente diferente do da pessoa que fala, visto que esta última é por
momento em que a décima oitava está precisamente a dar lugar à déci- vezes criadora e inventiva, enquanto o ouvinte é passivo e receptivo.
ma nona, o processo de repetição é em si próprio uma operação em série, O ouvinte pode ficar frequentemente surpreendido ao ouvir a pessoa
cuja execução das últimas partes e x i g i r i a o u t r a vez que o seu autor que fala dizer qualquer coisa, enquanto esta apenas raramente se
tivesse guardado a recordação das primeiras partes. Não-ter-esquecido surpreenderá. O ouvinte pode achar difícil acompanhar o caminho
não pode ser descrito em termos de execução de reminiscências tomado pelas frases e argumentos, enquanto a pessoa que fala o pode
efectivas. Pelo contrário, as reminiscências são apenas uma espécie de fazer facilmente. A o passo que a pessoa que fala tem a intenção de
exercícios da condição de não-ter-esquecido. Ter em mente não é dizer certas coisas específicas, o seu ouvinte só vagamente pode prever
recordar; é o que t o r n a possível, entre outras coisas, recordar. que espécie de pontos vão ser discutidos.
Assim, o comportamento inteligente das operações em série implica Mas estas diferenças são de g r a u e não de espécie. A superioridade
que o sujeito atravesse o progresso da operação au fait t a n t o com o que de conhecimento da pessoa que fala sobre o ouvinte, acerca daquilo
completou como com o que f a l t a fazer, mas não implica que a execução que está a fazer, não indica que tenha u m Acesso Privilegiado a factos
de tais operações seja sustentada por uma segunda ordem de execução de u m t i p o inevitavelmente inacessível ao ouvinte, mas apenas que está
ou processo de conduzir a p r i m e i r a ordem de execução. É certo que o numa posição melhor que a do ouvinte para saber determinadas coisas.
agente pode, de tempos a tempos, se for incitado a isso, anunciar a si As voltas dadas pela conversa de u m homem não surpreendem nem
próprio ou aos outros «Aqui estou eu a assobiar " L a r , Doce L a r " » . As causam perplexidade à sua mulher do mesmo modo que t e r i a m surpre-
suas capacidades para fazer isto fazem parte do significado de dizer endido ou confundido a sua noiva, nem os amigos Íntimos têm de se
que está nessa disposição de espírito particular a que chamamos «ter explicar uns aos outros do mesmo modo que os professores têm de se
a noção do que está a fazer». Mas ele está não só a fazer esses anúncios explicar aos novos alunos.
que não estão implicados no facto de que se está a concentrar no acto Para facilidade de exposição, t r a t e i como coisas separadas o modo
de assobiar a melodia, como também a sua concentração seria quebrada pelo qual uma pessoa v u l g a r é vulgarmente sensível àquilo em que
de cada vez que fizesse esse comentário. está ocupada n u m momento p a r t i c u l a r e os modos pelos quais as
Até agora dei exemplos do que quero dizer quando falo de acções pessoas de espírito sagaz avaliam os feitios das outras e explicam
em série por meio de acções relativamente breves, tais como assobiar as suas acções e as delas próprias. E x i s t e m , sem dúvida, diferenças
uma melodia ou dizer uma frase. Mas, n u m sentido ligeiramente mais m u i t o grandes. A v a l i a r ou analisar exige dons especiais, interesse,
l i v r e e mais elástico, uma conversa i n t e i r a pode ser uma acção em treino, experiência, poder de comparação e generalização e i m p a r c i a l i -
série, o comportamento de alguém no trabalho ou a maneira como uma dade, ao passo que ser apenas sensível ao que uma pessoa está a as-
pessoa se diverte durante u m dia ou durante u m ano. Comer flocos de sobiar ou a dizer está dentro das possibilidades de uma criança vulgar.
aveia não é uma acção súbita, t a l como t o m a r o pequeno almoço. Fazer Não obstante, o conhecimento mais simples do que uma pessoa está a
uma conferência é uma acção em série, mas fazer uma série de confe- fazer transforma-se em apreciações mais complicadas de acções p a r t i -
rências também o é. culares, t a l como o interesse da criança pelo pisco do compêndio se
Quase do mesmo modo que uma pessoa pode ser, neste sentido, transforma gradualmente em ornitologia. U m rapaz a resolver u m
sensível ao que está a fazer, pode também ser sensível ao que outra problema de matemática está sensível, da forma mais p r i m i t i v a , ao
pessoa está a fazer. N a operação em série de escutar uma frase ou uma que está a fazer, porque enquanto está a pensar nos números (e não a
conferência feita por o u t r a pessoa, t a n t o a pessoa que escuta como a pensar em pensar nos números) não esquece as primeiras fases dos
que fala não esquecem, embora não tenham que recordar constante- seus cálculos, tem em mente as regras da multiplicação e não se
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surpreende ao descobrir que chegou a uma solução, mas difere apenas (5) REVELAÇÃO POR CONVERSA ESPONTÂNEA
em g r a u da vigilância, cuidado e elaboração do rapaz que confere os
seus resultados, do que tenta descobrir onde cometeu u m erro ou do O nosso conhecimento das outras pessoas e de nós próprios depende
que localiza e explica os erros de cálculo de outra pessoa. Este último de notarmos o seu e o nosso comportamento. Mas existe u m a área
difere também apenas em g r a u do p a i colaborador, do professor do comportamento humano na qual confiamos pré-eminentemente.
profissional ou do examinador. O rapaz que só é capaz de fazer uma Quando a pessoa em questão aprendeu a conversar e conversa numa
soma simples, provavelmente ainda não é capaz de dizer precisamente língua bem conhecida por nós, usamos parte da sua conversa como
o que está a fazer ou porque dá os passos que dá. O examinador pode fonte p r i n c i p a l da nossa informação sobre ela, designadamente a
avaliar as acções efectivas dos candidatos por u m sistema de notas parte que é espontânea, franca e não preparada. É certamente notório
bastante preciso e altamente formalizado. Mas também neste caso que as pessoas são frequentemente reticentes e escondem coisas em vez
a dificuldade de expressão do conhecimento do principiante sobre o que de as exteriorizarem. É também evidente que muitas vezes as pessoas
está a fazer transforma-se gradualmente por uma série de gradações não são sinceras e f a l a m de modo calculado para causarem impressões
na escala numérica de apreciação do professor. falsas. Mas o próprio facto de as expressões poderem ser medidas e
O conhecimento de uma pessoa acerca de si própria e das outras estudadas implica que a expressão espontânea e não medida é possível.
pessoas pode ser distribuído entre muitos graus imprecisa mente dis- Ser reticente é refrear-se deliberadamente de ser franco e ser hipócrita
tinguíveis, produzindo por sua vez numerosos sentidos imprecisamente é refrear-se de dizer o que vem à boca, ao passo que se pretende
distinguiveis de «conhecimento». A pessoa pode ter conhecimento de dizer francamente coisas que não correspondem à verdade. N u m certo
que está a assobiar o «Tipperary» e não saber que o está a assobiar sentido de «natural», o n a t u r a l é f a l a r com franqueza e o sofisticado
para aparentar u m sangue-frio que não sente, ou pode também t e r é abster-se de o fazer ou mesmo pretender fazê-lo quando não se está
conhecimento de que está a simular sangue-frio sem saber que o t r e m o r realmente a fazê-lo. Além disso, a conversa espontânea não é apenas
que está a t e n t a r esconder deriva da agitação de uma consciência n a t u r a l e não elaborada, mas é também o modo n o r m a l de falar. Temos
culpada. Pode saber que não t e m a consciência t r a n q u i l a e não saber de t o m a r cuidados especiais para esconder as coisas, apenas porque
que isso resulta de u m recalque específico. Mas, em nenhum dos sentidos mostrá-las é a nossa reacção n o r m a l , e descobrimos as técnicas de
em que consideramos se uma pessoa sabe ou não alguma coisa a insinceridade apenas pela familiaridade com as conversas não forçadas
respeito de si própria, é necessário ou útil o postulado de u m Acesso que tentamos simular. Dizer isto não é pôr de acordo as glórias éticas
Privilegiado para a explicação de como concretizou ou podia ter com a natureza humana. A expressão espontânea não representa hones-
concretizado esse conhecimento. Sob certos aspectos, é-me mais fácil tidade ou candura. A honestidade é uma predisposição altamente ela-
conseguir esse conhecimento a respeito de m i m próprio do que dos borada, porque é a predisposição para se abster da insinceridade, t a l
outros. Noutros aspectos, é mais difícil. Mas estas diferenças de facili- como a franqueza é a predisposição para se abster de reticências. U m a
dade não derivam de nem conduzem a uma diferença de espécie entre o pessoa não poderia ser honesta ou franca se nunca tivesse conhecido
conhecimento da pessoa a respeito de si própria e o conhecimento acerca a insinceridade ou as reticências, assim como uma pessoa nunca poderia
das outras pessoas. Não existe uma C o r t i n a de Eerro metafórica ser insincera ou reticente se nunca tivesse conhecido expressões ingé-
compelindo-nos a ser sempre estranhos uns para os outros, se bem que nuas e francas.
certas circunstâncias vulgares, juntamente com algumas manobras E x i s t e m outras espécies de expressões estudadas, algumas das
deliberadas, s i r v a m para manter uma distância razoável. De igual modo, quais terão de ser discutidas numa fase posterior e que pertencem
não existe nenhum espelho metafórico que nos force a revelar-nos e não às conversas normais sociáveis, mas apenas a assuntos mais sérios.
a explicar-nos sempre completamente a nós próprios, embora pelo O físico, o juiz, o pregador, o político, o astrónomo e o geómetra podem
comportamento diário da nossa vida sociável e insociável aprendamos dar os seus conselhos e veredictos, fazer as suas homilias, expor as suas
a ser razoavelmente familiares a nós próprios. teorias e fórmulas por meio de palavras pronunciadas pela boca, mas
182 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 183

não estão nessa a l t u r a a falar no sentido de «tagarelar», mas no sentido estado de espírito de fazer. Puxar i r r i t a d a m e n t e pelo laço do sapato
de «pronunciar» ou de «expor». Talvez preparem, mas, pelo menos, pode ser outra. Está suficientemente exasperada com o nó para f a l a r
pesam as suas palavras. Não dizem as primeiras coisas que lhes vêm dele exasperadamente.
à boca porque os seus discursos são discursos disciplinados. O que As expressões espontâneas não são, por u m lado, efeitos dos esta-
dizem, diferentemente da conversa espontânea, t o l e r a r i a ser escrito e dos de espírito em que são usadas, visto que os estados de espírito não
mesmo impresso. Não é o improviso ou espontâneo deixado cair ou são incidentes, mas também não são, por o u t r o lado, descrições acerca
proferido desastrosamente, mas u m a comunicação. Os seus autores desses estados de espírito. Se o m o t o r i s t a de camião pergunta apressa-
consideram o que devem dizer e como dizê-lo para produzir exactamente damente «Qual é a estrada para Londres?», revela a sua ansiedade em
descobrir o caminho mas não faz qualquer declaração autobiográfica
o efeito desejado. E s t a espécie de conversa é literalmente prosaica.
ou psicológica acerca desse facto. E l e diz o que diz, não pelo desejo de
Necessitamos de fazer o contraste entre a conversa n o r m a l espon-
nos i n f o r m a r ou de se i n f o r m a r a si próprio sobre o caminho, mas pelo
tânea, a conversa coloquial estudada e o falar estudado não coloquial,
desejo de encontrar a estrada certa para Londres. As expressões
porque a p r i m e i r a é a base dos outros dois. Usamos a fala coloquial
espontâneas não são autocomentários, se bem que vejamos dentro em
e espontânea não somente antes de aprendermos a falar cautelosamente pouco que constituem a nossa principal evidência para fazer autocomen-
e insinceramente mas também antes de aprendermos a preparar os tários, quando chegamos a estar interessados em fazê-los.
nossos discursos. Continuamos a ocupar u m a boa parte do nosso f a l a r
Muitas expressões espontâneas englobam frases de interesse ex-
diário a dizer o que em p r i m e i r o l u g a r nos vem à boca. A camuflagem
plícito ou a que chamei noutro l u g a r «confissões», como «quero»,
e a gravidade são apenas necessidades intermitentes.
«espero», «tenho a intenção», «não gosto», «estou deprimido», «estou
Não é apenas nos nossos colóquios sem constrangimento e sem admirado», «adivinho» e «sinto fome» e a sua gramática torna tentador
cálculo com os outros que dizemos as primeiras coisas que nos vêm i n t e r p r e t a r erradamente todas as frases em que aparecem como auto-
à boca. Também o fazemos com facilidade nos colóquios descuidados descrições. Mas, no seu emprego primário, «Eu quero» não é usado
que comummente mantemos connosco próprios em silêncio. para t r a n s m i t i r informações, mas para fazer uma exigência ou u m
N a tagarelice espontânea, falamos seja no que f o r em que esteja- pedido. Não é mais significativo como contribuição para o conhecimento
mos interessados de momento. Não é u m interesse concorrente. Falamos geral do que «Por favor». Responder com «Você quer?» ou «Como
acerca do j a r d i m pelo mesmo m o t i v o que nos leva a inspeccioná-lo e a sabe?» seria manifestamente inapropriado. Também no seu sentido p r i -
andar de u m lado para o o u t r o nele, isto é, o interesse pelo j a r d i m . mário «detesto» e «tenho a intenção de» não são usados com a finalidade
Falamos sobre o nosso j a n t a r , não por não estarmos interessados nele, de comunicar ao ouvinte factos acerca da pessoa que fala, e ficaríamos
mas porque o estamos. Podemos f a l a r sobre o nosso j a n t a r porque surpreendidos ao ouvir dizer estas frases no t o m de voz calmo e
estamos com apetite, t a l como o comemos por estarmos com apetite i n f o r m a t i v o com que dizemos «ele detesta» e «eles têm a intenção de»;
e não podemos finalmente deixar de falar nas nossas escaladas de antes pelo contrário, esperamos que estas expressões sejam ditas n u m
montanhas pela mesma razão que não podemos facilmente evitar os t o m de voz respectivamente revoltado e resoluto. São as expressões
nossos passos dessas escaladas. A expressão espontânea não é u m das pessoas em estados de espírito revoltado e resoluto. São coisas ditas
com repulsa e resolução e não no i n t u i t o de fornecer conhecimento
interesse colateral de concorrência a u x i l i a r do interesse em qualquer
biográfico acerca da repulsa ou da resolução.
coisa.
U m a pessoa que está aborrecida com o nó do atacador do sapato, se U m a pessoa que nota as expressões espontâneas de outra que fala,
aprendeu a falar, está também na disposição de usar u m a expressão a qual pode ou não ser ela própria, está, se o seu interesse na pessoa
verbal a respeito do seu aborrecimento. Fala dele n u m t o m de voz que fala é conduzido na direcção apropriada e se conhece a linguagem
i r r i t a d o . O que diz, j u n t a m e n t e com o seu modo de o dizer, revela ou dessas expressões, especialmente bem situada para fazer comentários
permite-nos conhecer o seu estado de espírito, precisamente porque sobre as qualidades e estado de espírito do seu autor. Enquanto a
usar essa expressão é precisamente uma das coisas que ela está no observação cuidadosa das outras espécies de comportamento do sujeito,
184 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTOCONHECIMBNTO 185

t a l como as suas outras acções manifestas, as suas hesitações, as suas nho mencionado discursos significativos e inteligíveis e não coisas como
lágrimas e as suas gargalhadas lhe podem dizer muito, este comporta- gargalhadas ruidosas, tagarelices ou conversas sem nexo. A s minhas
mento não é ex officio fácil de testemunhar ou de ser interpretado. Mas razões são duas, intimamente ligadas. E m p r i m e i r o lugar, as expressões
u m discurso é feito ex officio para ser ouvido e interpretado. Aprender que tenho estado a considerar pertencem a intercomunicações de con-
a f a l a r é aprender a fazer-se compreender. Não é preciso ter poderes versas sociáveis entre os interlocutores, que podem ser uma e a mesma
de detective para descobrir pelas palavras do leitor ou pelo t o m de voz pessoa. O assunto deles é coloquial. V i s t o que muitas das expressões
de u m a conversa espontânea, ou mesmo pela minha própria conversa que constituem uma conversa não estão no modo indicativo, mas são
espontânea, o estado de espírito da pessoa que fala. perguntas, ordens, reclamações, observações sarcásticas, felicitações,
Quando se fala com cautela — e muitas vezes não sabemos se é e t c , não podemos falar delas nos termos caros aos epistemologistas,
assim ou não, mesmo pelas confissões que fazemos a nós próprios —, tais como «pensamentos», «juízos» ou «proposições» expressos por elas.
têm de ser exercidas qualidades de detective. Temos de i n f e r i r do que é E m segundo lugar, temos tendência para reservar o verbo «pensar»
dito e feito o que t e r i a sido dito ou feito se não se tivesse t i d o cautela, para o uso das expressões estudadas e severamente trabalhadas que
assim como os motivos dessa cautela. Saber o que está escrito nas constituem as teorias e os planos de acção. Aprendemos a f a l a r quando
páginas de u m l i v r o aberto é uma questão de simples leitura. Descobrir crianças mas temos de i r à escola para aprendermos até os simples
o que está escrito nas páginas de u m l i v r o fechado requer hipóteses e rudimentos da teoria. A s técnicas da teoria são aprendidas em lições
evidência. Mas o facto de os disfarces terem de ser descobertos não rígidas, ao passo que a arte de conversar é adquirida quase inteiramente
implica que as atitudes francas também tenham de ser descobertas. pelo acto de conversar. A s s i m , o uso de frases, e particularmente de
U m a das coisas frequentemente significadas por «autoconsciente» certas espécies de frases indicativas com o f i m especial de expor, i . e.,
é o conhecimento que temos das nossas expressões espontâneas, incluin- que fornecem premissas e t i r a m conclusões, é u m uso elaborado e
do as nossas confissões explícitas, quer sejam ditas em voz alta, t a r d i o e é necessariamente adquirido mais tarde do que o uso coloquial
murmuradas ou feitas para nós próprios. Escutamos as nossas expres- de frases e orações. Quando uma teoria ou parte de uma teoria é exposta
sões orais e os nossos monólogos silenciosos. A o notá-los estamos a em voz alta, em vez de ser t r a n s m i t i d a através de escritos, hesitamos
preparar-nos para fazer algo de novo, ou seja, descrever os estados de em chamar a esta expressão o r a l «falar» e recusaríamos t e r m i n a n t e -
espírito que estas expressões revelam. Mas tais coisas não pertencem mente chamar-lhe «tagarelice» ou «conversa». O seu significado é d i -
intrinsecamente a esta actividade. Posso prestar atenção ao que o leitor dáctico e não sociável. É uma espécie de trabalho, ao passo que a
diz como ao que eu digo, embora não possa o u v i r os monólogos silen- tagarelice espontânea não é uma espécie de trabalho n e m sequer u m
ciosos que o leitor mantém consigo próprio. N e m posso ler o seu diário trabalho fácil ou agradável.
se o leitor o escrever em código ou o guardar fechado à chave. N a
verdade, esta espécie de estudo não é só a mesma em espécie do que o (6) O EU
estudo das expressões espontâneas e cautelosas dos outros, como t a m -
bém aprendemos a fazer este estudo das nossas próprias conversas por Não só os teóricos como também as pessoas não complicadas,
previamente termos tomado parte em discussões sobre as conversas incluindo as crianças de tenra idade, sentem perplexidade quanto à
de outrem, assim como por termos lido depoimentos exemplificativos noção de « E u » . A s crianças fazem por vezes u m quebra-cabeças de
de romancistas acerca de conversas sobre o carácter das pessoas, perguntas como «Como seria se eu fosse você e se você fosse eu?» e
juntamente com as suas descrições explicativas acerca dele. «Onde estava eu antes de nascer?». Os teólogos puseram a questão da
Os leitores críticos podem perguntar porque me tenho abstido de seguinte m a n e i r a : «O que é que existe n u m indivíduo que se perde ou
usar o verbo «pensar» em vez de verbos t r i v i a i s como «falar», «taga- salva?» e os filósofos especularam sobre se « E u » denota uma substância
relar», «conversar» e «comunicar», dado que as expressões que tenho peculiar e à parte, em que consiste a m i n h a identidade contínua e
vindo a mencionar são claramente, de ordinário, expressões pertinentes, indivisível. N e m todos estes enigmas provêm da adopção involuntária
cujos autores pretendem significar exactamente aquilo que dizem. Te- da hipótese paramecânica e proponho-me fazer justiça, nesta secção, a
186 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 187

uma família particular destes enigmas, cuja exposição e resolução pode de « E u » e as noções de «Tu» e «Ele». Mas é conveniente considerar
ter a l g u m interesse teórico geral. p r i m e i r o alguns pontos que do mesmo modo se referem a todos os
Os enigmas que tenho em mente andam à volta daquilo a que pronomes pessoais.
chamarei «carácter elusivo sistemático» do conceito de « E u » . Quando As pessoas, incluindo os filósofos, têm tendência para levantar
uma criança, por exemplo o Quim, sem preparação prática ou teórica, questões sobre o que constitui o «eu», perguntando que realidade
pergunta pela p r i m e i r a vez a si própria «Quem ou O Que sou eu?», não designam as palavras « E u » e « T u » . Estão familiarizadas com o r i o cujo
faz essa pergunta pelo desejo de saber o seu apelido, idade, sexo, nome é «Tamisa» e com o cão chamado «Piei». Estão também f a m i l i a -
nacionalidade ou posição na forma. Ele conhece todos estes seus rizadas com as pessoas dos seus conhecimentos e sabem que os seus
caracteres pessoais, mas sente qualquer coisa mais por detrás disto apelidos são apelidos. Sentem então vagamente que, visto «Eu» e « T u »
que é significada pelo « E u » , coisa essa que t e m ainda de ser descrita não serem apelidos, devem ser nomes de outra espécie estranha e devem
depois de se terem enumerado todos os seus caracteres pessoais. Sente por consequência ser nomes de alguma coisa extra, oculta e individual
também, m u i t o vagamente, que seja o que f o r que o seu «Eu» signifique, que existe por detrás ou dentro das pessoas que são conhecidas
é qualquer coisa de m u i t o i m p o r t a n t e e inteiramente único, no sentido exteriormente pelos seus apelidos e nomes de baptismo. Como os
de que nem o seu « E u » nem qualquer coisa semelhante a ele pertence pronomes não são registados no Registo Civil, os seus possuidores
a qualquer outra pessoa. Só poderia haver u m « E u » . Pronomes como devem ser, em certa medida, diferentes dos possuidores dos nomes
« T u » , « E l a » e « N ó s » parecem bastante claros, enquanto o « E u » parece de baptismo e apelidos que aí se encontram registados. Mas este modo
envolto em mistério. E parece misterioso, pelo menos em parte, porque de abordar a questão está errado desde o princípio. Certamente que
quanto mais a criança tenta alcançar o significado de « E u » , menos o « E u » e « T u » não são nomes próprios vulgares como «Fiel» e «Tamisa»,
consegue. Pode apenas agarrá-lo pelas abas do casaco. A sua própria mas também não são nomes próprios anormais. Não são nomes próprios
essência permanece sempre e obstinadamente u m passo à frente dessas nem qualquer espécie de nomes, como «hoje» é u m nome efémero do
abas, t a l como a sombra da cabeça de uma pessoa não esperará que essa dia que corre. A mistificação g r a t u i t a começa a p a r t i r do momento em
pessoa lhe salte em cima, embora não esteja m u i t o longe. N a verdade, que começamos a igualar os nomes dos seres aos pronomes. As frases
parece muitas vezes estar m u i t o perto do perseguidor. E v i t a a captura que contêm pronomes mencionam evidentemente pessoas identificáveis,
pelos próprios movimentos musculares do perseguidor. Está demasiada- mas o modo pelo qual as pessoas mencionadas são identificadas por
mente perto para estar ao alcance do braço. pronomes é completamente diferente do modo como são identificadas
Os teóricos enganaram-se a si próprios do mesmo modo sobre o pelos próprios nomes.
conceito de «Eu». Mesmo H u m e confessa que, quando tentou esquema- Esta diferença pode ser indicada provisoriamente da seguinte
tizar todos os artigos da sua experiência, não encontrou nada que maneira: existe uma classe de palavras (que por facilidade de refe-
pudesse responder à palavra « E u » e não se convenceu de que não rência podem ser chamadas «palavras-índice») que indicam ao ouvinte
existisse qualquer coisa mais que devia ser i m p o r t a n t e e sem a qual o ou ao leitor a coisa particular, o episódio, a pessoa, o lugar ou o mo-
seu esquema não conseguiria descrever a sua experiência. mento a que é feita referência. Assim, «agora» é uma palavra-índice
Outros epistemologistas s e n t i r a m escrúpulos semelhantes. Devo que indica à pessoa que ouve a frase «o comboio está a passar agora
ou não pôr o meu conhecimento de m i m próprio na lista das espécies pela ponte», o momento p a r t i c u l a r da travessia. A palavra «agora»
de coisas de que posso ter conhecimento? Se disser «não», parece que o pode evidentemente ser usada a qualquer momento do dia ou da noite,
meu conhecimento a respeito de m i m próprio fica reduzido a u m mas não significa o mesmo que «a qualquer momento do dia ou da
mistério teoricamente estéril, e se disser «sim» parece que se reduz a noite». Indica o momento p a r t i c u l a r em que o ouvinte ouviu a palavra
rede de pesca a u m dos peixes que ela apanha. Parece também arriscado «agora» ser empregada. O momento em que o comboio atravessa a ponte
a d m i t i r ou negar que o j u i z pode ser colocado no banco dos réus. é indicado por se expressar nesse momento a palavra «agora». O mo-
Antes de mais, t e n t a r e i explicar este carácter elusivo sistemático mento em que a palavra «agora» é pronunciada é o momento que a
de noção de « E u » e com ele o não paralelismo aparente entre as noções própria palavra indica. De u m modo em parte semelhante, a palavra
188 AUTOCONHECIMENTO 189
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

«aquele» é muitas vezes usada para indicar a coisa particular que é posso usar « E u » ou «Me» para ela. Se o meu cabelo se queimou no lume
indicada pelo dedo indicador da pessoa que fala, no momento em que diz posso dizer «Não me queimei, só queimei o cabelo», embora nunca
a palavra «aquele». «Aqui», indica por vezes o lugar particular de onde a pudesse dizer <Não me queimei. Só queimei a cara e as mãos».
pessoa que fala propaga o ruído «aqui» ao a r que a cerca e a página indi- U m a parte do corpo que é insensível e que não se pode mover por
cada pela expressão «esta página» é a página da qual a palavra impres- meio da vontade, é minha, mas não faz parte de «Me». Reciproca-
sa «esta» ocupa uma parte. Outras palavras-índice dão indicações i n d i - mente, os auxiliares mecânicos do corpo, como os automóveis e as
rectas. «Ontem» indica o dia anterior àquele em que a palavra é dita ou bengalas, podem ser usados com « E u » e «Me», como «eu choquei
impressa n u m j o r n a l . «Então», empregada de certos modos, indica u m contra o poste», que significa o mesmo que «O Carro que eu ia a
momento ou período com uma relação específica com aquele em que é conduzir ( ou que me pertencia e que estava a ser conduzido por m i m )
ouvida ou lida. chocou contra o poste».
Os pronomes como « E u » e « T u » são por vezes, em certa medida, Consideremos agora alguns aspectos nos quais « E u » e « M e » não
palavras-índice directas, ao passo que outras como « E l e » e «Eles», podem ser substituídos por «O meu corpo» ou « A m i n h a perna». Se
e em certos usos « N ó s » , são palavras-índice indirectas. « E u » pode disser «Estou aborrecido por me t e r ferido no choque», embora possa
indicar a pessoa p a r t i c u l a r que emite o som de « E u » ou que escreve aceitar a substituição de «a m i n h a perna f o i ferida» por «eu fiquei
essa palavra. « T u » pode indicar a pessoa que me ouve dizer « T u » ou ferido», não poderia s u b s t i t u i r «estou aborrecido» por nenhuma dessas
pode indicar a pessoa, quem quer que ela seja (e podem ser várias), palavras designando partes do corpo. Seria igualmente absurdo dizer
que lê o « T u » que eu escrevo ou que f o i impresso. E m todos os casos, « A m i n h a cabeça lembra-se», «O meu cérebro a fazer uma divisão»
a ocorrência física de uma palavra-índice está fisicamente ligada ao que ou «O meu corpo a l u t a r contra a fadiga». É talvez pelo absurdo de
a palavra indica. A p a r t i r daí, « T u » não é u m nome estranho que eu e tais aplicações que muitas pessoas se sentiram levadas a descrever
outros damos por vezes a o u t r a pesspa. Ê uma palavra-índice que, no uma pessoa como uma associação entre u m corpo e u m não-corpo.
seu enquadramento coloquial, indica a quem estou a d i r i g i r os meus Contudo, não chegámos ainda ao f i m da nossa lista da elasticidade
comentários. « E u » não é u m nome extra para u m ser extra. Indica, dos usos de «Eu» e « M e » , porque encontramos mais contrastes entre
quando o digo ou escrevo, o mesmo indivíduo a que as pessoas podem os usos do primeiro pronome da p r i m e i r a pessoa, nos quais não se
também dirigir-se pelos nomes próprios de «Gilbert Ryle». « E u » não podem fazer substituições por meras referências ao corpo. Faz sentido
é u m pseudónimo de «Gilbert Ryle», antes indica a pessoa que Gilbert dizer que dei comigo a começar a d o r m i r mas não que dei com o meu
Ryle menciona quando diz « E u » . corpo a começar a d o r m i r ou que o meu corpo deu comigo a começar
Mas isto está longe de ser tudo. Temos de assinalar agora que a dormir. Faz igualmente sentido dizer que uma criança está a contar
usamos os nossos pronomes, t a l como os nossos próprios nomes, de uma a s i própria uma história, mas não faz sentido dizer que o seu corpo é
grande variedade de modos diferentes. S u r g i r a m outras mistificações o narrador ou o ouvinte.
da detecção sem compreensão dos contrastes entre esses diferentes usos Contrastes deste tipo, e talvez mais que todos os contrastes anuncia-
de «Eu» e, numa extensão menor, de «Tu» e «Ele». dos nas descrições de exercício de autodomínio, i n d u z i r a m muitos
N a frase «Eu estou a aquecer-me ao fogo», a palavra «me» poderia pregadores e alguns pensadores a falar como se u m a pessoa v u l g a r
ser substituída por «o meu corpo», sem desvirtuar o sentido, mas o fosse realmente uma espécie de grupo ou equipa de pessoas, metidas
pronome «Eu» não poderia ser substituído por «o meu corpo» sem todas dentro da mesma pele, como se o pensamento e o veto de « E u »
produzir uma alteração do sentido. De modo semelhante, a frase fosse uma pessoa e o « E u » voraz ou preguiçoso fosse outra. Mas,
«Mandem-me cremar depois de eu t e r morrido», não diz nada sobre obviamente, esta espécie de imagem não pode ser usada. O que s i g n i f i -
autodestruição, visto «Me» e « E u » estarem a ser usados de modo camos em parte por «pessoa» é alguém que é capaz de dar consigo a
diferente. Assim, podemos umas vezes, e outras não, substituir o começar a d o r m i r ou de contar histórias a si própria e de refrear a sua
pronome pessoal da p r i m e i r a pessoa por «o meu corpo». Há mesmo própria voracidade. Assim, a redução sugerida de uma pessoa a uma
alguns casos em que posso f a l a r de uma parte do meu corpo mas não equipa de pessoas apenas m u l t i p l i c a r i a o número de pessoas, sem
190 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 191

explicar como é que uma e a mesma pessoa pode ser narrador e ouvinte, Algumas, mas não todas as acções de ordem mais elevada, influen-
ou v i g i l a n t e e sonolenta, queimada e admirada de se t e r queimado. O ciam o sujeito que as pratica. Se apenas comento as acções do leitor
princípio da explicação requerida é que numa afirmação como «Eu dei na sua ausência, o meu comentário está relacionado com as suas acções
comigo a começar a dormir» os dois pronomes não são nomes de no sentido de que a realização do meu acto implica o pensamento sobre
pessoas diferentes, visto que não são de modo a l g u m nomes, mas as suas acções, mas não as modifica. Isto é especialmente claro quando
palavras-índice usadas em sentidos diferentes de contexto, exacta- o comentador ou crítico actua depois da morte do sujeito sobre o qual
mente como vimos que era o caso da afirmação «Eu estou a aquecer-me faz os seus juízos. O historiador não pode mudar o comportamento de
ao fogo» (se bem que esta seja uma diferença de sentido diferente da Napoleão na batalha de Waterloo. Por o u t r o lado, o momento e os
o u t r a ) . N o caso de parecer inverosímil dizer que dentro de uma frase o métodos do meu ataque afectam o tempo e as técnicas de defesa do
pronome pessoal da p r i m e i r a pessoa, usado por duas vezes, pode indicar leitor e o que eu vendo t e m uma estreita relação com o que o leitor
a mesma pessoa e t e r sentidos diferentes, é suficiente assinalar, de compra.
momento, que a mesma coisa pode acontecer mesmo com nomes próprios E m segundo lugar, quando falo das acções de u m sujeito em
e títulos pessoais. A frase «Depois do seu casamento Miss Jones já relação com as de u m outro, não excluo as acções que são praticadas sob
não será Miss Jones» não diz que u m a mulher particular deixará de uma impressão errada de que o outro está a fazer uma coisa que na
ser ela própria ou que deixará de ser a espécie de pessoa que é agora, realidade não está. A criança que aplaude a minha habilidade de f i n g i r
mas apenas que terá mudado o seu nome e estado. A frase «Napoleão, que estou a d o r m i r , embora eu tenha realmente adormecido, está a fazer
depois de ter voltado a França, deixou de ser Napoleão» pode significar algo que, no sentido requerido, pressupõe que eu estou a f i n g i r , e
apenas que as suas qualidades de general f o r a m afectadas e é obvia- Robinson Crusoè conversa realmente com o seu papagaio se acreditar
mente análoga à expressão f a m i l i a r «Eu já não sou eu». A s afirmações ou semi-acreditar que o pássaro segue o que ele diz, mesmo se esta
«Ele estava precisamente a começar a dormir» e «Eu dei comigo a convicção f o r falsa.
começar a dormir» são afirmações de tipos logicamente diferentes e Finalmente, existem muitas espécies de assuntos que estão relacio-
daí se conclui que o pronome « E u » está a ser usado com uma intensidade nados com as acções subsequentes ou apenas possíveis ou prováveis.
lógica diferente nas duas frases. Quando suborno uma pessoa para votar em m i m , o voto dela ainda não
Considerando especificamente o comportamento humano, isto é, teve lugar e pode nunca acontecer. U m a referência ao seu voto entra
o comportamento diferente do dos animais, crianças e idiotas, devemos na descrição do meu suborno mas a referência deve ser do tipo
notar, por várias razões, o facto de que certas espécies de acções estão, «Você votará em mim» e não «Porque você votou» ou «Porque pensei
em certo aspecto, ligadas ou são operações de outras acções. Quando que Você votou em mim». Do mesmo modo, o meu acto de falar com
uma pessoa se vinga de outra, escarnece dela, lhe responde ou joga essa pessoa pressupõe, somente sob este aspecto, que ela me compreenda
ao gato e ao r a t o com ela, as suas acções têm uma certa relação, e concorde comigo, ou seja, que eu falo para que a pessoa me possa
sob u m ou outro aspecto, com certas acções da outra pessoa. N u m perceber e concordar comigo.
sentido que será especificado mais tarde, a acção da p r i m e i r a implica Assim, quando Fulano contradiz, detecta, descreve, parodia, explo-
o pensamento sobre a segunda. A acção da parte de u m agente não ra, aplaude, zomba, é cúmplice, copia ou interpreta qualquer coisa feita
poderia ser de espionagem ou aplauso se não estivesse ligada com as por Cicrano, qualquer descrição da sua acção teria de implicar uma
acções de outro agente, nem eu me poderia comportar como cliente menção indirecta à coisa feita ou que se supõe que f o i feita por Cicrano,
se o leitor ou outra pessoa não se comportasse como vendedor. U m enquanto não é necessário fazer nenhuma descrição do comportamento
homem só evidencia qualquer coisa se o u t r o o está a examinar. Devem de Fulano para fazer a descrição do comportamento de Cicrano. Falar
estar algumas pessoas no palco para que outras possam ser críticos acerca da detecção ou zombaria de Fulano i m p l i c a r i a , mas não seria
dramáticos. Será conveniente, por vezes, usar o título «Acções de ordem implicado por, falar acerca do que ele t i n h a estado a detectar ou a
mais elevada» para designar as descrições que implicam menção indi- zombar, e é isto que se significa quando se diz que a acção de Fulano é
recta a outras acções. de uma ordem mais elevada do que a de Cicrano. Por «Mais elevado»
192 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A AUTOCONHECIMENTO 193

não quero dizer «Com mais elevação de sentimento». Fazer chantagem ordens e dá-las, fazer pedidos e atendê-los; apanhar notas e dá-las,
com u m desertor é de uma ordem mais elevada que a sua deserção e têm de aprender a compor e a seguir relatos, descrições e comentários,
anunciar é de uma ordem mais elevada do que vender. Recordar uma compreender e fazer críticas, aceitar, rejeitar, c o r r i g i r e compor vere-
amabilidade não é mais nobre do que fazê-la, mas é de uma ordem mais dictos, catequizar e ser catequizadas. Não menos, e também não mais,
elevada. têm de aprender a guardar para elas coisas que se sentem inclinadas a
Pode ser higiénico recordar que, embora as acções de descrever divulgar. A reticência é de uma ordem mais elevada do que a franqueza.
ou comentar as acções dos outros na sua ausência sejam uma espécie A minha finalidade ao chamar a atenção para estes truismos do
de ordem de acção mais elevada, não têm prioridade especial sobre os quarto de brinquedos e da sala de aulas pode ser compreendida agora.
outros modos de t r a t a r estas acções. Fazer uma descrição académica E m certa fase, a criança descobre a maneira de p r a t i c a r acções de
do que Cicrano faz, é somente uma maneira pela qual Fulano procede ordem mais elevada do que os actos de ordem inferior. Tendo sido
acerca do procedimento de Cicrano. A construção e o uso público ou separadamente vítima e autora de piadas, coacções, catequizações,
privado de frases no indicativo não é, como os intelectualistas gostam críticas e imitações, nas relações interpessoais entre os outros e ela
de pensar, o primeiro movimento indispensável de Fulano ou o seu própria, descobre como desempenhar os dois papéis ao mesmo tempo.
último movimento utópico. Mas este ponto exige que consideremos o Ouviu histórias antes e contou histórias antes, mas agora conta histó-
sentido no qual executar uma acção de ordem mais elevada «implica o rias aos seus próprios ouvidos encantados. F o i descoberta em insinceri-
pensamento da» acção menos elevada correspondente. Isto não significa dades e descobriu insinceridades nos outros, mas agora aplica as
que se, por exemplo, eu i m i t a r os gestos do leitor, deva fazer duas técnicas de detecção às suas próprias insinceridades. Descobre que pode
coisas, isto é, descrever oralmente os seus gestos a m i m próprio dar ordens a si própria com t a l autoridade, que por vezes lhes obedece,
e produzir gestos concordantes com os termos usados nesta descrição. mesmo quando sente relutância em fazê-lo. A autopersuasão e auto-
Falar a m i m próprio acerca dos seus gestos seria em si uma acção dissuasão tornam-se mais ou menos efectivas. Aprende na adolescên-
de ordem mais elevada e que i m p l i c a r i a igualmente o pensamento cia a aplicar ao seu próprio comportamento muitos desses métodos de
dos seus gestos. A frase «Implica o pensamento de» não significa uma ordem mais elevada que são regularmente praticados pelos adultos.
transacção causal ou a simultaneidade de u m processo de uma espécie Diz-se então que está a crescer.
com u m processo de o u t r a espécie. Como comentar os seus gestos deve Além disso, t a l como a d q u i r i u mais cedo não só a habilidade mas
ser em si estar a pensar de u m certo modo sobre os seus gestos, assim também a inclinação para executar actos de ordem mais elevada sobre
também imitá-los ou fazer mímica, e não simples réplica, deve ser em os actos dos outros, também se t o r n a propensa, bem como competente,
si estar a pensar de certo modo sobre os seus gestos. Mas evidentemente a fazer o mesmo a respeito do seu próprio comportamento, e t a l como
que isto é u m sentido distorcido de «pensar». Não denota qualquer aprendeu mais cedo a enfrentar as predisposições das outras pessoas
espécie de ponderação nem implica a enunciação de quaisquer proposi- para fazer tais acções, assim se t o r n a agora, em certa medida capaz e
ções. Significa que devo saber o que estou a fazer e, dado que o que apta a dar certos passos teóricos e práticos sobre os seus próprios
estou a fazer é i m i t a r , devo saber os gestos que o leitor fez, usar esse hábitos, motivos e capacidades. As suas acções de ordem mais elevada
conhecimento e usá-lo na maneira de i m i t a r e não na maneira de ou as suas predisposições para as executar não estão de qualquer modo
descrever ou comentar. isentas do mesmo tratamento. Para qualquer acção, de qualquer ordem,
As acções de ordem mais elevada não são instintivas. Qualquer é sempre possível que se tenha executado uma variedade de ordem mais
delas pode ser feita eficiente ou ineficientemente, apropriada ou ina- elevada de acções relativas. Se ridicularizo uma coisa feita pelo leitor
propriadamente, inteligente ou estupidamente. As crianças têm de ou por m i m , posso fazer, mas normalmente não faço, u m comentário
aprender a fazê-las. Têm de aprender como resistir, esquivar-se ou verbal, sobre o meu divertimento, peço desculpas por ele, ou admito
vingar-se, como antecipar, revelar ou cooperar, como trocar dinheiro outras pessoas à piada que disse, e então posso aplaudir-me ou cen-
e discutir preços, recompensar e punir. Têm de aprender a dizer piadas surar-me por tê-lo feito e anotar no meu diário o que fiz.
sobre os outros e a fazer espírito a respeito de si próprias, obedecer a Veremos que o assunto em discussão abrange m u i t o daquilo que é
I . P. — 1 3
194 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA AUTOCONHECIMENTO 195

vulgarmente chamado «autoconsciência» e «autodomínio», embora agora, é comentar u m acontecimento que não é em si, salvo per accidens,
abranja m u i t o mais do que isso. N a verdade, uma pessoa pode e deve o de comentar. Mas a operação de comentar não é, nem pode ser, o
por vezes actuar como repórter dos seus actos e por vezes também acontecimento sobre o qual esse comentário está a ser feito, nem u m
como m o n i t o r do seu próprio comportamento, mas estas relações consigo acto de r i d i c u l a r i z a r pode ser o próprio objecto ridicularizado. U m a
própria, de ordem mais elevada, são apenas duas entre muitas, como acção de ordem mais elevada não pode ser a acção sobre a qual ela é
as relações correspondentes interpessoais são apenas duas entre muitas. praticada. Assim, os meus comentários sobre as minhas acções devem
N e m se deve supor que a descrição que uma pessoa faz a si própria ser sempre silenciosos a respeito de uma acção, a própria acção de
dos seus actos ou as regras de conduta que impõe a si própria estão comentar, e esta pode ser apenas objecto de u m outro comentário. O
inevitavelmente livres de desvios ou descuidos. Os meus relatos sobre comentário sobre s i próprio, a auto-ridicularização e a auto-advertência
m i m próprio estão sujeitos à mesma espécie de defeitos que os meus estão condenados, no domínio lógico, ao eterno penúltimo lugar. Aliás,
relatos sobre as outras pessoas e as advertências, correcções e injunções
nada do que é deixado de f o r a de qualquer comentário ou advertência
que imponho a m i m próprio podem mostrar que sou tão ineficaz e estou
tem por isso o privilégio de escapar para sempre a comentários ou
tão m a l informado a respeito de m i m próprio como a respeito dos
advertências. Pelo contrário, podem ser o objecto do próximo comentá-
outros. A autoconsciência, se se quiser usar esta expressão, não deve
r i o ou censura.
ser descrita segundo o modelo para-óptieo consagrado, como u m facho
que i l u m i n a a própria pessoa por meio de raios luminosos da sua luz Este ponto pode ser exemplificado do modo seguinte: u m professor
própria, reflectidos n u m espelho i n t e r i o r , mas pelo contrário, e sim- de canto pode c r i t i c a r o t o m ou as notas cantadas pelo aluno, imitando
plesmente, como u m acaso especial do manuseamento v u l g a r mais ou com exagero cada palavra cantada por ele e, se o aluno cantou m u i t o
menos eficiente de uma testemunha mais ou menos inteligente e ho- devagar, o professor poderia parodiar cada palavra cantada pelo aluno
nesta. De igual modo, o autodomínio não deve ser comparado à antes da seguinte ser pronunciada. Mas então, numa disposição de
condução de u m subordinando, parcialmente disciplinado, por u m humildade, o professor tenta c r i t i c a r o seu próprio canto do mesmo
superior de mais sabedoria e autoridade perfeita. Ê simplesmente u m modo e, mais que isso, i m i t a r com exagero cada palavra que pronuncia,
caso especial de condução de uma pessoa vulgar por u m a pessoa incluindo as que pronuncia parodiando-se a si próprio. Torna-se imedia-
vulgar, em que, digamos, Fulano desempenha ambos os papéis. A tamente claro, primeiro, que não pode i r além da p r i m e i r a palavra da
verdade é que se dão actos de uma ordem mais elevada que estão sua canção e, segundo, que n u m dado momento e m i t i u u m som que t e m
acima das críticas, mas que qualquer acto de ordem mais elevada ainda de ser imitado — e o tempo que medeia entre o pronunciar das
que ocorra pode ser criticado. Não que qualquer coisa improvável notas e a sua imitação não t e m qualquer importância.
aconteça, mas que tudo o que acontece é improvável. Não que Pode, em princípio, não apanhar mais do que as abas do casaco
qualquer operação seja de ordem mais elevada, mas que para do objecto que persegue, dado que uma palavra não pode ser uma
qualquer operação de qualquer ordem podem existir operações de paródia de si própria. Não obstante, não há nenhuma palavra cantada
ordem mais elevada. por ele que não seja parodiada. Está sempre u m dia atrasado para a
feira, mas chega todos os dias ao lugar da feira de ontem. Nunca
(7) O SISTEMÁTICO CARÁCTER ILUSÓRIO DO «EU» consegue pisar a sombra da sua própria cabeça e nunca está mais do
que u m passo atrás.
Estamos agora em posição de poder t r a t a r do carácter ilusório U m revisor v u l g a r pode rever u m l i v r o , enquanto u m segundo
sistemático da noção de « E u » e do não-paralelismo parcial entre ele critica as revisões do l i v r o . Mas a revisão da segunda ordem não é uma
e a noção de «Tu» e «Ele». Relacionar uma pessoa com ela própria, crítica de si própria. Esta pode apenas ser criticada por uma terceira
sob qualquer aspecto, teórico ou prático, é p r a t i c a r u m acto de ordem revisão.Dada a estrutura editorial, qualquer revisão de qualquer ordem
mais elevada, como relacionar alguém com o u t r a pessoa qualquer. poderia ser publicada, embora em qualquer das fases todas as revisões
Tentar, por exemplo, descrever o que uma pessoa fez ou está a fazer recebessem notas críticas. N e m todos os actos da pessoa que faz u m
196 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A
AUTOCONHECIMENTO 197

diário podem ser temas do registo do seu diário, porque a última coisa
processo de pré-considerar pode desviar o curso do meu comportamento
a dar entrada no seu diário exige ainda que o acto de o fazer fosse por
subsequente numa direcção e g r a u de que o meu prognóstico não se
sua vez descrito.
pode dar conta. U m a coisa para que não me posso preparar é para o
Isto, penso eu, explica a sensação de que o meu «eu» do ano passado
próximo pensamento que vou ter.
ou de ontem podia ser descrito exaustivamente e que o presente ou
O facto de o meu f u t u r o imediato ser deste modo sistematicamente
o passado do leitor me podia ser exaustivamente descrito, mas que o
fugidio para m i m não pretende, evidentemente, provar que a minha
meu «eu» de hoje fica fora de qualquer domínio que tentemos ter
vida é em princípio imprevisível para profetas que não eu próprio ou
sobre ele. Também explica o não-paralelismo aparente entre a noção de
mesmo que os meus actos são inexplicáveis para m i m depois do calor
« E u » e a de « T u » , sem i n t e r p r e t a r o resíduo elusivo como uma espécie
da acção. Posso apontar para uma coisa com o dedo indicador e outras
de mistério final.
pessoas podem apontar para o meu dedo. Mas o meu dedo não pode
Há outra coisa que isto também explica. Quando as pessoas
ser o objecto para que ele próprio aponta, t a l como u m míssel não pode
consideram os problemas da Liberdade e da Vontade e t e n t a m imaginar
ser o seu próprio alvo, embora qualquer outra coisa possa ser d i r i g i d a
a sua vida como análoga à dos relógios e dos cursos de água, hesitam
para ele.
perante a ideia de que o seu próprio f u t u r o imediato está já inaltera-
velmente previsto e fixado. Parece absurdo supor que o que eu estou Esta conclusão geral de que qualquer acção pode ser o objecto
prestes a pensar, sentir ou fazer já esteja previamente estabelecido, de uma acção de ordem mais elevada mas não pode ser o objecto dela
embora as pessoas estejam prontas a a d m i t i r que não há absurdo na própria, está ligada com o que f o i dito anteriormente sobre o funciona-
suposição de que o f u t u r o das outras pessoas esteja pré-estabelecido mento das palavras-índice, tais como «agora», «tu» e «eu». U m a oração
deste modo. A chamada «sensação de espontaneidade» está i n t i m a - de « E u » indica o que uma pessoa em p a r t i c u l a r está ocupada a dizer ou
mente ligada com esta incapacidade para imaginar que o que vou a escrever. « E u » indica a pessoa que o exprime. Assim, quando uma
pensar ou fazer pode estar já predestinado. Por o u t r o lado, quando pessoa expressa uma oração de «Eu», o seu acto de a expressar pode
considero o que pensei ou fiz ontem, parece não haver absurdo em ser parte de uma acção de ordem mais elevada, talvez a da sua
supor que tudo isso podia ter sido previsto antes de eu o ter feito. É autodescrição, autoexortação ou autocomiseração e esta acção em
apenas enquanto estou efectivamente a prever o meu próximo movi- si não é t r a t a d a na acção que ela própria é. Mesmo se a pessoa, por mo-
mento que a tarefa se parece com a de u m nadador que tenta enfrentar tivos especulativos especiais, se está a concentrar no problema do eu,
as ondas contra as quais se a t i r a . falha e sabe que falhou em apanhar mais do que as abas do casaco do
A solução é igual à anterior. A previsão de u m acto ou de u m que estava a perseguir. A caça perseguida por ele era o próprio caçador.
pensamento é uma operação de ordem mais elevada, cuja execução não Para concluir, não há nada de misterioso ou oculto acerca das
pode estar entre as coisas consideradas no acto de fazer a previsão. classes de actos e atitudes de ordem mais elevada que podem ser
Como o estado de espírito em que estou imediatamente antes de fazer inadequadamente abrangidos pelo título de «autoconsciência». São
qualquer coisa pode d i f e r i r u m pouco do que eu faço, segue-se que o mesmo, em género, que os actos e atitudes exibidos nas relações das
devo não prestar atenção pelo menos a u m dos pormenores predominan- pessoas umas com as outras. Na verdade, as primeiras são apenas uma
tes da minha previsão. De igual modo, posso dar ao leitor uma opinião aplicação especial das últimas e são aprendidas anteriormente por meio
o mais completa possível sobre o que deve fazer, mas devo o m i t i r uma delas. Se p r a t i c a r a acção de terceira ordem de comentar u m acto de
parte do conselho, dado que não posso ao mesmo tempo dar-lhe uma segunda ordem de me r i r de m i m próprio por causa de uma inépcia
opinião sobre como seguir essa opinião. Não há portanto paradoxo em
manual, usarei com certeza o pronome pessoal da p r i m e i r a pessoa de
dizer que, ao passo que normalmente não me surpreendo nada em me
dois modos diferentes. Digo a m i m próprio e aos circunstantes: «Estava
encontrar a fazer ou a pensar o que estou a fazer ou a pensar, quando
a r i r - m e de m i m próprio por ser u m desajeitado de mãos». Mas isto,
tento prever mais cuidadosamente o que farei ou pensarei, é provável
longe de m o s t r a r que há dois «Eus» na minha pele, para não f a l a r já
que o resultado seja uma falsificação da minha expectativa. O meu
do terceiro que está a fazer comentários sobre eles, mostra apenas que
198 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

estou a aplicar a linguagem pública dos dois pronomes com os quais


falo de r i r de m i m ; e estou a aplicar a linguagem idiomática, porque
estou a aplicar o método de transacção inter-pessoal para cuja descrição
esta linguagem é ordinariamente empregada.
Antes de concluir este capítulo, vale a pena mencionar que há uma
diferença i m p o r t a n t e entre o pronome pessoal da p r i m e i r a pessoa
e os outros. « E u » , no meu uso desta palavra, indica-me sempre a m i m
e só me indica a m i m . « T u » , « E l a » e «Eles» indicam pessoas diferentes
em tempos diferentes. « E u » é como a minha sombra. Nunca me posso CAPITULO VII

separar dela como me posso separar da sombra de outra pessoa. Não


há mistério acerca desta constância, mas menciono-a porque parece
dotar o « E u » de uma singularidade e aderência mistificadora. « A g o r a » SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO
tem alguma coisa da mesma sensação de dificuldade.

(1) PRÓLOGO

U m a das principais finalidades negativas deste l i v r o é m o s t r a r


que «mental» não designa u m estado que possibilite a uma pessoa
perguntar coerentemente se uma dada coisa ou acontecimento são
mentais ou físicos, se existem «no espírito» ou «no mundo exterior».
F a l a r do espírito de uma pessoa não é falar do recipiente que pode
conter objectos que o chamado «mundo físico» está impossibilitado de
conter. É falar das capacidades, sujeições e inclinações de uma pessoa
para fazer e sofrer certas espécies de coisas e dos actos de fazer e
sofrer essas coisas no mundo vulgar. N a verdade, não faz sentido
falar como se pudessem existir dois ou onze mundos. Só pode provocar
confusão o facto de se deduzir que existem mundos como consequência
de ocupações particulares. Mesmo a frase solene «o mundo físico» é
tão despropositada filosoficamente como seriam as frases «o mundo
numismático», «o mundo das lojas de quinquilharias» ou «o mundo
botânico».
Mas será argumentado em defesa da doutrina que «mental» designa
a convicção de que é necessário dar u m lugar especial a sensações,
sentimentos e imagens. O laboratório de ciências fornece descrições e
correlações de várias espécies de coisas e processos, mas as nossas
impressões e ideias não são mencionadas nestas descrições. Devem
pertencer p o r t a n t o a qualquer outro lugar. E como é evidente que a
ocorrência de uma sensação física, por exemplo, é u m facto acerca da
pessoa que sente uma dor ou sofre encandeamento pela luz, a sensação
200 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 201

deve estar nessa pessoa. Mas este é u m sentido especial de «em», visto tácteis e quinestésicas e para percepções de temperatura, assim como
que o cirurgião não encontrará estas sensações sob a epiderme das dores e incómodos localizados. Ver, ouvir, provar e cheirar não i m p l i c a m
pessoas. Assim, a sensação deve estar no espírito da pessoa. sensações, neste sentido da palavra, t a l como ver não implica ouvir,
Além disso, as sensações físicas e psíquicas e as imagens são coisas nem sentir uma corrente de a r implica provar qualquer coisa por meio
de que o seu possuidor deve estar consciente. Haja o que houver mais na do paladar. N o seu uso elaborado, «sensação» parece ser u m termo
corrente da consciência, pelo menos as sensações físicas e psíquicas e semi-fisiológico, cujo emprego está ligado a certas teorias cartesianas
as imagens são parte dessa corrente. A j u d a m a constituir, se não cons- pseudo-científicas. Estes conceitos não são usados no que os romancis-
t i t u e m por completo, a substância de que os espíritos são compostos. tas, biógrafos, autores de diários ou perceptoras dizem acerca das
Os defensores deste argumento têm tendência para abraçar esta pessoas, ou no que os médicos, oculistas ou dentistas dizem aos seus
ideia com especial confiança no que se refere às imagens, tais como as pacientes.
de que «Vejo nos olhos do espírito» e o que «se passa na minha cabe- No seu uso f a m i l i a r , não elaborado, «sensação» não significa u m
ça». Sentem certos escrúpulos em sugerir u m divórcio demasiadamente ingrediente das percepções, mas uma espécie de percepção. Mas nem
radical entre as sensações físicas e as condições do corpo. A s dores de no seu uso sofisticado esta palavra significa uma noção contida na
estômago, formigueiros e zumbidos nos ouvidos têm ligações fisiológi- noção de percepção. A s pessoas sabiam como f a l a r acerca de ver, o u v i r
cas que ameaçam macular a pureza do regato das experiências mentais. e sentir coisas antes de terem conhecimento de quaisquer hipóteses
Mas as imagens que eu vejo quando tenho os olhos fechados e a música fisiológicas ou psicológicas, ou antes de terem ouvido f a l a r de quaisquer
e as vozes que posso ouvir, mesmo quando tudo está silencioso, q u a l i f i - dificuldades teóricas sobre as comunicações entre os Espíritos e os
cam-se admiravelmente como membros do reino do espírito. Posso, Corpos.
dentro de certos limites, convocá-los, dispersá-los, modificá-los à minha Não sei qual a linguagem certa em que estes assuntos devem ser
vontade, e o lugar, a posição e as condições do meu corpo não parecem discutidos, mas espero que a minha discussão deles na linguagem oficial
ter qualquer relação com a sua ocorrência ou propriedades. possa t e r pelo menos a eficácia interna de uma Quinta Coluna.
Esta crença no estado mental das imagens acarreta u m corolário
favorável ao espírito. Quando uma pessoa está a pensar para si própria, (2) SENSAÇÕES
a retrospecção mostra-lhe comummente que pelo menos parte do que
aconteceu f o i uma sequência de palavras ouvidas na sua cabeça, como Para certos fins, é conveniente d i v i d i r as sensações naquelas que
se as pronunciasse para si própria. Assim, a doutrina venerada de que entram ex officio na percepção dos sentidos e nas que não entram,
discorrer para si próprio é uma propriedade do espírito, reforça e não o que é o mesmo, de modo grosseiro, que dividi-las nas que estão
é reforçada pela doutrina de que a função do pensamento puro não relacionadas com os órgãos especiais dos sentidos, isto é, os olhos,
pertence ao vasto mundo dos ruídos físicos, mas antes consiste na os ouvidos, a língua, o nariz e a pele e aquelas que têm relação com
substância mais etérea de que são feitos os sonhos. outros órgãos sensitivos mas não sensoriais do corpo. Mas esta divisão
Contudo, antes de podermos discutir as imagens, há m u i t o a dizer é u m t a n t o arbitrária. Quando os olhos estão encadeados e quando o
sobre as sensações físicas e este capítulo é inteiramente dedicado aos nariz arde, inclinamo-nos a classificar estas sensações como sensa-
conceitos de sensação e observação. O conceito das imagens será ções orgânicas de dores e picadas e, reciprocamente, quando temos
discutido no próximo capítulo. certas sensações na cavidade estomacal, estamos prontos a dizer
Por razões discutidas na sua última parte, não estou satisfeito que sentimos aí a espinha ou o pudim. U m a sensação muscular
com este capítulo. Deixei-me cair no m i t o oficial de que perceber específica pode ser indiferentemente descrita como u m a sensação de
implica ter sensações físicas. Mas isso é u m uso elaborado da palavra fadiga ou como uma sensação de peso ou resistência do corpo e u m a
«sensação». Não é o modo como normalmente usamos o substantivo pessoa pode contar ao seu companheiro que o u v i u u m comboio m u i t o
«sensação» ou o verbo «sentir». Usamos normalmente estas palavras ao longe, enquanto conta a outro que d i s t i n g u i u dificilmente esse ruído
para uma família especial de percepções, designadamente percepções do zumbido ou palpitação n o r m a l dos seus ouvidos.
202 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 203

Por razões óbvias, somos forçados a referir-nos constantemente às semelhantes, mas por agora é suficiente dizer que os nossos processos
sensações relacionadas com os órgãos dos sentidos, porque temos de vulgares de obter informações acerca das nossas próprias sensações
mencionar constantemente o que vemos e o que não vemos, o que ouvi- consistem em fazer certas espécies de referências ao que pensamos que
mos, cheiramos, provamos e sentimos. Mas não falamos acerca destas poderia ser estabelecido pela observação de qualquer pessoa sobre os
sensações «por elas próprias». Normalmente, mencionamo-las apenas objectos comuns. Descrevemos o que nos é pessoal em termos neutros
em referência às coisas e acontecimentos que estamos a observar ou a ou impessoais. N a verdade, as nossas descrições não comunicaram
t e n t a r observar. As pessoas f a l a m de t e r uma visão momentânea mas nada se não fossem expressas nestes termos, os quais são, afinal, os
em contextos como ter uma visão rápida de u m pisco ou de alguma que nos f o r a m ensinados por outras pessoas. Não descrevemos medas
coisa que se move, e não fogem a este hábito quando se lhes pede que de feno, nem podemos fazê-lo, em termos deste ou daquele conjunto
descrevam como é que uma coisa parecia, soava ou sabia. Dizem de sensações. Descrevemos as nossas sensações por certas referências
normalmente que parecia uma meda de feno, que soava como qualquer a observadores e coisas como medas de feno.
coisa sussurrante ou que sabia a pimenta. Seguimos a mesma prática ao descrever sensações orgânicas. Quan-
Este processo de descrever sensações fazendo de certo modo refe- do uma pessoa que sofre descreve uma dor como uma punhalada, uma
rência a objectos como medas de feno, a coisas que sussurram e a moinha ou u m ardor, se bem que não pense necessariamente que a
pimenta, é de uma grande importância teórica. U m a meda de feno, por sua dor é provocada por u m punhal, por uma broca ou por uma brasa,
exemplo, é qualquer coisa sobre cuja descrição todos poderiam estar está no entanto a dizer de que espécie de dor se t r a t a , comparando-a
de acordo. U m a meda de feno é uma coisa que qualquer observador com a espécie de dor que seria provocada por esses instrumentos.
poderia observar e esperamos que as descrições de diferentes observa- Fazem-se descrições semelhantes como «sinto uma melodia nos meus
dores coincidam umas com as outras ou que pelo menos sejam suscep- ouvidos» ou «sinto o sangue a gelar-se-me» e «vi estrelas». Mesmo
tíveis de correcção até coincidirem. A sua posição, forma, tamanho, dizer que a vista de alguém está enevoada, é compará-la ao modo como
peso, data em que f o i feita, composição e função são factos que qualquer os objectos comuns parecem a qualquer observador quando este os
pessoa poderia estabelecer por métodos vulgares de observação e con- vê através de uma atmosfera enevoada.
sulta. Mas é mais que isto. Estes métodos também estabeleceriam que O objectivo presente de mencionar estes modos de descrever as
aspecto teria a meda de feno e a que cheiraria a observadores normais nossas sensações é m o s t r a r como e porque existe uma dificuldade
em condições normais de observação. Quando digo que qualquer coisa linguística na discussão da lógica de conceitos de sensação. Não empre-
parece ser uma meda de feno (quando pode efectivamente ser u m gamos u m vocabulário de sensações «em si». Descrevemos sensações
cobertor numa corda de estender r o u p a ) , estou a descrever como parece particulares referindo o que os objectos comuns regularmente parecem,
nos termos em que se podia esperar que uma meda de feno parecesse, como soam e são sentidos por pessoas normais.
quando observada de u m ângulo adequado, sob uma luz conveniente e
Os epistemologistas gostam de usar palavras como «dores», «pica-
contra u m fundo conveniente. Isto é, estou a comparar o aspecto que
das», «punhaladas», «ardores» e «encadeamentos» como se fossem
t e m o cobertor aqui e agora, não com quaisquer outras visões particu-
nomes «simples» de sensações. Mas esta prática é duplamente engana-
lares tidas por m i m ou por outras pessoas particulares numa situação
dora. Não só muitas destas palavras t i r a m o seu significado de situações
particular, mas com u m tipo de visão semelhante ao que quaisquer
que envolvem objectos comuns, como pulgas, punhais e caloríferos, mas
observadores vulgares poderiam esperar ter em situações de certas
também i m p l i c a m que a pessoa que t e m as sensações goste ou não,
espécies, designadamente em situações de estarem nas proximidades
possa ou não possa gostar de as ter. U m a dor no meu joelho é uma
de uma meda de feno à luz do dia.
sensação que não gosto de ter. Assim, «uma dor que não se nota» é
Semelhantemente, dizer que uma comida está apimentada é dizer uma expressão absurda, enquanto «uma sensação que não se nota»
que me sabe agora como qualquer comida apimentada saberia a qual- não contém qualquer absurdo.
quer pessoa de paladar normal. Tem sido a l v i t r a d o que nunca posso Este ponto pode servir de introdução a uma distinção de conceito
saber que os grãos de pimenta dão a pessoas diferentes sensações que será dentro em breve de grande importância, ou seja, a distinção
205
204 SENSAÇAO E OBSERVAÇÃO
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

entre t e r uma sensação e observar. Quando se diz que uma pessoa está gente possa ter, é sempre concebível que uma pessoa muito pouco
a ver, a perscrutar ou a olhar qualquer coisa, a ouvi-la ou a saboreá-la, sensível possa ter experimentado séries de sensações exactamente
uma parte, mas apenas uma parte do que se significa, é que está a ter semelhantes e se por «corrente da consciência» significássemos «série
sensações visuais, auditivas ou gustativas. Mas, para estar a observar de sensações», então não haveria possibilidade, pelo simples inventário
qualquer coisa, o observador deve, pelo menos, estar a tentar descobrir do conteúdo dessa corrente, de decidir se a c r i a t u r a que t i n h a essas
algo. O seu exame é descrito, conforme os casos, como cuidadoso ou sensações era u m animal ou u m ser humano, u m idiota, u m louco ou
descuidado, precipitado ou persistente, metódico ou desordenado, preci- u m homem são, e m u i t o menos se era u m filólogo ambicioso e crítico
so ou impreciso, de perito ou de amador. Observar é uma tarefa que ou u m empregado da m a g i s t r a t u r a sem inteligência mas trabalhador.
pode t e r alguma dificuldade e podemos ter mais ou menos êxito nela N o entanto, estas considerações não satisfarão os teóricos que
e sermos melhores ou piores nela. Mas nenhum destes modos de caracte- querem fazer da corrente das sensações físicas e psíquicas e das imagens
r i z a r os exercícios das faculdades de observação de uma pessoa pode de uma pessoa a substância do espírito e regressar assim ao dogma de
ser aplicado a t e r sensações visuais, auditivas ou gustativas. U m a que o espírito é uma coisa em estado especial, composta por u m a
pessoa pode escutar cuidadosamente, mas não pode t e r uma melodia substância especial. Alegarão, aliás correctamente, que embora os
nos ouvidos cuidadosamente. Pode olhar sistematicamente, mas não oculistas e os dentistas possam modificar as sensações dos pacientes
pode ter uma sensação de encandeamento sistemática. Pode t e n t a r aplicando tratamentos químicos ou mecânicos aos seus órgãos corpo-
d i s t i n g u i r paladares, mas não pode tentar ter sensações gustativas. rais, estão no entanto impedidos de observar as sensações em s i
Observamos m u i t o frequentemente, por curiosidade ou por obediência, próprias. Podem observar o que está fisiologicamente errado nos olhos
mas não temos cócegas por esses motivos. Observamos propositada- e nas gengivas do doente, mas devem confiar no testemunho dele para
mente, mas não temos sensações propositadamente, embora as possa- o conhecimento do que ele vê ou sente. Só quem calça os sapatos sabe
mos provocar de propósito. Podemos cometer erros de observação, mas onde eles lhe apertam. A p a r t i r disto, argumenta-se, plausível ou fala-
não faz sentido falar de cometer ou evitar erros de sensação. As sen- ciosamente, que existe na verdade a antítese consagrada entre o mundo
sações não podem ser correctas nem incorrectas, verídicas ou falsas. físico público e o mundo interno mental, entre as coisas e acontecimen-
Não são apreensões nem falsas apreensões. Observar é descobrir ou tos que qualquer pessoa pode presenciar e as coisas e acontecimentos
tentar descobrir qualquer coisa, mas ter uma sensação não é descobrir que só podem ser presenciados pelo seu próprio possuidor. Os planetas,
ou tentar descobrir, nem f a l h a r na descoberta de alguma coisa. micróbios, nervos e tímpanos são coisas publicamente observáveis do
mundo exterior. As sensações, sentimentos e imagens são constituintes
Este conjunto de contrastes habilita-nos a dizer que, embora a men-
só intimamente observáveis dos nossos diversos mundos mentais.
ção ao g r a u no qual, aos modos pelos quais e aos objectos a que uma
Quero m o s t r a r que esta antítese é falsa. É verdade que o sapateiro
pessoa está atenta ou desatenta faça parte da descrição do seu espí-
não pode testemunhar as dores que eu sinto quando o sapato me aperta,
r i t o e carácter, a menção das suas faculdades sensoriais e sensações
mas é falso que eu as testemunhe. A razão porque as minhas dores não
efectivas não faz parte dessa descrição. Para usar uma frase inconve-
podem ser testemunhadas por ele não é que u m a C o r t i n a de F e r r o as
niente, nada há de «mental» acerca das sensações. A surdez não é uma
defenda de serem presenciadas por qualquer pessoa além de m i m , mas
espécie de estupidez, nem o estrabismo é uma espécie de indignidade.
porque não são a espécie de coisas de que faz sentido dizer que são ou
O alcance do faro do cão de caça não prova que ele seja inteligente,
não presenciadas, mesmo por m i m . E u sinto ou tenho as dores, mas
nem tentamos teimar com as crianças daltónicas ou envergonhá-las ou
não as descubro ou examino. Não são coisas que descubro por olhar
pensar nelas como atrasadas mentais. Não compete ao moralista ou ao
para elas, por ouvi-las ou saboreá-las. N o sentido em que se pode dizer
psiquiatra, mas s i m ao oculista, diagnosticar e receitar casos de visão
que uma pessoa teve u m pisco sob observação, seria disparatado dizer
imperfeita. Ter uma sensação não é u m exercício de uma qualidade da
que teve uma pontada sob observação. Pode haver uma ou várias teste-
inteligência ou do carácter. Daí não termos m u i t o orgulho em a t r i b u i r
munhas de u m acidente de estrada, mas não pode haver várias teste-
sensações aos répteis.
munhas, nem sequer uma, de uma náusea.
Quaisquer que sejam as séries de sensações que u m a pessoa i n t e l i -
206 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 207

Sabemos o que é ter e necessitar de ter auxiliares de observação, pode ser caracterizada como «clara» ou «confusa» mostra que é uma
como telescópios, estetoscópios e lâmpadas para a observação de plane- palavra-observação e não uma palavra-sensação). U m objecto de obser-
tas, pulsações do coração e traças, mas não podemos pensar o que vação, como u m pisco ou u m queijo, deve portanto ser a espécie de
seria aplicar tais instrumentos às nossas sensações. De modo seme- coisa de que é possível os observadores terem visões, ou cheirá-las.
lhante, se bem que saibamos que espécies de obstáculos prejudicam Mas muitos teóricos pedem-nos que olhemos para fora desses objectos
ou impedem a nossa observação dos objectos comuns, designadamente comuns como piscos e queijos e que vejamos as visões e inspirações e
obstáculos como o nevoeiro, formigueiros nos dedos ou zumbidos nos pedem-nos que declaremos que eu, embora ninguém mais o possa fazer,
ouvidos, não podemos pensar em impedimentos análogos que surjam posso observar as visões e cheiros que tenho e observá-los no mesmo
entre nós e as sensações. sentido de «observar» em que qualquer pessoa pode observar o pisco
A o dizer que as sensações não são a espécie de coisas que podem ou o queijo. Mas a d m i t i r isto seria a d m i t i r que quando tenho uma visão
ser observadas, não quero dizer que são inobserváveis, da mesma do pisco posso observar essa visão e então, ao fazê-lo, devo ter qualquer
maneira que as bactérias infra-microscópicas, as balas em movimento coisa como uma visão ou cheiro dessa visão do pisco ou desse cheiro
ou as montanhas do outro lado da lua, ou da mesma maneira que os do queijo. Se as sensações são objectos próprios de observação, então
planetas são inobserváveis para os cegos. O que quero dizer é qualquer observá-las deve acarretar t e r sensações dessas sensações, análogas à
coisa como i s t o : todas as palavras que podem ser escritas, excepto as visão do pisco, sem as quais eu não poderia estar a olhar para ele. E
de uma só letra, podem ser soletradas. Algumas palavras são mais difí- isto é claramente absurdo. Não existe nada que corresponda às frases
ceis de soletrar do que outras e algumas palavras podem ser soletradas «Uma visão de uma visão» ou «O cheiro de uma dor» ou «O som de u m
de várias maneiras diferentes. Contudo, se nos perguntarem como se puxão» ou « A sensação de f o r m i g u e i r o de uma sensação de formigueiro»
soletram as letras do alfabeto, temos de responder que não podem ser e se houvesse alguma coisa que correspondesse a isso, a série continua-
soletradas. Mas este «não podem» não significa que se t r a t a de uma r i a indefinidamente.
tarefa de dificuldade insuperável, mas apenas que a pergunta «de que Mas, quando uma pessoa esteve a ver uma corrida de cavalos,
letras dispostas em que ordem se compõe uma determinada letra?» é adequado perguntar se teve uma boa ou má visão dela, se a v i u
é uma pergunta inadequada. T a l como as letras não são nem fáceis cuidadosa ou descuidadamente e se tentou ver tudo quanto podia.
de soletrar, nem insuperàvelmente difíceis de soletrar, assim argumen- Assim, se fosse correcto dizer que uma pessoa observa as suas
t a r e i que as sensações não são nem observáveis nem inobserváveis. sensações, seria adequado perguntar se a sua inspecção de uma comi-
Contudo, correspondentemente, t a l como não podemos sequer perguntar chão f o i feita com ou sem embaraço, propositada ou casualmente, e se
como é que uma letra é soletrada, isso não exclui que saibamos poderia ter discernido mais acerca dela se tivesse tentado. Nunca
perfeitamente como as letras se escrevem e, assim, o facto de não ninguém faz tais perguntas, assim como ninguém pergunta como se
podermos falar da observação de sensações não exclui de modo nenhum soletra a p r i m e i r a letra de «Londres». Não há lugar para tais pergun-
que possamos falar do facto de as pessoas notarem ou darem atenção às tas. Este ponto é em parte obscurecido pelo facto de que a palavra
suas sensações, ou de lhes ser possível fazer confissões e descrições das «observar», embora geralmente usada para r e f e r i r processos como
sensações que notam. A dores de cabeça não podem ser presenciadas olhar, escutar e saborear, ou ainda realizações como divisar e detectar,
mas podem ser notadas, e enquanto é inadequado aconselhar uma é por vezes usada como sinónimo de «prestar atenção» e «notar». V e r e
pessoa no sentido de não espreitar para as suas cócegas é absolutamente divisar implicam prestar atenção, mas prestar atenção não implica
adequado dizer-lhe que não lhes dê atenção. olhar.
Vimos que observar implica ter sensações. Não se poderia descre- Conclui-se daqui que estava errado desde o princípio contrastar
ver u m homem a olhar para u m pisco se não tivesse tido uma visão os objectos comuns da observação de qualquer pessoa, como piscos e
singular dele, ou a cheirar u m queijo se não tivesse feito uma única queijos, com os supostos objectos peculiares da m i n h a observação
inspiração. (Estou a a d m i t i r , o que não é verdade, que palavras como privilegiada, designadamente as minhas sensações, dado que as sensa-
«visão» e «inspiração» significam sensações. O facto de que uma visão ções não são de modo algum objectos de observação. Consequentemente,
208 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 209

não temos de montar u m palco, a que chamemos «o mundo exterior», como obedecendo ou desobedecendo às regras da sintaxe. Evidentemente
para guardar nele os objectos da observação de qualquer pessoa, e outro que é verdade e importante que eu sou a única pessoa que pode dar
chamado «o espírito» para guardar os objectos de certas observações contas em p r i m e i r a mão das dores provocadas em m i m pelo meu sapato
de monopólio. A antítese entre «público» e «privado» é em parte apertado e u m oculista que não saiba falar a m i n h a língua fica sem a
resultante da interpretação errada da antítese entre objectos que podem sua melhor fonte de informação acerca das minhas sensações visuais.
ser vistos, tocados, e provados e as sensações que são tidas mas não Mas o facto de que só eu posso descrever em p r i m e i r a mão as minhas
olhadas, tocadas ou provadas. Ê verdade, e é mesmo uma tautologia, sensações não implica que tenha o que f a l t a aos outros, isto é, a
que o sapateiro não pode sentir o sapato a apertar o meu pé, a menos oportunidade de observar essas sensações.
que o sapateiro seja eu próprio, mas isto não acontece por ele estar Devem ainda ser assinalados mais dois pontos relacionados com
proibido de espreitar por uma janela apenas aberta para m i m , mas este assunto. Primeiro, há u m sentido filosoficamente nada excitante,
porque não f a r i a sentido dizer que eie estava na minha dor e portanto embora importante, de «privado», no qual as minhas sensações são
também não f a r i a sentido dizer que ele estava a notar a dor que eu certamente privadas ou propriedade minha. Ou seja, t a l como o leitor
estava a ter. não pode, logicamente, a g a r r a r as coisas que eu agarro, ganhar as
Mas há mais consequências. Ãs propriedades que deduzimos por minhas corridas, comer as minhas refeições, f r a n z i r as sobrancelhas
observação, ou não sem observação, para caracterizar os objectes por m i m ou sonhar os meus sonhos, também não pode sentir as minhas
comuns da observação de qualquer pessoa, não podem ser s i g n i f i c a t i - dores ou evocar as imagens que eu evoco. N e m Vénus pode t e r os
vamente atribuídas ou negadas sensações. As sensações não têm d i - satélites de Neptuno, nem a Polónia ter a história da Bulgária. Isto é
mensão, forma, posição, temperatura, cor ou cheiro. N o sentido em apenas uma parte da força lógica das orações nas quais o acusativo de
que há sempre uma resposta para a pergunta «Onde está?» ou «Onde u m verbo t r a n s i t i v o é cognitivo. Estes verbos transitivos não significam
estava o pisco?», não há resposta para a pergunta «Onde está?» ou relações. «Eu apanho a minha presa» não a f i r m a uma relação entre
«Onde estava a sua visão do pisco?». N a verdade, há u m sentido em que m i m e a presa, de t a l modo que essa presa pudesse, de uma maneira
se pode dizer com propriedade que a comichão está «no meu pé» ou uma concebível, t e r uma relação com o leitor em vez de a t e r comigo. Não
picada «no meu nariz», mas é u m sentido diferente daquele em que os é como «Eu parei a minha bicicleta», pois o leitor podia ter-se anteci-
ossos estão no meu pé ou os grãos de pimenta no meu nariz. Assim, pado no acto de parar a m i n h a bicicleta.
no sentido confuso de «mundo» em que as pessoas dizem que «o mundo Segundo, dizer que «Tive uma dor» não a f i r m a u m a relação t a l
exterior» o «o mundo público» contêm piscos e queijos, cujas localiza- como acontece em «Eu t i n h a u m chapéu», o que quer dizer que a frase
ções e relações podem ser encontradas nesse mesmo mundo, não há « A minha dor» não significa qualquer espécie de coisa ou «termo». Não
outro mundo ou conjunto de mundos nos quais as localizações e relações significa sequer u m episódio, se bem que «Eu t i v e uma dor» a f i r m e
das sensações possam ser encontradas, nem existe o reputado problema que se deu u m episódio. Isto é uma parte da razão pela qual não faz
de descobrir de que natureza são as relações entre os ocupantes do sentido falar de observar, inspeccionar, testemunhar ou investigar
mundo público e os dos supostos mundos privados. Mais, enquanto u m sensações, visto que os objectos adequados a esses verbos são coisas
objecto comum, como uma agulha, pode estar dentro ou fora de outro, e episódios.
t a l como acontece com u m palheiro, não há antítese correspon- Mas, quando teorizamos acerca das sensações, somos forçosamente
dente de «dentro» e «fora» aplicável às sensações. A m i n h a dor não tentados a falar delas como se fossem coisas o u episódios ilusórios
está escondida do sapateiro por estar dentro de m i m , no sentido de fugidios. Inadvertidamente trabalhamos segundo modelos como o do
estar literalmente dentro da m i n h a pele ou metafisicamente n u m lugar homem solitário dentro da sua tenda que vê manchas e reflexos de luz
a que ele não tem acesso. Pelo contrário, a minha dor não pode ser e sente saliências na lona. Mas, a i dele, não poderá nunca ver essas
descrita, como as agulhas, como interna ou externa a u m objecto comum luzes ou sentir as coisas que estão do outro lado porque a lona está
como eu próprio, nem como estando escondida ou à vista, nem as letras sempre no meio. Pedaços de lona iluminados ou com saliências são
podem ser classificadas como substantivos, verbos ou adjectivos, ou coisas, mas as iluminações ou saliências momentâneas são episódios.

i. p. — 1 4
210 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 211

Assim, são da espécie de objectos que é adequado descrever como sendo ser descrito como apanhar u m aspecto momentâneo ou a aparência
olhados, investigados e detectados por u m homem dentro da sua tenda visual de alguma coisa e ter uma sensação olfactiva seria t e r uma
e também é adequado f a l a r deles como estando nesse lugar, mas sem lufada momentânea de alguma coisa. Mas o que é ter u m aspecto
serem vistos nem detectados. Além disso, u m homem que pode ver ou momentâneo ou uma lufada momentânea? E que espécie de objecto é o
detectar a lona iluminada ou com saliências poderia ver ou detectar aspecto ou a lufada que se têm? Antes de tudo, o aspecto de u m cavalo
as luzes e as pedras se não estivessem escondidas dele. A situação de não é u m acontecimento desportivo na pista das corridas. Do modo pelo
u m homem que t e m sensações está portanto completamente fora da qual toda a gente pode presenciar a corrida, não é possível para toda a
analogia com o homem da tenda. Ter sensações não é olhar ou detectar gente presenciar o aspecto momentâneo que eu tenho dessa corrida O
objectos e olhar e detectar coisas e episódios não é tê-los no sentido leitor não pode ver o mesmo aspecto que eu, t a l como não pode ter a dor
em que uma pessoa t e m sensações.
que eu tenho. U m dado dos sentidos, isto é, u m aspecto momentâneo,
uma lufada, uma comichão ou u m som, são propriedade da pessoa que
(3) A TEORIA DOS DADOS DOS SENTIDOS
t e m a percepção. Segundo, a visão da corrida de cavalos é descrita como
uma miscelânia de cores na extensão do campo visual de alguém. Mas
Ê apropriado comentar nesta a l t u r a uma teoria frequentemente
isto t e m de ser esclarecido pela explicação de que é uma miscelânea
designada por «Teoria dos Dados dos Sentidos». Esta teoria é p r i m o r -
de cores em extensão, apenas n u m certo sentido. Normalmente, quando
dialmente uma t e n t a t i v a no sentido de elucidar os conceitos de percepção
se fala de uma miscelânea de cores, faz-se referência a objectos comuns
dos sentidos e parte dessa tarefa consiste em elucidar as noções das
da observação de alguém, tais como colchas, tapeçarias, quadros a óleo,
sensações de vista, do ouvido, do olfacto, do paladar e do tacto.
cenários e rebocos coloridos, isto é, a superfícies de coisas que estão
Os nossos verbos de todos os dias « v e r » , «ouvir» e «provar» não
em frente da pessoa que observa. Mas não se deve pensar nas aparências
são usados para designar sensações «em si» porque falamos de ver
ou aspectos visuais das coisas que são descritas como manchas de
corridas de cavalos, ouvir comboios e provar vinhos e as corridas de
cores que ocupam momentaneamente campos visuais particulares como
cavalos, os comboios e os vinhos não são sensações. A s corridas de
sendo superfícies de objectos comuns. São simplesmente extensões de
cavalos não param quando fecho os meus olhos e os vinhos não se
cores, não extensões de lona ou reboco colorido. Ocupam o espaço visual
a l t e r a m quando eu estou constipado. Parece portanto que necessitamos
privado do seu possuidor, embora ele esteja evidentemente sujeito à
de procurar maneiras de falar daquilo que cessa quando fecho os olhos
e do que se altera quando estou constipado, maneiras de falar essas tentação permanente de as relacionar de certo modo com as superfícies
que não dependerão da menção feita a acontecimentos comuns ou a dos objectos comuns no espaço vulgar.
líquidos. Encontra-se facilmente u m conjunto de palavras aparentemen- Finalmente, se bem que os defensores da Teoria dos Dados dos
te adequadas, dado que é idiomàticamente perfeito dizer que a minha Sentidos concordem que os aspectos, os cheiros e as comichões que eu
visão da corrida f o i i n t e r r o m p i d a quando fechei os olhos, que o aspecto tenho são inacessíveis a qualquer outra pessoa, não concordam que
ou aparência dos cavalos são modificados quando as lágrimas me cor- disto se conclui que sejam de estatuto mental ou que existam «no meu
rem, que o sabor do vinho é alterado pela constipação e que o ruído espírito». Parecem dever a sua génese às condições físicas e fisiológicas
do comboio é atenuado quando tapo os ouvidos. Sugere-se que podemos mas não necessariamente também às condições psicológicas dos seus
f a l a r das sensações «em si» falando de «aspectos», «aparências», «sons», recipientes.
«sabores», «cheiros», «zumbidos», «visões», etc. É também alvitrado Tendo mostrado, pensam eles, que existem certos objectos momen-
que é necessário adoptar tais palavras para se poderem distinguir as tâneos e que são propriedade das pessoas, como aspectos, lufadas, sons
contribuições dadas à nossa observação de objectos comuns pelas e outras coisas, os defensores da teoria enfrentam a seguir a pergun-
nossas sensações, das feitas por intuição, inferência, memória, conjec- t a : «O que é, para os seus recipientes, tê-los ou obtê-los? E a sua respos-
t u r a , hábito, imaginação e associação. ta a esta pergunta é simples. E m algumas asserções da teoria, diz-se
De acordo com a teoria, ter uma sensação visual poderá portanto perceber e observar no sentido de perceber e observar que torna próprio
212 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 213

dizer que alguém vê manchas de cor, ouve sons, aspira cheiros, prova da teoria esperam que as suas elucidações do que é compreender pelos
paladares e sente comichões. Na verdade, pensa-se muitas vezes que sentidos leve à elucidação do que é ver uma corrida de cavalos.
não só é admissível como esclarecedor dizer que as pessoas não vêem Reivindica-se em particular que a teoria resolve paradoxos na des-
realmente corridas de cavalos, nem provam vinhos, vêem apenas man- crição de ilusões. Quando uma pessoa estrábica diz que vê duas velas
chas de cores e provam paladares ou, como uma concessão aos hábitos onde só há uma e quando o dipsomaníaco diz que vê uma serpente onde
vulgares de falar, admite-se que há na verdade u m sentido vulgar de não há serpente nenhuma, as suas descrições podem agora ser reinter-
«ver» e «provar» no qual se pode dizer que se vêem corridas e se pretadas numa nova linguagem. Pode dizer-se agora do estrábico que
provam vinhos, mas que para fins teóricos deveríamos usar estes verbos ele vê realmente «dois aspectos da vela» e do dipsomaníaco que vê
n u m sentido diferente e mais refinado, dizendo em vez disso que vemos realmente «uma aparência de serpente». O seu único erro reside,
manchas de cores e provamos paladares. se é que há algum, em supor que existem também duas velas físicas ou
Contudo, divulgou-se recentemente a moda de usar novos conjuntos uma serpente física. Igualmente, quando uma pessoa vê u m prato re-
de verbos. Alguns defensores da teoria preferem agora dizer que dondo inclinado para ela e diz que vê u m objecto elíptico, está em erro
intuímos manchas de cores, temos conhecimento directo dos cheiros, se supõe que a cozinha contém uma peça de faiança elíptica, mas está
temos conhecimento imediato dos ruídos, estamos em relações cogniti- certa ao dizer que lhe parece elíptica, porque na realidade há uma
vas directas com comichões ou, genericamente, que sentimos os dados mancha elíptica de branco no seu campo visual e a pessoa realmente
dos sentidos. Mas qual é o valor real destas locuções formidáveis? É o «intui» a peça aí. Passar do que a pessoa descobre no seu campo
seguinte: existem alguns verbos como «adivinhar», «descobrir», «con- visual para o que existe na cozinha, é sempre perigoso, e neste exemplo
cluir», «saber», «acreditar» e «gostar de saber» que apenas são usados é errado. Mas o que ela descobre no seu campo visual está realmente
com os seguintes complementos «... que amanhã é domingo» ou « . . . se nele e é na realidade elíptico.
isto é t i n t a encarnada». E x i s t e m outros verbos como «espreitar» ou Tentarei provar que toda esta teoria assenta n u m enorme erro
«escutar», «observar», «espiar» e «encontrar por acaso», cujos comple- lógico, ou seja, o de assimilar o conceito de sensação ao conceito
mentos adequados são expressões como « . . . aqueles piscos» ou «o r u f a r de observação. Tentarei demonstrar que esta assimilação é disparatada
dos tambores» e «...Fulano». A Teoria dos Dados dos Sentidos, de acor- simultaneamente para o conceito de sensação e para o de observação.
do com a qual os aspectos, lufadas, e t c , são objectos ou acontecimentos A teoria diz que, quando uma pessoa t e m uma sensação visual, na oca-
particulares, tem portanto de empregar verbos cognitivos da segunda sião, por exemplo, de ver uma corrida de cavalos, o ter essa sensação
espécie para i n t e r p r e t a r verbos como «obter» e «ter» em expressões consiste em encontrar ou i n t u i r u m sensum, ou seja, uma miscelânea
como «obter uma visão» e «ter uma comichão». Pediu emprestada a de cores. Isto significa que ter uma visão de uma c o r r i d a de cavalos
força vulgar de verbos como «observar», «perscrutar» e «saborear» é explicado em termos de ter uma visão de qualquer outra coisa, a mis-
para os seus verbos solenizados de «intuir», «saber cognitivamente» e celânea de cores. Mas se ter uma visão de uma corrida de cavalos i m -
«perceber por intermédio dos sentidos». A diferença é que, ao passo que plica ter pelo menos uma sensação, então ter uma visão de uma mancha
os leigos falam de observar u m pisco e perscrutar uma página do Times, de cores deve implicar de novo t e r pelo menos uma sensação apropriada,
esta teoria fala de i n t u i r manchas de cores e ter conhecimento imediato que por sua vez deve ser analisada dentro do sentido de o u t r o sensum
de cheiros. ainda anterior, e assim sucessivamente. De cada vez, t e r uma sensação
Não se diz que esta descrição do que é ter, por exemplo, uma é interpretado como uma espécie de acto de espiar alguma coisa par-
sensação visual — ou seja, i n t u i r ou espiar uma miscelânea de cores — ticular, muitas vezes gravemente chamada «um objecto sensível» e de
que resolve por si própria a totalidade do problema do nosso conheci- cada vez este acto de espiar implica ter uma sensação. O uso de pala-
mento dos objectos comuns. Continua a haver disputas acerca do siste- vras de inspiração, como «intuir», não nos isenta de modo a l g u m de
ma de ligações que se obtêm entre corridas de cavalos que não vemos termos de dizer que para uma pessoa encontrar, ver, escutar, espreitar
«directa» ou «rigorosamente» e os «aspectos» delas que vemos «directa» ou saborear alguma coisa deve ser afectada nos seus sentidos. A s s i m ,
e «rigorosamente» mas que não estão no hipódromo. Mas os defensores se, como ordinariamente pensamos, vemos corridas de cavalos ou, se,
214 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 215

como somos ensinados a pensar, intuimos manchas de cores, a desco- que, para se poder descrever uma pessoa a escutar u m comboio, ela
berta de seja o que f o r que descobrirmos implica que tenhamos sensa- deveria apreender pelo menos u m som e assim t e r pelo menos uma sen-
ções. E t e r sensações não é em si descobrir, t a l como tijolos não são sação auditiva e ainda negar que, por a d m i t i r este ponto, ela tenha
casas, nem as letras são palavras. obrigatoriamente posto o pé no célebre declive de Gádara. Não necessita
Como já mostrámos, há u m a i m p o r t a n t e relação lógica entre o con- de a d m i t i r que, para uma pessoa ser descrita a o u v i r u m som, deva
ceito de sensação e o de observar ou perceber, uma relação que implica primeiramente ter uma sensação prévia nos seus sentidos desse dado
em s i própria que estes conceitos são de espécies diferentes. Há uma dos sentidos. «Ter uma sensação» é simplesmente a maneira vulgar de
contradição em dizer que alguém está a olhar ou a espreitar para qual- relatar o simples i n t u i r de u m objeto sensível especial é dizer que uma
quer coisa mas não a t e r uma visão dela, ou em dizer que alguém está pessoa i n t u i t a l objecto não implica que seja afectada sensitivamente
a escutar alguma coisa, embora não esteja a ter sensações auditivas. de qualquer modo. Pode ser u m contemplador angélico e impassível
Ter pelo menos u m a sensação faz parte do sentido de «perceber», de sons e manchas de cores e estes podem ser de qualquer ordem de
«ouvir», «saborear» e outros verbos deste género. Segue-se que t e r grandeza ou de intensidade sem que qualquer coisa relativa ao especta-
uma sensação não pode, em si, ser u m a espécie de perceber, descobrir dor seja descrita como mais ou menos aguda. Pode sentir cócegas sem
ou espiar. Se todos os tecidos são concentrações de fios, seria absurdo que lhas façam e o modo como toma conhecimento de cheiros ou dores
dizer que todos esses fios são, em si, tecidos minúsculos. não implica necessariamente ser de qualquer modo sensível de maneira
Já f o i observado atrás, no princípio deste capítulo, que há várias diferente da que é capaz da simples detecção ou inspecção de tais coisas.
diferenças evidentes entre os conceitos de sensação e os de observação, Tal defesa explica, com efeito, o facto de t e r sensações, t a l como o
entre os de investigar e detectar, e outros, que são revelados pela i m u t a - de não ter quaisquer sensações. E v i t a o retrocesso pelo estratagema
bilidade dos epítetos pelos quais coisas diferentes são descritas. Assim, heróico de sugerir que sentir através dos sentidos é u m processo
podemos f a l a r dos motivos pelos quais uma pessoa escuta qualquer cognitivo que não requer que o seu possuidor seja susceptível de
coisa, mas não dos motivos por que t e m uma sensação auditiva. Essa estímulos ou que seja descrito como forte ou fracamente sensitivo.
pessoa pode m o s t r a r habilidade, paciência e método em olhar com aten- I n t e r p r e t a r uma sensação como a simples observação de objectos
ção, mas não em ter sensações visuais. Reciprocamente, as cócegas e especiais afasta, em p r i m e i r o lugar, o próprio conceito que se estava
paladares podem ser relativamente agudos mas as suas inspecções a tentar elucidar e em segundo lugar torna disparatado o próprio
e detecções não podem ser descritas deste modo. Faz sentido falar de conceito de observação, visto que este conceito implica o conceito de
alguém a fazer u m esforço para não olhar para uma corrida ou a sus- sensações que não são em si próprias actos de observar.
pender a sua observação de u m réptil, mas não faz sentido f a l a r de Por o u t r o lado, a Teoria dos Dados dos Sentidos pode ser
alguém a fazer u m esforço para não sentir uma dor ou a suspender defendida n u m campo diferente. Pode dizer-se que, quaisquer que
o ardor do seu nariz. A i n d a se t e r uma dor fosse, como a teoria sustenta, sejam as regras lógicas que governem os conceitos de sensação e
i n t u i r u m objecto especial, não se t o r n a claro porque é que este ou observação, se mantém o facto imutável de que, ao ver, estou directa-
qualquer outro desconforto não poderiam ser anulados pela suspensão mente em presença de miscelâneas de cores que ocupam momentanea-
da sua intuição. mente o meu campo visual, que ao o u v i r estou na presença directa
As sensações não são p o r t a n t o actos de perceber, observar ou de ruídos, ao cheirar, de cheiros, e assim sucessivamente. Que esses
descobrir. Não são detecções, sondagens ou inspecções. Não são apreen- dados dos sentidos são sentidos, está fora de questão e é independente
sões, cognições, intuições ou conhecimentos. Ter u m a sensação não é da teoria. A s manchas de cores bi-dimensionais são o que vejo no
esiar numa relação cognitiva com u m objecto sensível. Tais objectos sentido estrito de « v e r » e estas não são cavalos ou cavaleiros, mas,
não existem, como não existe t a l relação. Não só é falso, como argu- na melhor das hipóteses, aspectos ou aparências visuais de cavalos
mentámos antes, que as sensações possam ser objectos de observação, e cavaleiros. Se não existem duas velas, então o estrábico não vê
como também é falso que sejam em si actos de observar objectos. realmente duas velas, mas certamente vê duas coisas brilhantes e estas
U m defensor da Teoria dos Dados dos Sentidos poderia a d m i t i r não podem ser senão dois «aspectos da vela» ou dados dos sentidos,
216 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 217

A Teoria dos Dados dos Sentidos não é a invenção de entidades fictícias, dentadas», visto que «dentada» é já u m nome de comer e não se pode
é simplesmente chamar a nossa atenção para os objectos imediatos f a l a r de ver «aspectos», visto que «aspecto» é já u m nome de ver.
dos sentidos que, pela nossa preocupação n o r m a l com os objectos Quando uma pessoa diz que u m prato inclinado t e m u m aspecto
comuns, temos o hábito de menosprezar na conversação. Se as consi- elíptico ou que parece elíptico, quer dizer que parece como pareceria
derações lógicas parecem exigir que ter uma sensação não será o mesmo u m prato elíptico que não estivesse inclinado. A s coisas redondas
que divisar u m falcão ou contemplar corridas de cavalos, t a n t o pior inclinadas parecem por vezes completa ou exactamente coisas elípticas
para estas considerações, visto que ter uma sensação visual é não inclinadas. U m a vara d i r e i t a semi-imersa na água pode parecer
certamente u m discernimento não inferencial de u m objecto sensível uma vara t o r t a não imersa. Montanhas sólidas mas distantes parecem
particular. por vezes decorações murais lisas m u i t o perto de quem as contempla.
Consideremos então o exemplo banal de uma pessoa a olhar para A o dizer que o prato parece elíptico, a pessoa não está a caracterizar
u m prato redondo inclinado o qual pode portanto ser descrito como u m objecto extra, isto é, «um aspecto», como sendo elíptico,
parecendo elíptico, e vejamos o que nos leva, se é que existe alguma mas s i m a comparar como o prato redondo inclinado se parece com a
coisa deste género, a dizer que a pessoa divisa qualquer coisa que é aparência que têm ou t e r i a m pratos elípticos não inclinados. Não diz
realmente elíptica. Concordou-se em que o prato não é elíptico mas «Eu estou a ver uma mancha lisa elíptica branca», mas «Eu podia
redondo e dado este argumento podemos a d m i t i r que o espectador está estar a ver uma peça elíptica e não inclinada de porcelana branca».
a descrever com veracidade que ele parece elíptico (embora os pratos Podemos dizer que o avião mais próximo parece mais rápido do que o
redondos, se bem que m u i t o inclinados, não pareçam normalmente mais distante, mas não podemos dizer que t e m «um aspecto mais
elípticos). A pergunta é se a verdade da sua descrição de que o prato rápido». «Parece mais rápido» significa «Parece que está a voar mais
parece elíptico implica que a pessoa esteja realmente a olhar ou a rapidamente através do ar». Falar das velocidades aparentes dos aviões
observar u m objecto dos sentidos que é elíptico, alguma coisa que, não não é f a l a r das velocidades de aparências dos aviões.
sendo o prato em si, pode reclamar o título de «um aspecto» ou «uma
aparência visual do prato». Podemos também a d m i t i r que, se nos Por outras palavras, a oração gramaticalmente não elaborada «O
limitamos a dizer que o espectador deparou com u m objecto dos p r a t o t e m u m aspecto elíptico» não expressa, como supõe a teoria,
sentidos que é realmente elíptico e que é uma aparência visual de u m uma daquelas verdades básicas de relação que são tão veneradas por
prato, então este objecto elíptico é uma mancha de cor bi-dimensional, ela e tão raramente usadas na vida diária. Aquela frase expressa uma
momentaneamente propriedade de u m receptor e em existência nele, isto proposição bastante complexa, parte da qual é simultaneamente
é, que é u m dado dos sentidos e que portanto existem dados dos sentidos. geral e hipotética. É aplicar ao aspecto efectivo do p r a t o uma regra
U m a pessoa sem uma teoria não sente escrúpulos em dizer que o ou uma receita acerca dos aspectos típicos dos pratos elípticos não
prato redondo pode parecer elíptico, nem sentiria quaisquer escrúpulos inclinados, não importando que essas peças de porcelana existam ou
em dizer que o prato redondo parece como se fosse elíptico, mas sentiria não. E aquilo a que chamei n o u t r o lugar uma afirmação categórica-mis-
escrúpulos em seguir a recomendação de dizer que está a ver u m t a . É análogo a dizer de alguém que está a proceder judiciosamente
aspecto elíptico do prato redondo. E m b o r a fale com facilidade, em ou a f a l a r como u m pedagogo. O estrábico, conhecedor do seu estrabis-
certos contextos, dos aspectos das coisas, e noutros contextos de ver mo, que descreve que lhe parece como se existissem duas velas, está a
coisas, não fala normalmente em examinar os aspectos das coisas descrever como lhe parece a única vela existente, referindo-se a como
ou em contemplar visões das corridas ou em t e r visões de visões de os pares de velas parecem normalmente aos espectadores que não são
falcões ou de divisar as aparências visuais das copas das árvores. Essa estrábicos. E se, não tendo conhecimento do seu estrabismo, disser
pessoa sentiria que se misturasse os ingredientes deste modo, estaria que há duas velas na mesa, está neste caso, a aplicar erradamente a
a falar tão disparatadamente como se passasse de falar em comer mesma receita geral. A s expressões «Parece...», «Ê como se...»,
biscoitos e de dar dentadas em biscoitos a comer dentadas de biscoitos. «Tem a aparência de...», «Podia ser...» e muitas outras da mesma
E teria razão. Não se pode, significativamente, falar de «comer família contêm a força e certas espécies de prescrições hipotéticas
218 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 219

abertas aplicadas ao caso entre mãos. Quando dizemos que alguém assim como de perspectivas, neblinas, focos e penumbras, é já falar
tem u m aspecto pedante, não queremos sugerir que há duas espécies de objectos comuns, visto que é aplicar receitas de percepções já
de seres pedantes, designadamente alguns homens e alguns aspectos aprendidas das aparências típicas que têm os objectos comuns, a seja
de homens. Queremos antes dizer que o homem de quem falamos parece o que f o r que a pessoa está a t e n t a r fazer de momento. Dizer que
como algumas pessoas pedantes parecem. De igual modo, não há duas alguém teve uma visão ou ouviu u m som é já dizer mais do que estaria
espécies de objectos elípticos, ou seja, alguns pratos e alguns aspectos. implicado em descrever simplesmente as suas sensações visuais e
Há apenas alguns pratos que são elípticos e outros que parecem sê-lo. auditivas, porque é já classificar o que esse alguém vê ou ouve de
N a vida de todos os dias, há certos sentidos em que estamos acordo com receitas de percepção m u i t o generalizadas.
completamente aptos a falar de manchas e malhas de cor. U m a dona Este ponto pode ser exemplificado por referência à doutrina his-
de casa pode dizer que a sua sala precisa de umas manchas de vermelho, tórica das Qualidades Secundárias. Observou-se, semi-correctamente,
sem especificar se se t r a t a de papel vermelho, flores vermelhas, que quando u m objecto comum é descrito como verde, amargo, fresco,
tapetes vermelhos ou cortinas vermelhas. E l a pode pedir ao seu marido acre ou agudo, está a ser caracterizado como parecendo, sabendo, sendo
que saia e compre «um bocado de vermelho», deixando-lhe a ele o sentido, cheirando ou soando deste ou daquele modo a um observador
trabalho de preencher a lacuna com gerânios, cretone ou qualquer sensível. Também se notou correctamente que as condições que afectam
outra coisa que satisfaça essa necessidade. De u m modo semelhante, a sensibilidade deste observador têm influência na maneira como as
u m observador que espreita através de uma fenda numa cerca pode coisas parecem, sabem, são sentidas, cheiram ou soam. A estridência
dizer que v i u «Uma mancha de amarelo...», mas seria incapaz de com que soa o apito do comboio, depende em parte da distância a que
especificar se o que v i u eram narcisos amarelos, flores de mostarda o observador está do comboio, do seu g r a u de ouvido, da direcção
amarelas, lona amarela ou qualquer outra espécie de objectos comuns em que a sua cabeça está virada, de os seus ouvidos estarem tapados
ou materiais. Para completar a sua frase, o observador poderia dizer ou não, e assim sucessivamente. Se a água a uma certa temperatura
apenas: «Eu v i qualquer coisa amarela». parece fresca ou morna a uma pessoa, isso depende da temperatura
E m contraste com este uso v u l g a r de expressões-lacuna como «uma anterior das suas mãos. De tais factos deu-se u m salto teórico para
mancha de amarelo» e «umas notas de vermelho aqui e ali», a Teoria a doutrina de que dizer que u m objecto é verde é dizer alguma coisa
dos Dados dos Sentidos recomenda o u t r a linguagem na qual diríamos acerca das sensações visuais do observador p a r t i c u l a r que diz que ele
«Eu vejo uma mancha de branco» (e não «Eu vejo uma mancha b r a n - é verde. Supôs-se que «verde», «amargo», «fresco», etc. são adjectivos
ca») ou «Eu espreitei para uma extensão de azul bi-dimensional que se aplicam adequadamente a sensações e só impropriamente são
elíptica» (e não «uma coisa qualquer lisa, ou elíptica, azul»). aplicados a objectos comuns. E então, como é obviamente absurdo dizer
Deste modo, estou a negar que ter uma sensação visual seja uma que uma sensação é uma coisa verde ou uma coisa elíptica ou fresca,
espécie de observação que se pode descrever como sentir através dos pareceu necessário a t r i b u i r às sensações os seus próprios objectos
sentidos e i n t u i r manchas de cores, mas não estou a negar que uma peculiares, para que «verde» pudesse ser adequadamente aplicado, não
mulher possa pedir ao seu m a r i d o que compre «um bocado de vermelho» a ter uma sensação, mas a u m objecto peculiar sustentado internamente
ou que se possa dizer adequadamente de u m peão que espia uma por uma sensação. A interdição de caracterizar objectos comuns da
extensão de amarelo, seja ela de que espécie for, através da fenda na observação de alguém por meio de adjectivos de qualidades secundárias,
cerca. O que a Teoria dos Dados dos Sentidos fez f o i t e n t a r desnatar levou à invenção de algumas contra-partidas, objectos ocultos classifi-
u m creme etéreo de tais descrições-lacuna vulgares dos objectos comuns cados por esses adjectivos. Porque os adjectivos de Qualidades Secun-
e f a l a r como se tivesse sido encontrada uma nova classe de objectos, dárias só s e r v i r i a m como predicados em descrições de observações, as
quando apenas se interpretou erradamente uma classe f a m i l i a r de sensações t i n h a m de ser interpretadas como sendo elas próprias obser-
afirmações que mencionam como se acha que parecem, de o u t r o modo, vações de objectos especiais.
objectos comuns não particularizados. Mas quando descrevo u m objecto comum como verde ou amargo,
Falar de aspectos, sons e cheiros, de extensões, formas e cores, não estou a relatar u m facto acerca da minha sensação de momento,
220 221
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO

embora esteja a dizer algo acerca de como ela parece ou sabe. E s t o u não diz mais sobre a sensação que eu estou a ter do que « A bicicleta
a dizer que pareceria ou saberia deste ou daquele modo a qualquer custa tanto» diz sobre o dinheiro que eu tenho. N o sentido em que
pessoa que a tivesse em condições ou em posição para ver ou saborear usualmente se entende «subjectivo», as Qualidades Secundárias não
adequadamente. Por isso, não me contradigo se disser que o campo é são subjectivas, se bem que continue a ser verdadeiro que n u m país
verde, embora de momento me pareça acizentado, ou que o f r u t o é de cegos os adjectivos que designam cores não t e r i a m uso, ao passo que
realmente amargo embora me pareça saboroso. E mesmo quando digo os adjectivos de forma, tamanho, distância, direcção e movimento e
que a erva, se bem que seja realmente verde, me parece acinzentada, outros t e r i a m os usos que têm em qualquer país.
estou a descrever a minha sensação momentânea apenas por compara- Os argumentos em defesa da subjectividade das Qualidades Secun-
ção com o modo como parecem os objectos realmente acinzentados a dárias podem andar à volta de u m interessante trocadilho verbal.
qualquer pessoa que possa ver bem. Que mais poderiam as pessoas que Adjectivos como «verde», «doce» e «frio» são assim assimilados a
ensinam outras a falar ensinar-lhes acerca do uso destes adjectivos? adjectivos de desconforto e aos seus opostos, como «encandeante»,
Deve notar-se que a fórmula «parecia assim e assado a qualquer pessoa» «saboroso», «escaldante» e «fresco». Mesmo assim, como vimos, a
não pode ser parafraseada por «pareceria verde a qualquer pessoa», conclusão t i r a d a não tem seguimento. Chamar à água «dolorosamente
porque dizer que uma coisa parece verde é dizer que parece como quente» não é dizer que o autor da afirmação ou qualquer o u t r a pessoa
pareceria se fosse verde e se as condições fossem normais. Não podemos esteja a t e r uma dor. Refere-se contudo, de u m modo indirecto, a
dizer como qualquer coisa parece ou pareceria, a não ser mencionando pessoas que têm dores e como ter uma dor é u m estado de espírito,
as propriedades verificáveis de objectos comuns e dizendo então que designadamente de angústia, podemos dizer que «dolorosamente quen-
o objecto parece agora como se poderia esperar que parecesse. te» alude indirectamente inter alia a u m estado de espírito. Mas não se
Assim, enquanto é verdade que dizer «O campo é verde» implica segue disto que as frases «a água está tépida» e «o céu está azul»
proposições acerca dos observadores com certo equipamento óptico e aludam mesmo indirectamente a estados de espírito. «Tépido» e «azul»
certas oportunidades, não é verdade que esta frase conte uma história não são adjectivos de desconforto ou de satisfação. U m a estrada pode
acerca do seu autor. É análoga à proposição «Esta bicicleta custa ser descrita como mais monótona que uma segunda estrada e como
tanto», que implica proposições hipotéticas sobre qualquer comprador mais longa que uma terceira estrada, mas, no sentido em que a p r i m e i r a
efectivo ou possível, mas não estabelece nem implica qualquer proposi- descrição alude a viajantes que se sentem aborrecidos, a segunda não
ção categórica acerca do seu autor. Dizer que u m a r t i g o tem u m preço se refere de maneira nenhuma à disposição dos viajantes.
é mencionar u m facto acerca do a r t i g o e dos clientes, mas não é U m a consequência linguística de todo este raciocínio é que não
mencionar u m facto acerca de u m a r t i g o e de u m dado comprador, temos emprego para expressões como «objecto dos sentidos», «objecto
m u i t o menos é u m facto simplesmente acerca de u m dado cliente. sensível», «sentidos», «dados dos sentidos», «conteúdo dos sentidos»,
U m a pessoa que diz «O projector encandeia» não necessita de ter «campo dos sentidos» e «coisas sensíveis». O verbo t r a n s i t i v o dos epis-
ela própria qualquer encandeamento, mas está ainda a f a l a r do temologistas «sentir» e a sua i n t i m i d a n t e «consciência directa» e «co-
encandeamento de outro modo, embora n u m modo que implica também nhecimento directo» podem ser postos de lado. Não fazem nada além
falar sobre o projector. É falacioso argumentar que não se pode dizer de t e n t a r dar aos conceitos de sensação o papel de conceitos de obser-
que u m projector encandeia, a menos que a pessoa que fala esteja a ser vação, t e n t a t i v a esta que t i n h a de acabar inexoravelmente no postu-
encandeada e que p o r t a n t o o encandeamento não é uma qualidade do lado dos dados dos sentidos como c o n t r a p a r t i d a dos objectos comuns
projector mas uma qualidade dos dados dos sentidos desse indivíduo. de observação.
Dizer que o projector encandeia não implica que esteja neste momento Segue-se também que não necessitamos de m o n t a r teatros íntimos
a encandear alguém. Apenas é d i t o que encandearia qualquer pessoa para as fases destes objectos extra-postulados, nem de esgotar a nossa
de vista n o r m a l que estivesse a o l h a r para ele a uma certa distância
imaginação para procurar descrever relações indescritíveis entre estes
e sem qualquer protecção. A minha afirmação «O projector encandeia»
objectos postulados e as coisas de todos os dias.

f FACULDADE
B I B L I
DE
O T
E D C C A Ç Ã O
E C A
|
I
222 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO

(4) SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO e «perceber» que são muitas vezes usadas como palavras-base nestes
inquéritos, são m u i t o restritas, visto que abrangem apenas realizações,
Não faz parte do objectivo deste l i v r o aumentar as diversas como os verbos específicos de percepção «ver», «ouvir», «provar»,
teorias do conhecimento em geral ou as teorias de percepção em p a r t i - «cheirar» e, n u m certo sentido, «sentir».
cular. Pelo contrário, u m dos seus motivos é m o s t r a r que muitas teorias Já f o i assinalado que observar implica ter pelo menos uma sensa-
que têm esse nome são ou englobam hipóteses para-mecânicas supér- ção, embora ter sensações não implique observar. Poderíamos perguntar
fluas. Quando os teóricos fazem perguntas de algibeira tais como «De agora: «O que há mais em observar além de ter pelo menos uma
que modo são armazenadas no espírito as experiências passadas?», sensação?» Mas a formulação desta pergunta é enganadora, visto que
«Como é que u m espírito evoca o seu passado de sensações para sugere que observar visualmente u m pisco consiste em ter uma sensação
compreender as realidades físicas do exterior?», «Como é que subor- visual e fazer outra coisa, isto é, que consiste em dois estados ou
dinamos os Dados dos Sentidos a conceitos e categorias?», põem esses processos reunidos, como cantarolar e andar podem ser reunidos, e não
problemas como se fossem problemas da existência e intercomunicação é necessário que assim seja. Como se argumentou no Capítulo V
de peças ocultas de u m aparelho fantasmagórico. F a l a m como se (Secção 4 ) , há uma diferença crucial entre fazer uma coisa com
estivessem a fazer qualquer coisa semelhante à anatomia especulativa atenção e fazê-la, por exemplo, distraidamente, mas esta diferença
ou mesmo à contra-espionagem. não quer dizer que prestar atenção seja u m facto simultâneo que
Contudo, visto que não encaramos o facto de uma pessoa ter uma ocorre noutro «lugar». Assim, não deveríamos perguntar «O que faz
sensação como u m facto relativo ao seu espírito, ao passo que o facto u m observador além de ter sensações?», mas «O que engloba a descrição
de ela observar qualquer coisa e o facto de t e r tendência para não de u m observador além da descrição dele como tendo essas sensações?»
observar coisas de certas espécies pertença à descrição das suas Será dada a devida importância a este ponto dentro de pouco tempo.
operações e poderes mentais, é conveniente dizer mais alguma coisa Deveríamos começar por r e j e i t a r u m modelo que, de uma forma
acerca destas diferenças. ou de outra, domina muitas especulações acerca da percepção. A per-
Usamos o verbo «observar» em dois sentidos. N u m deles, dizer gunta querida mas ilegítima «Como pode uma pessoa passar das
que uma pessoa está a observar alguma coisa é dizer que está a tentar, sensações para a apreensão das realidades externas?», põe-se muitas
com ou sem êxito, descobrir algo sobre essa coisa, por meio pelo menos vezes como se a situação fosse a seguinte: há uma prisioneiro encerrado
de algum acto de olhar, ouvir, saborear, cheirar ou sentir. N o u t r o numa cela sem janela, que aí viveu solitário desde o seu nascimento.
sentido, diz-se que uma pessoa observou alguma coisa quando a sua Tudo o que lhe chega do mundo exterior são os raios de luz que
exploração teve êxito, isto é, quando ela descobriu alguma coisa por atravessam as paredes da cela e pancadas ouvidas através das pedras.
certos métodos. Verbos de percepção como «ver», «ouvir», «detectar», No entanto, por estes raios de luz e pancadas ele interessa-se ou parece
«discriminar» e muitos outros são usados em geral para registar êxitos interessar-se por desafios de futebol, jardins e eclipses do Sol que não
de observações, ao passo que verbos como «olhar», «escutar», «provar», observou. Como é que conhece então as cifras em que os seus sinais são
«investigar» e «saborear» são usados para registar empreendimentos dispostos ou como é que descobre até que existem coisas como cifras?
de observação cujo êxito pode estar ainda em questão. Por isso se Como pode i n t e r p r e t a r as mensagens que de certo modo decifra, dado
pode falar de alguém a olhar cuidadosamente e com êxito ou a provar que o vocabulário dessas mensagens é u m vocabulário de futebol ou de
sistematicamente, mas não a descobrir sistematicamente, e t c , etc. A astronomia e não raios de luz ou de pancadas ?
afirmação aparentemente simples «Eu vejo u m pintarroxo» fala de Este modelo é evidentemente a imagem f a m i l i a r do espírito, re-
u m êxito, ao passo que «Eu estou a tentar descobrir o que se está a presentado como u m fantasma na máquina, sobre cujos defeitos nada
mover» descreve apenas uma investigação. mais é necessário acrescentar. Mas existem alguns defeitos particulares
N o nosso inquérito presente será por vezes conveniente usar a que ainda é necessário notar. O uso desta espécie de medeio envolve
palavra ambígua «observar», precisamente porque pode ser usada para a suposição explícita ou implícita de que, t a l como o prisioneiro pode
significar t a n t o a descoberta como a procura. As palavras «percepção» ver raios de luz mas não pode, infelizmente, ver ou o u v i r desafios de
224 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 225

futebol, assim também podemos observar as nossas sensações visuais reconheceu ou identificou o que o u v i u como o ruído de u m mosquito
ou de outra espécie, mas não podemos, infelizmente, ver piscos. Mas que se encontrava próximo e sentimo-nos inclinados a c o n f i r m a r e a
isto é abusar duplamente da noção de observação. Como mostrámos, dizer em termos mais genéricos que não estava apenas a sentir u m
por outro lado, é disparatado f a l a r de uma pessoa a presenciar uma zumbido nos ouvidos, mas que estava também a ter certos pensamentos,
sensação e, por outro, o uso vulgar de verbos como «observar», «espiar», talvez a submeter o zumbido a u m conceito ou a r e u n i r u m processo
«espreitar» e outros faz-se em contextos como «observar u m pisco», intelectual ao seu estado sensitivo. Mas ao dizer esta espécie de coisas,
«espiar uma joaninha» e «espreitar para u m livro». Os desafios de embora tenhamos u m pé no caminho certo, temos o outro no caminho
futebol são precisamente as espécies de coisas das quais temos visões errado. Começamos a enveredar por este último quando dizemos que
e as sensações são as espécies de coisas das quais seria absurdo dizer certos processos conceptuais ou discursivos devem t e r t i d o lugar, visto
que alguém t e m visões. Por outras palavras, o modelo da prisão sugere
que isso é, em efeito senão em intenção, dizer que detectar u m mosquito
que, ao descobrir coisas acerca de piscos e desafios de futebol, temos
podia não ter acontecido, se certas rodas especiais menos observadas
de fazer qualquer coisa como i n f e r i r de sensações que observamos
não tivessem rodado, rodas cuja existência e funções só os epistemolo-
para pássaros e jogos que nunca poderíamos observar, ao passo que,
gistas são suficientemente inteligentes para diagnosticar. Por o u t r o
de facto, são os piscos e os jogos que observamos e são as sensações
lado, ao dizer isto, estamos também no caminho certo. Ê verdade, sem
que nunca podemos observar. A pergunta «Como saltamos de descobrir
dúvida, que u m homem não poderia detectar u m mosquito se não
e inspeccionar sensações para nos tornarmos conhecedores de piscos
soubesse o que eram mosquitos e que ruído faziam, ou se pela sua
e desafios de futebol?» é uma pergunta falsa de como.
distracção, pânico ou estupidez, deixasse de aplicar o seu conhecimento
Não há u m problema único e central da percepção. Há, sim, uma
à situação presente, porque isto faz parte do significado do verbo
classe de perguntas parcialmente sobrepostas, muitas das quais deixa-
«detectar».
rão de ser intrigantes no momento em que algumas delas tiverem sido
esclarecidas. Podemos dar exemplos de certos problemas que pertencem Isto é, não queremos notícias ou hipóteses acerca de quaisquer
a esta classe neste sentido. Descrever alguém a encontrar u m dedal é outras coisas que o ouvinte possa ter feito ou sofrido secretamente.
dizer qualquer coisa sobre as suas sensações visuais, tácteis ou a u d i t i - Mesmo que tivessem ocorrido três ou dezassete desses entreactos, as
vas, mas é dizer mais do que isso. De igual modo, descrever alguém notícias acerca deles não explicariam como é que detectar u m mosquito
a tentar descobrir se está a ver u m tentilhão ou u m pisco, u m pau ou difere de t e r u m zumbido nos ouvidos. O que queremos saber é como
uma sombra, uma mosca na janela ou u m grão de poeira no seu olho, o comportamento lógico de «Ele detectou u m mosquito» difere de «tinha
é dizer qualquer coisa acerca das suas sensações visuais, mas é também u m zumbido nos ouvidos», ou como «Ele tentou em vão descobrir o
dizer mais do que isso. Finalmente, descrever alguém a «ver» uma que estava a produzir o ruído» difere de «Ele tomou-o pelo ruído do
cobra que não está lá ou a «ouvir» vozes onde tudo está em silêncio, vento nos fios telefónicos».
parece dizer alguma coisa sobre as suas imagens, senão sobre as suas Consideremos uma situação ligeiramente diferente, na qual uma
sensações, mas é dizer mais do que isto. Ora que mais é que está a ser pessoa seria descrita, não apenas a ouvir alguma coisa, não simples-
dito? Ou qual é a força específica de tais descrições segundo a qual mente a escutar qualquer coisa, não simplesmente a t e n t a r descobrir
diferem umas das outras pelas descrições das sensações «em si», supon- o que estava a ouvir, mas a identificar ou a reconhecer o que estava
do que poderíamos fazer tais descrições? As perguntas não são da a ouvir, ou seja, o caso da pessoa que reconhece uma melodia. Para
fórmula para-mecânica «Como vemos piscos?» mas perguntas da fór-
chegar a esta situação devem e x i s t i r notas tocadas nos seus ouvidos
mula «Como usamos descrições tais como 'Ele v i u u m pisco'?».
e assim a pessoa não deve ser surda, estar anestesiada ou adormecida.
Quando descrevemos alguém que detectou u m mosquito n u m quar- Reconhecer o que se ouve implica ouvir. Implica também atenção. O
to, o que é que estamos a dizer mais, além de que havia uma certa espé- homem de espírito ausente ou distraído não segue a melodia. Mais que
cie de zumbido nos seus ouvidos? Começamos por responder que essa isto, ele deve ter ouvido esta melodia antes e não deve apenas tê-la
pessoa não t i n h a apenas u m zumbido nos ouvidos, mas também que ouvido mas também tê-la aprendido e não a t e r esquecido. Se neste
I . P. — 1 5
226 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 227

sentido ele não conhecia já a melodia, não se poderia dizer que a implica que atravesse u m complexo de operações. Não necessita, por
reconheceu ao escutá-la agora. exemplo, de r e u n i r o seu acto de o u v i r as notas a quaisquer tiradas
O que é então para uma pessoa saber uma melodia, isto é, tê-la de prosa silenciosas ou murmuradas, ou de «submeter» o que ouve «ao
aprendido e não a t e r esquecido? Certamente que não implica ser capaz conceito da melodia». N a verdade, se lhe dissessem que tivesse os
de dizer o seu nome, porque pode não ter nome e, mesmo que lhe dê pensamentos de «Lillibullero» sem produzir, imaginar ou escutar efecti-
u m nome errado, pode dizer-se que a conhece. N e m implica ser capaz vamente a própria melodia, d i r i a que não lhe t i n h a m deixado nada
de descrever a melodia por palavras ou escrevê-la em notação musical, sobre que pensar, e se lhe dissessem que o facto de que poderia reco-
porque poucos de nós poderíamos fazer isso, embora muitos fôssemos nhecer a melodia, mesmo tocada de várias maneiras e em várias
capazes de reconhecer melodias. Nem necessita de ser capaz de t r a u t e a r situações significava que t i n h a u m Conceito ou uma Ideia A b s t r a c t a
ou assobiar a melodia, se bem que se o puder fazer a conhece com da melodia, objectaria com razão que não poderia pensar o que seria
considerar ou aplicar a Ideia A b s t r a c t a de «Lillibullero», a não ser
certeza. E se é capaz de t r a u t e a r ou assobiar muitas outras melodias
que isto significasse simplesmente que poderia reconhecer a melodia
mas não é capaz de o fazer com esta, mesmo quando incitado, suspeita-
quando a ouvisse, detectar enganos ou omissões nela, t r a u t e a r f r a g -
mos que não conhece esta. Descrever uma pessoa conhecendo a melodia
mentos dela, etc.
é pelo menos dizer que é capaz de a reconhecer quando a ouve, e dir-se-á
que a reconhece quando a ouve se fizer alguma ou algumas de todas as Isto habilita-nos a reconsiderar o que se disse atrás, designada-
coisas seguintes: se, depois de o u v i r u m compasso ou dois, espera que mente que urna pessoa que reconhece o que ouve não está apenas a t e r
se sigam os compassos que realmente se seguem; se não espera errada- sensações auditivas, mas também a pensar. Não é verdade que uma
mente que os compassos anteriores sejam repetidos; se detecta omis- pessoa a seguir uma melodia f a m i l i a r necessite de ter pensamentos
sões ou erros na execução; se, depois de a música ter parado por alguns tais que deva haver uma resposta para a pergunta «Que pensamentos
momentos, espera que continue da f o r m a que c o n t i n u a ; se, quando teve ela?» ou mesmo «Que conceitos gerais esteve a aplicar?». Não é
diversas pessoas estão a assobiar melodias diferentes, pode descobrir verdade que deva ter estado a ponderar ou a declarar proposições a
quem está a assobiar esta melodia; se sabe bater o compasso correcta- si própria ou às pessoas que a rodeiam, em inglês ou em francês, e
mente; se a pode acompanhar assobiando ou trauteando, e assim por não é verdade que deva ter estado a ordenar quaisquer sensações
diante indefinidamente. E quando falamos dessa pessoa à espera das visuais ou auditivas. O que é verdade é que deve ter estado vigilante,
notas que se devem seguir e não à espera de notas ou compassos que em certo g r a u , e que as notas que ouviu devem ter sido tocadas como
não se seguem, não exigimos que ela esteja efectivamente a pensar esperava, ou então que ficou chocada por isso não acontecer. Não estava
adiantadamente. V i s t o que fica surpreendida, desdenhosa ou d i v e r t i d a apenas a escutar, porque uma pessa pode escutar uma área que não
se as nota? devidas não surgem nos devidos tempos, é então verdade lhe é f a m i l i a r , nem estava ainda necessariamente a reunir o seu acto
dizer que as esperava, mesmo que seja falso dizer que atravessou de escutar a quaisquer outros processos. Estava apenas a escutar de
alguns processos de antecipação em relação a elas. acordo com a fórmula.
E m resumo, ela está a reconhecer ou a seguir a melodia, usa esse Para esclarecer melhor os sentidos nos quais seguir uma melodia
conhecimento e usa-o, não por ouvir a melodia, mas por ouvi-la n u m conhecida é e não é «pensar», consideremos o caso da pessoa que ouve
estado de espírito especial, o estado de espírito de estar pronta para uma valsa pela p r i m e i r a vez. Não sabe como é esta melodia concreta,
o u v i r o que está a ouvir agora e o que ouvirá, ou estaria prestes a mas dado que sabe como são outras valsas, sabe que espécie de r i t m o
ouvir, se o pianista continuasse a tocar e tocasse correctamente. Sabe deve esperar. Está parcial mas não completamente preparada para os
como a melodia continua e ouve agora as notas como o progresso dessa compassos seguintes e pode parcial mas não completamente colocar
melodia. Ouve-as de acordo com a fórmula dessa melodia, no sentido as notas já ouvidas e as que estão a ser ouvidas no momento. V a i
de que o que ouve é o que está a escutar. Também a complexidade da tomando conhecimento à medida que a melodia decorre e ao tomar
descrição de uma pessoa a ouvir notas à medida que são tocadas e a conhecimento está a t e n t a r descobrir as combinações das notas. E m
escutar, ou pronta a escutar, as notas que são ou seriam tocadas, não momento algum está totalmente preparada para a nota que deve v i r a
228 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇAO E OBSERVAÇÃO 229

seguir. Isto é, está a pensar no sentido especial de tentar resolver u m dente da sua vida intelectual. É aquilo a que chamaríamos uma a f i r m a -
enigma. ção «semi-hipotética» ou «categórica-mista».
Mas, em contraste com ela, a pessoa que já conhece a melodia Podemos v o l t a r agora a considerar algumas das espécies de episó-
segue-a sem qualquer trabalho ou quebra-cabeças ou sem tentar des- dios da percepção que são ordinariamente tomados como modelos
cobrir como ela continua. A melodia é perfeitamente óbvia para ela típicos do reconhecimento por meio da percepção. Veremos que, a
durante todo o tempo. Não há necessidade de actividade, nem sequer muitos respeitos, são importantes no reconhecimento de uma melodia.
de uma actividade ligeira e fácil de tentar resolver incertezas. Não I r e i começar com o exemplo de alguém a seguir uma melodia f a m i l i a r ,
está a o u v i r do mesmo modo que ataca u m problema, está simplesmente porque esta ocupação é demorada. Podemos ver u m portão n u m ápice,
a escutar mas o que está a fazer não é ainda apenas ouvir notas, porque mas não podemos ouvir «Lillibullero» n u m momento. Consequentemen-
está a o u v i r o «Lillibullero». As notas não são apenas claramente te, neste caso não há a tentação de postular a ocorrência de processos
audíveis para ela (e talvez não sejam), mas a melodia é-lhe inteiramente intelectuais de iluminação, processos estes demasiadamente rápidos
evidente e esta evidência não é u m facto relativo à sua sensibilidade para serem notados mas suficientemente intelectuais para executarem
auditiva, mas sim u m facto acerca do que aprendeu e não esqueceu e todos os trabalhos hercúleos que os epistemologistas lhes a t r i b u e m .
da sua aplicação actual dessas iições.
Quando se diz que uma pessoa v i u u m dedal, parte do que se diz
Finalmente, se bem que seguir uma melodia f a m i l i a r implique é que teve pelo menos uma sensação visual, mas diz-se também bastante
que ela se tenha tornado f a m i l i a r , isto não exige que se dêem quaisquer mais. Comummente, os teóricos i n t e r p r e t a m isto como significando que
operações de reminiscência. A pessoa não necessita de evocar ou recor- a descrição de uma pessoa que v i u u m dedal diz, não só que ela teve
dar lembranças ou audições passadas da melodia. O sentido de «pensar» uma sensação visual, como também que fez ou sofreu qualquer coisa
no qual se pode dizer que uma pessoa que está a seguir uma melodia mais e de acordo com isto p e r g u n t a m : «O que é que fez ou sofreu a
f a m i l i a r está a pensar no que está a ouvir, não se refere aos pensamen- pessoa que encontrou o dedal que não t e r i a feito ou sofrido se não
tos de audições passadas que teve. Não esqueceu como é a melodia, mas tivesse encontrado o dedal?». As suas perguntas são então respondidas
não está a evocar como ela era antigamente. por histórias acerca de inferências m u i t o repentinas e que não são
De u m modo grosseiro, saber como é uma melodia é ter adquirido notadas ou acerca de alguns saltos intelectuais súbitos que não podem
u m conjunto de propensões de expectativa auditiva, e reconhecer ou ser lembrados ou ainda acerca de certas emissões de conceitos atribuí-
seguir uma melodia é estar a ouvir uma nota esperada depois de outra dos aos dados visuais. Supõem que isto é assim porque a proposição
nota esperada e isto não implica a ocorrência de quaisquer outros «Ele v i u u m dedal» tem uma complexidade lógica considerável e relata
exercícios de expectativa diferentes de escutar o que se está a ouvir portanto uma considerável complicação de processos. E como a ocor-
e do que deve ser ouvido. A descrição de uma pessoa a o u v i r notas rência destes processos não é presenceada, postula-se que devem acon-
esperadas é na verdade diferente da de uma pessoa que ouve notas sem tecer n u m lugar onde não podem ser presenciados, isto é, na corrente
de modo algum as esperar (como uma pessoa que está a ouvir mas não da consciência.
a escutar), mas isto não significa que se passe alguma coisa a mais A nossa análise do que temos em mente quando dizemos que alguém
com a p r i m e i r a pessoa e que o mesmo não aconteça com a segunda ou reconhece uma melodia pode ser aplicada a u m novo caso. Certamente
com a terceira. Significa que o acto de ouvir se passa de uma maneira que uma pessoa que vê u m dedal reconhece o que vê e isto não implica
diferente e a descrição dessa diferença envolve, não u m relato de apenas que tenha uma sensação visual mas também que tenha aprendido
ocorrências suplementares, mas somente a sua caracterização como u m e não esquecido o aspecto que tem u m dedal. Aprendeu o suficiente
acto de ouvir especialmente treinado. O acto de seguir uma melodia da receita sobre o aspecto dos dedais para reconhecer quando os vê
é, se assim o quiserem, u m facto tanto relativo aos ouvidos de uma a uma luz, distância e ângulo normais. Quando vê o dedal está a aplicar
pessoa como ao seu espírito, mas não é uma conjunção de u m facto a lição. Está efectivamente a fazer o que aprendeu a fazer. Sabendo
relativo aos seus ouvidos e de outro relativo ao seu espírito ou u m como os dedais são, está pronta a prever, embora não necessite
relato conjunto de u m incidente na sua vida sensitiva e de outro aci- efectivamente de o fazer, como lhe parecerá se se a p r o x i m a r ou afastar
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 231
230

dele e quando, sem ter executado qualquer destas antecipações, se quais as mães e amas ensinam às crianças lições destas espécies. Não
aproxima ou afasta dele, o dedal parece-lhe t a l como estava preparada há mais enigmas epistemológicos implicados na descrição de como as
para que lhe parecesse. Quando as visões efectivas que t e m dele estão crianças aprendem a percepcionar do que há na descrição de crianças
de acordo com a receita sobre dedais, satisfazem as suas propensões a aprenderem a andar de bicicleta,. Aprendem pela prática e podemos
de expectativa adquiridas, e isto é ver o dedal. especificar as espécies de prática que levam a cabo esta aprendizagem.
Acontece com o dedal o mesmo que com a melodia. Se o seu É evidente que as histórias acerca da aprendizagem pela prática
reconhecimento não f o r impedido por dificuldades, isto é, se o dedal f o r não darão a solução para as perguntas de «como» feitas acima. Esta
evidente para o observador desde o p r i m e i r o relance, não são necessá- pergunta não f o i entendida como uma pergunta acerca das fases através
rios mais pensamentos ou considerações, nem é necessário resolver das quais as capacidades e interesses se desenvolvem ou acerca dos
problemas ou evocar reminiscências. O observador não necessita de auxílios e impedimentos do seu desenvolvimento. O que f o i então enten-
dizer nada em inglês ou em francês a si próprio ou às outras pessoas, dido? Talvez o problema seja qualquer coisa como i s t o : provavelmente,
não necessita de evocar imagens de memória ou fantasiadas, não não existe enigma filosófico acerca de como as crianças aprendem
necessita de se a d m i r a r , fazer conjecturas ou t o m a r precauções, não melodias ou as reconhecem quando as aprendem. Nem há talvez
necessita de recordar episódios passados, não necessita de fazer nada qualquer enigma acerca da aprendizagem análoga de receitas a respeito
que possa ser descrito como t e r pensamentos, embora se f o r habilitado de ver, provar e cheirar. Mas há uma grande diferença entre aprender
linguisticamente seja de esperar que possa fazer algumas destas coisas uma melodia e descobrir que existem coisas como violinos, dedais, vacas
se houver necessidade. O sentido em que está a pensar, e não simples- e portões. Descobrir que existem objectos materiais requer uma apren-
mente a ter uma sensação visual, é o de estar a ter uma sensação visual dizagem diferente da das melodias, que se adquire para além da apren-
n u m estado de espírito de ver-um-dedal. T a l como uma pessoa que dizagem de ruídos, gostos e cheiros, de existências públicas, diferentes
reconhece uma melodia desde os primeiros compassos está preparada e independentes das nossas sensações pessoais. E pela expressão meta-
t a n t o retrospectivamente para os compassos já ouvidos, para os que fórica «adquirir para além de» significa-se a d q u i r i r o conhecimento de
estão a ser ouvidos agora, e prospectivamente para os que se vão seguir, que tais objectos existem na base de se saber originalmente apenas que
embora não atravesse operações adicionais de se preparar para eles, estas sensações existem. Com que princípios estará portanto de acordo
assim também uma pessoa que reconhece uma vaca à vista está prepa- o nosso enigma, e por meio de que premissas pode uma pessoa concluir
rada para uma inúmera variedade de visões, sons e cheiros sobre os validamente que existem vacas e portões? Ora, por u m feliz instinto,
quais não necessita efectivamente de ter pensamentos. ela acredita com razão nestas coisas, sem inferências; mas por meio de
que inferências pode j u s t i f i c a r as suas crenças i n s t i n t i v a s ? Isto é, a
Mas provavelmente a dificuldade manter-se-á, porque mesmo acei-
pergunta de «como» deve ser interpretada como uma pergunta de
tando que esta espécie de descrição da evidência visual dos dedais e da
Sherlock Holmes do tipo «Que evidência descobriu o detective que o
evidência a u d i t i v a das melodias seja verdadeira, a pergunta real con-
habilitou a confirmar a sua suspeita de que o guarda-florestal era o
t i n u a sem resposta. E m p r i m e i r o lugar, como aprendemos que existem
assassino?» e, ao i n t e r p r e t a r a pergunta deste modo, podemos ver r a p i -
dedais? Como pode uma pessoa que começa por simples sensações
damente que é uma pergunta imprópria. Quando falamos da evidência
chegar a uma fase em que descobre que existem objectos físicos? Ora
descoberta pelo detective, estamos a pensar em coisas que ele ou os seus
isto é uma estranha espécie de pergunta de «como», visto que, elaboran-
informadores observaram ou presenciaram, tais como impressões d i g i -
do-a de outra maneira, todos sabem m u i t o bem a resposta. Sabemos
tais encontradas em copos e conversas ouvidas por pessoas que escuta-
como as crianças aprendem que certos ruídos pertencem a melodias
r a m às portas. Mas uma sensação não é algo que o seu possuidor
e outros não; que algumas sequências melódicas de ruídos, como as
observe ou presencie. Não é uma pista. Escutar uma conversa implica
canções de embalar, têm r i t m o s reconhecíveis ;outras, como o ruído dos
ter sensações auditivas, porque escutar é o u v i r com atenção e ouvir
relógios, têm monotonias reconhecíveis; enquanto outras ainda, como
implica sensações auditivas. Mas ter sensações não é descobrir pistas.
os ruídos produzidos por matracas, são de acaso e desordenados.
Descobrimos pistas escutando conversas e observando impressões d i g i -
Conhecemos também as espécies de jogos e exercícios por meio dos
232 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 233

tais. Se não pudéssemos observar estas coisas não teríamos pistas sobre de casas, não se aplicam às sensações. Podemos perguntar de que é
outras coisas e as conversas são exactamente as espécies de coisas que feito u m bolo, mas não de que é feito o conhecimento. Podemos pergun-
escutamos e as impressões digitais e as portas são as espécies de t a r o que se faz com esses ingredientes, mas não o que vai ser composto
coisas para que olhamos. ou construído com as sensações visuais e auditivas que a criança teve
E s t a pergunta imprópria de «como» é em parte tentadora, porque recentemente.
há uma tendência enganosa para supor que toda a aprendizagem é Podemos concluir então que não há diferença de princípio, embora
descoberta por inferência através de inferências previamente verifica- haja bastantes diferenças de pormenor, entre reconhecer melodias e
das e então o processo de sentir os dados dos sentidos faz parte de reconhecer portões. U m a dessas diferenças pode ser mencionada antes
verificar a evidência inicial. É evidente que, de facto, aprendemos como de abandonarmos o assunto. N u m a fase muito p r i m i t i v a da infância,
fazer inferências por meio de factos previamente verificados, t a l como a criança aprende a coordenar, por exemplo, as receitas da vista, do
aprendemos a jogar xadrez, andar de bicicleta ou reconhecer portões som e da sensibilidade de coisas como chocalhos e gatos e tendo
sobretudo pela prática, reforçada talvez pelo treino. A aplicação de começado a aprender como é de esperar que coisas de determinadas
regras de inferência não é uma condição da aprendizagem pela prática, espécies pareçam, soem e sejam sentidas, começa então a aprender
é apenas uma entre as inúmeras coisas aprendidas pela prática. como essas coisas são compostas; quando, por exemplo, a roca ou o
Conforme se mostrou, escutar e olhar não são apenas ter sensações gato fazem u m ruído e quando não o fazem. Observa então as coisas
nem no entanto são processos conjuntos de observar sensações e fazer de u m modo experimental. Mas o processo relativamente contemplativo
inferências de objectos comuns. U m a pessoa que escuta ou olha está de aprender melodias não envolve em si próprio m u i t a coordenação
a fazer algo que não f a r i a se fosse surda ou cega ou, o que é comple- de aspectos com sons, nem dá m u i t o l u g a r a experiências. Mas esta
tamente diferente, se estivesse de espírito ausente, distraída ou comple- diferença é de g r a u e não de espécie.
tamente desinteressada ou, o que também é totalmente diferente, se não Devemos ainda assinalar com brevidade u m ou dois pontos res-
tivesse aprendido a usar os seus olhos e os seus ouvidos. Observar é tantes. Primeiro, ao falar de uma pessoa a aprender u m processo de
usar os olhos e os ouvidos. Mas usar os olhos e os ouvidos não implica percepção, não estou a falar da sua descoberta de quaisquer leis
usar, n u m sentido diferente, as sensações visuais e auditivas como causais, tais como as da fisiologia, óptica ou mecânica. A observação
indicações. Não faz sentido falar de «usar» sensações, nem mesmo dos objectos comuns é anterior à descoberta de correlações gerais
faria sentido dizer que ao olhar para uma vaca eu estava a descobrir entre espécies especiais de objectos comuns. E m segundo lugar, ao falar
algo sobre a vaca «por meio de» sensações visuais, visto que isto de uma pessoa que sabe uma receita de percepção, que sabe, por
também sugeriria que as sensações são utensílios ou objectos que exemplo, como os objectos comuns devem parecer, soar ou ser sentidos,
poderiam ser usados do mesmo modo que as coisas vistas e ouvidas não estou a a t r i b u i r - l h e a capacidade de f o r m u l a r ou t r a n s m i t i r esta
podem ser usadas e isto seria até mais enganador do que dizer que receita. U m pouco como muitas pessoas sabem dar algumas espécies
manejar u m martelo envolve em p r i m e i r o lugar manejar os meus dedos diferentes de nós, sendo no entanto completamente incapazes de des-
e que controlo o martelo por pancadas de controlo dos meus dedos. crever esses nós ou seguir descrições faladas ou impressas deles,
Há u m o u t r o modelo f a v o r i t o para a descrição de sensações. Como também todos nós sabemos como i d e n t i f i c a r uma vaca por meio da
a farinha, o açúcar, o leite, os ovos e as groselhas estão entre as vista m u i t o tempo antes de podermos dizer às outras pessoas qualquer
matérias-primas com as quais os confeiteiros fazem bolos ou como os coisa acerca das características visíveis pelas quais a reconhecemos e
tijolos e a madeira estão entre as matérias-primas do construtor, bastante tempo antes de podermos desenhar, p i n t a r ou mesmo reconhe-
assim se fala muitas vezes das sensações como de matérias-primas com cer gravuras de vacas. N a verdade, se não aprendêssemos a reconhecer
as quais construímos o mundo do nosso conhecimento. Mesmo como coisas pela vista e pelo ouvido, antes de aprendermos a f a l a r delas,
contrapartida de histórias mais enganadoras, esta versão teve méritos nunca poderíamos começar nada. Falar e compreender o que os outros
importantes. Mas as noções de coligir, armazenar, classificar e arranjar, dizem implica reconhecer palavras quando as dizemos ou ouvimos.
que se aplicam aos ingredientes dos bolos e aos materiais de construção Embora tenha t i r a d o muitos dos meus exemplos de ver de acordo
234 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 235

com os modelos de percepção, de casos de percepção não errónea, tais linguagem que podia ser evitado numa linguagem construída para
como descobrir u m portão onde ele está, o mesmo se dá com observa- satisfazer as necessidades da pureza lógica.
ções erradas, tais como «descobrir» u m caçador onde está realmente U m dos motivos recomendáveis desta teoria f o i o desejo de dis-
u m marco de correio, discernir u m pau onde está na realidade u m a pensar acções e princípios ocultos. Os seus defensores acharam que as
sombra ou ver uma cobra no edredon, quando na realidade não há teorias correntes da percepção postulavam entidades ou factores inob-
nada sobre ele. Descobrir u m a coisa errada implica o mesmo que des- serváveis para dotar coisas como portões com propriedades cujas
cobrir u m a coisa certa, isto é, o uso de uma técnica. U m a pessoa sensações estavam impedidas de revelar. U m portão é duradouro, ao
não é descuidada se não t i v e r aprendido u m método, mas apenas passo que as sensações são fugazes; e o portão é acessível a qualquer
se o aprendeu e não o aplica adequadamente. Só uma pessoa que sabe pessoa enquanto as sensações são propriedade da pessoa que as t e m ;
equilibrar-se pode perder o equilíbrio; só uma pessoa que raciocina o portão observa regularidades causais, ao passo que as sensações
pode construir sofismas; só uma pessoa que pode d i s t i n g u i r caçadores são desordenadas; o portão é uno enquanto as sensações são plurais.
pode t o m a r u m marco de correio por u m caçador e só u m a pessoa Assim, t e m havido tendência para dizer que, por detrás do que
que sabe o aspecto que têm as cobras pode imaginar ver uma cobra é revelado aos sentidos, existem propriedades ulteriores e m u i t o impor-
sem compreender que está apenas a imaginar. tantes do portão, designadamente que é uma Substância Durável, uma
Coisa-em-si-própria, u m Centro de Causalidade, uma Unidade Objectiva
(5) FENOMENISMO e uma grande variedade de outras solenidades teóricas. Por meio destas
ideias, o fenomenismo tenta m i t i g a r com estes remédios a ineficácia
É de interesse fundamental dizer algumas palavras sobre a teoria dos teóricos, embora, como espero mostrar, tente m i t i g a r com remédios
conhecida por «Fenomenismo». Esta teoria sustenta que como, de certo sem diagnosticar ou curar doenças que eles t e n t a r a m em vão evitar.
modo, f a l a r de uma equipa de críquete é falar em certo sentido dos O Fenomenismo deriva também de o u t r o motivo, desta vez não
indivíduos que a compõem, assim também f a l a r de u m objecto comum louvável, e trata-se de u m motivo do qual derivam também as teorias
como u m portão é falar, sob certos aspectos, dos dados dos sentidos contra as quais o Fenomenismo f o i uma revolta. Supôs-se, por exemplo,
que os observadores têm o u podem t e r ao vê-lo, ouvi-lo o u senti-lo. T a l que ter uma sensação é em si a descoberta de alguma coisa ou que
como não há nada para contar na história de u m a equipa de críquete, alguma coisa é «revelada» na sensação. Aceitou-se o princípio da Teoria
salvo u m a certa selecção das acções e experiências dos seus membros dos Dados dos Sentidos de que t e r uma sensação é em si uma peça da
quando jogam, v i a j a m , comem o u conversam como equipa, também observação e de facto a única espécie de observação que, sendo à
se argumenta que nada mais há a dizer acerca do portão além da prova de enganos, mereceu o nome de «observação». N a realidade, ape-
sua aparência, de como ele soa ou seria sentido, e t c , etc. N a verdade, nas podemos descobrir pela observação factos relativos a esses objectos
que são dados directamente pelas sensações, isto é, coisas como manchas
mesmo falar de como ele parece, etc. é enganador, porque «ele» é sim-
de cores, ruídos, picadas e baforadas. Somente as proposições relativas
plesmente u m modo sucinto de j u n t a r menções a estes aspectos, sons,
a tais objectos são verificáveis observacionalmente. Parecia seguir-se
e t c , que é adequado j u n t a r . Admite-se que este programa não pode de
que não podemos observar realmente portões e que não poderíamos
facto ser cumprido. A o passo que poderíamos, à custa de uma grande
portanto descobrir pela observação as coisas que todos sabemos m u i t o
verbosidade, relatar as glórias de uma equipa, compilando relatos das
bem acerca de portões.
actividades, hábitos e sentimentos dos seus diversos membros, não
Podemos ver agora que t a n t o o Fenomenismo como a teoria a que
poderíamos efectivamente dizer tudo o que sabemos acerca do portão
ele se opôs estavam errados desde o princípio. A última dizia que, visto
pela descrição das sensações pertinentes que os observadores têm ou
podermos observar apenas objectos sensíveis, os portões devem ser
poderiam ter. Não temos vocabulário de sensações «cm si». Podemos
em parte constituídos por elementos que não podem ser descobertos
de facto especificar as nossas sensações mencionando apenas objectivos
por observação. O Fenomenismo dizia que, visto podermos observar
comuns, incluindo pessoas. Mas sugere-se que há u m defeito acidental de
apenas objectos sensíveis, as proposições acerca de portões devem ser
236 237
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO

traduzíveis em proposições acerca de objectos sensíveis. A verdade é espécie de operação à prova de erros a que apenas o verbo «observar»
que «objecto sensível» é uma expressão absurda e, assim, «proposições é consagrado? N a verdade, «observar» é precisamente, no seu verdadei-
acerca de objectos sensíveis» é também uma frase absurda. E, longe de ro sentido, u m dos verbos aos quais os advérbios «cuidadosamente»,
ser verdade que não podemos observar portões, «portões» é u m espéci- «cautelosamente», «eficazmente» e «inutilmente» são apropriados, o que
me das espécies de complementos que só podem ser dados significativa- mostra que não poderia e x i s t i r u m a espécie de observação, neste senti-
mente a expressões como «Fulano está a olhar para isto ou para aquilo». do, em que não houvesse necessidade nem l u g a r para precauções
Tais factos como o de u m portão d u r a r m u i t o tempo, especialmente se contra enganos.
bem conservado e de, ao contrário do fumo e dos fogos-fátuos, ser duro U m motivo para pedir uma garantia contra enganos de observação
e, embora diferente das sombras, poder ser visto por qualquer pessoa parece ser o seguinte: seria absurdo dizer que há ou poderia haver
quer de noite quer de dia, o facto de suportar o peso das grades mas assuntos relativos a factos empíricos que não pudessem, em princípio,
não poder ser consumido pelo fogo, podem ser e são descobertas feitas ser descobertos pela observação. Assim, dado que qualquer observação
por observação e experiência. Também se pode descobrir do mesmo vulgar pode efectivamente ser errada, deve e x i s t i r u m t i p o especial
modo que os portões podem parecer homens ou árvores e que em certas de observação à prova de erro para que «empírico» possa ser definido
condições é muito fácil cometer erros acerca das suas dimensões e em termos dela. E , assim, inventou-se que sentir por meio dos sentidos
distâncias. Certamente que tais factos acerca de portões não são dados tem esse papel, porque certamente é impróprio falar de uma sensação de
directamente aos sentidos ou revelados imediatamente em sensações, engano. Mas a razão porque a sensação não pode ser errada não é por
mas nada é dado ou revelado assim, visto que ter uma sensação não é ser uma observação à prova de erro, mas porque não é de modo nenhum
descobrir. uma observação. É u m absurdo chamar a uma sensação «verídica», t a l
Isto mostra também porque é que a linguagem não nos permite como chamar-lhe «errada». Os sentidos não são honestos nem falsos,
f o r m u l a r proposições nas quais, de acordo com o Fenomenismo, as nem o argumento j u s t i f i c a que postulemos qualquer o u t r a espécie de
proposições acerca de portões seriam traduzíveis. Não é porque o nosso observação automaticamente verídica. Tudo o que ela requer é que
vocabulário seja incompleto, mas porque não existem os objectos para aquilo que os factos familiares proporcionam, por exemplo os erros de
os quais as expressões e x t r a seriam desejáveis. Não é porque tenhamos observação, como quaisquer outros, seja detectável e corrigível. A s s i m ,
um vocabulário para objectos comuns e f a l t a de vocabulário para os factos empíricos que por lapso f a l t a r a m não necessitam de con-
objectos sensíveis, mas s i m porque a noção de objectos sensíveis é t i n u a r a falar por uma série i n f i n i t a de lapsos. O que se quer não é u m
absurda. Não só é falsa, idealmente falando, no vocabulário de portões, processo peculiar com certificado, mas os processos vulgares cuidado-
mas também no de sensações, mas não podemos descrever sensações sos, não quaisquer observações incorrigíveis, mas observações vulgares
em s i sem empregarmos o vocabulário de objectos comuns. corrigíveis, não vacinas contra enganos, mas precauções vulgares contra
Pode objectar-se que é impróprio d a r o título honorífico de «obser- eles, bem como testes e correcções vulgares. A v e r i g u a r não é u m proces-
vação» a operações por meio das quais nós e os astrónomos nos so que baseia n u m fundo de certezas uma superestrutura de suposições,
satisfazemos normalmente acerca de piscos e nebulosas. Não só toma- é antes u m processo de a d q u i r i r certezas. A s certezas são aquilo que
mos muitas vezes umas coisas por outras, como nunca temos uma conseguimos ao averiguar, não são coisas que obtemos por acidente ou
garantia de que não nos estamos a enganar. «Observação» deveria ser benefício; são a recompensa do trabalho e não os dons da revelação.
reservada para u m processo à prova de enganos. Quando a noção sabática de «O Dado» der lugar à noção corrente de
Mas porquê? Se faz sentido dizer que u m homem é u m observador «averiguado» ter-nos-emos despedido tanto do Fenomenismo como da
cuidadoso e outro u m observador descuidado, porque deveríamos então Teoria dos Dados dos Sentidos.
abster-nos de dizer que nada é verdadeiramente observar, visto que Houve ainda outro motivo para desejar uma operação à prova de
nenhum g r a u de cautela é absoluto? Se não dizemos que as pessoas engano, como por exemplo o de se t e r em parte compreendido que
nunca raciocinam lá porque ninguém tem u m certificado de garantia algumas palavras de observação como «perceber», « v e r » , «detectar»,
de que não está a cair n u m sofisma, porque iríamos supor que há uma «ouvir» e «observar» (no sentido de descobrir) são aquilo a que
238 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 239

chamámos «verbos de realização». T a l como uma pessoa não pode pela geometria euclidiana. As verdades da geometria são teoremas ou
ganhar u m a corrida sem êxito ou resolver u m anagrama incorrecta- axiomas e, dado que a geometria f o i durante a l g u m tempo o exemplo do
mente, visto que «ganhar» significa «correr vitoriosamente» e «resol- conhecimento científico, todos os outros processos de descobrir ou
ver» r e u n i r correctamente», também não se pode detectar erroneamente estabelecer verdades f o r a m piamente m a l assimilados a este processo
ou ver incorrectamente. Dizer que uma pessoa detecta qualquer coisa especial.
significa que não está enganada e dizer que vê, no sentido corrente, Mas a suposição desta semelhança é falsa. Há muitas maneiras
significa que não está com f a l t a de vista. Não é que a pessoa que per- diferentes de averiguar coisas que não são nem contemplações aquies-
cebe tenha usado u m processo que a impeça de se enganar ou tenha centes em branco, nem inferências. Consideremos as respostas que
uma faculdade de infalibilidade, mas porque o verbo de percepção procuraríamos obter às seguintes perguntas de «Como sabe?»: «Como
empregado implica que ela não se enganou. Mas quando empregamos sabe que há doze cadeiras na sala?» «Contando-as»; «Como sabe que
verbos de tarefa como «sondar», «analisar», «escutar», «procurar», 9x17 são 153?» «Multiplicando os dois números e verificando depois
«investigar» e outros, faz sentido dizer que estas operações denotam o resultado subtraindo 17 de 10x17»; «Como sabe quais são as letras
em s i próprias que podem d a r origem a erros e ser infrutíferas. Não há com que se escreve «"fúcsia"?» «Consultando o dicionário»; «Como sabe
nada que impeça que uma investigação conduza a resultados errados ou em que datas v i v e r a m os Reis de Inglaterra?» «Aprendendo-as de cor
ineficazes. A simples lógica «impede» que «curar», «descobrir», «resol- por meio de u m estudo aturado»; «Como sabe que a dor que sente é na
ver» e «acertar no alvo» sejam confusos ou ineficazes. O facto de o sua perna e não no seu ombro?» «A perna e o ombro são meus, não é
médico não poder curar sem êxito não significa que os médicos sejam verdade?»; «Como sabe que o fogo está apagado?» «Olhei duas vezes
infalíveis: significa apenas que há uma contradição em dizer que u m e senti com as minhas mãos».
t r a t a m e n t o que resultou não resultou. E m nenhuma destas situações fomos obrigados a relatar os passos
É por isto que uma pessoa que diz ter visto u m p i n t a r r o x o ou ouvido de qualquer inferência ou as contrapartidas de qualquer axioma, nem
u m r o u x i n o l e que é persuadida de que não havia nenhum p i n t a r r o x o ou criticámos a adopção de qualquer destas diferentes técnicas de descober-
rouxinol, anula a sua afirmação de t e r visto u m p i n t a r r o x o ou ouvido ta, mas apenas, em casos de dúvida, o cuidado na sua execução.
u m r o u x i n o l . Não diz que v i u u m p i n t a r r o x o que não estava lá ou que Também não exigimos que o ténis fosse jogado como se fosse, no
ouviu u m rouxinol i r r e a l . De modo semelhante, uma pessoa que a f i r m a fundo, uma variedade de Halma.
ter resolvido u m anagrama e é persuadida de que a solução encontrada
não é a certa, anula a sua afirmação de o ter resolvido. Não diz que (6) CONCLUSÕES
n u m sentido «estrito» ou «refinado» do verbo resolveu u m «objectivo-
-solução», que aconteceu não coincidir com a palavra camuflada no Conforme f o i dito no prólogo, há algo de m u i t o inadequado nas
anagrama. discussões que ocupam este capítulo. Escrevi como se soubéssemos
Avançando mais, parece haver uma afirmação geral para todos os usar o conceito ou conceitos de sensações. Falei quase com leve
pontos de v i s t a criticados neste capítulo, a afirmação de que tudo mágoa da nossa f a l t a de palavras de sensação «em si» e falei
se sabe ou aprende quer por inferência, quer a p a r t i r de premissas ou, fluentemente de sensações visuais e auditivas. Mas tenho a certeza
no caso de premissas últimas, por certa espécie de confrontação não de que nada disto serve para nada.
inferencial. Esta confrontação f o i tradicionalmente rotuiada de «cons- Usamos por vezes a palavra «sensação» n u m t o m de voz pretencio-
ciência», «conhecimento imediato», «verificação», «inspecção directa», so, para mostrar que estamos familiarizados com as modernas hipóteses
«intuição», e t c , palavras estas que apenas as pessoas que se baseiam filosóficas, neurológicas e psicológicas. Usamo-la da mesma maneira
numa teoria epistemológica poderiam usar para descrever episódios que às palavras científicas como «estímulos», «extremidades dos ner-
especiais da vida diária. vos» e «retina» e, quando dizemos que u m feixe de luz causa sensação
Esta dicotomia predilecta «quer por inferência quer por intuição» visual, pensamos que os experimentalistas são agora capazes, ou serão
parece t e r a sua origem histórica na deferência dos epistemologistas u m dia, de nos dizer que espécie de coisa é uma sensação visual. Mas
240 SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 241
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

o uso precioso de «sensação» e «sentir» é completamente diferente disto. suas afirmações se lhes assegurassem que não havia nenhum grão de
É o sentido em que digo, sem pensar em teorias, que o choque eléctrico areia debaixo das suas pálpebras ou que a sua cabeça e os seus pés se
causou u m f o r m i g u e i r o no meu braço ou que a sensibilidade está encontravam à mesma temperatura, porque aqui «sentir» significa
agora a v o l t a r à minha perna dormente. Neste uso, estamos prontos «sentir como se», assim como «aparece» significa muitas vezes «parece»
a dizer que u m grão de areia ou uma luz encandeante dão uma sen- e «soa» significa «soa como se». Mas o que é necessário para completar
sação desagradável aos nossos olhos, mas nunca diríamos, neste a cláusula «como se» é uma referência a certo estado de coisas, que se
sentido, que as coisas para que normalmente olhamos nos dão quais- realmente fosse obtido seria descoberto por meio de sentir, no sentido
quer sensações nos olhos. Quando o grão de areia f o i retirado, pode- primário desta palavra, o sentido no qual «Sinto u m grão de areia sob a
mos responder à pergunta «Como é que o seu olho está agora?», mas minha pálpebra» seria retirado quando a pessoa que fala estivesse
quando desviamos o nosso olhar do campo para o céu não podemos dar convencida de que o grão já não se encontrava lá. Podemos chamar-lhe
uma resposta à pergunta «Como é que essa mudança modificou o que u m uso «post-perceptual» dos verbos «sentir», «parecer», «soar» e
sente nos olhos?». Podemos dizer pelo nosso próprio conhecimento outros.
como é que a vista mudou e podemos dizer, por termos ouvido falar Existe no entanto uma disparidade importante entre «sentir», por
de teorias especiais, que provavelmente houve uma mudança de estí- u m lado, e «ver», «ouvir», «provar» e «cheirar», por outro. U m a pessoa
mulos e uma mudança nas reacções da nossa retina. Mas não há nada que tem u m pé dormente pode dizer não só que não pode sentir coisas
de que vulgarmente pudéssemos dizer que «sentimos» nos nossos com o seu pé, mas também que não sente o seu pé, ao passo que uma
olhos nessa altura. pessoa momentaneamente cega ou surda d i r i a que não podia ver ou
De igual modo, cheiros u m pouco acres ou penetrantes dão-nos ouvir coisas com o olho ou com o ouvido direito, mas não que não podia
sensações especiais e descritíveis nos nossos narizes e gargantas, mas ver o seu olho ou ouvir o seu ouvido. Quando a sensibilidade volta ao pé
muitos cheiros não nos provocam tais sensações. Posso d i s t i n g u i r o dormente, o seu possuidor recupera a sua capacidade para descrever
cheiro das rosas do cheiro do pão, mas não descrevo esta diferença coisas tanto acerca do pavimento como acerca do seu próprio pé.
ingenuamente dizendo que a rosa me dá uma espécie de sensação e que É óbvio que este conceito primário de sensação não é u m compo-
o pão me dá outra, t a l como os choques eléctricos e a água quente nente do conceito genérico de percepção, visto que é precisamente uma
causam espécies de sensações diferentes na minha mão. espécie desse género. Posso ver uma coisa sem sentir nada e posso
No seu uso vulgar, as palavras «sensações» e «sentir» significam sentir uma coisa sem ver nada.
originalmente percepções. U m a sensação é uma sensação de alguma O que se passa então com o o u t r o uso pretencioso de «sensações»,
coisa e sentimos o navio v i b r a r ou balançar como vemos a sua bandeira o sentido erudito em que se diz que ver implica t e r sensações visuais?
a esvoaçar ou ouvimos a sua sereia a apitar. Neste sentido, podemos Neste sentido, sensações ou impressões não são coisas que as pessoas
sentir coisas d i s t i n t a ou indistintamente, como podemos cheirá-las mencionam, pelo menos antes de terem t i d o conhecimento superficial
distinta ou indistintamente. T a l como vemos com os nossos olhos 2 das teorias psicológicas, fisiológicas ou epistemológicas. A i n d a m u i t o
ouvimos com os nossos ouvidos, assim podemos sentir coisas com as antes de terem chegado a este nível de edificação, sabem como usar os
mãos, lábios, língua ou joelhos. Para descobrir se u m objecto comum é verbos «ver», «ouvir», «provar», «cheirar» e «sentir» e usam-nos então
ou não pegajoso, flexível, duro e arenoso, não temos de olhar, ouvir, precisamente do mesmo modo como continuam a usá-los depois dessa
cheirar ou saborear, mas senti-lo. Descrever uma sensação é, neste uso instrução. Assim, o conceito sofisticado de sensações ou impressões
vulgar e despretencioso, descrever aigo descoberto por observação táctil não é u m componente dos seus conceitos de percepção. Poderíamos e
ou quinestésica. faríamos bem em discutir com Platão a noção de percepção. Se o fizés-
Na verdade, usamos muitas vezes «sentir» e «sensação» de modo semos nunca teríamos ocasião de dizer que ainda não nos tínhamos
diferente, embora derivado. Quando uma pessoa com os olhos doridos, concentrado no uso dos conceitos de ver, ouvir e sentir, visto que ainda
diz que sente u m grão de areia sob as pálpebras ou quando uma pessoa não tínhamos tido conhecimento das últimas teorias acerca dos estí-
f e b r i l diz que sente a cabeça quente e os pés frios, não r e t i r a r i a m as mulos sensoriais.

1. P. — 16
242 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 243

Os fisiologistas e os psicólogos lamentam por vezes ou vanglo- sensação dolorosa no olho. Substantivos de incómodos como «dores»,
riam-se de que não conseguem encontrar uma ponte que ligue o abismo «picadas» e «enjoos» passam então a ser tratados por alguns teóricos
que separa as impressões das excitações nervosas que as causam. como nomes de sensações específicas, onde «sensação» é usada no seu
Consideram a d m i t i d a a existência destas impressões, quando é somente sentido erudito como sinónimo de outra palavra erudita que é
o mecanismo das suas causalidades que lhes causa perplexidade. Como «impressão». Mas se se perguntar a uma pessoa que sofre o que é que
poderia alguém fazer perguntas sobre a existência das impressões dos sente, ela não satisfaz quem pergunta respondendo «uma dor» ou «um
sentidos? Não se tornou evidente, pelo menos a p a r t i r de Descartes, que incómodo», mas somente se responder «uma sensação de punhalada»
estas são o conteúdo o r i g i n a l , elementar e constante da consciência? ou «uma sensação de grão de areia» ou «uma sensação de queimadura».
Quando dizemos agora que uma pessoa está consciente de alguma Tem de usar uma expressão de post-percepção para o efeito do que
coisa, parte do que normalmente significamos é que essa pessoa está sente como se qualquer coisa aguda a estivesse apunhalando ou qual-
pronta a confessá-la ou a descrevê-la sem investigação ou instrução quer coisa em forma de grão a estivesse arranhando ou qualquer coisa
especial. É isto precisamente o que ninguém faz com as suas chamadas incandescente a estivesse queimando. O facto de ela estar n u m estado
impressões. As pessoas estão normalmente prontas a dizer o que vêem, de angústia, frívolo ou de tristeza intensa é uma informação de
ouvem, provam, cheiram ou sentem. Estão prontas também a dizer que espécie diferente, dada em resposta a uma espécie de pergunta dife-
determinada coisa parece como se fosse assim e assado ou que soa rente. Assim, é errada a sugestão de que em substantivos como «dor»,
como se fosse isto ou aquilo. Mas não estão prontas, e na verdade não «picada» e «enjoo» possuímos, sobretudo, os princípios de u m vocabu-
estão sequer linguisticamente apetrechadas, para dizer que impressões lário com o qual podemos relatar ou descrever impressões. Permanece
têm ou t i v e r a m . Assim, a noção de que tais episódios ocorrem não contudo uma diferença, interessante e talvez i m p o r t a n t e entre o sentido
deriva de qualquer estudo do que as pessoas vulgarmente sensíveis no qual u m grão de areia me fere e o sentido no qual uma dissonância
costumam dizer. Não são mencionadas nas comunicações de «cons- ouvida ou uma desarmonia de cores me fere. O grão de areia fere
ciência» não instruída. Pelo contrário, esta noção deriva de uma hipóte- literalmente o meu olho, ao passo que a dissonância apenas fere meta-
se causal especial — a hipótese de que o espírito pode estar em contacto foricamente os meus ouvidos. E u não pediria ao farmacêutico u m
com u m portão apenas no caso de este causar qualquer coisa no seu antídoto óptico para deter a angústia que me causou uma desarmonia
corpo, que por sua vez causa qualquer coisa no seu espírito. As de cores e, se me perguntassem se esta desarmonia fere mais o meu
impressões são impulsos fantasmas, postulados para os fins de uma olho d i r e i t o do que o esquerdo, recusar-me-ia a responder, a não ser
teoria paramecânica. A própria palavra «impressão», t i r a d a por que dissesse que ela não fere literalmente os meus olhos como acontece
assim dizer das marcas em cera, denuncia os motivos da teoria. É com os grãos de areia ou com as luzes incandescentes.
u m infortúnio filosófico que a teoria fosse capaz de t r a t a r e de perver-
Palavras como «angústia», «aversão», «sofrimento» e «aborreci-
ter o vocabulário com o qual falamos das coisas que descobrimos, sen-
mento» são nomes de disposições. Mas «ferir», «ter cócegas» e «enjoar»,
tindo-as. Não é uma teoria de especialistas, mas u m facto do conheci-
quando usadas literalmente, não são nomes de disposições. Localizamos
mento comum, descobrirmos por meio de sensações que as coisas
ferimentos e cócegas onde localizamos o grão de areia ou a palhinha
estão quentes, são viscosas, vibráteis e duras. De acordo com isto,
que sentimos ou imaginamos sentir. «Ferir» e «ter cócegas» não podem
fez-se parecer que era precisamente mais uma parte do conhecimento
por exemplo ser distintos ou indistintos, claros ou confusos, ao passo
comum o facto de termos sensações quando vemos, ouvimos ou cheira-
que descobrir algo pela vista ou tacto é uma realização. «Eu tenho
mos. A noção elaborada de impressões dos sentidos f o i escamoteada ao
cócegas terríveis» não descreve uma realização ou qualquer coisa
abrigo da ideia vulgar de percepção por contacto.
averiguada. Não sei que mais possa ser d i t o sobre a gramática lógica
Não quero deixar de mencionar u m outro uso não erudito de de tais palavras, salvo que m u i t o mais há a dizer.
palavras como «sensação» e «sentir». U m a pessoa dirá por vezes, não
que sente u m grão de areia sob a pálpebra, nem que sente uma sensação
de areia sob a pálpebra, mas que sente uma dor no olho ou que tem uma
A IMAGINAÇÃO 245

e a ouvir. Assim como os actores teatrais que fazem papéis de assas-


sinos não fazem vítimas nem são assassinos, também ver coisas nos
olhos do espírito não implica nem a existência das coisas vistas nem
a ocorrência de actos de as ver. Portanto, não é necessária a existência
de u m lugar onde existam ou ocorram.
As conclusões expressas no f i m do último capítulo abrangem t a m -
bém algumas coisas ditas neste capitulo acerca das sensações.

CAPITULO VIII
(2) REPRESENTAR E VER

Ver é uma coisa, representar ou visualizar é outra. U m a pessoa só


A IMAGINAÇÃO pode ver coisas quando os seus olhos estão abertos e quando o espaço
que a cerca está iluminado, mas pode t e r representações nos olhos do
espírito quando t e m os olhos fechados e quando tudo está às escuras.
De igual modo, só pode ouvir música nas mesmas condições em que as
(1) PRÓLOGO
outras pessoas poderiam ouvi-la, mas pode ter uma melodia na cabeça
quando os seus vizinhos não ouvem música alguma. Além disso, só
Mencionei o facto terminológico de que «mental» é ocasionalmente pode ver as coisas que estão presentes para serem vistas e ouvir o que
usado como sinónimo de «imaginário» Os sintomas de u m hipocondríaco está presente para ser ouvido e muitas vezes não pode evitar ver ou
são por vezes considerados como «puramente mentais». Mas muito mais ouvir o que vê ou ouve. Mas em certas ocasiões pode escolher que
importante do que esta singularidade linguística é o facto de existir representações verá nos olhos do espírito e que versos ou melodias
uma tendência generalizada entre os teóricos e leigos para a t r i b u i r uma repetirá na sua cabeça.
espécie de realidade de «outro-mundo» ao imaginário e t r a t a r então o
U m sentido no qual as pessoas têm tendência para e x p r i m i r esta
espírito como habitat clandestino de seres imateriais. As operações da
diferença é escrevendo que, ao passo que vêem árvores e ouvem música,
imaginação são, evidentemente, exercícios de poderes mentais. Mas
apenas «vêem» e «ouvem» entre aspas os objectos criados pela sua
tento m o s t r a r neste capítulo que procurar responder à pergunta «Onde
imaginação. A vítima do ãelirium tremens é descrita pelas outras
existem as coisas e os acontecimentos cuja existência as pessoas imagi-
pessoas, não como vendo cobras, mas como «vendo» cobras. Esta
nam?» é tentar responder a uma pergunta ilegítima. Não existem em
diferença de linguagem é reforçada por outra. U m a pessoa que diz que
lugar algum, embora se imagine que existem, digamos, nesta sala ou
« v ê » uma casa da sua infância, está muitas vezes preparada para des-
em Juan Fernandez.
crever a sua visão como «vívida», «fiel» ou «como se fosse real», predi-
O problema crucial é o de descrever o que é «visto nos olhos do cados que nunca seriam atribuídos à visão do que tem em frente do na-
espírito» ou o que é «ouvido na cabeça». A q u i l o de que se fala como riz, porque ao passo que se pode dizer que uma boneca é «como se fosse
de «imagens» visuais», «figuras mentais», «imagens auditivas» e n u m real» o mesmo não se pode dizer de uma criança; ou enquanto o r e t r a t o
certo sentido «ideias», é tomado comummente por entidades que se de u m rosto pode ser fiel, o rosto em s i não pode ser nada disso. Por
encontram existindo verdadeiramente e que existem n u m lugar diferen- outras palavras, quando uma pessoa diz que « v ê » uma coisa que não
te do mundo externo. Assim, os espíritos são nomeados pelos teatros está a ver, sabe que o que está a fazer é algo de totalmente diferente,
onde essas entidades actuam. Mas, como tentarei mostrar, a verdade fa- em espécie, de ver, precisamente porque o verbo está entre aspas e a
m i l i a r de que as pessoas estão constantemente a ver coisas nos olhos do visão pode ser descrita como mais ou menos vívida. A pessoa pode
espírito e a ouvir coisas dentro da cabeça não é uma prova de que dizer «Eu podia estar lá agora», mas a palavra «podia» serve precisa-
existam as coisas que vêem e ouvem ou de que as pessoas estão a ver mente porque declara que a pessoa não está lá agora . 0 facto de
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 247
246

em certas condições a pessoa não compreender que não está a ver, é uma fotografia de curta duração, mas o mesmo acontece com os filmes.
mas apenas a «ver» como em sonhos, delírio, hipnose e em espectá- N a verdade, também, é apenas reservada a u m espectador a quem esta
culos de prestidigitação, não tende em qualquer g r a u para o b l i t e r a r a galeria pertence, mas os monopólios não são nada de invulgar.
distinção entre o conceito de ver e o de «ver», assim como o facto de ser Quero mostrar que o conceito de f i g u r a r , visualizar ou « v e r » é u m
muitas vezes difícil dizer se é autêntica uma assinatura falsificada não conceito próprio e útil, mas que o seu uso não implica a existência de
tende a o b l i t e r a r a distinção entre o conceito de uma pessoa que assina quadros que contemplemos ou a existência de uma galeria na qual tais
o seu próprio nome e o de o u t r a pessoa que o i m i t a . A falsificação pode quadros estejam efèmeramente suspensos. Resumidamente, o acto de
ser descrita como u m a boa ou má imitação da assinatura real. U m a criar imagens ocorre mas as imagens não são vistas. Posso ter melodias
assinatura autêntica não poderia ser caracterizada de modo nenhum na minha cabeça mas essas melodias não são ouvidas quando estão a
como uma imitação, visto ser a coisa real sem a qual o falsificador ser entoadas na m i n h a cabeça. N a verdade, uma pessoa que faz o quadro
não t e r i a nada que i m i t a r . da sua infância está, em certo sentido, como uma pessoa que vê a sua
A s s i m como a observação visual tem predominância sobre a obser- infância, mas a semelhança não consiste em olhar na realidade para
vação por meio dos outros sentidos, também em muitas pessoas a ima- uma semelhança real da sua infância, mas em lhe parecer que real-
ginação visual é mais forte do que a imaginação auditiva, a táctil, a mente a vê, quando na realidade não a está a ver. Não está a ser u m
espectador de uma semelhança da sua infância, mas está a assemelhar-
quinestésica, a olfactiva e a gustativa e consequentemente a linguagem
-se a u m espectador da sua infância.
em que discutimos estes assuntos é em grande medida t i r a d a da l i n -
guagem de ver. A s pessoas falam, por exemplo, em «representar» ou
(3) A TEORIA DAS IMAGENS DE ESTATUTO ESPECIAL
«visualizar» coisas, mas não têm verbos genéricos correspondentes
para imagens dos outros sentidos.
Isto t e m mau resultado. E n t r e os objectos comuns da observação Consideremos em primeiro lugar as implicações de uma o u t r a
visual existem, t a n t o coisas visíveis, como simulacros delas, rostos e teoria, as de que, ao visualizar, eu estou, n u m sentido quase v u l g a r do
retratos, assinaturas e assinaturas falsificadas, montanhas e instantâ- verbo, a ver u m quadro de categoria especial. Faz parte desta d o u t r i n a
neos de montanhas, bebés e bonecas, e isto t o r n a n a t u r a l i n t e r p r e t a r que a imagem que eu vejo não está, como os instantâneos, em frente
a linguagem em que descrevemos imaginações de u m modo análogo. de m i m , antes pelo contrário, não se encontra n u m espaço físico mas
Se uma pessoa diz que está a i m a g i n a r a sua infância, temos a n u m espaço de outra espécie. Assim, a criança que imagina o sorriso
tentação de i n t e r p r e t a r a sua observação com o significado de que da sua boneca está a ver uma imagem de u m sorriso. Mas a imagem
está a contemplar de certo modo, não a sua infância, mas outro do sorriso não está onde estão os lábios da boneca, visto que estes estão
objecto visível, designadamente uma imagem da sua infância, que não é em frente da cara da criança. Assim, o sorriso imaginado não está de
apenas uma fotografia ou u m quadro a óleo, mas que sob certo aspecto modo algum nos lábios da boneca. Aliás, tudo isto é absurdo. Ninguém
é a contrapartida de uma fotografia feita de uma substância diferente. pode imaginar u m sorriso desligado de u m rosto e nenhum possuidor de
Mais, esta fotografia sem papel que supomos que está a contemplar não bonecas se satisfaria com uma boneca que não sorri, mais u m simulacro
de sorriso separado e impossível pairando n u m outro lugar qualquer.
é de uma espécie que nós também possamos ver, porque não está numa
Na verdade, a criança não vê u m riso mecânico senão nos lábios da
moldura na parede em frente de nós mas n u m outro sítio, isto é, numa
boneca. Fantasia que vê u m sorriso nos lábios da boneca que está na
galeria que só essa pessoa pode v i s i t a r . Sentimo-nos então inclinados
sua frente, embora não o veja e ficasse amedrontada se o visse. De modo
a dizer que a fotografia da infância que ela contempla deve estar no seu
semelhante, o prestidigitador faz-nos « v e r » (e não ver) coelhos a sair
espírito e que os «olhos» com que contempla não são os olhos do corpo,
de u m chapéu que está na sua mão mesmo em frente dos nossos narizes.
que provavelmente vemos fechados, mas os olhos do espírito, Assim,
Não nos induz a ver (e não a « v e r » ) sombras de coelhos a sair de u m
subscrevemos inadvertidamente a teoria de que « v e r » é sobretudo ver
segundo chapéu espectral que não está na sua mão, mas n u m espaço
e que o que é visto por ela é como uma semelhança real e tão realmente
de outro género.
v i s t a como o quadro a óleo que é visto por toda a gente. N a verdade,
248 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 249

O sorriso imaginado não é portanto u m fenómeno físico, isto é, duas espécies de «percepções». A s ideias, pensou ele, tendem a ser mais
uma contracção real da face da boneca, nem é tão pouco u m fenómeno fantasiosas do que as impressões, e são na sua génese posteriores às
não físico observado pela criança e que tem lugar n u m campo comple- impressões, visto serem traços, cópias ou reproduções de impressões.
tamente separado do seu carrinho de criança e da sua infância. Não é Hume reconheceu ainda que as impressões podem ser de qualquer g r a u
de modo algum u m sorriso e não existe igualmente uma efígie desse de fantasia e que embora toda a ideia seja uma cópia, não surge com
sorriso. Há apenas uma criança a fantasiar que vê a sua boneca sorrir. a marca de «cópia» ou «semelhança», t a l como as impressões não
Assim, embora esteja na realidade a imaginar a boneca a sorrir, não surgem marcadas com «original» ou «modelo». Assim, na exposição
está a olhar para u m quadro de u m sorriso e, embora eu esteja a ima- de Hume a simples inspecção não pode decidir se uma percepção é uma
ginar que vejo coelhos a sair de u m chapéu, não estou a ver fantasmas impressão ou uma ideia. Resta ainda uma diferença crucial entre o que
reais de coelhos a sair de fantasmas reais de chapéus. Não existe uma é ouvido em conversas e o que é «ouvido» em devaneios, entre as ser-
vida real exterior imitada na sombra por certas semelhanças incor- pentes no J a r d i m Zoológico e as serpentes «vistas» pelo dipsomaníaco,
póreas interiores. E x i s t e m apenas coisas e acontecimentos, e pessoas entre o estudo que estou a fazer e a infância «a que me poderia
que se fantasiam a si próprias a presenciar coisas e acontecimentos transportar». O seu engano f o i supor que « v e r » é uma espécie de ver
que não estão a presenciar. ou que «percepção» é o nome de u m género do qual há duas espécies,
Tomemos outro caso. Começo a escrever uma palavra comprida e isto é, impressões e fantasmas ou ecos de impressões. Tais fantasmas
que não me é f a m i l i a r e, depois de uma ou duas sílabas, sinto que não não existem e se existissem seriam simplesmente impressões suple-
estou certo de como a palavra continua. Talvez me imagine então a mentares e pertenceriam a ver e não a «ver».
consultar u m dicionário e nalguns casos posso « v e r » como se escrevem Hume tenta fazer a distinção entre ideias e impressões dizendo que
as três últimas sílabas. Nesta espécie de caso, é tentador dizer que estou as últimas têm tendência para serem mais vivas do que as primeiras.
realmente a ver uma imagem da palavra impressa, somente que essa Supúnhamos, em p r i m e i r o lugar, que «vivas» ou «ao vivo» signifique
imagem está na «minha cabeça» ou no «meu espírito», visto que ler «vívido». A pessoa pode imaginar vividamente mas não pode ver v i vida -
as letras da palavra que «vejo» parece-se bastante com ler as letras mente. U m a ideia pode ser mais vívida que outra ideia, mas as i m -
dessa palavra num dicionário ou numa fotografia dela que na realidade pressões não podem ser descritas como vívidas, t a l como u m a boneca
vejo. Mas, noutro caso, começo a escrever a palavra e «vejo» uma ou pode ser mais semelhante a u m ser vivo do que outra, mas u m bebé
duas sílabas seguintes na página em que estou a escrever e no sítio em não pode ser mais ou menos semelhante a u m ser vivo. Dizer que
que as vou escrever. Sinto-me como se estivesse apenas a encher com a diferença entre os bebés e as bonecas é que os bebés são mais seme-
t i n t a uma palavra sombra que já ocupa a página. A i n d a neste caso é lhantes aos seres vivos é u m absurdo. U m actor pode ser mais convin-
impossível dizer que estou a t e r u m a visão parcial de uma imagem cente que outro actor, mas uma pessoa que não está a representar não
ou o fantasma de uma palavra, n u m espaço estranho diferente do espaço é convincente nem inconvincente e não pode p o r t a n t o ser descrita como
físico, porque o que «vejo» está na minha página, à direita do meu aparo. mais convincente do que u m actor. Por outras palavras, se Hume usasse
Posso dizer que, embora imagine uma palavra n u m certo lugar, impressa «vívido» para significar, não a semelhança com o que é «vivo», mas
n u m certo tipo ou escrita em certa escrita manual, e embora possa ler as sim como sinónimo de «intenso», «agudo» ou «forte», estaria a come-
letras da palavra da maneira que a imagino, impressa ou escrita, mesmo ter u m erro noutra direcção, visto que, enquanto as sensações podem
assim não existe imagem sombra ou fantasma da palavra e eu não vejo ser comparadas com outras sensações como relativamente intensas,
qualquer imagem sombra ou fantasma dela. Parece-me que vejo a agudas ou fortes, não podem ser comparadas deste modo com imagens.
palavra na própria página e, quanto mais vívida e nitidamente me Quando fantasio que estou a ouvir u m ruído, não estou na verdade
parece que a vejo, tanto mais facilmente posso transcrever com a minha a ouvir nenhum som forte ou fantasiado nem estou a t e r uma sensação
caneta, para o papel, o que me parece que vejo. auditiva moderada, porque não estou de modo a l g u m a t e r uma sensa-
Hume pensou sobretudo que existem «impressões» e «ideias», isto ção, embora esteja a fantasiar que estou a t e r uma sensação intensa.
é, sensações e imagens, e procurou em vão u m l i m i t e nítido entre as U m g r i t o imaginado não é ensurdecedor nem é também u m murmúrio

I
250 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA A IMAGINAÇÃO
251
sussurrante e não é mais alto nem mais fraco do que u m murmúrio A d o p t a r tais práticas linguísticas é tentar converter em conceitos-
ouvido. Não o abafa nem é abafado por ele. -espécie conceitos que são construídos, pelo menos em parte, para
De modo semelhante, não há duas espécies de assassinos, aqueles actuar como rejeições factuais. Dizer que uma acção é u m assassínio
que m a t a m pessoas e aqueles que desempenham papéis de assassinos simulado é dizer, não que f o i cometida uma certa espécie de assassínio
no palco, porque estes últimos não são de modo algum assassinos. Não moderado ou esbatido, mas que não f o i cometida qualquer espécie de
cometem assassínios que têm o fugidio a t r i b u t o de serem enganadores, assassínio, e dizer que alguém imagina u m dragão não é dizer de modo
mas apenas s i m u l a m cometer assassínios e simular assassinar implica, algum que vê obscuramente u m dragão de uma espécie peculiar ou
não assassinar, mas parecer que se assassina. T a l como os assassínios qualquer coisa m u i t o semelhante a u m dragão, mas que não vê u m
simulados não são assassínios, também as visões e os sons imaginados dragão nem nada de parecido com ele. Semelhantemente, uma pessoa
não são visões nem sons. Não são portanto visões esbatidas ou sons que «vê a montanha de Helvellyn com os olhos do espírito» não está
abafados e também não são visões e sons privados. Não há resposta a ver essa montanha nem qualquer semelhança dela. Não há uma
para a pergunta espúria «Onde é que ele depositou a vítima do seu montanha na frente dos olhos da sua cara nem u m simulacro de
assassínio simulado?», visto não ter havido vítima, t a l como também montanha em frente dos seus olhos não faciais. Mas também é ver-
não há resposta para a pergunta igualmente espúria «Onde residem dade que a pessoa «podia estar a ver Helvellyn agora», mesmo que
os objectos que imaginamos ver?» visto que tais objectos não existem. pudesse não compreender que não a estava a ver.
Perguntar-se-á: «Como pode uma pessoa j u l g a r que ouve uma Consideremos outra espécie de imagens. Por vezes, quando alguém
melodia na sua cabeça, a menos que haja uma melodia para ouvir?». menciona a forja de u m ferreiro, sinto-me instantaneamente transpor-
Parte da resposta é fácil, isto é, que não lhe pareceria que ouvia ou tado à minha infância, visitando uma f o r j a local. Posso «ver» vivida-
que não i m a g i n a r i a que ouvia uma melodia se realmente estivesse a mente as ferraduras ao r u b r o na bigorna, «ouvir» bastante vividamente
ouvir alguma, t a l como o actor não simularia u m assassínio se estivesse as pancadas do martelo e menos vividamente «cheirar» os cascos
na realidade a assassinar alguém. Mas há mais para dizer além disto. queimados. Como descreveríamos este «cheirar com o nariz do espíri-
A pergunta «Como pode parecer a uma pessoa que ouve uma melodia to»? A linguagem vulgar não nos fornece meios para dizer que estou
quando não há melodia para ser ouvida?» t e m a f o r m a de uma pergunta a cheirar uma «semelhança» de u m casco queimado. Como já f o i dito,
de algibeira. Sugere que existe u m problema mecânico ou para-mecânico no mundo vulgar existem rostos e montanhas visíveis assim como
(como aqueles que se põern adequadamente acerca dos truques dos outros objectos também visíveis que são quadros ou fotografias de
prestidigitadores ou dos telefones automáticos) e que necessitamos de rostos e montanhas. E x i s t e m pessoas visíveis e efígies visíveis de pes-
que nos sejam descritos os trabalhos secretos que constituem o que uma soas. Tanto as árvores como os seus reflexos podem ser fotografados ou
pessoa faz quando imagina que escuta uma melodia. Mas para compre- reflectidos em espelhos. A comparação visual de coisas vistas com as
ender o que se significa quando se diz que alguém está a imaginar que semelhanças vistas dessas coisas é f a m i l i a r e fácil. Com sons não
ouve uma melodia, não é necessário fornecer informações acerca de estamos tão bem colocados, rnas há ruídos ouvidos, ecos de ruídos
quaisquer processos ulteriores que possam dar-se nessa a l t u r a . Já ouvidos, canções cantadas e gravações de canções, vozes e imitações
sabemos e soubemos desde a infância em que situações descrevemos delas. Assim, é fácil e tentador descrever as imagens visuais como se
pessoas a imaginar que vêem, ouvem ou fazem coisas. O problema, t a l fosse olhar para uma semelhança em vez de olhar para o o r i g i n a l
como existe, é i n t e r p r e t a r estas descrições sem cair na linguagem que e é aceitável descrever as imagens auditivas como se fosse ouvir uma
empregamos quando falamos de ver corridas de cavalos, o u v i r concertos espécie de eco ou gravação em vez de o u v i r a própria voz. Mas não
e cometer assassínios. É nesta linguagem que caímos no momento em possuímos tais analogias para o cheiro, o paladar ou o tacto. Assim,
que dizemos que alguém imaginar que vê u m dragão é ver u m dragão- quando digo que «cheiro» o casco queimado, não tenho possibilidade
-fantasma real ou que simular cometer u m assassínio é cometer u m de parafrasear a minha afirmação de uma f o r m a que em vez disso diga
assassínio-simulado real ou que parecer que se ouve u m a melodia é «Cheiro uma cópia de u m casco queimado». A linguagem dos originais
o u v i r uma melodia mental real. e cópias não se aplica aos cheiros.
253
252 A IMAGINAÇÃO
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

de imaginar não é t e r uma percepção de uma semelhança visto que não


Não obstante, posso certamente dizer que «cheiro» vividamente
é de modo algum ter uma percepção.
o casco queimado ou que o seu cheiro volta a m i m vividamente e o uso
Porque é então tentador e n a t u r a l descrever erradamente «ver
deste advérbio mostra só por si que sei que não estou a cheirar
coisas» como ver imagens de coisas? Não é porque «imagem» designe
mas apenas a «cheirar». Os cheiros não são vívidos, fiéis ou semelhantes
u m género do qual os instantâneos são uma espécie e as imagens
ao real, são apenas mais ou menos fortes. Só os «cheiros» podem ser
mentais outra, visto que «imagens mentais» não significa mais imagens
vívidos e correspondentemente não podem ser mais ou menos fortes,
do que «pessoa que faz o papel de assassino» significa assassino. Pelo
embora me possa parecer que cheiro u m cheiro mais ou menos forte.
contrário, falamos de «ver» como se fosse ver imagens, porque a expe-
Contudo, por muito vividamente que eu possa estar a «cheirar» a forja,
riência f a m i l i a r de ver instantâneos de pessoas e coisas tantas vezes nos
ou o cheiro a alfazema no meu quarto, qualquer que seja o cheiro que
induz a pensar que «vemos» essas coisas e pessoas. É para isso que
imagino de momento, não deixa em qualquer g r a u de se sentir. Não há
servem as fotografias. Quando uma semelhança visível de uma pessoa
competição entre u m cheiro e u m «cheiro», como pode haver uma com-
está perante m i m , parece-me por vezes que estou a ver a própria pessoa
petição entre o cheiro a cebolas e o cheiro da alfazema.
em frente de m i m , embora ela lá não esteja e talvez já tenha m o r r i d o há
Se uma pessoa que esteve recentemente numa casa a arder diz que m u i t o tempo. E u não guardaria a fotografia se ela não desempenhasse
ainda é capaz de «cheirar» o fumo, não pensa que a casa de que está a essa função. Igualmente quando oiço uma gravação da voz de u m
falar esteja ainda a arder. Por m u i t o vividamente que «cheire« o fumo, amigo, imagino que oiço cantar ou falar na sala onde estou, se bem que
sabe que não está a cheirar nada. Pelo menos compreende isto se ele esteja a muitos quilómetros de distância. O género é parecer que se
estiver na posse das suas faculdades, e se não o compreender dirá tem uma percepção e unia espécie muito f a m i l i a r deste género é parecer
não que o «cheiro» é vívido, mas erroneamente que o cheiro é forte. que se vê u m a coisa quando se olha para u m v u l g a r instantâneo dela.
Mas se fosse verdadeira a teoria de que «cheirar» fumo era realmente Parecer que se vê quando não se está perante uma semelhança física
cheirar uma semelhança de fumo, não haveria forma de distinguir é outra espécie. V e r imagens não é ter fotografias sombra perante
entre «cheirar» e cheirar, correspondente às formas familiares pelas órgãos sombra chamados «olhos do espírito», mas t e r fotografias de
quais distinguimos entre olhar para rostos e olhar para semelhanças papel perante os olhos da cara é u m estímulo f a m i l i a r para c r i a r
deles o u entre o u v i r vozes e o u v i r gravações de vozes. imagens.
Normalmente temos possibilidades oculares de d i s t i n g u i r entre U m quadro a óleo de u m amigo é descrito como vivo se me faz
coisas e instantâneos ou aparências delas. U m a fotografia é plana, t e m parecer que vejo esse amigo com grande clareza e pormenor quando
limites e talvez uma moldura. Pode-se andar com ela à volta e virá-la não estou efectivamente a vê-lo. U m simples desenho pode ser vivo sem
para cima e para baixo, amachucá-la e rasgá-la. Mesmo u m eco ou gra- ser em nada semelhante a u m quadro a óleo vivo da mesma pessoa,
vação de uma voz podem ser distinguidos, senão audivelmente, pelo porque para a imagem ser viva não é necessário que seja uma réplica
menos por certos critérios mecânicos da própria voz. Mas não se podem exacta dos contornos e cores do rosto do modelo. Assim, quando «vejo»
fazer tais discriminações entre o cheiro e uma cópia de u m cheiro, entre vividamente u m rosto, isto não implica que veja uma réplica exacta,
u m sabor e uma cópia de u m sabor, entre uma comichão e uma comichão visto que podia ver uma réplica exacta sem ser ajudado a « v e r » o rosto
simulada. N a verdade, não faz sentido aplicar palavras como «cópia», vividamente, e vice-versa. Mas achar uma f o t o g r a f i a de u m a pessoa
«semelhança» e «simulado» a cheiros, a sabores e a coisas que se viva ou «falante» implica ser ajudado a parecer que se vê a pessoa,
sentem. Consequentemente, não sentimos a tentação de dizer que uma visto que isto é o que significa «vivo» e «falante» neste caso.
pessoa que «cheira» a f o r j a está realmente a cheirar u m facsimile ou As pessoas sentiram-se inclinadas a descrever « v e r » como ver uma
uma semelhança dela. Parece-lhe cheirar ou imaginar que cheira alguma semelhança verdadeira mas fantástica porque queriam explicar vividez
coisa, mas não há forma de falar como se existisse uma réplica interna ou semelhança com o real em termos de semelhança, como se para eu
do cheiro ou u m facsimile do cheiro ou o eco dele. Neste caso é portanto «ver» vividamente Helvellyn fosse necessário que estivesse efectiva-
claro que «cheirar» implica não cheirar e consequentemente esse acto mente a ver algo de m u i t o semelhante a Helvellyn. Mas isto é errado.
254 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 255

Ver réplicas, embora exactas, não resulta necessariamente em «ver» uma espécie de observar uma mancha de cores, visto o conceito de
vividamente e f a l a r de uma semelhança física tem de ser feito, não sensação ser diferente do de observar, seguir-se-á, como pode ser
em termos de semelhança, mas em termos de vividez de «ver» estabelecido noutros campos, que c r i a r imagens não é apenas não ser
aquilo a que ela induz. uma espécie de observar qualquer coisa, mas também não ter uma
E m resumo, os objectos denominados imagens mentais não existem sensação de uma espécie especial. Parecer que se ouve u m ruído muito
porque, se existissem, vê-los não seria o mesmo que parecer que víamos forte não é estar surdo em qualquer grau, nem parecer que se vê uma
rostos ou montanhas. Representamos ou visualizamos rostos e monta- luz b r i l h a n t e é estar encandeado em qualquer g r a u . As ideias estão tão
nhas t a l como, embora mais raramente, «cheiramos» cascos queimados, longe de ser impressões de uma espécie especial que descrever alguma
mas i m a g i n a r u m rosto ou uma montanha não é t e r na sua frente uma coisa como uma ideia, neste sentido, é negar que se está a ter
f o t o g r a f i a do rosto ou da montanha, é algo que com a ajuda de uma uma impressão.
semelhança física diante de nós nos auxilia vulgarmente a fazê-lo,
embora possamos e muitas vezes o façamos sem a ajuda de qualquer (4) IMAGINAR

destes estímulos. Também sonhar não é estar presente a u m espectáculo


de cinema privado. Pelo contrário, assistir a u m espectáculo público de Provavelmente perguntar-se-á: «O que é então para uma pessoa
cinema é u m a forma de ser induzido a uma certa espécie de sonhos. imaginar que vê ou cheira uma coisa ? Como pode parecer-lhe que ouve
O espectador está a ver u m rolo de película diferentemente iluminada uma melodia que na realidade não ouve? E , em particular, como pode
mas está a « v e r » uma corrida pelas planícies. Inverter-se-ia a a f i r m a - uma pessoa deixar de ter conhecimento de que apenas lhe parece que
ção verdadeira dos factos se se dissesse que a pessoa que sonha olha ouve ou vê, t a l como acontece com os dipsomaníacos ? E m que aspectos
para uma pista diversamente iluminada de película «mental» porque específicos é «ver» tão semelhante a ver que a vítima muitas vezes não
não existe película mental e, se existisse, vê-la diversamente iluminada pode, mesmo com a melhor boa vontade, e no melhor espírito, dizer o
não seria sonhar que se estava a galopar pelas planícies. que está a fazer?» Se despojarmos estas perguntas de associações com
A tendência para descrever visualizar como ver semelhanças quaisquer perguntas de algibeira, podemos ver que são simplesmente
verdadeiras mas internas reforça e é reforçada pela Teoria dos Dados perguntas acerca do conceito de imaginar ou fazer acreditar, u m
dos Sentidos. Muitos defensores desta teoria, supondo erroneamente conceito de que até agora ainda não disse nada de positivo. E se não
que ao «ver» estou a ver u m instantâneo peculiar sem papel, embora disse nada sobre ele até agora, f o i porque me pareceu necessário que
seja u m instantâneo que, de u m modo estranho, não pode ser virado começássemos por nos vacinar contra a teoria, muitas vezes tacita-
ao contrário, pensam que a fortiori, ao ver propriamente, estou a ver mente aceite, de que imaginar deve ser descrito como u m acto de ver
uma extensão de cor peculiar não física. E, supondo também erronea- imagens de u m estado especial.
mente que ter uma sensação visual é divisar uma mancha lisa de cores Mas espero ter mostrado que o que as pessoas descrevem co-
situada n u m «espaço privado», acham mais fácil dizer que ao c r i a r mummente como «ter uma imagem mental de Helvellyn» ou «ter
imagens estou a simular uma mancha de cores mais fantástica, Helvellyn diante dos olhos do espírito» é efectivamente u m caso especial
pendurada na mesma galeria que a mancha de cores o r i g i n a l . T a l como de imaginar, designadamente imaginar que vemos Helvellyn diante de
no meu estúdio pode haver uma pessoa e uma sombra, u m r e t r a t o nós e que o u v i r uma melodia na cabeça é imaginar que a melodia está
e uma pessoa, também na minha galeria privada poderia haver dados a ser tocada aos ouvidos, talvez numa sala de concertos dentro deles.
dos sentidos e reproduções dos dados dos sentidos. As minhas objecções Se f u i bem sucedido, mostrei então também que a noção de que o
à interpretação de representar como se fosse ver fotografias não espírito é u m «lugar» onde são vistas as imagens mentais, ouvidas as
destroem a Teoria dos Dados dos Sentidos a respeito das sensações, reproduções de vezes e melodias, é também errada.
mas destroem, assim o espero, a teoria subordinada de que representar Há milhares de espécies divergentes de comportamento na atitude
é olhar para reproduções dos dados dos sentidos. E se estou certo descrita vulgar e correctamente como imaginativa. A testemunha falsa
quando digo que t e r uma sensação visual é erradamente descrito como no banco das testemunhas, o inventor que pensa numa nova máquina,
25G INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 257

o romancista a arquitectar o seu romance, a criança a brincar aos cuja ocorrência e qualidade é difícil de averiguar, especialmente nas
ursos, estão todos eles a exercer a sua imaginação. Mas há também crianças relativamente incapazes de se exprimirem. Vêmo-las e ouvimo-
o j u i z que escuta as mentiras da testemunha, o colega que dá a sua -las a brincar mas não as vemos nem ouvimos a « v e r » ou a «ouvir»
opinião sobre a nova invenção, o leitor de romances, a ama que coisas. Lemos o que Conan Doyle escreveu mas não temos uma visão
admoesta a criança para não e m i t i r ruídos sub-humanos a i m i t a r os do que ele v i u com os olhos do espírito. Assim, nesta teoria não podemos
ursos, o crítico de teatro e os frequentadores de teatro. Não dizemos dizer facilmente se as crianças, os actores ou os romancistas são ima-
que todos eles estão a exercer a sua imaginação, porque pensamos que, ginativos ou não, visto que a palavra «imaginação» começou a ser
por estarem empenhados numa variedade de operações diferentes, não empregada em teorias do conhecimento precisamente porque todos
há uma operação básica comum que todos eles estejam a executar, sabemos empregá-las nas descrições de todos os dias sobre crianças,
assim como não pensamos que o que t o r n a dois homens lavradores é actores e romancistas.
a mesma operação básica que ambos executam do mesmo modo. A s s i m Não há uma Faculdade de Imaginação especial que se ocupe u n i -
como l a v r a r é u m trabalho agrícola e pulverizar as árvores é o u t r o lateralmente de visões e actos de ouvir fantasiados. Pelo contrário,
trabalho agrícola, também inventar uma nova máquina é u m modo de «ver» coisas é u m exercício de imaginação, t a l como roncar como u m
ser imaginativo e brincar aos ursos é outro. Ninguém pensa que existe urso é outro. Cheirar coisas com o nariz do espírito é u m acto i n v u l g a r
uma operação agrícola básica por meio de cuja execução apenas u m de fantasia, simular uma doença é m u i t o comum, e assim sucessiva-
homem possa ser entitulado «lavrador», mas os conceitos expressos mente. Talvez o principal m o t i v o pelo qual muitos teóricos l i m i t a r a m
em teorias do conhecimento estão sujeitos a serem tratados menos os exercícios de imaginação à classe especial das percepções fantasiadas
generosamente. Supõe-se frequentemente que existe uma operação seja por terem suposto que, visto o espírito estar oficialmente t r i p a r t i d o
nuclear na qual consiste a própria imaginação, isto é, supõe-se que em três Estados de Cognição, Volição e Emoção e visto que a imagina-
o juiz ao seguir as mentiras da testemunha e a criança a brincar aos ção nasceu do p r i m e i r o , deve p o r t a n t o ser excluída dos outros. A s
ursos estão ambos a exercer a sua imaginação apenas se ambos estive- práticas cognitivas erradas são notoriamente devidas às travessuras
r e m a executar uma operação componente especificamente idêntica. da imaginação indisciplinada e alguns êxitos cognitivos são devidos às
Presume-se muitas vezes que esta suposta operação básica é a de ver suas actividades primárias. Assim, sendo u m Escudeiro da Razão (su-
coisas com os olhos do espírito, o u v i r coisas dentro da cabeça, e t c , e t c , j e i t o a e r r a r ) , não pode servir os outros senhores. Mas não necessitamos
isto é, algo pertencente a uma percepção fantasiada. Evidentemente de nos deter na discussão desta alegoria feudal. N a verdade, se nos
que não negamos que a criança está a fazer muitas outras coisas ao perguntarem se imaginar é uma actividade cognitiva ou não, a nossa
mesmo tempo. Ruge, anda às voltas no chão, range os dentes e finge própria tendência é para ignorar a pergunta. «Cognitivo» pertence
que dorme naquilo que pensa que é uma g r u t a . Mas de acordo com ao vocabulário das sebentas de exame.
aquele ponto de vista, só se ela v i r imagens com os olhos do seu
espírito das suas patas peludas, da sua caverna bloqueada pela neve, (5) SIMULAR
e t c , estará a imaginar qualquer coisa. Os ruídos que produz e as suas
palhaçadas podem ser uma ajuda à sua imaginação ou podem ser
Comecemos por considerar a noção de simular, uma noção que
efeitos especiais dela, mas não é por fazer estes ruídos ou executar
em parte é uma componente de certas noções como as de l u d i b r i a r ,
essas palhaçadas que exerce a sua imaginação, mas apenas por «ver»,
desempenhar u m papel, brincar aos ursos, simular doença e hipocondria.
«ouvir», «cheirar», «provar» e «sentir» coisas que não estão lá para
Notar-se-á que, em algumas variedade de fazer-acreditar, o simulador
delas ter percepções. E as coisas correspondentes serão verdadeiras
está a simular ou dissimular deliberadamente, ao passo que noutras
para o juiz atento, se este for céptico.
pode não estar completamente certo sobre a medida em que está a
Posta desta maneira simplista, a teoria é manifestamente absurda. simular ou a dissimular, se é que o está, e ainda noutras variedades
Muitas das coisas pelas quais descrevemos muitas vezes as crianças está completamente absorvido pela sua própria actuação. I s t o pode ser
como imaginativas são reguladas por u m número l i m i t a d o de operações, exemplificado em pequena escala pela criança que brinca aos ursos e
I. P . — 1 7
258 INTRODUÇÃO À P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 259

que sabe, enquanto está na sala de visitas bem iluminada, que está ingénuo é levado a efeito. Simular roncar como u m urso ou ficar inerte
apenas a fazer u m jogo divertido, mas que sente ansiedade quando é como u m cadáver é uma acção elaborada do roncar n a t u r a l do urso e
deixada n u m campo solitário e que não pode ser persuadida da sua da inércia n a t u r a l do cadáver.
segurança quando está mergulhada na escuridão de u m túnel. Fazer- A diferença é paralela à que existe entre c i t a r uma afirmação e
-acreditar é compatível com todos os graus de cepticismo e credulidade, fazê-la. Se cito o que o leitor a f i r m o u , o que digo é precisamente o que
facto este que é i m p o r t a n t e para o suposto problema de: «Como é que o leitor disse e posso dizê-lo exactamente no seu t o m de voz. Mas a
uma pessoa pode imaginar que vê uma coisa sem compreender que não descrição completa da minha acção não é de modo algum semelhante à
a está a ver?» Mas se fizermos as perguntas paralelas «Como é que uma da sua. A sua era, talvez, u m exercício de habilidade de u m orador, a
criança pode b r i n c a r aos ursos sem ter bem a certeza durante todo o minha é a de u m repórter ou imitador. O leitor estava a ser original,
tempo de que isso é apenas u m jogo?», «Como pode a pessoa que eu f u i u m eco. O leitor disse aquilo em que acreditava, ou disse aquilo
simula uma doença fantasiar que tem sintomas, sem estar perfeitamente em que posso acreditar ou não. E m resumo, as palavras que eu pronun-
confiante de que estes são apenas fantasias?», vemos que estas per- cio são pronunciadas, por assim dizer, como se fossem escritas entre
guntas e muitas outras semelhantes não são de modo algum verdadeiras aspas, as palavras que o leitor pronunciou não o são. O leitor falou em
perguntas de «como». O facto de as pessoas poderem fantasiar que oratio recta, eu posso ter a intenção de que o que digo seja tomado
vêem coisas, que são perseguidas por ursos ou que têm o apêndice como oratio obliqua. Do mesmo modo, enquanto o urso apenas ronca,
inflamado, sem compreenderem que isto é somente fantasia, é apenas o roncar da criança está, por assim dizer, entre aspas. A sua acção
uma parte do facto geral que não surpreende de que nem todas as directa é, diferentemente da dos ursos, de representação e isto implica
pessoas são, durante todo o tempo, em todas as idades e condições, indirectamente roncar. Aliás, a criança não está a fazer duas coisas ao
tão judiciosas ou críticas como seria para desejar. mesmo tempo, t a l como eu ao i m i t a r o leitor não estou a dizer duas
Descrever alguém a s i m u l a r é dizer que está a desempenhar u m coisas ao mesmo tempo. U m a acção simulada difere da acção n a t u r a l
papel e desempenhar u m papel é normalmente desempenhar o papel de que representa, não por ser u m complexo de acções, mas por ser uma
uma pessoa que não está a desempenhar u m papel, mas a fazer ou a ser acção com uma certa espécie de descrição complexa. U m a menção à
alguma coisa ingénua ou naturalmente. U m cadáver não se move e o acção n a t u r a l é u m ingrediente da descrição da acção simulada. Os
mesmo faz uma pessoa que simula estar m o r t a . Mas uma pessoa que ruídos emitidos pela criança podem ser tão semelhantes quanto se
simula ser u m cadáver está, diferentemente do cadáver, a t e n t a r quiser aos emitidos pelos ursos, t a l como os ruídos emitidos pelos meus
manter-se imóvel e, também diferentemente do cadáver, está imóvel lábios podem ser tão semelhantes quanto se quiser aos ruídos que o
pelo desejo de se parecer com u m cadáver. Está talvez deliberada, leitor faz ao pronunciar o seu discurso, mas o conceito de tais acções
hábil e convincentemente imóvel, ao passo que o cadáver está apenas simuladas é logicamente muito diferente do das acções naturais. N a
imóvel. Os cadáveres, para o serem, têm de estar mortos, mas os descrição dos seus autores usamos predicados completamente dife-
cadáveres simulados têm de estar vivos. N a verdade, não têm apenas rentes.
de estar vivos, mas também despertos, não distraídos e a aplicar o U m a assinatura falsificada é a mesma espécie de coisa que uma
seu espírito ao papel que estão a desempenhar.
assinatura verdadeira ou é uma coisa de espécie diferente? Se a f a l -
Falar acerca de uma pessoa que finge ser u m urso ou u m cadáver sificação for perfeita, então não se pode realmente d i s t i n g u i r u m cheque
implica falar indirectamente de como os ursos e cadáveres se comportam do outro e assim, neste sentido, são exactamente a mesma espécie de
ou se supõe que se comportam. E l a desempenha estes papéis roncando coisa. Mas falsificar uma assinatura é completamente diferente de
como roncam os ursos e mantendo-se inerte como os cadáveres. Não assinar. U m a das acções exige o que a outra não exige, o desejo e a
se pode saber desempenhar u m papel sem se saber o que é ser habilidade de produzir letras que não se possam d i s t i n g u i r da assinatura
ou fazer ingenuamente o que se está a f i n g i r , nem ninguém pode verdadeira. Neste sentido, são espécies de coisas completamente dife-
achar u m desempenho simulado convincente ou não convincente ou de- rentes. Todo o engenho do falsificador é exercido em t e n t a r fazer do
sempenhá-lo hábil ou desajeitadamente, sem saber como o desempenho seu cheque u m facsimile do cheque autêntico, cuja assinatura não
200 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 261

exigiu engenho. O que ele procura tem de ser descrito em termos de crição e o adjectivo ou advérbio lisonjeiro liga-se à actividade mencio-
semelhança entre escritas, t a l como o que a criança procura tem de ser nada na oração principal, embora só se execute u m conjunto de m o v i -
descrito em termos de semelhança entre os seus roncos e os roncos dos mentos. Igualmente, se cito uma afirmação, o leitor poderia classificar
ursos. A semelhança deliberada faz parte do conceito de copiar. A g r a n - correctamente o que digo, tanto de «exacto» como de «inexacto»,
de semelhança entre as cópias e os seus originais são o que torna as porque podia ser uma afirmação altamente inexacta da extensão da
actividades de copiar diferentes, em género, das actividades de Dívida Nacional citada com exactidão, ou vice-versa. De qualquer
executar as coisas que se copiam. modo expressei apenas uma afirmação.
Há muitas espécies diferentes de simulação, motivos diferentes Os actos de simular não são os únicos cujas descrições incorporam
pelos quais as pessoas s i m u l a m e critérios diferentes pelos quais as este dualismo entre o directo e o indirecto. Se obedeço a uma ordem faço
simulações são avaliadas como hábeis ou inábeis. A criança simula por aquilo que me dizem que faça e cumpro com a ordem. Mas embora
brincadeira, o hipócrita por interesse, o hipocondríaco por egotismo cumpra com a ordem ao fazer a coisa, estou a executar apenas uma
mórbido, o espião por vezes por patriotismo, o actor com propósitos acção. Aliás, a descrição do que eu faço é de t a l modo complexa que
artísticos e a professora de cozinha com o objectivo de demonstrar. muitas vezes seria correcto caracterizar a m i n h a atitude por dois
Consideremos o acto do pugilista que pratica com o instrutor. Fazem predicados semelhantes em conflito. E u faço o que me dizem pela força
gestos de luta a sério embora não estejam a lutar a sério; simulam ata- do hábito, se bem que o que me ordenam que faça seja algo que não
car, recuar, bater duro, se bem que não se vise nenhuma vitória nem se tenho o hábito de fazer; ou obedeço como u m bom soldado, se bem que
receie qualquer derrota. O aluno está a aprender golpes para jogar com o que me ordenam que faça seja algo que é u m sinal de ser mau soldado
eles, o i n s t r u t o r está a ensinar jogando com ele. Aliás, embora sejam fazê-lo. De igual modo, posso proceder sensatamente ao seguir o con-
apenas golpes simulados, não necessitamos de lhes a t r i b u i r duas activi- selho de fazer uma coisa insensata e posso encontrar dificilmente a
dades colaterais. Não necessitam de dar e receber socos, a r m a r ratoei- solução para fazer uma coisa fácil. No capítulo V I (secção 6) achámos
ras e evitá-las ou manejar os punhos e manejar proposições. Podem fa- conveniente fazer a distinção entre tarefas de ordem mais e menos
zer apenas u m conjunto de movimentos, porque estão a fazê-los de uma elevada e entre acções de ordem mais e menos elevada, significando
f o r m a hipotética e não categórica. A noção de f e r i r entra apenas i n d i - por «tarefa de ordem mais elevada» uma descrição na qual se incorpora
rectamente na descrição do que eles estão a t e n t a r fazer. Não estão a uma menção a o u t r a tarefa de descrição menos complexa. Compreender -
tentar f e r i r ou evitar f e r i r , mas apenas a p r a t i c a r processos pelos quais -se-á que o facto de os movimentos feitos na realização de uma tarefa
magoariam ou e v i t a r i a m magoar, se empenhados em lutas a sério. A serem exactamente semelhantes aos feitos na execução de outra é
coisa principal ao t r e i n a r é abster-se de dar socos fortes, quando se compatível com as descrições de tarefas que são, não só diferentes,
poderia fazê-lo, isto é, em situações nas quais alguém daria tais socos mas diferentes em tipo, pela f o r m a indicada.
se a luta fosse a sério. A l u t a simulada é, pura e simplesmente, uma
Voltemos aos actos de simular. O estado de espírito de uma pessoa
série de omissões calculadas de lutar.
que simula estar zangada é diferente do de uma pessoa que está zanga-
O ponto central exemplificado por estes casos é que uma actuação da, e diferente não só pelo facto de a p r i m e i r a não estar zangada. E l a
simulada pode ser unitária como uma acção natural, embora haja uma não está zangada, embora os seus actos sejam os mesmos que se
dualidade intrínseca na sua descrição. Só se faz uma coisa, mas dizer estivesse e esta simulação implica, de certo modo, o pensamento de
o que é feito requer uma frase que contenha, pelo menos, uma oração zanga. E l a deve, não só possuir, mas de certo modo usar, o conheci-
principal e uma oração subordinada. Reconhecer isto é ver porque é que mento do que é para alguém estar zangado. Modela intencionalmente
não há mais do que uma aparência verbal de contradição ao dizer de as suas acções sobre as da pessoa zangada. Mas quando dizemos que
u m actor que desempenha o papel de u m idiota que está a fazer de idio- colocar-se no comportamento de uma pessoa zangada implica o pen-
ta de uma forma altamente inteligente, ou quando se diz que u m pa- samento de zanga, corremos u m certo risco, ou seja, o risco de sugerir
lhaço é habilmente desajeitado e brilhantemente inepto. O adjectivo de- que simular estar zangado é u m processo em série que consiste numa
preciativo liga-se à atitude mencionada na oração subordinada da des- operação de meditar acerca da zanga, seguida de uma segunda operação
262 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA A IMAGINAÇÃO 263

de executar operações de quase-zanga. T a l sugestão seria errada. Se simular a adopção de esquemas ou teorias. As frases nas quais certas
os actos de fazer-acreditar são ou não precedidos ou intercalados por proposições causaram divertimento não são usadas ingenuamente,
actos de descrever ou planear, não é esta a f o r m a pela qual fazer-acre- estão a ser usadas simuladamente. Metaforicamente falando, estão
d i t a r implica o pensamento do que é simulado. O processo de t e n t a r entre aspas. A pessoa que as emprega está a produzi-las com a língua
comportar-se da f o r m a pela qual uma pessoa zangada se comportaria intelectual da sua boca. Pronuncia-as n u m estado de espírito hipotético
é, em si, em parte, o pensamento de como ela se comportaria. A repre- e não categórico. M u i t o semelhantemente, anuncia o facto de que está a
sentação muscular mais ou menos fiel do seu aborrecimento e da sua expressar as suas frases de u m modo elaborado e não de u m modo
atitude de bater com os pés no chão é a utilização activa do conheci- simples, usando sinais especiais tais como as palavras «se», «suponha-
mento de como ela própria se comportaria. A d m i t i m o s que uma pessoa mos», «admitindo», «digamos», etc. Pode falar em voz alta ou para si
sabe como é o temperamento de u m taberneiro se, embora incapaz de própria n u m t o m de voz amigável e não agressivo, mas pode ainda ser
fazer a si própria ou a nós sequer uma descrição verbal pouco convin- m a l compreendida e acusada de pensar a sério aquilo que diz a brincar
cente dele, pode no entanto desempenhar o papel da sua vida e, se o e então tem de explicar que não queria dizer aquilo que a f i r m o u , mas
fizer, não pode dizer que é incapaz de pensar como se comporta u m que apenas estava a considerar aquilo que t i n h a dito a si própria se o
taberneiro quando está aborrecido. Imitá-lo é pensar como ele se com- tivesse feito. T i n h a estado a tentar ter o pensamento, talvez para
porta. Se perguntarmos a uma pessoa como pensa que o taberneiro a d q u i r i r prática dele. O mesmo é dizer que supor é uma operação mais
actuaria, não rejeitaremos uma resposta dada por representação em elaborada do que pensar ingenuamente. Temos de aprender a dar
vez de uma resposta em prosa. N a verdade, t a l quanto o conceito de veredictos antes de aprender a t r a b a l h a r com juizos em suspenso.
simular estar zangado requer para sua elucidação uma história casual Vale a pena focar este ponto, em parte pela sua ligação íntima
acerca de operações de planear operações em série de actuar como se com o conceito de imaginar e em parte porque os lógicos e epistemolo-
estivesse zangado, o mesmo acontece com o inverso. Para explicar o gistas supõem por vezes o que eu próprio supus durante m u i t o tempo,
sentido no qual planear uma linha de conduta leva ao seguimento que considerar uma proposição é uma acção mais elementar ou simples
dessa linha de conduta, é necessário m o s t r a r que executar uma tarefa do que a f i r m a r que uma. coisa é, e, por consequência, que aprender, por
planeada é fazer, não duas coisas, mas uma só. Mas a coisa feita é exemplo, a usar «portanto» exige que se tenha aprendido antes a
u m acto de ordem mais elevada, visto que a sua descrição tem uma usar «se». Isto é u m erro. O conceito de fazer-acreditar é de ordem mais
complexidade lógica como a que caracteriza as descrições de simular elevada do que o de acreditar.
e obedecer. Fazer o que se planeou fazer e roncar como u m urso são
duas ocupações relativamente elaboradas. A o descrevê-las, temos de (6) SIMULAR, FANTASIAR E IMAGINAR

mencionar indirectamente factos cuja descrição não implica menções


indirectas correspondentes. Do mesmo tipo são os actos de arrepen- Não há m u i t a diferença entre uma criança a brincar aos piratas
dimento do que se fez, de manter uma resolução, de zombar da acção e outra a fantasiar que é um pirata. Tanto quanto essa diferença existe,
de outrem e de cumprir com as regras. E m todos estes casos, assim parece ser a de que usamos palavras como «fingir» e «desempenhar o
como em muitos outros, a acção de ordem mais elevada implica o papel de» quando pensamos em espectadores que acham a actuação mais
pensamento de actos de ordem menos elevada e a frase «implica o ou menos convincente, ao passo que usamos palavras como «fantasiar»
pensamento de» não implica a ocorrência colateral de outro e «imaginar» quando estamos a pensar no próprio actor meio convencido
acto cognitivo. e usamos palavras como «brincar» e «fingir» para actuações delibera-
Vale a pena mencionar nesta a l t u r a uma variedade de simulação. das, combinadas e ensaiadas, ao passo que temos mais propensão para
U m a pessoa empenhada numa tarefa de teorizar ou planear pode achar usar palavras como «fantasiar» e «imaginar» para as actividades de
útil ou divertido ter pensamentos que não são ou não são ainda aqueles fazer-acreditar nas quais as pessoas caem casual e mesmo involuntaria-
que estava ingenuamente disposta a pensar. Presumir, supor, diver- mente. Por baixo destas duas diferenças existe talvez uma diferença
tir-se, brincar com ideias e considerar sugestões são tudo formas de mais radical, porque aplicamos as expressões «fingir» e «desempenhar
264 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 265

o papel» quando é dada uma representação manifesta e muscular de simples sensações auditivas, é antes comparável ao processo de seguir
qualquer facto ou condição, ao passo que temos tendência, com algumas uma melodia f a m i l i a r e seguir uma melodia ouvida não é uma função
excepções, para reservar «imaginar» e «fantasiar» para certas coisas da sensibilidade.
que as pessoas fazem inaudível e invisivelmente, por estarem «na sua De i g u a l modo, se espreito por u m buraco de uma cerca n u m dia
cabeça». de nevoeiro, posso não ser capaz de identificar o que vejo como u m
É a este tipo especial de fazer-acreditar que nos referimos aqui curso de água correndo n u m vale, mas seria absurdo alguém dizer
principalmente, ou seja, àquilo a que chamamos «imaginar», «Vejo vividamente alguma coisa com os olhos do espírito, mas não
«visualizar», «ver com os olhos do espírito» e «passar pela cabeça posso concluir sequer que espécie de coisa é». N a verdade, posso ver
de alguém». Mesmo as pessoas que possam a d m i t i r que t r e i n a r boxe u m rosto com os olhos do meu espírito e não ser capaz de a t r i b u i r u m
consiste em fazer alguns dos movimentos de l u t a de u m modo hipo- nome ao seu possuidor, t a l como posso ter uma melodia na m i n h a
tético, não admitirão prontamente que se possa dizer o mesmo de cabeça cujo nome esqueci. Mas sei como a melodia continua e sei que
ver H e l v e l l y n com os olhos do espírito. Que movimentos se fazem neste espécie de rosto estou a visualizar. Ver u m rosto com os olhos do meu
caso de l u t a r de uma maneira hipotética? Mesmo ao descrever como o espírito é uma das coisas que o conhecimento que tenho de rostos
dipsomaníaco « v ê » serpentes, usamos aspas, t a l como fazemos ao des- me habilita a fazer. Descrevê-lo por palavras é outra coisa e é uma
crever como a criança «esfola» a sua ama ou como o pugilista capacidade r a r a . Reconhecê-lo à vista em carne e osso é a mais comum
«ataca» o seu companheiro de treino. Alegar-se-á que a força destas das coisas.
aspas não é a mesma em todos os casos. Visualizar não é ver engana- Vimos no capítulo a n t e r i o r que ter uma percepção implica t a n t o
doramente, do mesmo modo que t r e i n a r boxe não é l u t a r enganado- ter sensações como outra coisa que pode ser chamada, n u m sentido
ramente. deformado, «pensar». Podemos dizer agora que visualizar, i m a g i n a r
Espero que nos tenhamos libertado da ideia de que visualizar ou fantasiar que se vê ou ouve implica também pensar, nesse sentido
Helvellyn é ver uma imagem de Helvellyn ou que ter o «Lillibullero» deformado. Na verdade, isto devia ser óbvio, se considerássemos que
a tocar na cabeça é o u v i r uma reprodução privada ou u m eco interno o acto de visualizar alguma coisa deve ser caracterizado como mais ou
dessa melodia. Ê necessário libertarmo-nos agora de uma superstição menos vívido, fiel e exacto, adjectivos que não qualificam apenas a
mais subtil. Os epistemologistas encorajaram-nos durante m u i t o tempo posse mas também o uso do conhecimento de como o objecto visualizado
a supor que uma imagem mental ou visual tem uma relação com uma parece ou pareceria realmente. Seria absurdo eu dizer que o cheiro de
sensação visual, t a l como u m eco está para u m ruído, uma dor para u m carvão a arder me volta vividamente ao espírito, mas que não reconhe-
soco ou o reflexo n u m espelho para o rosto reflectido. Para t o r n a r este ceria o cheiro se o carvão estivesse fumegando na m i n h a presença.
ponto mais específico, supôs-se que o que acontece quando «vejo», Portanto, imaginar não é uma função de pura sensibilidade e uma
«oiço» ou «cheiro», corresponde ao elemento de percepção que é pura- c r i a t u r a que tivesse sensações mas que não pudesse aprender não
mente sensorial e não ao elemento que constitui o acto de reconhecer poderia « v e r » ou visualizar coisas, t a l como não poderia soletrar.
ou chegar a uma conclusão, isto é, que imaginar é uma componente U m a pessoa com uma melodia dentro da cabeça está a usar
próxima da sensibilidade e não uma função da inteligência, visto que o seu conhecimento de como ela continua e está de certo modo a
consiste em ter, não uma sensação em si, mas uma sensação sombra. imaginar o que estaria a o u v i r se estivesse a o u v i r a melodia a ser
Mas esta opinião é completamente falsa. Ao passo que uma melodia tocada. U m pouco como u m pugilista, quando está a t r e i n a r , está a
desconhecida pode ser tocada aos ouvidos de uma pessoa e assim ela atacar e a defender-se de uma maneira hipotética, assim também a
ouve a melodia sem saber o seu seguimento, não podemos dizer de uma pessoa com uma música na cabeça pode ser descrita como
pessoa em cuja cabeça decorre uma melodia que não sabe como ela > estando a seguir essa melodia de uma maneira hipotética. Mais, t a l
continua. Ter uma melodia a tocar na cabeça é uma f o r m a f a m i l i a r como o actor não está na realidade a assassinar ninguém, também a
na qual o conhecimento de como ela continua é utilizado. Assim, ter uma pessoa que está a visualizar Helvellyn não está realmente a ver
melodia a tocar na cabeça de uma pessoa não é compatível com ter Helvellyn. N a verdade, como sabemos, pode ter os olhos fechados
266 INTRODUÇÃO À P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 267

enquanto visualiza a montanha. Visualizar Helvellyn, longe de ser não só não dizemos que vê ou ouve o seu vizinho a ouvir a música como
idêntico a ter uma sensação visual, não é compatível com ter t a l sensa- o vê ou ouve a acompanhá-la, mas também não dizemos que deixa de
ção nem nada idêntico a ela. Não há nada idêntico a sensações. I m a g i - testemunhar que o seu vizinho está a o u v i r a música.
nar, neste sentido, como Helvellyn pareceria, é fazer algo que tem a «Secretamente» e «abertamente» não se aplicam a «ouvir» como
mesma relação com ver H e l v e l l y n que as actuações elaboradas têm se podem aplicar a «praguejar» ou a «conspirar». A fortiori, enquanto
com as acções simples, cuja menção está indirectamente contida na o seu vizinho no comboio pode descobrir que uma pessoa está a bater
descrição de acções de ordem mais elevada. o compasso de uma melodia que está a ser tocada na sua cabeça, não
Mas permanece ou parece permanecer uma diferença crucial que diz que detectou ou deixou de detectar a «audição» da melodia
pode ser exemplificada deste modo: u m m a r i n h e i r o a quem peçam para imaginada.
demonstrar como se dá u m certo nó, descobre que não t e m corda com Além disso, como vimos no capítulo anterior, seguir uma melodia
que fazer a demonstração. N o entanto, quase que o faz apenas por conhecida envolve não só o u v i r as notas mas m u i t o mais do que isso.
meio de fazer os movimentos de dar nós com uma corda invisível. Os Implica, por assim dizer, ter uma cavidade aberta para receber cada
espectadores vêem como ele daria o nó vendo como manobra com as nota à medida que ela chega. Cada nota chega como e quando era
mãos e com os dedos, sem qualquer corda neles. Embora esteja, por esperada, o qus é ouvido é o que se esperava escutar. Este acto de
assim dizer, a dar nós hipoteticamente a uma corda, está na realidade escutar as notas esperadas implica ter aprendido e não ter esquecido a
a mover as mãos e os dedos. Mas uma pessoa a visualizar Helvellyn melodia e é portanto u m produto do treino, porque não é uma simples
com os olhos fechados, enquanto está a desfrutar, por assim dizer, função de sensibilidade auditiva. U m homem u m pouco surdo não pode
apenas uma vista hipotética da montanha, não parece estar realmente seguir tão bem uma melodia como outro que ouve bem.
a fazer nada. Talvez as suas sensações visuais não existentes corres- Uma pessoa que escuta uma melodia relativamente f a m i l i a r pode
pondam ao pedaço de corda não existente do marinheiro, mas o que é em certas ocasiões descrever-se a si própria como tendo apanhado a
que corresponde aos movimentos das mãos e dos dedos? O marinheiro melodia erradamente, significando com isto que, embora não estivesse
mostra aos espectadores como o nó seria dado, mas a pessoa que a tocar ou a t r a u t e a r a melodia, mas apenas a escutá-la, escutou aqui e
visualiza Helvellyn não mostra aos seus companheiros os seus contornos ali notas diferentes daquelas que esperava ouvir e foi apanhada de
ou o seu colorido. E será que os mostra mesmo a si própria? surpresa ao ouvir u m compasso particular na a l t u r a em que f o i tocado,
Esta diferença entre as duas variedades de fazer-acreditar não é, embora reconhecesse que f o i engano seu ficar surpreendida. Deve
no entanto, mais do que uma consequência da diferença entre ter a notar-se que o seu erro acerca do seguimento da melodia não necessita
percepção de alguma coisa e ocasionar alguma coisa. Esta diferença de ter sido, e ordinariamente não seria, formulado numa frase falsa,
não é uma diferença entre ocasionar uma coisa intimamente e ocasionar pública ou privada. Tudo o que «fez» f o i esperar escutar o que não foi
uma coisa manifestamente, porque ter uma percepção não é ocasionar tocado em vez do que na realidade foi tocado e este acto de escutar
coisa nenhuma. É obter alguma coisa ou por vezes guardar alguma notas não é uma acção feita ou uma série de acções feitas.
coisa, mas não é efectivar nada. Ver e o u v i r não são factos testemunhá- Este ponto importante leva-nos ao caso de uma pessoa a seguir
veis ou não testemunháveis, porque não são factos. Não faz sentido uma melodia imaginada. Esperar que uma melodia enverede por um
dizer «Eu vi-o a ver o pôr do Sol» ou «Eu deixei de olhar para m i m a caminho, quando na realidade envereda por outro, é já supor, fantasiar
o u v i r a música». E se não faz sentido eu falar de presenciar ou não ou imaginar. Quando o que é ouvido não é o que se esperava, o que era
presenciar algo que se ouve ou vê, a fortiori não faz sentido falar de esperado pode ser descrito apenas como notas que poderiam ter sido
m i m a presenciar ou a não presenciar algo que se vê ou ouve fantasia- ouvidas e o estado de espírito em que se esperava ouvi-las era no
damente. Não se deu qualquer acto de ver ou ouvir. entanto o de uma expectativa errónea. O ouvinte fica desapontado ou
N u m a sala de concertos uma pessoa pode talvez ver o seu vizinho desconcertado pelo que efectivamente ouve. U m a pessoa que segue uma
a bater o compasso da música ou mesmo ouvi-lo a assobiar ou t r a u t e a r melodia que se desenrola inteiramente na sua cabeça está n u m caso
baixinho para si próprio a melodia que a orquestra está a tocar, mas parcialmente semelhante. E l a também espera escutar algo que não
268 A IMAGINAÇÃO 269
INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

acontece, embora saiba bem, durante todo o tempo, que não a ouvirá. É por isso que tais operações são impenetràvelmente secretas, não por
Pode também obter uma melodia errada e até compreender ou deixar de as palavras ou notas serem produzidas numa sala hermética, mas
compreender que o faz, u m facto que em si próprio mostra que imaginar porque as operações consistem em abstenções de as produzir e também
não é simplesmente t e r sensações ou ecos de sensações, visto que não porque aprender a fantasiar que se está a falar ou a cantarolar vem
poderia ser caracterizado como a aceitação da versão de uma melodia, mais tarde do que aprender a falar ou a cantarolar. O monólogo silen-
quer errada quer correcta. cioso é u m a cadeia cheia de actos de não dizer. Abster-se de dizer coisas
Ter u m a melodia a tocar na cabeça é como seguir uma melodia implica evidentemente saber o que se t e r i a d i t o e como se t e r i a dito.
ouvida e é na verdade uma espécie de segunda audição dela. Mas o que Sem dúvida, algumas pessoas em certas ocasiões em que i m a g i n a m
t o r n a a operação i m a g i n a t i v a semelhante à outra não é, como muitas melodias representam-se, não simplesmente a escutar passivamente,
vezes se supõe, que ela implica o u v i r fantasmas de notas semelhantes mas também a produzir activamente as notas, t a l como o mais i m a g i -
em tudo, excepto na intensidade do som das notas ouvidas, à melodia nado discurso não contém apenas actos imaginados de falar. M u i t o
real, mas o facto de que ambas são utilizações do conhecimento dessa provavelmente, também as pessoas que se i m a g i n a m a produzir ruídos
melodia. Este conhecimento é exercido em reconhecer e seguir a melodia têm tendência para activar ligeiramente os músculos que a c t i v a r i a m
quando efectivamente ouvida; é exercido em trauteá-la ou tocá-la, em completamente se estivessem a cantar ou a falar, visto que a abstenção
notar os erros ou as más execuções e é também exercido por uma pessoa completa é mais difícil do que a abstenção parcial. Mas isto são matérias
se imaginar a trauteá-la, a tocá-la ou apenas a escutá-la. Saber uma de facto que não nos dizem respeito. O nosso objectivo é descobrir o que
melodia é precisamente ser capaz de fazer algumas coisas tais como significa dizer, por exemplo, que alguém «ouve» u m a coisa que não
reconhecê-la e segui-la, reproduzi-la, detectar erros na maneira como é está a ouvir.
tocada e ser capaz de a reproduzir dentro da cabeça. Não admitiríamos A aplicação desta descrição a imagens visuais e outras não é
que uma pessoa t i n h a sido incapaz de pensar como era u m a melodia, se difícil. V e r Helvellyn com os olhos do espírito não implica o mesmo
ela a tivesse assobiado correctamente ou reproduzido na sua cabeça. que está implícito em ver instantâneos de H e l v e l l y n ou t e r sensações
Fazer tais coisas é pensar como é a melodia. visuais dela. I m p l i c a o pensamento de t e r uma visão de H e l v e l l y n e é
Mas o exercício puramente i m a g i n a t i v o é mais elaborado do que portanto uma operação mais elaborada do que a de t e r u m a visão de
o de seguir a melodia quando ouvida ou do que trauteá-la, visto que Helvellyn. fi u m a utilização entre outras do conhecimento de como
implica o pensamento de seguir ou reproduzir a melodia, do mesmo Helvellyn pareceria ou, n u m sentido do verbo, é pensar como ela parece-
modo que t r e i n a r boxe implica o pensamento de l u t a r a sério ou do r i a . A s expectativas que são preenchidas no reconhecimento à v i s t a de
mesmo modo que expressar qualquer coisa pela segunda vez implica Helvellyn não são na verdade preenchidas ao imaginá-la, mas o acto de
o pensamento da p r i m e i r a vez em que f o i expressa. Alguém fantasiar a i m a g i n a r é algo como uma repetição de elas serem preenchidas. Longe
que está a escutar uma melodia conhecida implica «esperar escutar» do imaginar implicar t e r sensações fantasiadas ou aspectos de sensa-
as notas que deveriam ser ouvidas quando a melodia é realmente bem ções, implica precisamente a ausência das sensações que u m a pessoa
executada. É esperar escutar essas notas de u m modo hipotético. De deveria t e r se estivesse a ver a montanha.
modo semelhante, alguém fantasiar que está a t r a u t e a r uma melodia É certo que nem todos os actos de i m a g i n a r são visualizações de
conhecida implica «estar pronto» para as notas que deveriam ser faces e montanhas reais ou «audições» de melodias familiares e vozes
trauteadas, quando a melodia é realmente trauteada. Ê estar pronto conhecidas. Podemos fantasiar-nos a nós próprios a olhar para mon-
para essas notas de u m modo hipotético. Não é trautear, m u i t o p a c i f i - tanhas imaginárias. Os compositores podem provavelmente imaginar-
camente, mas antes é não fazer deliberadamente esses actos de t r a u t e a r -se a escutar melodias que nunca f o r a m tocadas. De acordo com isto,
que deveriam ser feitos se uma pessoa não estivesse a t e n t a r manter-se pode supor-se que em tais casos não se põe a questão de a cena i m a g i -
quieta. Poderíamos dizer que alguém a imaginar-se a f a l a r ou a t r a u t e a r nada ser correctamente visualizada ou a melodia que está ainda em
é uma série de abstenções de reproduzir os ruídos que seriam as palavras composição ser ouvida diferentemente do que é na realidade, t a l como
ou notas produzidas se estivesse a f a l a r ou a cantarolar em voz alta. Andersen não poderia ser acusado de descrever erradamente os caracte-
270 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 271

res das suas personagens ou elogiado pela fidelidade factual das suas Vimos que as acções simuladas pressupõem acções ingénuas no
narrativas. sentido de que fazer as primeiras implica, n u m sentido especial, o
Consideremos os casos paralelos de s i m u l a r e c i t a r . U m actor pensamento das últimas. U m a pessoa que não aprendeu como os ursos
representa u m dia o papel de u m francês. N o dia seguinte, tem de de- roncam ou como os assassinos cometem crimes não poderia b r i n c a r
sempenhar o papel de u m visitante de Marte. Sabemos como a p r i m e i r a aos ursos ou desempenhar o papel de assassino, nem poderia c r i t i c a r
representação podia ser convincente ou não, mas como poderíamos esses actos. Do mesmo modo, uma pessoa que não tivesse aprendido
sabê-lo relativamente à última ? E u poderia começar por c i t a r o que ele o aspecto das coisas azuis ou como o carteiro toca, não poderia ver
disse e continuar dando expressão ao que devia ou poderia ter dito. coisas azuis com os olhos do espírito ou ouvir o carteiro a tocar, nem
Sabemos o que é uma citação exacta ou inexacta, mas uma pretensa poderia reconhecer coisas azuis ou o toque do carteiro. Aprendemos
citação não pode ser exacta ou inexacta, pode ter apenas u m sentido como as coisas parecem e soam, principal e originalmente por vê-las
remoto, carácter ou f a l t a de carácter por ser ou deixar de ser a espécie e ouvi-las. I m a g i n a r , sendo uma entre as muitas formas de u t i l i z a r esse
de coisa que deveria ou poderia ter sido dita. Não obstante, o actor conhecimento, requer que o conhecimento p r i m i t i v o tenha sido a d q u i r i -
pretende fazer uma representação convincente de u m homem de Marte, do e não perdido. Não necessitamos já de uma teoria para-mecânica
como eu pretendo que estou a c i t a r todas as suas palavras. É precisa- de vestígios para descrever a nossa capacidade l i m i t a d a de ver coisas
com os olhos do espírito, como necessitamos para descrever a nossa
mente u m acto de representação dupla. U m rapaz a i m i t a r u m pugilista
capacidade limitada para t r a d u z i r francês para inglês. Tudo isto é
a t r e i n a r está n u m caso semelhante, porque não está a l u t a r nem a
necessário para ver que aprender lições de percepção implica alguma
i m i t a r a luta, está a fazer alguns dos movimentos que f a r i a uma pessoa
percepção e que aplicar essas lições implica tê-las aprendido e que
que imitasse uma luta. Está a simular-simular l u t a r . T a l como os pre-
imaginar é u m processo de aplicar essas lições. As pessoas habituadas
dicados por meio dos quais comentamos uma luta não se aplicariam a
à teoria dos vestígios deviam t e n t a r ajustar as suas teorias ao caso
treinos, assim também os predicados pelos quais comentamos u m treino
de uma melodia a ser tocada na cabeça. Será este u m vestígio revivido
não se aplicam à imitação de treinar. Correspondentemente, não só os
de uma sensação auditiva ou uma série de vestígios revividos de uma
predicados pelos quais comentamos a nossa visão de Helvellyn não se
série de sensações auditivas?
aplicam à f o r m a pela qual imaginamos Helvellyn, como também os
predicados por meio dos quais comentamos as nossas visualizações de
(7) MEMORIA
Helvellyn não se aplicam às nossas visualizações de A t l a n t i s ou de
Jack Beanstalk. Não obstante pretendemos que é assim que A t l a n t i s ou
Jack Beanstalk t e r i a m parecido. Estamos a imaginar duplamente. Ê conveniente acrescentar a esta discussão sobre a imaginação
Estamos agora em posição de localizar e c o r r i g i r u m erro cometido uma breve dissertação sobre as recordações. Devemos começar por
por Hume. Supondo, erradamente, que « v e r » ou «ouvir» é ter uma notar dois sentidos bastante diferentes nos quais o verbo «lembrar» é
sensação-sombra (que implica o outro erro de supor que poderiam comummente usado.
e x i s t i r sensações-sombra), ele expõe a teoria causal de que não se pode a) De longe o mais i m p o r t a n t e e o menos discutido uso do verbo
t e r uma «ideia» particular sem previamente ter tido uma sensação cor- é aquele em que lembrar alguma coisa significa ter aprendido algo e
respondente, t a l como ter uma ferida em f o r m a de cunha implica ter não o ter esquecido. Este é o sentido em que falamos de nos lembrar-
sido ferido por u m objecto em f o r m a de cunha. As cores que vejo com mos do alfabeto grego, do caminho para a praia, da demonstração de
os olhos do espírito são (parece que f o i o que Hume pensou) vestígios u m teorema, t a l como de andar de bicicleta ou de que a próxima reunião
de certo modo deixados pelas cores vistas previamente com os olhos da Assembleia será na última semana de Julho. Dizer que uma pessoa
abertos. A única coisa que é verdadeira nisto é que o que vejo com os não esqueceu uma coisa não é dizer que ela está a fazer ou a sofrer
olhos do meu espírito e o que oiço «na minha cabeça» está ligado em qualquer coisa, ou mesmo que faz ou sofre regular ou ocasionalmente
certos aspectos ao que v i e o u v i antes. Mas a natureza desta ligação qualquer coisa. É dizer que pode fazer certas coisas, tais como dizer o
não é nada daquilo que Hume expôs. alfabeto grego, conduzir u m estranho à praia e c o r r i g i r alguém que diz
272 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 273

que a próxima reunião da Assembleia terá lugar na segunda semana por vezes como se a memória fosse uma dessas «fontes» e como se
de Julho. lembrar fosse u m modo de chegar a saber coisas. A memória é, de
O que se diz, neste caso, que é lembrado é uma lição aprendida e acordo com esta teoria, disposta paralelamente à percepção e à
o que é aprendido e não esquecido não necessita de ter qualquer relação inferência, como uma faculdade ou poder cognitivos, ou então lembrar
com o passado, embora a sua aprendizagem preceda evidentemente a é comparado a perceber e inferir, como u m acto ou processo cognitivo.
condição de não a ter esquecido. «Lembrar-se, neste sentido, é muitas Isto é u m erro. Se se perguntar a uma testemunha como se sabe
vezes, embora nem sempre, uma paráfrase admissível do verbo «saber». que uma determinada coisa aconteceu, ela pode responder que a presen-
(b) Bastante diferente deste é o uso do verbo «lembrar» no qual ciou, que lhe f o i d i t a ou que a i n f e r i u do que presenciou ou do que lhe
se diz que uma pessoa se lembrou ou recordou de uma coisa n u m mo- f o i dito. Poderia não responder que descobriu o que aconteceu, tanto
mento particular, ou se diz que está agora a lembrar-se, a rever ou a por não esquecer o que descobriu com por se lembrar de o ter desco-
debruçar-se sobre u m episódio do seu próprio passado. Neste sentido, berto. A reminiscência e o não esquecimento não são nem «fontes» de
lembrar é uma ocorrência. Ê algo que uma pessoa pode tentar fazer conhecimento nem, se é que isto é diferente, maneiras de conseguir
com êxito ou em vão. Ocupa a sua atenção durante u m certo tempo e saber. O primeiro implica ter aprendido e não ter esquecido, o último
isto pode ser feito com prazer ou tristeza, com facilidade ou com é ter aprendido e não ter esquecido. N e n h u m deles é uma espécie de
esforço. O advogado faz pressão sobre a testemunha para se lembrar aprendizagem, uma descoberta ou o estabelecimento de qualquer coisa.
de coisas e o professor treina os alunos para não esquecerem coisas. A i n d a menos lembrar o que aconteceu é usar uma certa evidência pela
L e m b r a r tem certas características em comum com imaginar. Só qual são feitas inferências correctas ou prováveis do que aconteceu,
recordo o que v i , ouvi, fiz ou senti t a l como o que imagino é o meu salvo no sentido em que o júri pode i n f e r i r do que a testemunha n a r r a .
próprio ver, ouvir, fazer ou n o t a r coisas, e lembro, t a l como imagino, A própria testemunha não argumenta «Eu lembro-me de que a colisão
com relativa nitidez, com relativa facilidade e com relativa ligação. se deu imediatamente depois do trovão, portanto provavelmente ela
Além disso, t a l como por vezes imagino coisas deliberadamente e outras deu-se imediatamente depois do trovão». Não há t a l inferência e,
vezes as imagino involuntariamente, também por vezes lembro coisas mesmo que houvesse, a boa testemunha é a que se lembra bem e não a
deliberadamente e outras vezes involuntariamente. que infere bem.
Há uma i m p o r t a n t e relação entre a noção de não esquecer e a É certo que a testemunha pode ser forçada a a d m i t i r , mesmo com
noção de recordar. Dizer que uma pessoa está efectivamente a lembrar surpresa sua, que pode ter posto a sua imaginação a t r a b a l h a r , visto
uma coisa, ou que a pode recordar ou estar lembrada dela, implica que que por uma razão ou por outra não se podia ter lembrado do que
não a esqueceu, ao passo que dizer que não esqueceu uma coisa não a f i r m a lembrar-se. N o u t r a s circunstâncias, poderia dizer que ela pró-
implica que sempre a lembre ou possa lembrar. Haveria uma contradi- pria tinha dúvidas sobre se estará a lembrar ou a imaginar certas
ção em dizer que posso recordar ou que recordo os incidentes que coisas. Mas não se segue do facto de as reminiscências alegadas poderem
presenciei n u m pique-nique, embora já não saiba o que se passou nele. ser fabricadas que as reminiscências verdadeiras sejam descobertas ou
Não há contradição em dizer que sei quando nasci ou que o meu apên- investigações feitas com êxito. U m a pessoa a quem pedem que diga o
dice foi extraído, embora não possa lembrar esses episódios. Seria que sabe sobre a V i a Láctea ou que desenhe u m mapa dos rios e linhas
absurdo dizer que lembro ou posso lembrar Napoleão a perder a batalha de caminho de ferro de Berkshire, pode dizer e desenhar coisas que não
de Waterloo ou como t r a d u z i r inglês para grego, embora não tenha sabe que factos representam e pode ficar surpreendida ao descobrir que
esquecido estas coisas, visto que não são as espécies de coisas que procedeu assim ou que não está certa de não ter procedido desse modo.
podem ser lembradas, no sentido do verbo no qual aquilo de que me Mas ninguém pensa que dizer e desenhar são fontes de conhecimento,
lembro podem ser coisas que presenciei, fiz ou experimentei. formas de descobrir coisas ou parcelas de evidência através das quais
Os teóricos falam por vezes de conhecimento-memória, memória- podem ser feitas descobertas por meio de inferência. Dizer e desenhar
-crença e de evidência da memória e, quando discutem as «fontes» de coisas são, no máximo, modos de t r a n s m i t i r lições já aprendidas. A s s i m
conhecimento e os modos pelos quais chegamos a saber coisas, falam lembrar é u m pormenor de qualquer coisa já aprendida, é passar por

I. P. — 1 8
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A A IMAGINAÇÃO 275

uma coisa e não conseguir uma coisa. È como recontar e não como episódios em que estiveram presentes. São então tentadas a supor, visto
procurar. U m a pessoa pode lembrar u m episódio p a r t i c u l a r v i n t e vezes que podem descrever tais episódios passados quase tão bem como po-
n u m dia, mas ninguém pode dizer que ela descobriu v i n t e vezes o que deriam ter feito durante a sua ocorrência, que podem confrontar as
aconteceu. A s últimas dezanove evocações não f o r a m descobertas, nem suas n a r r a t i v a s com quaisquer réplicas ou evocações presentes da cena
a primeira o foi. desaparecida. Se a descrição de u m rosto é quase tão boa na sua
As contas dadas das reminiscências dão a impressão de que, quando ausência como na sua presença, isto deve ser devido a algo como uma
uma pessoa lembra u m episódio pertencente à sua própria história fotografia desse rosto. Mas isto é uma hipótese causal g r a t u i t a . A
passada, os pormenores devem regressar a ela em imagens. E l a deve pergunta «Como posso descrever fielmente o que em certa a l t u r a
«ver os pormenores» com «os olhos do espírito» ou «ouvi-los» «na sua presenciei?» não é mais enigmática do que a pergunta «Como posso
cabeça». Mas não há «deve» acerca disto. Se u m espectador de concertos visualizar fielmente o que em certa a l t u r a presenciei?» A capacidade
deseja recordar como o v i o l i n i s t a i n t e r p r e t o u mal u m certo trecho, pode para descrever coisas aprendidas por experiência pessoal é uma das
assobiar a melodia m a l tocada ou tocá-la mal exactamente como o aptidões que esperamos das pessoas linguisticamente competentes. A
a r t i s t a a tocou e se repete o erro fielmente está com certeza a recordar capacidade para visualizar parte delas é outra coisa que esperamos
o erro do a r t i s t a . Esta pode ser a sua única maneira de recordar como em certa medida da maior parte das pessoas e em alto g r a u das
o a r t i s t a se enganou, visto que pode ser pobre em ouvir melodias na sua crianças, íigurinistas, polícias e desenhadores.
cabeça. De igual modo, u m bom i m i t a d o r pode aprender os gestos e Ter reminiscências pode portanto t o m a r a f o r m a de n a r r a t i v a
esgares do orador apenas por meio de os reproduzir com as suas pró- verbal fiel. Quando isto acontece, difere da reminiscência por imitação
prias mãos e com o seu próprio rosto, visto que pode ser pobre em ver e da reminiscência por meio de fazer esboços, porque o que aconteceu
coisas com os olhos do espírito. U m bom desenhador pode igualmente é d i t o e não retratado (embora o dizer implique muitas vezes fazer
não se lembrar das linhas e do cordame de u m iate, até que lhe dêem certos retratos dramáticos). Ê óbvio que também neste caso ninguém
u m lápis com que os possa delinear no papel. Se as imitações e os desejaria f a l a r como se a n a r r a t i v a fosse uma «fonte» de conhecimento
esboços são bons e se, quando estão errados, os seus autores as corrigem ou u m modo de a d q u i r i r conhecimento. A n a r r a t i v a não pertence às
devidamente sem serem auxiliados, os seus companheiros convencer- fases de fabricação e montagem, mas s i m às fases de exportação. É
-se-ão de que eles se lembram do que v i r a m , sem desejar qualquer semelhante a r e c i t a r lições e não a aprendê-las.
informação adicional acerca da nitidez, abundância ou coerência da sua Contudo, as pessoas são fortemente tentadas a pensar que as
imaginação visual ou até da existência desta. recordações visuais devem ser uma espécie de ver e portanto uma
Ninguém d i r i a que o frequentador de concertos, o i m i t a d o r ou o espécie de descobrir. U m motivo deste engano pode ser explicado do
desenhador souberam alguma coisa por meio da reprodução da melodia seguinte modo: se uma pessoa aprende que houve uma batalha naval
m a l tocada, dos gestos do orador ou das linhas do iate, mas apenas que sem ter sido testemunha dela, pode imaginar a cena em imagens
m o s t r a r a m como o p r i m e i r o t i n h a ouvido que a melodia t i n h a sido m a l visuais, deliberada ou involuntariamente. M u i t o provavelmente, em
tocada, como o orador t i n h a sido visto a gesticular e como t i n h a m breve, sempre que pensa na batalha, começa a imaginá-la de u m modo
sido vistas as formas e cordames do iate. A reminiscência em imagens bastante uniforme, t a l como descreve esse episódio por meio de uma
não difere em princípio, embora tenda a ser superior em velocidade, n a r r a t i v a bastante uniforme sempre que lhe pedem que conte a história
sendo por outro lado m u i t o i n f e r i o r em eficiência. E não é evidente- da batalha. Mas embora talvez não possa evitar facilmente imaginá-la
mente de utilidade pública directa. do modo r o t i n e i r o actual, pode no entanto reconhecer a diferença entre
As pessoas estão prontas a exagerar grandemente a fidelidade o seu modo habitual de imaginar cenas de que não f o i testemunha e o
fotográfica das suas imagens visuais. A principal razão deste modo pelo qual os episódios de que f o i testemunha «voltam» às suas
exagero parece ser que frequentemente acham, especialmente quando imagens visuais. Também não pode evitar imaginá-los de u m modo
convenientemente estimuladas e interrogadas, que podem fazer descri- uniforme, mas essa uniformidade parece-lhe obrigatória e não apenas
ções verbais m u i t o compreensíveis, pormenorizadas e bem ordenadas de adquirida por repetição. Não pode « v e r » agora o episódio como gostaria,
276 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA
A IMAGINAÇÃO 277

t a l como não o pôde ver originalmente como t e r i a gostado. Não poderia


original dessa interpretação. Pelo contrário, dizer que o frequentador
ter visto originalmente o dedal noutro sítio senão no canto da chaminé,
de concertos não esqueceu o que ouviu é dizer que pode fazer algumas
visto que era ali que ele estava. N e m por m u i t o que tente se pode
coisas fielmente, tais como reproduzir o engano assobiando. Enquanto
recordar agora de o ter visto noutro sítio, porque o mais que pode,
se lembrar do engano do violinista, continua a ser capaz e a estar apto
se assim o quiser, é imaginar vê-lo caído no cesto. Na verdade pode
a fazer coisas como mostrar o que foi o engano repetindo-o fielmente.
m u i t o bem imaginar que o vê no cesto ao mesmo tempo que repudia
É isto o que significa «ter presente no espírito».
a alegação de alguém que diz que ele estava lá.
Se uma criança quer recitar u m poema mas o faz erradamente ou
O leitor do relato de uma corrida pode, sujeito a certas restrições em parte erradamente, não dizemos que recitou o poema. Não é uma má
impostas pelo texto do relato, imaginar primeiro a corrida de uma citação nem uma espécie de citação. Se nos dizem que alguém soletrou
forma e depois, deliberada ou involuntariamente, imaginá-la de uma ou interpretou alguma coisa, não perguntamos «Mas fê-lo bem?», visto
forma diferente, talvez em conflito com a p r i m e i r a , mas uma testemu- que não estaria a soletrar ou a i n t e r p r e t a r mal. Mas evidentemente que
nha da corrida, embora possa chamar a si imagens alternativas da existem usos destes verbos nos quais eles têm a mesma intensidade do
corrida, mantém-nas rigidamente de fora. Isto é o que t o r n a tentador que as frases «tentar soletrar» ou «tentar interpretar». Nestes usos
dizer que ter reminiscências por meio de imagens tem certa analogia podem ser qualificados significativamente de «ineficazes».
com observar uma fotografia ou o u v i r u m disco. O «não posso» ou «não»
«Recordar», salvo quando significa «tentar recordar», é do mesmo
posso ver» o episódio senão de uma forma é tacticamente assimilado
modo u m verbo de «conseguir». «Recordar sem êxito» e «Recordar
ao «não posso» mecânico em « A máquina fotográfica não pode mentir»,
incorrectamente» são frases ilegítimas. Mas isto não significa que te-
ou em «O disco não pode modificar a melodia». Mas de facto o «não
nhamos uma faculdade especial que, pela sua função, nos leve ao nosso
posso» em «não posso ver o episódio senão de uma forma» é como o
destino sem que tenhamos de ser cuidadosos. Significa apenas que se,
«não posso» de «não posso soletrar 'Edinburgo' como me apetecer».
por exemplo, temos imagens de incidentes que sabemos serem diferen-
Não posso escrever as letras correctas na ordem correcta e ao mesmo
tes do aspecto que estes t i v e r a m na realidade, então não estamos a
tempo fazer outras combinações de letras. Não posso soletrar «Edinbur-
recordar, t a l como não estamos a citar se atribuímos à pessoa que falou
go» como sei que deve ser soletrado e soletrá-lo ao mesmo tempo de
palavras diferentes das que ela pronunciou. Recordar é algo que por
qualquer outra forma. Nada força a minha mão a escrever esta palavra
vezes temos de tentar arduamente, que muitas vezs não conseguimos e
de uma forma em vez de outra, mas a simples lógica exclui a possibilida-
que algumas vezes não sabemos se conseguimos ou não. Assim, podemos
de de escrever o que deve ser escrito e de escrever a r b i t r a r i a m e n t e
estar convencidos de que nos recordámos de uma coisa e mais tarde
numa mesma operação.
sermos persuadidos a r e t i r a r a nossa afirmação. Mas, se bem que «re-
De igual modo, nada me força a imaginar seja o que for ou a cordar» seja u m verbo de «consentimento», não é u m verbo de desco-
imaginar deste modo em vez daquele, mas, se me lembro de como a berta, solução ou prova. É antes como «recitar», «citar», «descrever» e
cena se passou quando a presenciei, então a minha imaginação não é «imitar». É u m verbo de mostrar, qu está pelo mesmo relacionado com
arbitrária, nem tão pouco ao percorrer o caminho para a praia sou verbos desta natureza. Ser bom a recordar não é ser bom a investigar
forçado a tomar este atalho em vez de qualquer outro, mas se sei que mas s i m ser bom a apresentar. È uma habilidade n a r r a t i v a , se se
este é o atalho certo, não posso, dentro da lógica, tomar o atalho que a d m i t i r que «narrativo» abrange t a n t o representações prosaicas como
sei que é o certo e ao mesmo tempo t o m a r qualquer outro. não prosaicas. É por isso que descrevemos recordações como relativa-
Consideremos outra vez o caso do frequentador de concertos que mente fiéis, vívidas e exactas e não como originais, brilhantes ou
reproduz o engano do violinista assobiando os compassos t a l como o agudas. Não chamamos às pessoas «inteligentes» ou «observadoras»
violinista os tocou mal. Ele assobia o que assobia porque não esqueceu simplesmente porque se lembram das coisas. U m a pessoa que conta
o que ouviu o violinista tocar, mas isto não é uma causa-efeito de anedotas não é u m detective.
«porque». O seu assobio não é controlado ou governado causalmente,
nem pela interpretação errada do violinista, nem pela sua audição
O INTELECTO 279

brir-se-á que têm na verdade uma primazia de certa espécie, embora


esta não seja a anterioridade causal que vulgarmente delas se postula.

(2) A DEMARCAÇÃO DO INTELECTO

O lugar do intelecto na vida humana pode ser descrito, com ou sem


consciência de metáfora, segundo certos modelos. Por vezes fala-se do
intelecto como de u m órgão especial e os intelectos fortes ou fracos
são comparados aos olhos e músculos fortes ou fracos. Fala-se por
CAPITULO IX vezes do Entendimento corno de uma espécie de E d i t o r i a l ou Casa da
Moeda, que d i s t r i b u i os seus produtos aos clientes através dos retalhis-
tas e dos bancos, e fala-se por vezes da Razão como de u m sábio confe-
O INTELECTO rencista ou magistrado que, do seu lugar, diz à assistência o que sabe,
dá ordens e faz recomendações. Não precisamos de nos preocupar agora
a argumentar que estes modelos e outros semelhantes são inadequados
aos termos em que estas discussões devem ser conduzidas. Mas há uma
(1) PROLOGO promessa latente em todos estes modelos da qual necessitamos de
desconfiar desde o princípio. Podemos dizer com absoluta exactidão
Até agora falei pouco acerca da razão, do intelecto ou do entendi- quais são as coisas que a fortaleza ou fraqueza dos olhos ou dos mús-
mento, do pensamento, dos juízos, dos raciocínios ou das ideias. N a culos nos permite ou nos impossibilita de fazer. Podemos dizer exacta-
verdade, o pouco que disse f o i de tendência fortemente deflacionária, mente quais os produtos que são feitos e os que não são feitos por esta
visto ter atacado repetidamente a suposição comum de que o uso editorial ou por aquela Casa da Moeda e podemos dizer o que é e o que
de epítetos tais como «intencional», «hábil», «cuidadoso», «ambi- não é t r a n s m i t i d o por determinado conferencista numa determinada
cioso» e «voluntário» i m p l i c a m como pré-requisito causal a ocorrên- conferência. Mas se nos perguntarem quais são exactamente as acções
cia de operações cognitivas ou teóricas. Deixei talvez a impressão de e reacções humanas que podem ser classificadas como intelectuais, não
que, v i s t o as operações de planear e teorizar poderem ser caracterizadas temos u m critério semelhante. O cálculo matemático seria certamente
como intencionais, hábeis, cuidadosas, ambiciosas, voluntárias, e t c , classificado como u m acto intelectual, mas que diríamos se esse cálculo
encaro estas operações simplesmente como ocupações especiais que estivesse cheio de erros, se fosse feito por palpite ou por simples r o -
coincidem com operações como as de dar nós, seguir melodias e b r i n c a r tina ? A argumentação forense também se classificaria deste modo, mas
às escondidas. que diríamos se os seus motivos fossem fazer a má causa parecer boa ?
Igualmente a filosofia, mas o que diríamos do caso do pensamento ser
T a l democratização dos ofícios das antigas elites terá parecido
um acto de acreditar naquilo que se deseja? A compilação e coligação
bastante chocante, visto que existe u m hábito m u i t o espalhado de usar
de factos também pode ser classificada como intelectual, mas que dizer
«espírito» e «mental» como sinónimos de «intelecto» e «intelectual». É
se a compilação é desordenada e a coligação fantasiada ?
idiomàticamente perfeito argumentar a u m examinador que espécie de
espírito t e m u m candidato, quando o que se quer é saber se ele poderia Nestas descrições há uma propriedade que define as operações
desempenhar bem certas espécies de tarefas académicas. O interrogador intelectuais como dirigidas com o propósito de descobrir a verdade.
ficaria surpreendido se lhe respondessem que o candidato era amigo Mas o bridge e o xadrez são jogos intelectuais nos quais o propósito
de animais, tímido, que t i n h a ouvido para a musica e que era espirituoso. de executar as operações intelectuais necessárias é a vitória e não a
Ê agora a l t u r a de discutir certas características dos conceitos das descoberta. O engenheiro e o general fazem planos com a cabeça, mas
faculdades, propensões e acções especificamente intelectuais. Desco- não aspiram com isso a aumentar os seus conhecimentos. O legislador
280 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A O INTELECTO 281

tem de pensar em termos abstractos e de u m modo sistemático, mas simplesmente a seguir expressões pronunciadas por outra pessoa. Não
do seu trabalho não resultam teoremas mas s i m leis. A pessoa de idade está a pôr as suas próprias ideias em palavras, mas a obter ideias a
não pensa no que aconteceu dantes, volta simplesmente a essas coisas, p a r t i r das palavras de outra pessoa.
nem normalmente encaramos as incessantes descobertas por meio dos Por outro lado, temos de a d m i t i r que uma pessoa está a realizar
olhos, ouvidos, nariz, língua e dedos de uma criança observadora como u m trabalho intelectual verdadeiro em certas situações em que não usa
poderes intelectuais. Não adquire diplomas por meio delas. quaisquer expressões tais como palavras, símbolos de código, diagra-
Não se t o r n a m mais claros nos limites entre o que é e o que não é mas ou imagens. Admitir-se-ia normalmente que desembaraçar o ema-
intelectual fazendo referência à noção de pensar, visto que «pensar» ranhado de uma meada de lã, estudar a posição do jogo no tabuleiro
não só é tão vago como «intelectual», como ainda tem outras ambigui- de xadrez e t e n t a r colocar uma peça n u m puzzle implica cogitação,
dades que lhe são próprias. N u m sentido, o verbo «pensar» é sinónimo mesmo quando estas operações não são acompanhadas por qualquer
de «acreditar» e «supor» e assim é possível a uma pessoa, neste sentido, acto de monólogo.
pensar u m grande número de coisas idiotas e, noutro sentido, pensar Por último, para aplicar u m ponto focado anteriormente, a dis-
m u i t o pouco. T a l pessoa é não só crédula como intelectualmente pre- tinção entre expressões estudadas e não estudadas torna-se i m p o r t a n t e
guiçosa. Há ainda u m o u t r o sentido no qual se pode dizer que uma agora. Na m a i o r i a das nossas conversas sociais, dizemos em p r i m e i r o
pessoa «está a pensar bem no que está a fazer», quando está a dar lugar as coisas que nos vêm à boca, sem deliberar sobre o que dizer ou
bastante atenção, digamos, à acção de tocar piano. Mas não está a como o dizer. Não enfrentamos qualquer desafio para demonstrar a
ponderar ou de qualquer modo pensativa. Se lhe perguntarem que verdade das nossas afirmações, para esclarecer as ligações entre as
premissas considerou, que conclusões t i r o u ou, numa palavra, que nossas expressões ou para j u s t i f i c a r o objectivo das nossas perguntas
pensamentos teve. a sua resposta pode muito bem ser «Nada. Não ou o m o t i v o das nossas lisonjas. A nossa conversa é despretenciosa,
tive tempo nem interesse em construir ou considerar quaisquer pro- espontânea e não calculada. Não é trabalho e não é suposto doutrinar,
posições. Estive a aplicar o meu espírito ao acto de tocar e não a espe- ser lembrada ou ser registada. Não obstante, as nossas observações
cular sobre problemas, e nem sequer estive ocupada em dizer a m i m têm os seus motivos e o ouvinte compreende-as e responde apropria-
própria como tocar». damente.
Diz-se por vezes que por u m «processo intelectual» ou por «pen- Mas esta não é ainda a espécie de conversa que temos em mente
sar», neste sentido especial, se significa uma operação com símbolos quando falamos de alguém a j u l g a r , a ponderar, a raciocinar ou a
tais como, por excelência, as palavras e orações. « A o pensar, a pensar em alguma coisa. Não julgamos as faculdades intelectuais de
alma está a falar a si própria». Mas isto é não só demasiado vasto uma pessoa, na maior parte dos casos, pela maneira como ela conversa.
como demasiado restrito. U m a criança a recitar uma poesia i n f a n t i l Antes as julgamos pelo modo como fala quando o que diz é ponderado,
por pura rotina, ou a tabuada da multiplicação, atravessa u m processo disciplinado e sério, expresso n u m t o m de voz adequado e não em qual-
de domínio de expressão mas não está a atender ao que as suas pala- quer outro t o m de voz descabido. N o entanto, julgamos as potenciali-
vras e frases significam. Não está a usar as suas expressões, mas a dades intelectuais de uma pessoa pelas graças que diz e aprecia, embora
papagueá-las, como poderia papaguear uma melodia. Também não se estas pertençam a conversas não académicas. Os teóricos têm inclina-
poderá dizer que u m pensador é uma pessoa que trabalha propositada ção para supor que as diferenças entre uma conversa espontânea e u m
e atentamente com expressões, porque se se dividisse em fragmentos discurso pesado são apenas de g r a u , porque as coisas que nos vêm à
uma melodia i n f a n t i l , a criança, uma vez que a tivesse aprendido, boca reflectem as mesmas espécies de processos intelectuais do que
poderia t r a b a l h a r árdua e eficientemente e reagrupar esses fragmentos as reflectidas por prelecções feitas seriamente. Mas, na prática, apenas
pela ordem própria, embora não tivesse ideia do que as frases ou a consideramos a última quando avaliamos o discernimento, a acuidade
poesia significavam. Nem mesmo faz sentido dizer que pensar consiste e a compreensão de uma pessoa. A s s i m , na prática não encaramos todos
em construir complexos de expressões como veículos de significados os usos de expressões inteligentes como pensamentos, mas apenas ou
específicos, porque admitimos que uma pessoa está a pensar se estiver principalmente as que são feitas como trabalho. Não encaramos a con-
282 INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A O INTELECTO 283

versa espontânea como teorização ou planeamento de baixo nível e didácticos se não tivesse já aprendido a seguir e a u t i l i z a r conversas
temos m u i t a razão em fazê-lo. 0 objectivo das conversas vulgares não vulgares e (2) que os discursos didácticos são em si uma espécie de
é apresentar as teorias ou os planos de alguém, nem encaramos os discurso estudado. Ê um discurso em que se m i n i s t r a ensino e que é em
actos de divagar e cantar como trabalhos leves. Mas finalmente, si próprio, em certo grau, o produto de uma aprendizagem. Tem a sua
quererá dizer alguma coisa que todas as tentativas de dar uma defi- disciplina própria e é d i t o ou escrito, não n u m estilo sociável e coloquial,
nição delimitada de «intelectual» e de «pensamento» falhem aqui e ali? mas n u m estilo disciplinado não sociável e feito magistralmente. Mesmo
Sabemos suficientemente bem d i s t i n g u i r as áreas urbanas das rústicas, que se simule u m estilo coloquial, sabe-se que uma recepção dele a esse
os jogos do t r a b a l h o e a P r i m a v e r a do Verão e não ficamos embaraçados nível é inapropriada e reconhece-se assim que o estilo coloquial é f r a u -
pela descoberta de casos marginais. Sabemos que resolver u m problema dulento. A professora está apenas a f i n g i r que ela e os alunos não estão
de matemática é uma tarefa intelectual, que procurar o dedal é uma na realidade a t r a b a l h a r . Veremos mais tarde que, por detrás deste
t a r e f a n ã o i n t e l e c t u a l , ao passo que procurar uma r i m a apropriada está modo aparentemente t r i v i a l de d i s t i n g u i r o que é intelectual do que não
a meio caminho. O bridge é u m jogo intelectual, a bisca é u m jogo não é em termos académicos de mecanismos pelos quais se aprendem certas
intelectual e o «furta-molhinhos» está entre os dois. 0 nosso uso coisas, existe algo de m u i t o importante.
quotidiano de conceitos de intelecto e de pensamento não fica emba- Torna-se necessário d i s c u t i r agora alguns dos conceitos de pensa-
raçado pela descoberta de u m número moderado de casos limítrofes. mento e de pensar. Devemos d i s t i n g u i r claramente entre o sentido em
Certamente que para alguns fins isto não tem importância. Mas que dizemos que alguém está. empenhado em pensar alguma coisa do
t e m m u i t a para nós. Significa que a mesma coisa está errada, não só sentido em que dizemos que isto e aquilo é o que ela pensa, isto é, entre
em relação às antigas teorias que falavam da Razão, do Intelecto ou do o sentido de «pensamento» no qual o pensamento pode ser difícil, demo-
Entendimento como de uma Faculdade específica ou órgão oculto, como rado, interrompido, descuidado, com êxito ou em vão, do sentido no
também em relação às teorias mais recentes que falam de processos qual os pensamentos de uma pessoa são verdadeiros, falsos, válidos,
intelectuais específicos de j u l g a r , conceber, supor, raciocinar e outros. fictícios, abstractos, rejeitados, compartilhados, comunicados ou não
Pretendem ter marcas de identificação para coisas que de facto nem comunicados. N o p r i m e i r o sentido, estamos a falar do trabalho no qual
sempre podem identificar. N e m sempre sabemos quando aplicar e uma pessoa está empenhada por vezes e durante certos períodos. No
quando não aplicar os nomes usados pelos epistemologistas. segundo sentido, estamos a falar dos resultados desse trabalho. A i m -
Comecemos o u t r a vez do princípio. Há uma ideia não m u i t o afas- portância de fazer esta distinção é que a moda dominante é descrever
tada do p r i m e i r o plano do espírito da m a i o r i a das pessoas quando o trabalho de pensar em coisas em termos tirados das descrições dos
contrapõem as faculdades e acções intelectuais a outras faculdades resultados obtidos. Ouvimos contar que as pessoas fazem coisas tais
e acções, designadamente as de treino. As faculdades intelectuais são como j u l g a r , abstrair, submeter, deduzir, induzir, predicar e assim
aquelas que são desenvolvidas por lições e verificadas por exames. As sucessivamente, como se estas operações fossem registáveis e execu-
tarefas intelectuais são aquelas ou algumas daquelas que somente as tadas efectivamente por pessoas particulares em fases particulares das
pessoas instruídas podem executar. Os intelectuais são pessoas que suas operações e, visto que não assistimos aos actos das outras pessoas
beneficiaram da mais alta educação disponível e a conversa intelectual fazerem essas coisas, e nem sequer as apanhamos a fazê-las, sentimo-
é uma conversa esclarecida e esclarecedora. Os indígenas e os h a b i l i - -nos levados a a d m i t i r que esses actos são acontecimentos m u i t o subter-
dosos ignorantes não são classificados como tendo capacidades inte- râneos cuja ocorrência só pode ser descoberta por inferências e a d i v i -
lectuais e mesmo as artes aprendidas principalmente por simples i m i - nhações de peritos epistemologistas. Estes peritos parecem dizer-nos
tação, como saltar à corda, j o g a r à bisca ou conversar não são classifi- que fazemos estas coisas à semelhança dos anatomistas quando nos
cadas como realizações intelectuais. Este certificado é reservado às falam de processos digestivos e cerebrais, que têm lugar dentro de nós
explorações de lições aprendidas, pelo menos em parte, por livros e sem nosso conhecimento. Assim, o nosso intelecto deve ser u m órgão
conferências e em geral por meio de discursos didácticos. incorpóreo, visto estes para-anatomistas descobrirem tantas coisas
acerca do seu funcionamento clandestino.
É evidente (1) que ninguém poderia seguir ou u t i l i z a r discursos
284 O INTELECTO 285
INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA

Espero demonstrar que as palavras «juizo», «dedução», «abstrac- inteligível das conclusões da teoria, os problemas que resolve e talvez
ção» e outras do mesmo género pertencem de facto à classificação dos também as razões que t e m para aceitar estas respostas e rejeitar as
resultados da ponderação e são m u i t o m a l utilizadas quando tomadas respostas rivais. Ter uma teoria implica ser capaz de dar lições ou de
para designar os actos em que essa ponderação consiste. Não perten- fazer recapitulações dela. O ouvinte inteligente de tais lições acaba
cem ao vocabulário das biografias, mas ao da revisão de livros, confe- por t e r também uma teoria, ou mais, se f o r suficientemente requintado,
rências, discussões e relatos. São nomes de árbitros e não de biógrafos. poderá compreendê-la sem a adoptar. Mas não construímos teorias, t a l
como não fazemos planos, simples ou primariamente, no i n t u i t o de
(3) A CONSTRUÇÃO, POSSE E UTILIZAÇÃO DE TEORIAS estarmos preparados para os dizer. O motivo principal de dar exercícios
didácticos a s i próprio ou a outros alunos é prepará-los para usar essas
Se bem que existam muitas ocupações, quer jogos quer trabalhos, lições com outros fins além dos didácticos. Colombo não fez as suas
que descrevemos como intelectuais sem que isso implique que o seu explorações apenas para acrescentar alguma coisa ao que era d i t o nas
objectivo seja descobrir verdades, há boas razões para considerar a lições de geografia. Ter u m a teoria ou plano não é apenas ser capaz
família especial de ocupações pela qual procuramos descobrir verdades. de dizer o que são essa teoria ou plano. Ser capaz de dizer o que é uma
Digo «família de ocupações», visto que nada se ganha em pretender teoria é de facto ser capaz de fazer uma coisa, designadamente a r u a
que Euclides, Tucídedes, Colombo, A d a m Smith, Newton, Lineu, exploração didáctica. O domínio dos teoremas de Euclides não é sim-
Porson e B u t l e r f o r m a v a m uma sociedade. plesmente a capacidade para os citar, é também a capacidade de resol-
O trabalho pelo qual cada u m destes homens a d q u i r i u a sua repu- ver problemas com eles e descobrir medidas de campos com a sua ajuda.
tação pode ser chamado trabalho de «construção de teoria», embora
Não há uma resposta unilateral para a pergunta «Como pode u m a
a palavra «teoria» tenha sentidos bastante diferentes. A s teorias de
teoria ter outros objectivos além dos didácticos?» A s teorias de Sher-
Sherlock Holmes não eram construídas pelos mesmos métodos que as
lock Holmes t i n h a m o objectivo principal de ser aplicadas na captura
de Marx, nem os seus usos e aplicações eram semelhantes aos de Marx.
e condenação de criminosos, de f r u s t r a r crimes planeados e de i l i b a r
Mas ambos eram semelhantes em comunicar as suas teorias em prosa
didáctica. suspeitos inocentes. Podiam também t e r a intenção de ser usadas como
exemplos i n s t r u t i v o s de técnicas de detecção eficazes. A s suas teorias
Antes de dizermos alguma coisa de mais específico acerca das ope-
f o r a m aplicadas se f o r a m feitas deduções posteriores a p a r t i r delas
rações ou processos de construir teorias, devemos considerar o que
e se os criminosos f o r a m presos e os suspeitos libertos de acordo com
significa dizer que alguém tem uma teoria. C o n s t r u i r uma teoria é ten-
t a r conseguir uma teoria, t e r uma teoria é tê-la conseguido e não a ter elas. A s teorias de N e w t o n f o r a m aplicadas quando se fizeram previsões
esquecido. Construir uma teoria é v i a j a r , t e r uma teoria é ter chegado e reconstituições correctas com base nelas, quando se desenharam má-
ao destino. quinas de acordo com elas, quando se desistiu da esperança de cons-
t r u i r máquinas de moto-contínuo, quando algumas outras teorias f o r a m
Ter uma teoria ou u m plano não é em si fazer ou dizer qualquer
coisa, t a l como ter uma caneta na mão não é estar a escrever com ela. abandonadas cu codificadas através delas, quando se fizeram livros
Ter uma caneta na mão é estar em posição de poder escrever com ela e conferências que p e r m i t i r a m aos estudantes compreendê-las no todo
se a ocasião s u r g i r e ter uma teoria ou plano é estar preparado para ou em parte e, por último, quando algumas ou todas as técnicas da sua
a citar ou aplicar se a ocasião surgir. O trabalho de construir uma construção de teorias f o r a m aprendidas através do seu exemplo e em-
teoria ou plano é o trabalho que se tem para estar preparado. pregadas com êxito em novas investigações. Ser newtoniano não é ape-
Digo que o possuidor de uma teoria está preparado para a c i t a r nas dizer o que N e w t o n disse, mas também dizer o que N e w t o n
ou aplicar. Qual é a distinção? E s t a r em posição de expor uma teoria teria dito ou feito em determinadas circunstâncias. Ter uma teoria é
é ser capaz de dar uma boa resposta a alguém, talvez mesmo ao próprio estar preparado para fazer uma grande variedade de actos, alguns dos
teórico, que quer ou necessita de aprender ou aprender melhor o que quais são apenas ensinamentos, e ensinar alguma coisa a alguém ou
é essa teoria, isto é, comunicar por palavras ou escritos uma afirmação a si próprio é, por sua vez, preparar essa pessoa para uma grande
286 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 287

variedade de tarefas, algumas das quais serão apenas outros ensi- penhada numa tarefa não ambiciosa de teorizar. Está a investigar algu-
namentos. ma coisa e os resultados das suas investigações poderão ser citados.
Poderíamos dizer, portanto, que, quando teoriza, o espírito está, Tanto o que ela descreve ao seu marido como o que faz com a alcatifa,
inter alia, a preparar-se para f a l a r ou escrever didàcticamente e que mostrarão a que teoria chegou, visto que o seu trabalho da manhã
os benefícios pretendidos para o receptor consistem na preparação com a f i t a métrica, lápis e papel a preparou, não só para colocar a
adquirida para agir e reagir de várias formas novas, algumas das quais alcatifa de certo modo e não de outro, como também para dizer ao seu
serão apenas em si próprias outras pronunciações didácticas. Isto marido que a alcatifa ficará em determinada posição, visto que a sua
mostra parte do que está errado na noção de Razão como o simples forma e as dimensões do soalho são estas e aquelas. Também uso a
poder para t e r e receber conversas didácticas. Mas algumas das ope- palavra «teoria» para os resultados de qualquer espécie de investigação
rações aprendidas serão certamente mais do que conversas didácticas, sistemática, quer o seu resultado seja ou não u m sistema dedutivo.
visto que pelo menos uma das coisas que é aprendida por ouvir aten- A descrição de u m historiador acerca de uma batalha é a sua teoria.
tamente conversas didácticas é precisamente como dizer essas mesmas Se u m lavrador t i v e r aberto u m caminho é capaz de o subir e
coisas ou coisas para o mesmo efeito, ou pelo menos como dizê-las desse descer facilmente. F o i para isso que o caminho f o i aberto. Mas o t r a -
modo. Pelo menos, o recruta aprende as palavras de comando e como balho de a b r i r o caminho não f o i u m processo de andar à vontade, mas
o sargento as diz. U m a lição sobre qualquer coisa é também uma lição de marcar o campo, cavar, i r buscar carregamentos de cascalho, alisar
de como d a r e receber lições dessa espécie. Galileu, ao dar lições sobre com u m c i l i n d r o e secar. Ele cavou e alisou onde ainda não existia u m
o comportamento das estrelas, pêndulos e telescópios, ensinou pelo seu caminho para que pudesse no f i m t e r u m caminho onde pudesse andar
exemplo a f a l a r cientificamente de qualquer outro assunto. à vontade sem mais necessidade de cavar ou alisar. De igual modo,
Voltemos agora ao t r a b a l h o de construir teorias. P r i m e i r o , não uma pessoa que t e m uma teoria pode, entre outras coisas, expor a si
estou a r e s t r i n g i r esta frase àquelas operações que, como a matemática, própria ou às outras pessoas toda a teoria ou parte dela, mas o trabalho
a jurisprudência, a filologia e a filosofia podem ser feitas numa ca- de construir a teoria f o i uma tarefa de a b r i r caminhos onde eles ainda
deira de braços ou numa carteira. Colombo não poderia ter feito a sua não existiam. O ponto de analogia é o seguinte: os epistemologistas
descrição da costa Oeste do Atlântico sem ter viajado por lá, nem descrevem muitas vezes os trabalhos de construir teorias em termos
Kepler poderia t e r descrito o sistema solar sem que ele e Tico B r a i a adequados apenas a seguir ou ensinar uma teoria que alguém já tem,
tivessem gasto muitas horas a estudar visualmente o firmamento. Não como se, por exemplo, as cadeias de proposições que constituem os «Ele-
obstante, distinguimos as teorias que eles acabaram por construir e mentos» de Euclides reflectissem uma sucessão paralela de movimen-
que depois ensinaram ao mundo civilizado por meio de palavras ou tos feitos por Euclides nos seus trabalhos originais de fazer as suas
escritos, dos esforços e observações sem os quais não t e r i a m cons- descobertas geométricas, isto é, como se o que Euclides estava habili-
truído essas teorias. A formulação das suas teorias implica descrições tado a fazer quando já tinha a sua teoria pudesse já ser feito quando
ou referências aos caminhos seguidos e às observações feitas, mas não ainda a estava a construir. Mas isto é absurdo. Por outro lado, os epis-
implica os próprios caminhos ou observações. Os resultados da investi- temologistas contam por vezes a história oposta, descrevendo o que
gação podem ser comunicados em prosa, mas investigar não consiste, Euclides fez ao comunicar as suas teorias quando já as t i n h a , como
em geral, apenas em t r a b a l h a r com canetas mas também com micros- se isso fosse uma recrudescência do trabalho o r i g i n a l de teorizar. Isto
cópios, telescópios, balanças e galvanómetros, linhas marítimas e f i l t r o s também é absurdo. Estes epistemologistas descrevem a utilização de
de química. u m caminho como se fosse uma parte de a b r i r esse caminho. Os outros
descrevem os actos de a b r i r u m caminho como se fizessem parte de
Segundo, ao falar de construir teorias, não me estou a r e f e r i r
usar esse caminho.
apenas aos exemplos clássicos de descobertas famosas, mas também a
uma classe de tarefas nas quais p a r t i c i p a m em certa medida e em algu- Tal como o lavrador, ao afadigar-se a a b r i r caminhos, está a
mas ocasiões todas as pessoas que t i v e r a m alguma instrução. A dona preparar o terreno para se poder andar neles sem esforço, também uma
de casa que tenta descobrir como adaptar a alcatifa ao chão está em- pessoa que se esforça por construir uma teoria se está a preparar a si
288 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 289
O INTELECTO

própria para, entre outras coisas, fazer sem esforço a exposição das tativas e do t r a b a l h o que constituíram a construção provavelmente
teorias que obtém por meio de as construir. Os seus trabalhos de teo- demorada da sua teoria. Estes actos f o r a m aquilo que o preparou e
rizar são auto-preparações para, entre outras coisas, realizar tarefas treinou para ser capaz, finalmente, de fazer esta comunicação acabada
didácticas que já não são autopreparações, mas preparações de outros dos elementos da sua teoria. Assim, deveríamos decidir se os actos
estudantes. Naturalmente que existem caminhos intermédios. Há uma necessários de conceber, fazer juízos e t i r a r conclusões de premissas
fase na qual u m pensador tem a sua teoria sem ainda a dominar per- devem ser encarados como explorações primárias do teórico, como suas
feitamente. A i n d a não está completamente à vontade dentro dela. Há resultantes de exposição, como actividades da sua aquisição de conhe-
pontos sobre os quais por vezes t e m deslises, tropeça e hesita. Nesta cimento ou como o seu acto de dizer o que sabe. Ê no relatório do
fase repetirá a sua teoria ou partes dela, na sua cabeça ou no papel, detective ou nas suas investigações que supomos situarem-se os seus
ainda sem a facilidade gerada pela prática, mas também sem a dificul- juízos e inferências?
dade que lhe acarretou a construção o r i g i n a l . É como o lavrador
Digo que deveríamos pôr esta questão, mas de facto os epistemo-
cujo caminho é ainda suficientemente tosco para que seja necessário
logistas têm tendência para não compreender que t a l questão exista.
que o alise em certos pontos, de modo a aperfeiçoar certas deficiências
O qhe eles fazem normalmente é classificar os elementos de d o u t r i n a s
ainda existentes na superfície. T a l como o lavrador está. não só a
expostas didàcticamente p o r teóricos já à vontade dentro delas e pos-
andar à vontade em parte, como ainda a preparar o campo para se
t u l a r que devem t e r existido elementos de contra-partida como episódios
poder andar nele ainda com menos dificuldade, assim também o pen-
do t r a b a l h o de construir essas teorias. Encontrando premissas e con-
sador está ao mesmo tempo a usar o seu quase-domínio da teoria e
clusões entre os elementos das teorias expostas, postulam antecedentes
também a instruir-se para a dominar perfeitamente. Repetir a s i pró-
separados dos «actos cognitivos» de j u l g a r e, encontrando argumentos
prio a sua teoria é preparar-se a si próprio para a dizer sem trabalho.
entre os elementos das teorias expostas, postulam processos antece-
Quando nos dizem que o uso adequado de uma frase indicativa dentes separados em direcção ao «conhecimento» de conclusões a par-
reflecte u m acto de «julgar» ou «fazer u m juízo» e que o uso adequado t i r do «conhecimento» de premissas. Espero m o s t r a r que estes pro-
de uma frase indicativa que inclui conjunções como «se», «portanto» cessos intelectuais separados, postulados pelos epistemologistas, são
e «porque» reflecte u m acto de «raciocinar», «inferir» ou «tirar uma dramatizações para-mecânicas dos elementos classificados das teorias
conclusão de premissas», deveríamos perguntar se se supõe que estas realizadas e expostas.
utilizações adequadas destas frases se dão quando quem as emprega Não estamos a negar que os nossos trabalhos de teorização incluam
está a construir a sua teoria ou se se supõe que se produzem quando uma quantidade de monólogos e colóquios, uma quantidade de cálculos
ela já tem uma teoria e a está a comunicar em prosa didáctica, falada certos e errados no papel e na cabeça, uma quantidade de esquema-
ou escrita com a facilidade nascida da prática adequada. São concep- tizações de diagramas e a operação de apagar dos olhos do nosso espí-
ções, juízos e inferências, ou simplesmente pensamentos, actos de cons- r i t o uma quantidade de interrogações, debates e afirmações experi-
t r u i r caminhos, ou ainda uma certa classe de actos de usar caminhos, mentais. Certamente algumas destas operações de uso de expressões
designadamente mostrar caminhos ou actos de ensinar caminhos? São funcionam, não como descrições internas da pessoa a s i própria de sub-
passos e fases de aprender alguma coisa ou são partes de lições que -teorias já construídas, mas como parte de exercícios pelos quais nos
ensinamos, a pedido, quando as aprendemos? É u m truísmo dizer que preparamos para obter teorias que ainda não obtivemos. Digo, por exem-
o perito que está completamente à vontade com a sua teoria expõe os plo, uma porção de coisas a título experimental, mastigo-as e, se parece
diversos elementos dela com completa facilidade. Não t e m de estudar haver alguma promessa nelas, repito-as várias vezes n u m estado de
o que deve dizer ou, se assim acontecesse, não poderia ser descrito espírito de ensaio, para assim me h a b i t u a r a essas ideias. Preparo-me
como estando completamente à vontade dentro da sua teoria. Está a assim, pela prática, para mais t a r d e t r a b a l h a r com elas se f o r bem
pisar u m campo conhecido e não a desbravar u m campo novo. Mas esta sucedido, o u para me afastar delas se f o r m a l sucedido. D o u a m i m
comunicação pronta e ordenada de frases indicativas simples e com- próprio ordens, faço censuras, recomendações e encorajamentos e
plexas é completamente diferente das lutas e perplexidades, das ten- ponho a m i m próprio questões de condução e investigação n u m t o m

i . p. — 1 9
290 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 291

professoral para me esquivar aos problemas difíceis. Mas expressões Quando é que pela última vez f o r m u l o u u m juízo ou f o r m o u uma ideia
como estas, usadas destes modos, não podem ser descritas como expres- abstracta e o que lhe aconteceu quando fez esse juízo ou f o r m o u essa
sando juízos ou inferências, no sentido de serem exposições didácticas ideia abstracta e quem o ensinou a proceder assim? Está a conceber
de conclusões a que se chegou ou argumentos que se dominam. Não u m processo rápido ou gradual, fácil ou difícil, e pode perder tempo
aparecerão, na m a i o r i a das vezes, na exposição da teoria, quando e se com ele ou evitar fazê-lo? Mais ou menos quanto tempo levou a con-
isto acontecer, t a l como os traços a lápis azul e encarnado, os pontos siderar a proposição e as últimas fases f o r a m semelhantes ou diferen-
de exclamação e interrogação e as observações feitas pelo professor tes das iniciais? F o i como contemplar inexpressivamente uma coisa ou
à margem dos exercícios dos alunos não serão reproduzidos nas a f i r m a - como fazer uma investigação pormenorizada? Ele não sabe como
ções finais da teoria feitas pelo aluno. São partes do andaime usado começar a responder a tais perguntas. Estas perguntas, a que responde
pela teoria e não partes do edifício no qual a teoria bem sucedida re- com facilidade e confiança se forem feitas acerca dos incidentes
sulta. Igualmente, quando o recruta diz em voz alta ou repete interior- da sua vida, não podem de maneira nenhuma t e r as mesmas res-
mente as ordens que deve executar, estas não são dadas por soldados postas para as espécies de incidentes que os epistemologistas sugerem
treinados no campo de batalha. que ele deve ser capaz de descrever. Além disso, estes actos e processos
cognitivos postulados são considerados como tendo lugar por detrás
(4) A APLICAÇÃO CORRECTA E INCORRECTA DOS TERMOS de portas fechadas à chave. Não podemos presenciá-los na vida de
EPISTEMOLÓGICOS Fulano. Só ele poderia relatar a sua ocorrência, embora, infelizmente,
nunca divulgue tais coisas, nem nós, embora doutrinados, jamais as
O glossário de termos pelos quais as faculdades e operações inte- divulguemos também. E a razão por que tais episódios nunca são d i -
lectuais são descritas tradicionalmente contêm palavras e frases tais vulgados é clara. As acções biográficas contadas nesta linguagem são
como «juízo», «raciocínio», «concepção», «ideia», «ideia abstracta», mitos, que significam que estas linguagens ou algumas delas têm a sua
«conceito», «fazer juízos», «inferir», «tirar conclusões de premissas», própria aplicação, mas estão a ser m a l aplicadas quando usadas em
«considerar proposições», «subordinar», «generalizar» e «pensamento descrições daquilo que as pessoas estão a fazer ou a experimentar n u m
discursivo». Tais expressões são, na verdade, empregadas, não pelos momento particular. Assim, qual é a sua aplicação adequada? O que
leigos, mas pelos teóricos, como se com a sua ajuda, e dificilmente sem é que está errado no seu emprego em descrições do que as pessoas f a -
ela, se pudessem fazer descrições correctas do que n u m momento par- zem e experimentam?
t i c u l a r ocupou uma pessoa particular, como se por exemplo Fulano Se lemos u m t r a t a d o impresso de u m cientista ou u m relatório
pudesse e devesse por vezes ser descrito como tendo despertado e come- dactilografado de u m detective ou se ouvimos uma conferência de u m
çado a fazer certos juízos, concepções, classificações ou abstracções; historiador sobre uma campanha, estamos na verdade na presença de
como gastando três segundos a considerar uma proposição ou a i r das argumentos a que se pode chamar «inferências» ou «raciocínios», c o m
premissas para as conclusões; como, sentado numa vedação, a asso- conclusões a que podemos chamar «veredictos», «descobertas» ou «juí-
b i a r e a deduzir alternadamente; ou como tendo t i d o a intuição de zos», com termos abstractos dos quais se pode dizer que significam
qualquer coisa u m momento antes de ela t e r acontecido. «ideias abstractas» ou «conceitos», com afirmações sobre membros de
Provavelmente muitas pessoas sentem vagamente que há u m toque classes a que podem chamar-se ou significar «subordinações», etc.
de irrealidade ligado a tais anedotas autobiográficas. As histórias de A anatomia comparativa dos membros, articulações e nervos das afir-
Fulano a respeito de si próprio não são contadas nestes termos ou em mações de teorias construídas é u m ramo próprio e necessário do estudo,
termos facilmente traduzíveis para estes. Quantos actos cognitivos faz e os termos nos quais se classificam estes elementos são indispensáveis
ele antes do pequeno-almoço e como é que se sentiu ao fazê-los? F o r a m à discussão da verdade, à consistência das teorias particulares e à com-
cansativos? Sentiu satisfação na passagem das premissas às conclu- paração dos métodos das diferentes ciências.
sões e fê-lo com ou sem cuidado? A campainha do pequeno-almoço fê-lo Mas então, perguntar-nos-ão, «porque é que, se é legítimo caracte-
p a r a r a meio caminho entre as suas premissas e as suas conclusões? rizar partes das teorias expostas em tais linguagens, não é também
292 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 293

legítimo descrever em linguagens correspondentes partes correspon- os epistemologistas tivessem dado t a n t a atenção aos cálculos aritmé-
dentes de teorizar? Se a afirmação impressa de uma teoria implica a ticos e matemáticos como deram às demonstrações geométricas, t e r i a m
afirmação impressa de algumas premissas e conclusões, porque é que usado consistentemente argumentos análogos para provar a ocorrência,
não podemos dizer que pensar uma teoria implica actos de conhe- por detrás das suas postuladas Cortinas de Ferro, de processos mentais
cimento de premissas e de conclusões ? Se há u m argumento n u m l i v r o , de somar, subtrair, m u l t i p l i c a r e d i v i d i r e ter-nos-iam d i t o que, além
não deverá t e r havido uma peça correspondente de conhecimento implí- de tais actos e concepções mentais, de juizos e inferências, existem t a m -
cita na biografia do pensador que descobriu o que o l i v r o diz? Se o rela- bém os actos cognitivos de somar, s u b t r a i r e equacionar. Poderia mes-
tório de u m detective contém u m termo abstracto como alibi, não deve mo ter-nos sido atribuída u m a Faculdade de Divisão e o u t r a de Equa-
ter t i d o lugar, no decorrer das suas investigações, u m episódio i n t e r i o r ção do Segundo G r a u . De que exercícios de outros poderes mentais po-
de t e r a ideia abstracta correspondente a alibi? Certamente que as teo- deriam ser manifestações exteriores as nossas contas de d i v i d i r escritas
rias impressas em livros ou comunicadas em salas de conferências são a lápis e as nossas equações do segundo g r a u ditadas?
como as pegadas deixadas pelo passo a n t e r i o r de u m pé. É legítimo Já não necessitamos de nos preocupar com os defeitos gerais da
aplicar directamente alguns dos predicados de uma pegada ao pé que hipótese para-mecânica. Mas devemos atender a certos pontos especí-
a i m p r i m i u e i n f e r i r de alguns dos outros predicados de uma pegada ficos que surgem na sua aplicação a operações intelectuais. P r i m e i r o ,
predicados diferentes mas coordenados do pé. Assim, porque não deve- ao passo que é certamente verdade, porque é tautológico, dizer que ex-
ríamos caracterizar do mesmo modo as operações de teorizar do pen- pressões significativas usadas adequadamente têm os seus significados
sador por predicados transferidos ou inferidos dos do seu trabalho? particulares, isso não j u s t i f i c a que perguntemos: «Quando e onde acon-
Que outras coisas poderiam t e r produzido estes efeitos?» tece esse significado?». U m urso pode estar a ser domado agora por
E s t a última pergunta, que pus tendenciosamente na boca dos u m domador de ursos e uma pegada pode ter sido feita por u m pé p a r t i -
defensores da tradição que estou a criticar, mostra, penso eu, a n a t u cular, mas dizer que uma expressão t e m significado não é dizer que a
reza do m i t o . É uma variante do antigo m i t o causal que já conside- expressão está a ser domada por u m domador fantástico a que se chama
rámos e rejeitámos. É a hipótese para-mecânica aplicada especifica- «significado» ou «pensamento», ou que a expressão é u m vestígio pú-
mente aos pedaços separáveis de prosa didáctica que e n t r a m nas afir- blico deixado para trás p o r u m passo inaudível ou invisível. Compreen-
mações de teorias. der uma expressão não é i n f e r i r u m a causa que não se pode presenciar.
Para que o processo possa funcionar, devem ocorrer processos O próprio facto de que uma expressão é feita para ser compreendida por
internos especiais de abstracção, classificação e juízo, porque de que qualquer pessoa mostra que o significado da expressão não deve ser
mais poderiam ser efeitos os termos abstractos das teorias expostas, descrito como sendo ou pertencendo a u m acontecimento de que no
as suas frases de membros de classes e as suas conclusões? Devem máximo u m a pessoa poderia saber alguma coisa. A frase «O que t a l e
ocorrer operações íntimas de pensamento discursivo, porque que outra t a l expressão significa» não descreve de maneira alguma u m a coisa ou
coisa, senão isso, poderia o r i g i n a r as passagens de prosa significativa acontecimento e, a fortiori, nenhuma coisa ou acontecimento oculto.
que aparecem em conferências públicas ou impressas? Ora, para pôr Segundo a sugestão de que, para u m a pessoa usar intencional-
este ponto para-mecânico em termos do favorecido verbo «expressar», mente u m a palavra, frase ou oração s i g n i f i c a t i v a , deve ocorrer antes
devem existir actos mentais de passar de premissas a conclusões, visto ou simultaneamente dentro dela alguma coisa momentânea, chamada
que as frases de «porque» e «portanto», que caracterizam as afirmações por vezes «o pensamento que corresponde à palavra, frase ou oração»,
das teorias, são significativas e exprimem portanto a contra-partida leva-nos a esperar que estas supostas ocorrências internas nos sejam
cognitiva no espírito do teórico. Todas as expressões significativas descritas. Mas quando as descrições são proferidas, parecem ser des-
têm u m significado e assim, quando uma expressão é efectivamente crições de duplos fantásticos das próprias palavras, frases ou orações.
usada, o seu significado deve t e r ocorrido em a l g u m lugar e pode ter O «pensamento» é descrito como se fosse uma o u t r a nomeação, a f i r -
ocorrido apenas na forma de u m pensamento que teve lugar na corrente mação ou argumentação-sombra. O pensamento que se supõe sustentar
da consciência íntima da pessoa que fala ou escreve. Provavelmente, se c anúncio manifesto «Amanhã não pode ser domingo, a menos que hoje
294 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 29!

seja sábado» funciona exactamente como o anúncio a alguém de que método, cuidadosa e seriamente e em estado de alerta. Estará a falai
amanhã não pode ser domingo sem hoje ser sábado, isto é, funciona ou a escrever dando atenção ao que está a dizer. Assim, podemos dizer
precisamente como uma repetição m u r m u r a d a ou feita em monólogo se quisermos, que está n u m momento p a r t i c u l a r a desdobrar os seus
da própria acção manifesta. Podemos certamente, e muitas vezes o termos abstractos, orações-premissas, orações-conclusões, gráficos
fazemos, ensaiar nas nossas cabeças ou sotto voce o que vamos dizer equações, etc. Está a pensar no que eles significam. Dizei' isto é per-
à assistência ou escrever em papel almaço. Mas nisto não há diferença feitamente legítimo mas é ligeiramente arriscado, visto que o infinitc
teórica, porque se levanta o u t r a vez a mesma suposta questão de saber «pensar» nos pode tentar a supor que está a ser autora de dois processos
«Em que consiste o significado desta expressão em monólogo ou u m processo provavelmente manifesto de dizer ou dactilografar frases
m u r m u r a d a ? A i n d a n u m outro «pensamento correspondente», continua- e orações concatenadas e outro, necessariamente encoberto na sombra,
do ainda n u m o u t r o estúdio mais crepuscular? E seria isto por de ter ou produzir alguns predecessores fantasmas dessas palavras e
sua vez u m outro anúncio ensaiado?» Dizer uma coisa significativa, escritos, designadamente algumas «ideias», «juízos», «inferências»,
com conhecimento do seu significado, não é fazer duas coisas, ou «pensamentos» ou «actos cognitivos» dos quais os seus actos vocais e
seja, dizer uma coisa em voz alta ou dentro da sua cabeça e ao manuais de dizer e escrever são meras «expressões» ou «pegadas». E
mesmo tempo, ou pouco antes, fazer outros actos na sombra. É fazer esta é precisamente a tentação a que cedem aqueles que descrevem as
uma coisa com uma certa disciplina e n u m certo estado de espírito e actividades de teorizar como presságios internos das tiradas de prosa
não por r o t i n a , tagarelice, irreflectidamente, histriònicamente, de espíri- feitas nas comunicações verbais de uma teoria adquirida.
t o ausente ou delirantemente, mas de propósito, com u m método, Isto leva-nos de volta à p r i m e i r a questão, a de saber se encara-
cuidadosa e seriamente, e em estado de alerta. Dizer alguma coisa neste mos os supostos actos de «julgar», «ter ideias abstractas», «inferir»,
estado de espírito específico, t a n t o em voz alta como mentalmente, é etc. na investigação dos teóricos ou nas suas operações de exposição.
ter o pensamento, e não u m efeito posterior de ter o pensamento, t a l Supõe-se que se manifestam nas coisas que diz, quando sabe o que
como o autor podia concebivelmente ter t i d o o pensamento, mas ter-se dizer, ou nos seus esforços quando ainda não sabe o que dizer, visto
f u r t a d o a dizê-lo a si próprio ou aos outros. Mas, evidentemente, poderia estar ainda a tentar obter este conhecimento? Quando está a exercer
t e r t i d o o mesmo pensamento dizendo uma coisa diferente, desde que facilidades adquiridas ou quando está ainda em dificuldades? Quando a
pudesse t e r expressado uma frase do mesmo efeito numa linguagem ensinar como ou quando a aprender como? Penso que é evidente, sem
diferente ou por palavras diferentes da mesma linguagem. M a r t e l a r necessidade de mais argumentação, que a exposição didáctica de a r g u -
u m prego não é fazer duas coisas, uma com u m martelo e o u t r a sem mentos, com as suas conclusões e premissas de ideias abstractas, equa-
ele, porque, se se b r a n d i r o martelo desajeitada ou descuidadamente, ou ções, e t c , pertence à fase posterior à chegada e não a nenhuma das
sem objectivo, não se pregam pregos, e porque o carpinteiro podia ter fases da viagem para ela. O teórico pode t r a n s m i t i r as suas lições
pregado o seu prego com o u t r o martelo em vez deste. porque já acabou de as aprender, pode usar o seu equipamento porque
Assim, quando uma pessoa t e m uma teoria ou está à vontade está finalmente equipado. É precisamente porque o trabalho de fazer
dentro dela e está p o r t a n t o preparada, entre muitas outras coisas, o caminho está acabado que ele é capaz de andar à vontade nos
para fazer a si própria ou aos outros uma afirmação didáctica dela, caminhos em cuja construção t r a b a l h o u com t a l propósito, ou é
está preparada ipso facto para fazer as necessárias orações-premissas, precisamente por causa do árduo treino de armas que por f i m comple-
orações-conclusões, orações-narrativas e argumentos, juntamente com t o u que pode agora manejar as suas armas sem dificuldade. Os seus
os substantivos abstractos adequados, equações, diagramas, exemplos «pensamentos» são o que ele obteve agora e não os difíceis trabalhos
imaginários e assim sucessivamente, e quando solicitada a fazer t a l sem os quais não os teria obtido.
exposição está efectivamente, em certos momentos particulares, a a t r a - Se usarmos no seu todo a expressão indivisível «fazer u m juízo»,
vessar u m processo de desdobrar estas expressões na sua cabeça, ou devemos dizer que o detective faz o juízo de que o guarda-florestal
viva voce, ou na sua máquina de escrever, e pode e deve fazer isto com matou o aristocrata somente quando põe em prosa indicativa uma parte
o seu espírito entregue a este trabalho, isto é, intencionalmente, com da teoria que tem agora, e que continua a fazer o seu juízo tantas vezes
296 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 297

quantas é solicitado a dizer esta parte da teoria, tanto a s i próprio, últimas três vezes que fez tais passagens, quanto tempo demoraram, se
como aos repórteres ou à Scotland Y a r d . Abstemo-nos então de falar vagabundeou por elas, se i n f e r i u arduamente ou à t o a e se parou a
como se se tivesse dado u m acto antecedente separado de fazer esse meio caminho entre as premissas e as conclusões.
juízo, como uma parte da sua investigação. Ê certamente verdade que Fulano pode, ao descobrir ou ao serem-
Assim, se quisermos reservar a palavra «pensar» ao acto de -lhe ditas certas coisas, dizer depois a s i próprio e a nós verdades que
considerar cuidadosamente alguns dos trabalhos preparatórios de são consequências dessas coisas, o que não lhe aconteceria antes. A s
ponderação, sem os quais não teria obtido a sua teoria, então o seu descobertas são muitas vezes feitas por inferência. Mas nem toda a
acto de pensar não pode ser descrito como consistindo em ou contendo o argumentação é descoberta. O mesmo argumento pode ser usado pela
acto de fazer quaisquer juízos, salvo se t i v e r liquidado en route algumas mesma pessoa numa a l t u r a e noutra, mas não dizemos que fez repe-
sub-teorias, as quais estava preparado para comunicar a s i próprio ou tidamente a mesma descoberta. Talvez fossem dados certos indícios ao
aos repórteres da Scotland Y a r d em relatórios intermédios. V i a j a r para detective na terça-feira e, n u m certo momento de quarta-feira, ele diz
Londres não consiste em trabalhos feitos em Londres ou em relatos de a s i próprio pela p r i m e i r a vez: «Não poderia t e r sido o caçador f u r t i v o
entrevistas que aí podem t e r lugar. que m a t o u o proprietário, p o r t a n t o f o i o guarda-florestal que o matou».
Sem dúvida, no decurso das suas investigações, o detective pode Mas ao r e l a t a r aos seus superiores os resultados a que chegou, não
ter estimulado e d i r i g i d o os seus esforços, colocando-se a s i próprio na necessita de dizer no pretérito perfeito simples: « N a quarta-feira à
i n t e r r o g a t i v a : «Seria o guarda-florestal que m a t o u o aristocrata?» Mas tarde concluí que o guarda-florestal m a t o u o proprietário». Pode dizer:
uma oração interrogativa, usada deste modo, não é uma oração-con- «Por estes indícios concluí que o guarda-florestal m a t o u o proprietário»
clusão de ensinamento, mas uma directriz de procura-de-conclusão. Ele ou «Por estes indícios segue-se ou conclui-se que ele f o i o assassino»
faz esta pergunta porque há qualquer coisa que ainda não estabeleceu ou «O caçador f u r t i v o não m a t o u o proprietário, p o r t a n t o f o i o guarda-
e não porque há algo que está preparado para dizer porque o esta- -florestal que o fez». Pode dizer isto várias vezes ao seu superior de
beleceu. compreensão lenta e mais tarde dizer de novo a mesma coisa várias
Mais uma vez, sem dúvida, pode anunciar a s i próprio, ou à vezes no T r i b u n a l . De cada vez usa o seu argumento t i r a n d o a sua
Scotland Y a r d , a título experimental: «Pode t e r sido o guarda-florestal». conclusão o u fazendo a sua inferência. Estas descrições não são reser-
Mas isto não só não passaria por u m acto de fazer u m juízo ou de vadas à única ocasião em que se fez luz no seu espírito.
contar que o guarda-florestal m a t o u de facto o aristocrata, como, em N e m é necessário que tenha havido qualquer ocasião em que se
certas conjunturas, t e r i a de ser tomado como u m relato intermédio de fez luz no seu espírito. Pode m u i t o b e m ser que a ideia de que o
uma sub-teoria já construída e ocupada, e, portanto, já não em guarda-florestal f o i o assassino já lhe tivesse ocorrido e que os novos
construção. indícios parecessem de princípio t e r apenas u m a l i g e i r a pertinência no
«Bem», poderá admitir-se, «talvez haja algo de errado na ideia de caso. Talvez tivesse considerado e reconsiderado estes indícios d u r a n t e
que teorizar devia ser descrito como consistindo em ou contendo "actos alguns minutos ou dias e descobrisse que as lacunas que eles pareciam
de julgar"». Certamente que u m teórico não pode dizer coisas antes de deixar se t o r n a v a m gradualmente mais pequenas até que, sem ser
as poder dizer. Não pode fazer declarações sobre as suas descobertas n u m momento específico, desapareceram todas. E m t a l situação, que
enquanto ainda está a investigar. A s experiências t e r m i n a m em veredic- era a situação de todos nós quando começámos a estudar a prova do
tos, não consistem neles. Mas então o que é i n f e r i r ? Seguramente faz primeiro teorema de Euclides, a força do argumento não se manifesta
parte da noção de u m ser racional que os seus pensamentos p r o g r i d a m repentinamente, mas apenas se patenteia ao pensador, t a l como o
por vezes por meio de passagens de premissas para conclusões. Portanto, significado de u m a frase de l a t i m não se manifesta repentinamente
deve ser verdadeiro por vezes dizermos acerca de u m ser racional, por mas se patenteia ao t r a d u t o r . Não podemos dizer aqui que em dado
exemplo de Fulano, que está n u m momento particular a dirigir-se para momento o pensador t i r o u em p r i m e i r o i u g a r a sua conclusão, mas
uma conclusão vindo de algumas premissas, mesmo que fique estranha- apenas que, depois de u m certo período de m a s t i g a r e digerir, ficou
mente embaraçado se lhe perguntarem se gostou das suas viagens das por f i m apto a tirá-la com o conhecimento de que estava habilitado a
298 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 299

fazê-lo. O seu domínio do argumento vem gradualmente como todos os para uma variedade de fins diferentes do de resolver as suas próprias
domínios que i m p l i c a m aprendizagem pela prática, mas quando t e m o perguntas momentâneas. Ter u m argumento, como ter uma caneta, uma
domínio completo está então apto a expor o argumento completo sem teoria ou u m plano, é diferente, t a n t o de o obter, como de o usar. Usá-lo
hesitação ou escrúpulos, a expô-los tantas vezes quantas f o r e m neces- implica tê-lo e tê-lo implica tê-lo adquirido e não o ter perdido. Mas,
sárias e a dizer uma variedade de frases alternativas. diferentemente de algumas espécies de teorias e planos, os argumentos
Este facto f a m i l i a r de que antes de podermos usar u m argumento não são simplesmente dominados por se absorver informações, nem se
prontamente temos de a d q u i r i r domínio dele por prática mais ou menos perde o sou domínio por f a l t a de memória. São mais semelhantes a
gradual, é obscurecido pelo hábito dos lógicos de aduzir dos seus exem- habilidades. A prática é necessária para os dominar e mesmo uma longa
plos espécimes de argumentos completamente vulgarizados. U m a r g u - f a l t a de uso raramente é suficiente para esquecer como t r a b a l h a r com
mento é vulgarizado quando a prática dele ou de outros aparentados eles. Por «prática» não me r e f i r o a exercícios especiais dados a algumas
nos preparou de há m u i t o para o usar sem hesitações ou escrúpulos. A poucas pessoas pelos professores de lógica, mas aos exercícios vulgares
força de u m argumento vulgarizado é imediatamente óbvia pela mesma feitos por toda a gente nas discussões de todos os dias e pela leitura,
razão que o significado de uma frase de l a t i m é imediatamente óbvio assim como aos exercícios mais académicos dados a quase todas as
quando estamos inteiramente habituados ao seu vocabulário e à sua pessoas na escola.
sintaxe. Saltam aos olhos ou manifestam-se subitamente agora, mas U m argumento é usado ou uma conclusão tirada, quando uma
nem sempre assim f o i nem é assim agora quando deparamos com argu- pessoa diz ou escreve, para consumo público ou privado, «Isto, p o r t a n t o
mentos ou frases de l a t i m de que não encontrámos sequer irmãos ou aquilo» ou «Por causa disto acontece aquilo» ou «Isto implica aquilo»,
primos. desde que o diga ou escreva sabendo que está autorizada a fazê-lo. O
Longe de ser verdade que o termo «inferência» designa uma ope- dizer ou escrever neste estado de espírito é evidentemente u m acto
ração na qual é feita uma descoberta, uma operação que não poderia mental e na verdade u m acto intelectual, visto que é u m exercício de
portanto ser repetida, significamos por «inferência» uma operação que uma dessas competências que são classificadas com propriedade de «in-
o pensador deve ser capaz de repetir. Ele não tem domínio de u m argu- telectuais». Mas isto não é dizer que é u m «acto mental» no sentido de
mento a menos que seja capaz de o produzir, assim como aos seus ser executado por detrás da cena. Pode ser feito em monólogos silen-
irmãos, em todas as espécies de ocasiões e em várias fórmulas. Não é cioso, mas também pode ser dito em voz alta ou escrito a t i n t a . N a ver-
suficiente que uma ideia nova e verdadeira lhe tivesse ocorrido uma vez dade, esperamos descobrir os argumentos mais subtis e mais cuidadosos
ao receber uma informação. Se merece a descrição de ter deduzido uma de u m pensador onde esperamos descobrir os melhores cálculos e de-
consequência de premissas, deve saber que a aceitação dessas premissas monstrações de u m matemático, designadamente quando os submete i m -
lhe dá o d i r e i t o de aceitar essa conclusão e os testes para provar se pressos à crítica dos seus colegas. Sabemos o que devemos suspeitar de
ele sabe isto seriam outras aplicações do princípio do argumento, u m pensador que se gaba de t e r u m bom argumento que não deseja ou
embora não se espere, evidentemente, que nomeie ou formule esse p r i n - não pode expor.
cípio in abstracto. Isto Ieva-nos a outro ponto. Vimos que havia uma certa incon-
Devemos portanto d i s t i n g u i r entre aprender a usar u m argumento gruência em descrever alguém como estando a certa a l t u r a e por u m
p a r t i c u l a r ou usar quaisquer argumentos de uma certa família, e certo período empenhado em passar de premissas para uma conclusão.
aprender novas verdades por meio do uso de tais argumentos. Quanto «Inferir» não é u m verbo usado com referência a u m processo lento ou
mais pronto for, melhor será provavelmente o nosso domínio do rápido. «Eu comecei a deduzir mas não tive tempo de acabar» não é
argumento. Mas a nossa aquisição deste domínio pode m u i t o bem ter coisa que faça sentido dizer. Tendo reconhecido esta espécie de incon-
sido gradual e talvez seja t a n t o mais seguro quanto mais gradual t i v e r gruência, alguns teóricos gostam de descrever a inferência como uma
sido a sua aquisição. Se uma pessoa mostra que pode usar u m a r g u - operação instantânea que, como u m clarão ou u m relâmpago, é comple-
mento, usando-o efectivamente com propriedade na descoberta de uma tada logo que começa. Mas este é o tipo de questão errada. A razão
nova verdade, mostra também que pode usar este mesmo argumento porque não podemos dizer que t i r a r uma conclusão é uma passagem
300 O INTELECTO 301
INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

lenta ou rápida, não é por ser uma passagem «pronto já está», mas rios. Eles não descrevem directamente «conseguimentos», mas algo que
por não ser de modo a l g u m uma passagem. U m a pessoa pode ser lenta t e m u m parentesco próximo com a posse.
ou rápida a chegar a Londres, a resolver u m anagrama e a d a r xeque- A suposição t r a d i c i o n a l de que os verbos-inferências designam
-mate ao Rei. Mas chegar a uma conclusão, como chegar a Londres, processos ou operações e x i g i r i a que quem as fizesse dissesse, em p r i m e i -
resolver u m anagrama e dar xeque-mate ao Rei, não são espécies de ro lugar, que estes processos ou operações t i n h a m a rapidez de uma
coisas que possam ser descritas como graduais, rápidas ou instantâneas. iluminação e em segundo lugar que a sua ocorrência era u m segredo
Podemos perguntar quanto tempo demorou uma corrida, mas não impenetrável do seu autor. Os argumentos produzidos por ele em
quanto tempo se levou a ganhá-la. Até u m certo momento a corrida discussões ou em folhas impressas seriam meras «expressões» das suas
estava ainda em progresso; a p a r t i r desse momento a corrida estava próprias operações privadas e meros estímulos aparentados com as
terminada e alguém era o vencedor. Mas este momento não f o i curto operações privadas aparentadas do seu autor. A má interpretação dos
ou longo. E n t r a r na posse de parte de uma propriedade é outro exemplo verbos de a r b i t r a g e m como verbos de biografia leva inevitavelmente
do mesmo género. As negociações preliminares podem demorar muito à procura da dupla-vida das biografias.
ou pouco tempo, mas a passagem de ainda não a possuir para ser seu A epistemologia do raciocínio, como muitos outros ramos da
possuidor não é nem rápida como u m relâmpago nem demorada como o epistemologia, submeteu-se a uma superstição especial, a superstição
amanhecer. «Passagem» é uma metáfora enganadora. É igualmente de que as operações de teorizar que se t e n t a m descrever deveriam ser
enganadora quando usada para descrever a mudança que ocorre quando descritas por analogia com visões. Toma como seu modelo padrão o
uma pessoa entra na posse de uma verdade sem a qual esteve a f u n - reconhecimento visual imediato, sem esforço e correcto do que é f a m i -
cionar por u m espaço de tempo longo ou curto. liar, esperado e claro, e não menciona o reconhecimento t a r d i o e hesi-
Quando uma pessoa tem u m argumento, o seu p r i m e i r o ou décimo tante ou o reconhecimento errado do que é estranho, inesperado o
quinto desenvolvimento dele, por meio de discurso ou de escrita, confuso. Além disso, toma como seu modelo o que é designado pelo
demoram certamente tempo. Pode dizê-lo para si própria m u i t o depres- verbo de realização visual « v e r » e não o que é designado pelas palavras
sa e expô-lo mais lentamente ao telefone. A comunicação de u m a r g u - de t r a b a l h o visual como «examinar», «analisar» e «olhar». Pensar coisas
mento pode demorar segundos ou horas. Usamos muitas vezes o verbo é descrito como consistindo, pelo menos em parte, em visões consecuti-
«argumentar», embora raramente usemos os verbos «inferir», «deduzir» vas de implicações. Mas isto é descrever o trabalho de teorizar por
ou «tirar conclusões» para o processo de comunicar u m argumento. analogia com o que não é trabalho mas s i m realização, ou é descrever
Neste sentido podemos dizer que a pessoa que fala f o i i n t e r r o m p i d a a o que são efectivamente treinos mais ou menos difíceis por analogia
meio de dizer as suas premissas e de dizer as suas conclusões ou que com realizações que são feitas sem esforço, precisamente porque uma
f o i hoje mais rapidamente das premissas para as conclusões do que o longa corrida de esforços prévios inculcou de há m u i t o a facilidade
fez ontem. De igual modo, u m gago pode demorar m u i t o tempo a dizer completa para as fazer. É como descrever uma j o r n a d a como se fosse
uma graça, mas não perguntamos quanto tempo levou a fazer a constituída por chegadas, as investigações como constituídas por
graça, nem perguntamos quanto tempo gastou u m pensador a chegar descobertas, ou estudar como constituído por êxitos.
às suas conclusões, independentemente de caminhar para elas. «Con- É verdade que muitas vezes as implicações são imediatamente
cluir», «deduzir» e «provar», t a l como «dar xeque-mate», «alcançar», óbvias, de certo modo como as piadas e as vacas são muitas vezes
«inventar» e «chegar» são, nos seus usos primários, aquilo a que imediatamente óbvias. T a l como nós, em circunstâncias favoráveis
chamei verbos de «conseguimento» e ao passo que as exposições de uma normais, não temos que estudar nada para concluir que a c r i a t u r a que
pessoa, ou outras coisas que ela conseguiu, podem t o m a r m u i t o ou pouco está no prado é uma vaca, também, em circunstâncias favoráveis
tempo, a sua transição de ainda não ter para já ter conseguido não pode normais, não temos que estudar nada para podermos dizer, por exemplo,
ser classificada por epítetos de rapidez. Quando uma pessoa usa estes «Então amanhã é o dia depois do Natal», ao lembrarmo-nos de que hoje
verbos no indicativo presente, como «Eu concluo», «Ele deduz» ou «Nós é dia de N a t a l . A q u i também, gozamos de i n t e i r a familiaridade, t a n t o
provamos», está a usá-los n u m sentido derivativo dos seus usos prima - com o argumento particular, como com uma série de irmãos e irmãs
302 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA OINTELECTO 303

deste argumento. Quando u m argumento está ele próprio vulgarizado ciais não é, por essa mesma razão, apropriada a outras. Quem esteve ao
ou pertence a uma espécie vulgarizada, não é necessário u m estudo pé da pessoa que contou anedotas não contou na verdade quaisquer
presente, visto que os encontros anteriores aparentados, com ele ou com anedotas. Apenas apreciou ou falhou na apreciação das anedotas con-
outros que o t o r n a r i a m vulgarizado, nos deram já esta preparação. tadas por ela. A assistência f o i ou não f o i receptiva, perspicaz ou não,
N e m temos que quebrar a cabeça quando nos pedem que demos o rápida ou lenta no entendimento, mas não f o i o r i g i n a l ou não o r i g i n a l ,
equivalente em inglês de mcnsa. inventiva ou não inventiva. Achou uma coisa engraçada ou não, ou
O mesmo é verdade a respeito de ver vacas. O nosso reconhecimen- não conseguiu achar-lhe graça, mas não disse nem fez qualquer coisa
to delas é hoje em dia instantâneo e feito sem esforço, precisamente com ou sem graça. Entender ou «ver» piadas é o papel da assistência,
porque os estudos preparatórios necessários que fizemos na nossa ao passo que fazê-las é o trabalho do gracejador. A assistência pode ser
infância v u l g a r i z a r a m de há m u i t o a aparência normal das vacas. As- descrita em metáforas contemplativas, mas o gracejador deve ser des-
sim, estes espécimes favoritos do acto instantâneo e sem esforço de crito em termos executivos. Se não se fizessem graças não e x i s t i r i a m
«ver» que u m a verdade se segue a outra não m o s t r a m nada acerca graças para serem entendidas. Porque, para se achar uma réplica enge-
do processo de aprender como usai' ou seguir argumentos, visto que nhosa, essa réplica deve ter sido feita. O próprio gracejador não pode
são apenas outros exemplos de coisas feitas com inteira facilidade «ver» o h u m o r da sua réplica até a ter feito, embora possa «vê-la» antes
por pessoas que já conseguiram pela prática a destreza em fazê-las. de a comunicar a uma grande assistência. « V e r » anedotas pressupõe o
É u m facto curioso que, embora façamos este uso metafórico do acto de fazer anedotas, t a l como as galerias de arte pressupõem cavale-
verbo « v e r » , e até mais comummente ao falar da nossa apreciação tes e os consumidores pressupõem produtores. Se a linguagem da cons-
instantânea de anedotas do que ao f a l a r da nossa aceitação instantânea trução, execução, invenção e produção não fosse aplicável aos graceja-
de argumentos, nenhum epistemologista supôs que gracejar implica dores, aos pintores e aos lavradores, a linguagem de «ver» piadas,
a ocorrência prévia de «actos mentais» de conhecer os pontos das apreciar quadros e consumir produtos agrícolas não t e r i a aplicação.
anedotas, t a l como supõem comummente que usar argumentos pressupõe O mesmo se aplica aos assuntos de teoria. Se não fossem dadas
«actos mentais» prévios de « v e r » implicações. Talvez isto seja assim provas, as provas não poderiam ser aceites. Se não se tirassem conclu-
apenas porque os Elementos de Euclides não contêm quaisquer anedo- sões, não se poderia a d m i t i r ou não a d m i t i r inferências, se não se
tas. Mas talvez a razão disto seja porque é evidente que o acto de fizessem afirmações não poderia haver aquiescência das afirmações.
«ver-uma-anedota» não poderia ser o antecedente causal de contar uma Porque, para u m j u i z concordar com u m veredicto, outro j u i z deve t e r
anedota, isto é, porque contar uma anedota não é «expressar» u m acto dado esse veredicto. Só os argumentos construídos e comunicados po-
antecedente de «ver-uma-anedota». dem ser examinados e só quando uma inferência f o i , pelo menos, deba-
Quero mostrar agora que usar u m argumento não «exprime» u m tida, se pode notar a presença ou ausência de uma implicação. Não
acto antecedente e «interno» de ver-implicações. Se alguém conta uma vemos uma implicação e tiramos depois uma conclusão, assim como
anedota, conclui-se que t i n h a uma anedota para contar e não só pode não aceitamos primeiramente a solução de u m anagrama e depois o
contá-la muitas vezes como também ver onde está a graça quando resolvemos. A s multiplicações têm de ser feitas antes de se lhes poder
alguém a conta. De i g u a l modo, se usa u m argumento, conclui-se que pôr o sinal de «certo».
tem u m argumento para usar e não só pode produzi-lo quantas vezes Estes contrastes entre o uso da linguagem contemplativa e da
f o r e m necessárias mas também compreender a sua força, quando a l - executiva ou construtiva na descrição do trabalho intelectual podem
guém o usa. Mas o facto de que a capacidade para usar u m argumento ser exemplificados de outro modo. Quando se ensina às crianças os p r i -
acarreta a capacidade de « v e r » as implicações quando outra pessoa meiros elementos de geometria, as provas dos teoremas são-lhes normal-
apresenta esse argumento, não exige que ele esteja causalmente l i m i - mente apresentadas em livros impressos ou escritas no quadro. A tarefa
tado ao acto de « v e r » imediatamente antes, ou durante o tempo em que dos alunos é estudar, seguir e concordar com essas provas. Aprendem
se usa o argumento. A metáfora contemplativa de « v e r » implicações por concordâncias. Mas quando se lhes dá as primeiras lições elementa-
ou anedotas, que é perfeitamente apropriada a certas situações espe- res de aritmética e álgebra, são solicitadas a t r a b a l h a r de uma maneira
304 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 305
O INTELECTO

completamente diferente. Têm de fazer as suas próprias somas, subtrac- inteligente de urna grande quantidade de termos abstractos e como
ções, multiplicações e divisões e não estudam soluções clássicas de concluir o seu uso de outros. Usam-nos, na m a i o r i a dos casos, sem
equações, antes têm de resolver as suas próprias equações. Aprendem perplexidade, coerente e apropriadamente, em afirmações gerais, ho-
fazendo operações. Consequentemente, ao passo que a linguagem con- milias, perguntas e argumentos. Reconhecem a utilidade, em certas
templativa pertence naturalmente à descrição e instrução dos alunos conjunturas, de classificar tais termos como «abstractos». Quando o
de geometria, a linguagem executiva pertence à instrução e descrição f i l h o lhe pergunta porque é que o Equador está marcado no mapa
dos alunos de aritmética e álgebra. Os alunos são criticados por não embora seja invisível para as pessoas que o atravessam, e como é que o
serem capazes de « v e r » ou «seguir» demonstrações, ao passo que são críquete se jogou em I n g l a t e r r a durante muitos anos embora nenhum
criticados por não serem capazes de «fazer» uma conta de d i v i d i r ou desafio de críquete dure mais de três ou quatro dias, o pai está pronto
«resolver» equações do segundo g r a u . De igual modo, falamos de para responder ou desviar a pergunta dizendo que o Equador e o críque-
traduções como sendo feitas ou dadas em vez de serem admitidas ou te são apenas Ideias Abstractas. Dizer isto é dizer, embora não seja
adoptadas. provável que o leigo ponha a questão deste modo, que essas afirmações,
Infelizmente, a lógica f o r m a l f o i ensinada desde o princípio do perguntas e argumentos que adoptam termos abstractos como «Equa-
suposto modo geométrico, e o resultado é que a epistemologia do racio- dor», «Contribuinte Médio» e «Críquete» estão n u m mais alto nível
cínio e do trabalho intelectual continua a ser expressa principalmente de generalidade do que a sua sintaxe sugere. São ditos como se conti-
em linguagem contemplativa, isto é, em termos apropriados a salas de vessem menções a coisas, pessoas e desafios individuais, quando de
aulas equipadas com quadros, mas sem canetas ou papéis, em vez de facto se referem, de diferentes modos, a classes de coisas, pessoas e
se falar em termos apropriados a salas de aula equipadas com canetas desafios que não são mencionados individualmente.
e papel, mas sem quadros. Somos levados a compreender que «conhecer» Se u m a pessoa está n u m dado momento a usar u m termo abstracto,
não é concluir qualquer coisa, mas essa coisa ser-nos mostrada. Se significativamente e com conhecimento do seu significado, pode dizer-se
a aritmética e o xadrez tivessem sido incluídos neste programa em vez que está a usar uma ideia abstracta ou mesmo a t e r u m pensamento,
da geometria e da lógica f o r m a l , o trabalho de teorizar poderia ter sido noção ou conceito abstractos. E a p a r t i r destas expressões infelizes e
comparado à execução de cálculos e aberturas de jogo em vez de ao inócuas f o i fácil passar a afirmações de diagnóstico semelhantes e mais
esforço para obter u m lugar de onde o quadro possa ser visto clara- profundas, como as de que esse termo abstracto «exprime» a ideia
mente. Poderíamos t e r adquirido o hábito de falar de inferência no abstracta que ela está a ter. Surgem então perguntas excitantes na sua
vocabulário do campo de futebol em vez de usar o vocabulário da t r i b u - cabeça. Como e quando f o r m o u a sua ideia abstracta? Onde estava e o
na e teríamos pensado nas regras da lógica mais como licenças para que estava a fazer no período entre o seu último e o seu presente uso
fazer inferências do que como licenças para concordar com elas. Assim, dela? É u m pouco como u m quadro confuso nos olhos do espírito o u é
não nos teria ocorrido que u m acto de «ver» interiormente uma implica- mais semelhante a u m amontoado de quadros mentais claros, cada u m
ção deve ser u m prelúdio de usar qualquer argumento. Teria sido óbvio, dos quais difere ligeiramente dos seus vizinhos? Esses espíritos são os
como é verdade, que uma pessoa pode ser descrita a « v e r » que uma únicos armazéns que poderiam g u a r d a r essas preciosidades se não se
verdade se conclui de outra, apenas quando ouve ou lê, talvez na sua tratasse, evidentemente, de artigos etéreos.
cabeça, o argumento promulgado «Isto, portanto aquilo», «por causa
N a vida real, ninguém fala nunca deste modo. Ninguém recusa
disto, aquilo», ou a afirmação «se isto, então aquilo». Discutirei com
tomar parte n u m jogo alegando que está ocupado a f o r m a r u m a
brevidade mais u m exemplo da interpretação errada da terminologia.
ideia abstracta, ou diz que acha o t r a b a l h o de conceber conceitos mais
Há certas espécies de expressões de uso corrente, tanto em teóricos como
difícil e mais longo do que o de fazer uma conta de d i v i d i r . Ninguém
nos leigos, que são apropriada e convenientemente classificadas de
diz que acabou de encontrar u m a ideia abstracta depois de t e r andado
«abstractas». U m a m i l h a é uma abstracção, t a l corno a Dívida Nacional,
extraviada durante semanas, ou que a sua ideia de c o n t r i b u i n t e médio
o Equador, o C o n t r i b u i n t e Médio, a Raiz Quadrada de 169 e o Críquete.
não é suficientemente confusa ou, como a l t e r n a t i v a , que não é suficien-
Todas as pessoas moderadamente instruídas sabem como fazer uso
temente fotográfica para poder desempenhar o seu papel. N e n h u m pro-

i . p. — 20
306 INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA O INTELECTO 307

fessor diz aos alunos que se sentem e façam algumas abstracções, nem «Curva de Nível». A outra descrição tenta-nos a supor que durante
lhes dá boas ou más notas pelos seus exercícios de tais tarefas. N e n h u m o período de três semanas alguma coisa esteve a ser lentamente desti-
romancista p i n t a o seu herói a a b s t r a i r resolutamente, com vivacidade lada ou composta no seu interior metafórico ou que algo como u m
ou com a l g u m ânimo. O verbo «abstrair» não é, evidentemente, u m negativo esteve a ser revelado numa câmara escura metafórica, mesmo
verbo biográfico genuíno e não é p o r t a n t o u m verbo apropriado sequer enquanto ele estava ocupado a ver futebol, a comer ou a d o r m i r .
a biografias-sombra. «As Curvas de Nível são abstracções» ou « A s linhas de curvas de
Consideremos u m novo exemplo. Os contornos geográficos são nível são símbolos abstractos dos mapas» é uma instrução adequada e
certamente abstractos. O soldado não encontra nada na encosta que útil para ser dada por u m professor desta ciência a eventuais leitores ou
corresponda à curva de nível de 300 pés marcada no seu mapa, do produtores de mapas. «As curvas de nível são a expressão exterior dos
mesmo modo que encontra rios e estradas correspondendo aos símbolos actos mentais de conceber altitudes acima do nível do m a r dos produ-
dos mapas para rios e estradas. Mas embora as curvas de nível sejam tores de mapas» sugere que ler u m mapa implica penetrar na vida-
símbolos abstractos, n u m sentido em que os símbolos dos rios não são -sombra impenetrável de u m certo superintendente anónimo.
abstractos, o soldado pode saber m u i t o bem lê-las e usá-las. A o identi-
f i c a r a m a t a com u m a mata marcada no mapa, pode dizer a que a l t i t u d e (5) DIZER E ENSINAR

está, a que a l t i t u d e deve subir para chegar ao cume e se poderá ver a


ponte p o r cima do caminho de ferro quando há nevoeiro. Pode Neste capítulo, t a l como noutra parte deste l i v r o , dei tratos
fazer u m mapa com curvas de nível imperfeitas, pode marcar e i r a à imaginação para d i s t i n g u i r diferentes espécies de conversa, a social,
entrevistas em pontos de curvas de nível dados e pode f a l a r acertada- a tagarelice espontânea, da conversa vulgar, a conversa cuidadosa
mente acerca de curvas de nível. Assim, por m u i t o surpreendido que dos reticentes e insinceros e a maneira de falar estudada e não coloquial
fique com esta alegação, t e m uma ideia abstracta de Curva de Nível. do professor. Neste capítulo referimo-nos particularmente a esta últi-
Mas ao dizer que ele t e m essa ideia não estamos a dizer que existe ma, designadamente ao discurso didáctico, escrito ou falado, exposto a
algo de impalpável que ele e só ele pode descobrir se concentrar a sua o u t r e m ou d i r i g i d o a s i próprio, no qual uma pessoa ensina o que t e m
atenção nisso. Estamos a dizer que pode executar, executa regularmen- para ensinar. A razão principal para insistir aqui nos métodos objecti-
te o u está a executar agora precisamente algumas das tarefas descritas, vos e mesmo no t o m de voz dos discursos didácticos é que é em termos
juntamente com uma variedade indefinida de tarefas afins. de discurso didáctico que o conceito de intelecto é explicado. Pelo menos
A pergunta «Como é que ele f o r m o u a sua ideia abstracta?» uma parte importante do que queremos dizer com «capacidades intelec-
transforma-se na pergunta «Como é que ele a d q u i r i u esta aptidão ou tuais» são essas capacidades específicas inculcadas originalmente e
competência específica?» Ele próprio pode dar a resposta a esta per- desenvolvidas principalmente por meio de discursos didácticos e que
gunta. A s s i s t i u a conferências de l e i t u r a e desenho de mapas. F o i são elas próprias exercidas, inter alia., ao ensinar as mesmas lições ou
mandado para regiões estranhas com uma bússola e u m mapa. Dis- adaptações ou desenvolvimentos delas noutras alocuções. O discurso
seram-lhe que notasse como as algas deixadas por uma recente inun- didáctico é o veículo de transmissão do conhecimento.
dação t i n h a m formado uma linha ao longo das encostas, doze pés acima Mas há também uma razão mais geral para discutir as diferentes
do lago. Perguntaram-lhe o que f i c a r i a escondido e o que f i c a r i a à vista espécies de conversação. Os epistemologistas souberam sempre que
se uma nuvem descesse até 300 pés acima do nível do mar. Riram-se existem algumas relações estreitas entre pensamento e discurso, mas as
dele quando desenhou u m mapa em que as curvas de nível se cruzavam suas explicações sobre tais relações f o r a m sempre retardadas pela su-
ou quebravam. Demorou três semanas a aprender perfeitamente as posição táctica de que existe uma actividade nuclear homogénea de
coordenadas. Poderíamos parafrasear isto dizendo que esteve durante dizer coisas. Usaram, sem escrúpulo aparente, verbos como «afirmar»,
três semanas a f o r m a r a ideia abstracta de Curva de Nível. Mas seria «expor», «enunciar», «declarar», «descrever», «asseverar», «expressar»,
mais seguro e mais n a t u r a l dizer que demorou três semanas a aprender «dizer» e «discorrer» como se fornecessem uma descrição completa e
como se lêem e usam as curvas de nível e como é usada a palavra não ambígua do que uma pessoa está a fazer, quando é descrita a fazer
308 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 309

uma ou o u t r a destas coisas. Mas não existe qualquer actividade nuclear possível precisamente porque se pode ensinar ao i m a t u r o o que só quem
u n i l a t e r a l de dizer coisas. O que é d i t o pode ser dito coloquial, lison- t e m maturidade poderia t e r descoberto. A s ciências desenvolvem-se
j e i r a , tranquilizadora, peremptória, divertida ou criticamente, e assim porque os alunos das universidades podem ser treinados, por meio
por diante. F a l a r de u m modo provocador é diferente de f a l a r fazendo de u m ensino adequado, para começar onde Euclides, H a r v e y e N e w t o n
confissões e ambas as coisas são diferentes de falar metódica, amea- acabaram.
çadora ou provocantemente. Mesmo o que escrevemos deve ser dito
Além disso, o discurso didáctico é impessoal e intemporal, no sen-
n u m t o m de voz especial e o que dizemos a nós próprios nas nossas
tido em que as lições t r a n s m i t i d a s por ele poderiam ser dadas por
cabeças não é d i t o n u m t o m de voz monocórdico.
qualquer professor convenientemente preparado a qualquer o u t r a assis-
F a l a r e escrever didàcticamente são as espécies que nos interessam tência convenientemente preparada e as ocasiões para o fazer não são
aqui. É o modo de f a l a r no qual, diferentemente de muitos outros, o que fixas, como as de conversar, discutir, assegurar ou fazer observações.
dizemos deve ser conservado no espírito. A maior parte dos outros Se uma réplica, u m sinal de trânsito ou uma promessa não são feitos
modos de f a l a r não têm a intenção de ser conservados no espírito, mas por u m a pessoa p a r t i c u l a r a o u t r a pessoa p a r t i c u l a r numa conjuntura
são para ser respondidos ou para se actuar de acordo com eles. O modo particular, a oportunidade de o fazer foi-se para sempre, mas se Fulano
de f a l a r didáctico, diferentemente da m a i o r parte dos outros, t e m a f a l t o u à lição de ontem sobre o conjuntivo em l a t i m o u se não acabou
intenção de melhorar o espírito do ouvinte, isto é, melhorar o seu equi- de ler o capítulo sobre o tamanho e distância a que se encontra a L u a ,
pamento o u fortalecer as suas capacidades. E n s i n a r é ensinar alguém a sua recepção dessas lições poderá ser a mesma que antes, amanhã
a fazer, o que implica dizer coisas, e espera-se que u m aluno continue ou na próxima semana. Não escapará àqueles que estão familiarizados
a ser capaz de fazer aquilo que f o i ensinado a fazer, pelo menos umas com discussões filosóficas sobre a natureza e estado daquilo a que se
tantas vezes depois de t e r recebido esse ensinamento. A s lições são para chama «proposições» que os predicados pelos quais as proposições
serem aprendidas e não esquecidas. N u m a palavra, ensinar é equipar são descritas são exactamente aqueles que pertencem ex officio aos
deliberadamente. Evidentemente que nem todo o ensino é feito por meio trabalhos do discurso didáctico e não pertencem a réplicas, cantigas
de se f a l a r didàcticamente. As crianças aprendem coisas seguindo ao desafio, perguntas, interjeições, condolências, acusações, votos, or-
exemplos que podem ou não ser dados deliberadamente para que elas dens, reclamações ou a outras das muitas espécies de coisas que se
os i m i t e m . Algumas lições são ensinadas por exemplos dados e por dizem não didàcticamente. Não é por acidente que alguns teóricos
demonstrações feitas deliberadamente. Algumas são ensinadas por gostam de d e f i n i r as «operações intelectuais» como operações com
simples exercício, outras pelo ridículo e assim sucessivamente. proposições e outros teóricos gostam de d e f i n i r «proposições» como
Portanto, o discurso didáctico, como outras espécies de lições, produtos ou acessórios de operações intelectuais. Ambos se referem
mas diferentemente da m a i o r parte das outras espécies de conversação, implicitamente às nossas actividades e poderes de dar, aprender e
t e m a intenção de ser lembrado, i m i t a d o e recitado por quem o ouve. u t i l i z a r lições sem, evidentemente, mencionar explicitamente assuntos
Pode ser repetido sem perder o seu sentido e é apropriado para retrans- tão vulgares.
missão por palavra falada ou escrita. A s lições assim ensinadas podem Toda a conversação exerce alguma influência específica. U m a
ser conservadas de u m modo pelo qual as lições ensinadas por meio pergunta é f e i t a para ser ouvida, compreendida e respondida. U m a
de demonstrações e exemplos não podem ser conservadas. Podem por- oferta é feita para ser considerada e aceite. U m a ameaça é f e i t a para
t a n t o ser acumuladas, reunidas, comparadas, seleccionadas e critica- dissuadir e uma condolência para. dar conforto. A conversação didáctica
das. Assim, podemos aprender tanto o que os nossos avós ensinaram t e m a finalidade de i n s t r u i r . O professor de natação diz coisas aos seus
aos nossos pais, como o que os nossos pais acrescentaram às lições alunos, mas o que ele pretende principalmente não é conseguir que os
que lhes t i n h a m sido ensinadas. A s descobertas originais p o r meio das alunos d i g a m essas mesmas coisas, mas s i m que façam agora os m o v i -
quais m e l h o r a r a m a sua instrução podem ser incorporadas no ensino mentos requeridos com os braços e com as pernas e que mais tarde
ministrado aos seus filhos, porque não é preciso génio para aprender façam movimentos como estes sem o acompanhamento de instruções
o que requereu génio para ser inventado. O progresso intelectual é faladas ou silenciosas. Por último, talvez o aluno ensine outros novatos
O INTELECTO 311
310 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

A excelência da tradução também requer pensamento cuidadoso, mas


a nadar ou pelo menos se ensine a si próprio a fazer novos movimentos
as regras e cânones que têm de ser observados não são apenas regras
e a fazer os movimentos antigos em condições mais difíceis. Aprender
de inferência. A imperfeição de uma tradução mostra u m pensamento
a lição dada é tornar-se competente, não simples ou p r i m a r i a m e n t e
deficiente mas não falacioso. Não se pedem provas nem há má d i s t r i -
papagueando-a, mas fazendo de u m modo sistemático uma grande va-
buição de termos médicos na composição de u m soneto mètricamente
riedade de outras coisas. O mesmo se adapta a lições mais académicas,
incorrecto.
como de pronúncia, de geografia, de gramática, de estilo, de botânica,
de cálculo e de raciocínio. Aprendemos por estas lições a dizer e fazer E s t u d a r coisas implica dizer coisas a s i próprio ou aos seus com-
coisas, m u i t a s das quais não são ecos das palavras das lições. panheiros com u m i n t u i t o i n s t r u t i v o . A afirmação de cada proposição
t e m a intenção de equipar, de preparar o aluno para converter aquilo
A influência didáctica pode ser exercida, não somente por uma
que lhe dizem noutras descrições, para usá-lo, por exemplo, como pre-
pessoa sobre outra, mas também por uma pessoa sobre si própria. E l a
missa ou como máxima de procedimento. T a l como numa sala de aula,
pode ensinar-se a si própria a dizer e a fazer coisas que não são eco
também numa discussão entre pessoas e numa cogitação privada, nem
das palavras pelas quais se fez essa aprendizagem, t a l como pode dar
o professor nem o aluno são sempre eficientes, pacientes, atentos ou
ordens a si própria que depois cumpre por meio de movimentos ma-
concentrados. A lição pode ter de ser repetida, reconstruída, adiada ou
nuais e assim pode dizer a si própria coisas que depois t r a n s f o r m a em
retardada. As respostas de quem a recebe podem ser erradas, sem sen-
novos movimentos didácticos. Tendo d i t o a si própria que estão sete
tido, hesitantes, despropositadas ou superficiais. O progresso feito n u m
latas na garagem e que cada uma contém u m l i t r o de gasolina, pode
dia pode parecer completamente perdido no dia seguinte e a perplexi-
depois dizer a si própria que há sete l i t r o s de gasolina na garagem. As
dade demorada pode dar l u g a r n u m momento a u m grande progresso
actividades a que chamamos «pensar em coisas», «pensar», «conside-
que faz o pensador admirar-se de que uma tarefa que parecia tão
rar», «debater» e «cogitar» são evidentemente capazes de ser progres-
difícil ontem seja tão fácil hoje. Amanhã dirá talvez que os resultados
sivas. Podem obter novos resultados. As respostas a algumas, mas não
obtidos não conduziram a nada mas que apenas lhe t r o u x e r a m mais
a todas as perguntas, podem ser descobertas por conversa privada ou
tarefas como as que já t i n h a realizado para chegar a u m certo resul-
entre pessoas, visto que a conversa é a maneira de falar certa e é feita
tado. Descobriu talvez como usar a proposição de ontem como uma
com certa habilidade, trabalho e cuidado. A conversa jocosa não resol-
premissa, mas a conclusão obtida hoje pode por seu lado tornar-se numa
ve problemas algébricos nem produz uma corrente confusa de expres-
nova premissa. Os seus resultados podem sempre ser usados como
sões algébricas. Quando comentamos as aptidões e limitações intelec-
lições, das quais, com habilidade, t r a b a l h o e sorte, se podem obter ou-
tuais de uma pessoa, as principais coisas que tomamos em consideração
tros resultados.
são a sua eficiência e habilidade na execução delas. Pode pensar-se que,
ao referir-me à obtenção de novos resultados por meio de trabalho Vemos então que o facto bem conhecido de que a acção de ponderar
intelectual, estou a f a l a r simplesmente de dedução ou, mais em geral, pode ser progressiva, apesar de consistir apenas numa produção em
de inferência. Mas isto, se bem que de u m a espécie m u i t o i m p o r t a n t e , série de orações semelhantemente inertes, não é inexplicável. Certas
não é a única espécie de pensamento progressivo. Quando m u l t i p l i c a - espécies de orações, comunicadas e recebidas adequadamente, têm u m
mos ou dividimos chegamos por meio do pensamento a respostas ante- efeito i n s t r u t i v o . Ensinam-nos a fazer e a dizer coisas que não eram
r i o r m e n t e desconhecidas a certas perguntas, mas não chamamos a ditas ou feitas na sua comunicação. Alguns pensadores confundiram-se
essas respostas «conclusões»; nem chamamos aos erros «falácias». com a pergunta «Como pode uma pessoa conseguir saber coisas novas
O h i s t o r i a d o r , tendo reunido uma quantidade de factos relevantes, à força de dizer simplesmente a si própria coisas que já sabe?» Não
t e m de pensar antes de fazer uma descrição coerente de u m a campanha, f i c a r i a m confundidos com a pergunta «Como pode u m novato aprender
mas a coerência da sua descrição f i n a l é de u m género completamente a fazer certos movimentos novos de natação, ouvindo as palavras do
diferente da de uma cadeia de teoremas. A sua descrição conterá uma i n s t r u t o r que está sentado n u m banco?» nem mesmo com a pergunta
série de inferências e deverá estar isenta de contradições, mas para «Como pode u m novato aprender a fazer movimentos de natação novos
ser uma boa história deve t e r também outros méritos intelectuais. e correctos, escutando as palavras que dirige a si próprio?» A pergunta
312 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA O INTELECTO 313

«Como pode uma pessoa aprender a fazer novos movimentos didác- grega, mas normalmente não tenho de me lembrar de quaisquer regras
ticos escutando as prelecções com intenção i n s t r u t i v a feitas pelo seu da gramática grega antes de i n t e r p r e t a r uma oração em grego. I n t e r -
monitor, pelo seu colega ou por ela própria?» já não contém assim preto de acordo com essas regras, mas não apelo para elas, a menos
qualquer mistério. que me encontre em dificuldades.
Há uma tendência entre os epistemologistas e moralistas para
(6) A PRIMAZIA DO INTELECTO supor que t e r u m espírito é ter, dentro de s i , não apenas potencial mas
efectivamente, u m ou dois mestres, que são a Razão e a Consciência,
A g o r a já é fácil d i s t i n g u i r o sentido em que as operações intelec- Por vezes a Consciência é t r a t a d a como se fosse a Razão a f a l a r no
tuais são mais elevadas e «governam» os exercícios de outras capaci- seu t o m de voz sabático. Supõe-se que estes mestres interiores sabem,
dades mentais, do sentido em que neguei que a ocorrência de operações visto que são competentes para ensinar, as coisas que a sua assistên-
intelectuais está implícita em todas as descrições que fazemos das cia ainda não sabe. A m i n h a Razão é o que eu ainda não sou, isto é,
acções e reacções que englobam conceitos mentais. perfeitamente racional, e a m i n h a Consciência é o que eu ainda não
O t r a b a l h o intelectual t e m uma primazia c u l t u r a l , visto que é o sou, isto é, perfeitamente consciente. Não têm nada a aprender. E se
trabalho daqueles que receberam e podem dar educação mais elevada, perguntássemos «Quem ensinou à m i n h a Razão e à m i n h a Consciên-
nomeadamente por meio de discurso didáctico. É aquilo que constitui, cia as coisas que aprenderam e não esqueceram?» falar-nos-iam talvez
ou é condição sine qua non, da cultura. Para f a l a r claro, os selvagens de instrutores correspondentes alojados no i n t e r i o r das nossas almas.
e as crianças não realizam trabalho intelectual, visto que, se o fizes- Há evidentemente uma intenção séria por detrás deste m i t o i n f a n t i l ,
sem, decrevê-los-íamos pelo menos como semi-civilizados ou próximos t a l como há u m a intenção séria por detrás do meu comentário
da idade escolar. Há uma espécie de contradição em f a l a r de u m inte- irreverente dele. É inteiramente verdade que quando u m a criança
lecto completamente inculto, a menos que nos estejamos a r e f e r i r à aprendeu em parte uma coisa e a aprendeu em parte por meio de dis-
capacidade de alguém para aproveitar de t a l instrução, mas não há cursos didácticos dos seus pais ou dos professores, a d q u i r i u alguma
contradição em f a l a r de u m espírito completamente inculto. A i n s t r u - capacidade e inclinação para dar a s i própria lições de recapitulação
ção de u m a pessoa exige que ela tenha já adquirido a capacidade para no t o m m a g i s t r a l deles. Não t e m que se a d m i r a r , em situações destas,
receber essa instrução. A s conferências não podem ser seguidas e com o que lhe d i r i a m ou com o que deveria dizer a s i própria. Conhece
muitos menos feitas p o r pessoas que não podem ainda usar ou seguir suficientemente bem as partes vulgarizadas das suas lições para as
uma conversa simples. t r a n s m i t i r sem hesitação, apropriadamente e com a gravidade ade-
É p o r t a n t o absurdo f a l a r como se assistir, tentar, querer, recear, quada e, quando o faz, se assim se quiser, «ouve a voz da Razão» o u
divertir-se, perceber, t e r em mente, recordar, tencionar, aprender, pre- da «Consciência» a f a l a r a u t o r i t a r i a m e n t e , de u m modo completamente
tender, j o g a r ou tagarelar pudessem acontecer apenas em obediência a semelhante, digamos, ao do seu p a i ou ao seu próprio. Pode facilmente
instruções dadas didàcticamente, t a n t o p o r u m i n s t r u t o r interno como dar a s i própria instruções que ainda acha difíceis de observar. A s suas
externo. Contudo, isto é inteiramente compatível com dizer que u m ordens estão necessariamente avançadas em relação à sua prática,
certo g r a u de realização intelectual é condição sine qua non de, p o r visto que o objectivo das comunicações didácticas é inculcar práticas
exemplo, querer ser u m advogado, divertir-se com u m d i t o de espírito melhores do modo de fazer as coisas. Nesta fase ela pode t e r apren-
de V o l t a i r e , t e r em mente as regras das orações gregas no condicional, dido m u i t o bem como e quando dizer a s i própria que faça as coisas
ou identificar u m magneto ou uma g a r a n t i a de dividendos. Mesmo embora ainda não tenha aprendido m u i t o bem a fazê-las. Pode acon-
assim, descrever alguém a fazer qualquer coisa que não poderia t e r tecer algo de correspondente quando está a t e n t a r t r a d u z i r uma frase
feito sem t e r t i d o anteriormente uma certa instrução, não implica de l a t i m . E x p e r i m e n t a dificuldades com a sintaxe da sua frase, pode
dizer que ela deve t e r recitado todas ou algumas dessas lições anterio- «escutar» o u «ouvir» as regras de sintaxe apropriadas a serem-lhe
res, imediatamente antes de t e r actuado. E u não poderia ler agora u m a ditadas n u m t o m de voz que é em parte o seu e em parte o do profes-
oração em grego se anteriormente não tivessem aprendido a gramática sor. Esta voz pode então ser pitorescamente descrita como «a Voz da
314 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 315
O INTELECTO

Gramática Latina». Mas, neste caso, a proveniência da «voz» seria (7) EPISTEMOLOGIA
demasiadamente óbvia para alguém f a l a r seriamente da fonte o r i g i n a l
que esclarece as suas dúvidas gramaticais como u m filólogo interno e Antes de concluir este capítulo, devemos considerar u m assunto
angélico. académico e específico. Há u m a parte da filosofia que se chama t r a -
E s t a menção à consciência e ao conhecimento da gramática l a t i n a dicionalmente «Teoria do Conhecimento» ou «Epistemologia». A nossa
leva-nos de v o l t a a u m assunto já mencionado mas não discutido, ou pergunta presente é: «Que espécies de teorias relativas ao conheci-
seja, às actividades intelectuais diferentes das de teorizar. O conheci- mento deviam tentar construir cs epistemologistas, dado que descobri-
mento g r a m a t i c a l é, por exemplo, saber como compor e i n t e r p r e t a r mos algo de radicalmente errado em partes importantes das teorias
frases em l a t i m e o conhecimento m o r a l , se é que esta frase forçada que nos oferecem? Se toda a imponente engrenagem de termos como
se pode usar, é saber como se comportar em certas espécies de situações, «ideia», «concepção», «juízo», «inferência» e outros f o r a m erradamente
nas quais os problemas não são n e m simplesmente teóricos nem s i m - transferidos das descrições funcionais dos elementos das teorias ex-
plesmente técnicos. O conhecimento do xadrez o u do bridge é uma postas para a descrição de actos e processos de construir teorias,
capacidade intelectual que é exercida em t e n t a r ganhar jogos. A estra- o que resta da teoria do conhecimento? Se estes termos não designam
tégia é u m conhecimento que é exercido em t e n t a r ganhar batalhas. os fios e roldanas ocultos pelos quais se supõe erradamente que as
A experiência teórica e prática do engenheiro ensina-o a desenhar operações intelectuais funcionam, qual é a matéria adequada da teoria
pontes e não, salvo per accidens, a construir ou a expor teorias. do conhecimento?»
A frase «teoria do conhecimento» poderia ser usada para designar
A razão por que chamo a tais jogos e trabalhos «intelectuais»
qualquer destas duas coisas. (1) Poderia ser usada para designar a
não é m u i t o difícil de encontrar. Não só a educação necessária para
teoria das ciências, isto é, o estudo sistemático das estruturas das
ensinar as artes, mas também m u i t a s das operações necessárias para a
teorias. (2) Ou poderia ser usada para designar a teoria da aprendi-
prática delas, são homogéneas às requeridas para e nas tarefas de
zagem, descoberta e invenção.
construir, expor e aplicar teorias. A capacidade para compor e inter- (1) A teoria filosófica das ciências ou, mais generalizadamente,
p r e t a r frases latinas é u m a arte, ao passo que a filologia de língua de teorias, faz uma descrição funcional dos termos, afirmações e a r g u -
l a t i n a é u m a ciência. Mas a aprendizagem e a prática de u m a coincidem mentos assim como de muitas outras espécies de expressões que e n t r a m
com parte da aprendizagem e aplicação da outra. O engenheiro não na formulação das teorias. Poderia ser chamada «a Lógica da Ciência»
c o n t r i b u i com qualquer progresso para a física, (mímica ou economia, ou, metaforicamente, «a Gramática da Ciência» (mas o t e r m o «ciên-
mas a competência na engenharia não é compatível com a ignorância cia» não seria usado tão restritamente que excluísse as teorias não
completa destes ramos da teoria. Mesmo que não haja cálculos, pelo sancionadas por academias científicas). E s t a espécie de descrição não
menos u m a certa estimativa de probabilidades faz parte integrante relata ou alude a episódios da vida de cientistas individuais. Não des-
de j o g a r u m jogo de cartas intelectual e isto é em parte a razão porque creve portanto, n e m alude, a quaisquer supostos episódios privados
os descrevemos como «intelectuais». dessas vidas. Descreve de u m modo especial o que é ou pode ser encon-
É fácil ver que o desenvolvimento intelectual é uma condição da t r a d o em livros.
existência de todas as ocupações e interesses, excepto das mais p r i - (2) Como existe a prática e a profissão de ensinar, poderia exis-
m i t i v a s . Todo o progresso n u m ofício, n u m jogo, n u m projecto, n u m t i r u m ramo de teoria filosófica respeitante aos conceitos de aprender,
divertimento, numa organização o u numa indústria está necessaria- ensinar e examinar. A isto poderia chamar-se «a filosofia da apren-
dizagem», «a metodologia da educação», ou d u m modo mais geral
mente f o r a do alcance dos selvagens e crianças incultos, ou então não
«a Gramática da Pedagogia». E s t a seria a teoria do conhecimento no
lhe poderíamos chamar «progressivo». Não temos de ser cientistas
sentido de ser a teoria de obter conhecimento. Este estudo servir-se-ia
para resolver anagramas ou j o g a r whist. Mas não podemos ser anal-
dos termos nos quais são descritos certos episódios da vida dos i n d i -
fabetos, pois temos de ser capazes de somar e subtrair.
víduos prescritos por professores e examinadores.
316
INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

Os grandes epistemologistas Locke, Hume e K a n t avançaram


muito a Gramática da Ciência, quando pensaram que estavam a discu-
tir partes da história da vida oculta de pessoas que adquirem conhe-
cimento. Discutiram as credenciais das espécies de teorias, mas fize-
ram-no em alegorias para-fisiológicas. A recondução recomendada dos
nomes da epistemologia tradicional ao seu próprio lugar na anatomia
das teorias construídas teria sido de uma influência salutar nas nossas
teorias sobre os espíritos. U m a das razões mais fortes para se acre-
CAPITULO X
ditar na doutrina de que um espírito é um tablado privado é o hábito
arraigado de supor que têm de existir «actos cognitivos» e «processos
cognitivos» cujos nomes foram pervertidos para terem significado.
Assim, visto que nenhuma das coisas que podemos testemunhar que PSICOLOGIA
Fulano faz são actos requeridos de ter ideias, abstrair, fazer juízos
ou passar de premissas para conclusões, pareceria necessário situar
estes actos num tablado a que só ele tivesse acesso. A abundância de
pormenores biográficos convincentes dada pelas alegorias dos episte- (1) O PROGRAMA DA PSICOLOGIA

mologistas foi, pelo menos no meu caso, o que me deu um dos dois mo-
tivos mais fortes para aderir ao mito do fantasma na máquina. Os epi- No decurso deste livro, falei muito pouco da ciência da psicologia.
sódios imputados pareciam ser impenetràvelmente «internos» porque E s t a omissão terá parecido particularmente perversa, visto que todo
eram genuinamente não testemunháveis. Mas não eram testemunhá- o livro poderia ser correctamente descrito como um ensaio, não, é ver-
veis precisamente porque eram míticos. E r a m hipóteses causais subs- dade, de psicologia científica, mas de psicologia filosófica. Parte da
tituídas por descrições funcionais dos elementos das teorias expostas. explicação desta omissão é a seguinte: examinei o comportamento
lógico de um conjunto de conceitos, todos eles regularmente empre-
gados por todas as pessoas. Os conceitos de aprender, praticar, tentar,
dar atenção, pretender, querer, ponderar, argumentar, esquivar-se,
olhar, ver e ser perturbado não são conceitos técnicos. O seu uso pelos
psicólogos não é diferente do seu uso pelos romancistas, biógrafos,
historiadores, professores, magistrados, guarda-costas, políticos, de-
tectives e homens da rua. Mas isto não é tudo.
Quando pensamos na ciência ou ciências de psicologia, estamos
aptos e somos muitas vezes levados a equacionar os programas oficiais
da psicologia com as investigações que os psicólogos efectivamente
fazem, as suas promessas públicas com as suas acções de laboratório.
Assim, quando há duzentos anos a palavra «Psicologia» foi criada,
supôs-se que a fábula dos dois mundos era verdadeira. Consequente-
mente, supôs-se que, dado que a ciência newtoniana explica (como erra-
damente se pensou) tudo o que existe e acontece no mundo físico,
poderia e deveria existir uma outra ciência, simétrica que explicasse
o que existe e acontece no mundo não físico postulado. T a l como os
cientistas newtonianos estudaram os fenómenos de um campo, deveriam
318 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PSICOLOGIA 319

existir outros cientistas que estudassem os fenómenos do outro campo. não, esses tons de voz, expressões faciais e gestos, que sempre consti-
Supôs-se que «Psicologia» era o título de um estudo empírico de «fenó- tuíram os pontos de referência de todos os outros estudiosos de homens,
menos mentais». Além disso, tal como os cientistas newtonianos exami- foram afinal as únicas manifestações certas a poderem ser estudadas.
naram os seus pormenores por meio de percepção visual, auditiva e E l a s e só elas mereceram, mas felizmente não receberam, o grandioso
táctil, também os psicólogos descobririam e examinariam os seus título de «fenómenos mentais».
pormenores simétricos por uma contrapartida de percepção não visual, Mas embora o programa oficial da psicologia prometesse que o
não auditiva e não táctil. assunto que constituía a matéria das suas investigações consistiria em
Evidentemente que não se negou que existissem ou pudessem existir acontecimentos diferentes, e situados «por detrás», desses pedaços
muitos outros estudos, sistemáticos ou não, do comportamento especi- de comportamento humano que eram acessíveis aos outros estudos do
ficamente humano. Os historiadores estudaram durante dois séculos os homem, os psicólogos experimentais, na sua prática quotidiana, foram
actos e as palavras, as opiniões e projectos de homens e grupos de forçados a quebrar a sua promessa. U m investigador não se pode ocupar
homens. Os filólogos, os críticos literários e os estudantes estudaram satisfatoriamente a observar não-entidades e a fazer descrições míticas.
os discursos e escritos dos homens, as suas poesias e os seus dramas, Os psicólogos práticos deram consigo a examinar acções, gesticulações
as suas religiões e filosofias. Mesmo os dramaturgos e os romancistas, e expressões de loucos e idiotas, de pessoas sob a influência do álcool,
ao representarem os modos pelos quais as suas criaturas fantasiadas da fadiga, do terror e da hipnose e das vítimas de perturbações cere-
agiram e reagiram, estavam a mostrar em ficção como pensavam que brais. Estudaram a percepção dos sentidos como a estudam, por exem-
as pessoas reais se comportariam ou deveriam comportar. Os econo- plo, os oftalmologistas, em parte fazendo e aplicando experiências fisio-
mistas estudam os negócios efectivos e hipotéticos e as perspectivas dos lógicas, e em parte por meio da análise das reacções e respostas verbais
homens nos mercados. Os estrategas estudam as perplexidades efectivas das pessoas sujeitas a essas experiências. Estudaram a inteligência das
e possíveis e as decisões dos generais. Os professores estudam a actua- crianças coligindo e comparando os seus malogros e êxitos em várias
ção dos seus alunos. Os detectives e jogadores de xadrez estudam as espécies de testes-padrão. Contaram os erros feitos por dactilógrafos
manobras, os hábitos, as fraquezas e as forças dos seus adversários. em várias fases do seu trabalho diário e examinaram as diferentes pos-
Mas, de acordo com o programa para-newtoniano, os psicólogos estu- sibilidades das pessoas para esquecer espécies diferentes de sílabas e
dariam os seres humanos de um modo completamente diferente. Desco- frases decoradas, registando os seus malogros e êxitos depois de lapsos
bririam e analisariam pormenores inacessíveis aos professores, aos de tempo diferentes. Estudaram o comportamento de animais em labi-
detectives, aos biógrafos e aos amigos, pormenores esses que também rintos e de galinhas em incubadoras. Mesmo o tão prometedor princípio
não poderiam ser representados nas páginas de um romance. Estes da Associação de Ideias encontrou a sua principal aplicação nas respos-
outros estudos do homem eram restritos à inspecção das simples tendas tas verbais imediatas dadas por pessoas a quem os testes eram feitos
e casas nas quais os homens reais residiam. O estudo psicológico do por experimentadores.
homem usaria o acesso directo aos próprios residentes. Na verdade, só
Não há nada de peculiar em tal disparidade entre programa e actua-
depois de os psicólogos terem encontrado a chave e aberto a fechadura
ção. Deveríamos esperar que a sabedoria acerca das questões e métodos
com ela, é que os outros estudantes do pensamento e comportamento
viesse depois dos acontecimentos. A s descrições feitas pelos filósofos
humano poderiam esperar mais do que bater em vão a portas fechadas
sobre os seus próprios objectivos e processos raramente se coadunam
à chave. Os actos visíveis e as palavras audíveis dos seres humanos
com os seus resultados efectivos ou com os seus modos efectivos de
não eram em si próprios exercícios de qualidades do seu carácter e inte-
trabalhar. Prometeram, por exemplo, fazer uma descrição do Mundo
ligência, mas apenas sintomas ou expressões externas dos seus exercí-
como um Todo e chegar a esta descrição por um processo de contempla-
cios reais mas privados.
ção sinóptica. De facto, efectuaram discussões de grandes proprietários,
O abandono da fábula dos dois mundos implica o abandono da ideia mas os seus resultados, se bem que muito mais valiosos do que o pro-
de que existe uma porta fechada à chave e que esta ainda não foi des- metido panorama poderia ter sido, não foram em muitos aspectos
coberta. E s s a s acções e reacções humanas, essas expressões faladas ou óbvios o tal panorama que se propunham fornecer.
320 PSICOLOGIA 321
INTRODUÇÃO A P S I C O L O G I A

Os químicos t e n t a r a m arduamente descobrir as propriedades do celhos vizinhos. A o discutir o concelho menciona todas as características
flogisto, mas como nunca conseguiram c a p t u r a r nenhum flogisto, resig- que o geógrafo poderia mencionar, mas não diz determinadas espécies
naram-se a estudar em sua substituição as suas influências e manifes- de coisas acerca delas. Não aplica generalizações geográficas, não usa
tações exteriores. De facto, examinaram os fenómenos da combustão e métodos geográficos de medida e não emprega teorias gerais explica-
em breve abandonaram o postulado de uma substância-calor não obser- t i v a s o u proféticas. De igual modo, poderia sugerir-se que o detective,
vável. A sua postulação t i n h a sido u m fogo-fátuo da espécie daquele o confessor, o examinador e o romancista podem estar bastante f a m i -
que encoraja os aventureiros a explorar bosques não assinalados nos liarizados, por u m método prático, com as espécies de pormenores que
mapas e a registá-los depois em mapas que já não fazem menção a esses os psicólogos c o l i g i r i a m , mas o seu t r a t a m e n t o deles não seria cientí-
falsos bosques. O trabalho de investigação psicológica não terá sido em fico, enquanto o t r a t a m e n t o que lhes seria dado pelos psicólogos o seria.
vão se o postulado de uma substância-espirito especial se processar do O daqueles corresponderia às previsões de tempo feitas por u m pastor,
mesmo modo. o deste à ciência dos meteorologistas.
Contudo, a pergunta «Qual devia ser o programa da psicologia?» Mas esta resposta não estabeleceria qualquer diferença entre a
t e m ainda de ser respondida. A t e n t a t i v a de dar esta resposta depararia psicologia e os outros estudos científicos ou pseudo-científicos do com-
agora com a seguinte dificuldade: argumentei que o trabalho do espí- portamento humano, como a economia, a sociologia, a antropologia, a
r i t o do homem é estudado pelas mesmas espécies de pormenores pra- criminologia e a filologia. Mesmo os livreiros estudam os gostos popu-
ticados pelos experimentadores, psicólogos, economistas, criminologis- lares por métodos estatísticos, se bem que os gostos acerca de livros
tas, antropologistas, cientistas, políticos e sociólogos, professores, exa- sejam indubitavelmente características dos espíritos e assim esta espé-
minadores, detectives, biógrafos, historiadores, jogadores, estrategas, cie de estudo não poderia ser classificada como psicologia.
homens de estado, patrões, confessores, pais, amantes e romancistas. A resposta correcta à pergunta parece ser que o abandono do
Como é que então se devem seleccionar certas questões, se todas as sonho da psicologia como uma c o n t r a p a r t i d a da ciência newtoniana,
outras são rejeitadas como «psicológicas» ? Que critério devemos seguir t a l como f o i piamente e erradamente apresentada, implica o abandono
para dizer que os resultados estatísticos do júri de examinadores não da noção de que «psicologia» é u m nome de u m a pesquisa unitária ou
são, enquanto os resultados dos testes de inteligência o são, produtos de u m conjunto de pesquisas. T a l como «Medicina» é o nome de u m
de investigação psicológica? Que os motivos, intenções, talentos e consórcio u m tanto arbitrário de pesquisas e técnicas mais ou menos
inépcias não constituem u m estudo psicológico, ao passo que os de Sally ligadas de uma maneira vaga, consórcio este que não t e m nem necessita
Beauchamp o são? Se abandonarmos a ideia de que a psicologia é algo de t e r u m programa de preparação logicamente estabelecido, também
que os outros estudos sobre o ser humano não são, e se ao mesmo tempo «Psicologia» pode ser usada convenientemente para designar u m a fede-
abandonarmos a ideia de que os psicólogos t r a b a l h a m com pormenores ração parcialmente f o r t u i t a de pesquisas e técnicas. Finalmente, não
que estão interditos aos outros estudos, qual é a differentia entre a só o sonho da ciência para-newtoniana teve a sua o r i g e m n u m m i t o .
psicologia e esses outros estudos? mas f o i também u m sonho vão de que havia ou haveria u m a ciência
do «mundo externo» por causa de ser newtoniana. A d o u t r i n a errónea
Parte da resposta pode ser dada do seguinte modo: u m d i s t r i b u i -
de que existia u m campo segregado de «fenómenos mentais» f o i basea-
dor de correio conhece u m concelho como a palma da sua mão. Conhece
da n u m princípio que também implicava que não havia l u g a r para as
todas as estradas, veredas, regatos, montes e matas. Pode encontrar
ciências biológicas. A física newtoniana f o i proclamada como sendo a
o seu caminho nele com todos os tempos, luzes e em todas as estações.
ciência que abrangia tudo o que existe no espaço. A imagem cartesiana
N o entanto, não é u m geógrafo. Não pode fazer u m mapa do concelho
não deixou u m l u g a r para D a r w i n ou Mendel. A fábula dos dois mundos
ou dizer como liga com os concelhos vizinhos. Não sabe os pontos car-
f o i também u m a fábula de duas ciências, e.o reconhecimento de que
diais exactos, as distâncias ou alturas acima do nível do m a r de qual-
existem muitas ciências deveria e l i m i n a r a dificuldade da sugestão de
quer lugar que de outro modo conhece m u i t o bem. Nãc t e m uma classi-
que a «psicologia» não é o nome de u m a teoria homogénea singela.
ficação para os tipos de terreno que o seu concelho contém e não pode
Poucos nomes de ciências designam tais teorias unitárias ou dão
fazer inferências das suas características para características dos con-
I . P. — 21 •
I FACULDADE DE E D U C A Ç Ã O I
I B I B L I O T F r
322 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PSICOLOGIA 323

qualquer esperança de o fazer, t a l como «carta» não é u m nome nem ciaremos. Mas quando estamos n u m estado de espírito menos impres-
de u m jogo singelo nem de u m conjunto de jogos. sionável, descobrimos algo de implausível na promessa de descobertas
A analogia sugerida acima entre a psicologia e a medicina f o i ainda por fazer das causas ocultas das nossas acções e reacções. Sabe-
enganadora n u m aspecto i m p o r t a n t e , ou seja, que várias das mais mos m u i t o bem qual f o i a causa de o lavrador v o l t a r do mercado sem
progressivas e úteis investigações psicológicas f o r a m elas próprias, ter vendido o seu porco: ele achou que os preços eram mais baixos do
n u m sentido lato do adjectivo, investigações médicas. E n t r e outras, que esperava. Sabemos m u i t o bem porque é que Fulano olhou para a
e acima de todas, as invesigações de u m homem de génio da psi- p o r t a com u m a r carrancudo e bateu com ela: t i n h a sido insultado.
cologia, F r e u d , não devem ser classificadas como pertencendo a uma Sabemos m u i t o b e m porque é que a heroína guardou uma das cartas
família de pesquisas análoga à família das pesquisas médicas, porque do correio da manhã para a ler quando estivesse sozinha, porque o r o -
na realidade pertencem a essa família. N a verdade, a influência tão mancista nos dá a necessária explicação causal: a heroína reconheceu
profundamente merecida dos ensinamentos de F r e u d f o i tão grande e a l e t r a do seu apaixonado no envelope. O estudante sabe m u i t o bem
tão prejudicialmente popularizadas f o r a m as suas alegorias, que há o que é que o fez escrever a resposta «225» quando lhe p e r g u n t a r a m
agora u m a f o r t e tendência para usar a palavra «psicólogos» como se re- qual é o quadrado de 15. Cada uma das operações que executou levou-o
ferisse apenas àqueles que investigam e t r a t a m de perturbações mentais. à seguinte.
«Mental» é vulgarmente usado pelos mesmos motivos, para significar E x i s t e m , como veremos dentro de momentos, muitas outras espé-
«mentalmente perturbado». Talvez tivesse sido terminològicamente cies de acções, inquietações e expressões, cujos autores não podem
conveniente se se tivesse dado originalmente este sentido r e s t r i t o à dizer o que as produziu. Mas as acções e reacções que podem ser expli-
palavra «psicologia», mas o mundo académico está agora demasiada- cadas pelos seus autores não necessitam de u m género de explicação
mente habituado ao uso mais hospitaleiro e indescriminado da palavra u l t e r i o r e díspar. Quando as causas são bem conhecidas do a u t o r e de
para que t a l reforma seja possível ou desejável. todas as pessoas dos seus conhecimentos, a promessa de notícias sur-
Provavelmente certas pessoas sentir-se-ão inclinadas a protestar preendentes acerca das suas causas reais mas ocultas não é apenas
que existem algumas distinções gerais e formuláveis entre pesquisas como uma promessa, mas s i m u m caso especial de promessa de notícias
psicológicas e todas as outras que dizem respeito à inteligência e acerca das causas ocultas dos acontecimentos mecânicos cujas causas
carácter dos seres humanos. Mesmo que os psicólogos não d i s f r u t e m vulgares são notórias. O ciclista sabe o que é que faz a roda de trás
de pormenores próprios pelos quais possam descobrir as suas teorias, da sua bicicleta andar à roda, ou seja, a pressão exercida nos pedais
estas são ainda diferentes em género das dos filólogos, peritos em e comunicada pela tensão da corrente. A s perguntas «O que é que faz
camuflagem, antropologistas ou detectives. A s teorias psicológicas for- com que a pressão exercida nos pedais accione a corrente?» e «O que é
necem ou fornecerão explicações causais do comportamento humano. que faz com que o accionamento da corrente faça a roda traseira andar à
A d m i t i n d o que há muitas formas diferentes pelas quais o trabalho do roda?» parecer-lhe-iam perguntas absurdas. O mesmo aconteceria com
espírito do homem é estudado, a psicologia difere de todos os outros a pergunta «O que é que o faz t e n t a r pôr a roda traseira em andamento
estudos por t e n t a r descobrir as causas deste trabalho. fazendo pressão nos pedais?».
A palavra «causa» e a frase «explicação causal» são evidente- Neste sentido quotidiano em que todos podemos dar «explicações
mente expressões m u i t o solenes. Lembram-nos imediatamente esses causais» de muitas das nossas acções e reacções, a menção a estas
impactos não ouvidos dessas pequenas bolas de b i l h a r imaginárias que causas não é da posse exclusiva dos psicólogos. O economista, ao falar
aprendemos a i m a g i n a r erroneamente, acerca da explicação científica de «greves de vendedores», está a f a l a r sobre estes episódios em termos
de t u d o o que acontece no mundo. Assim, quando ouvimos a promessa gerais, t a l como o facto de o lavrador ter voltado com o seu porco
de uma nova explicação científica do que dizemos e fazemos, esperamos para a herdade p o r t e r achado que os preços eram m u i t o baixos. O crí-
o u v i r algumas contrapartidas desses impactos, algumas forças ou tico literário, ao discutir porque é que o poeta usou u m novo r i t m o em
actuações de agentes cuja existência nós próprios nunca teríamos determinado verso do seu poema, está a considerar que preocupação de
sonhado e cujas actividades subterrâneas certamente nunca presen- composição afectou o poeta nessa conjuntura particular. N e m o profes-
324 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA 325
PSICOLOGIA

sor pretende ouvir seja o que f o r sobre as fases ocultas para compreen- humanas devem ser classificadas como psicológicas. E , além disso,
der o que é que fez o rapaz obter a resposta correcta ao seu problema nem todas as investigações psicológicas são procuras de explicações
de multiplicação, porque ele próprio presenciou os incidentes mani- causais. Muitos psicólogos ocupam-se, com mais ou menos proveito,
festos que o conduziram a esse resultado. em descobrir métodos de medida e em fazer colecções das medidas
Por o u t r o lado, há inúmeras espécies de comportamento das quais assim obtidas. Certamente a sua esperança é que a l g u m d i a as suas
não podemos dar tais explicações. Não sei porque é que fiquei com a medidas possam c o n t r i b u i r para o estabelecimento de correlações f u n -
língua presa na presença de uma certa pessoa; porque t i v e determi- cionais precisas ou de leis causais, mas o seu próprio t r a b a l h o é, na
nado sonho na noite passada; porque é que v i subitamente com os olhos melhor das hipóteses, uma preparação desta tarefa u l t e r i o r . A s s i m ,
do meu espírito uma esquina de u m a r u a sem interesse para m i m , de «investigação psicológica», como d e v e « e r entendida, não pode ser defi-
uma cidade que m a l conheço; porque é que falo mais depressa depois nida como procura de explicações causais.
de t e r ouvido a sirene do ataque aéreo ou porque é que me d i r i j o a u m Compreender-se-á agora porque é que eu falei tão pouco da psi-
amigo chamando-o por u m nome de baptismo que não é o seu. Reconhe- cologia e m todo este l i v r o . Parte do objectivo do l i v r o f o i a r g u m e n t a r
cemos que perguntas deste género são genuinamente psicológicas. M u i - contra a falsa noção de que a psicologia é o único estudo empírico dos
t o provavelmente eu não saberia mesmo porque é que a j a r d i n a g e m é poderes mentais, propensões e acções das pessoas, juntamente com o
excepcionalmente a t r a c t i v a quando no escritório,., me espera a tarefa falso corolário implícito de que o «espírito» é o que pode ser adequa-
de escrever uma carta particularmente desagradável, se não tivesse damente descritível somente em termos pertencentes à investigação
aprendido uns rudimentos de psicologia. A pergunta de porque é que psicológica. A I n g l a t e r r a não pode ser descrita apenas em termos
o lavrador não venderá os seus porcos a certos preços não é u m a per- sismológicos.
gunta psicológica mas económica. Mas a pergunta de porque é que ele
não venderá os seus porcos por preço nenhum a u m cliente com determi- (2) BEHAVIORISMO
nado aspecto pode ser uma pergunta psicológica. Até no campo da
percepção dos sentidos e da memória parecem acontecer coisas corres- A orientação geral deste l i v r o será indubitável e inocentemente
pondentes. Não podemos, pelo nosso próprio conhecimento, dizer porque estigmatizada como «behaviorista». A s s i m , vem a propósito dizer algu-
é que uma linha recta que corta u m tracejado cruzado parece curva ou ma coisa acerca do behaviorismo. O behaviorismo f o i , a princípio, u m a
porque é que as conversações em línguas estrangeiras parecem ser teoria r e l a t i v a aos métodos adequados da psicologia científica. Susten-
m u i t o mais rápidas do que as da nossa própria língua, e reconhecemos t o u que o exemplo das outras ciências progressivas devia ser seguido,
estas perguntas como psicológicas. Sentimos ainda que está a ser feita porque anteriormente não t i n h a sido seguido pelos psicólogos. A s suas
uma promessa de u m a espécie errada quando nos oferecem explicações teorias deveriam ser baseadas em observações e experiências repetíveis
psicológicas correspondentes às nossas estimativas correctas sobre a e que pudessem ser publicamente verificadas. Mas as supostas comu-
forma, tamanho, iluminação e velocidade. Deixem que os psicólogos nicações da consciência e a introspecção não são verificáveis publica-
nos digam porque nos enganámos. Mas nós podemos dizer a nós pró- mente. Somente o comportamento manifesto das pessoas pode ser
prios e a eles porque é que não nos enganámos. observado por diversas testemunhas, medido e registado mecanica-
A classificação e diagnóstico das demonstrações das nossas f r a - mente. Os primeiros adeptos deste programa metodológico parecem
quezas mentais exige métodos de investigação especializados. A expli- ter-se d i v i d i d o entre duas dúvidas: se deveriam a f i r m a r que os porme-
cação das demonstrações das nossas competências mentais requer m u i - nores da consciência e da introspecção eram mitos, ou se deviam s i m -
tas vezes apenas bom senso, ou pode requerer os métodos especializa- plesmente a f i r m a r que elas não eram susceptíveis de exame científico.
dos dos economistas, dos instrutores, dos estrategas ou dos examina- Não ficou bem esclarecido se estavam a abraçar u m a d o u t r i n a meca-
dores. Mas as suas explicações não são cheques sacados na conta de nicista não m u i t o elaborada, como as de Hobbes e Gassendi, ou se esta-
u m certo diagnóstico ainda mais fundamentai. Assim, nem todas ou v a m ainda a a b r i r caminho para a teoria para-mecânica cartesiana, mas
mesmo a maior parte das explicações causais de acções e reacções restringindo os seus processos de investigação aos que t i n h a m herdado
326 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA PSICOLOGIA 327

de Galileu; se, por exemplo, sustentavam que pensar consiste em fazer igualmente uma espécie de teoria hobbesiana e que imaginassem que
uns certos ruídos e movimentos complexos, ou se sustentavam que, a verdade do mecanicismo é invalidada pela verdade da sua teoria de
embora estes movimentos e ruídos estivessem relacionados com os método de investigação científica na psicologia.
processos da «vida interior», eram apenas fenómenos de laboratório. Não me cabe a mim dizer em que medida os processos de investi-
No entanto, não nos importa saber se os primeiros behavioristas gação concreta dos psicólogos práticos foram afectados pela sua longa
aceitaram uma teoria mecânica ou para-mecânica. E m qualquer dos aderência ao mito dos dois mundos, ou em que medida a revolta beha-
casos laboravam em erro. O facto importante é que a prática de descre- viorista conduziu a modificações nos seus métodos. O que sei é que
ver as acções humanas de acordo com a metodologia recomendada tor- os maus efeitos do mito podem, no equilíbrio final, ter sido superados
nou rapidamente aparente aos» psicólogos como eram duvidosas as pelos bons, e a revolta behaviorista contra ele conduziu a reformas
supostas ocorrências da «vida interior», que os behavioristas foram mais nominais do que reais. Na verdade, nos seus primeiros tempos
os primeiros a ser acusados de ignorar ou negar. A s teorias psicoló- foram de um valor inestimável. Os Pioneiros são a princípio fortale-
gicas que não faziam menção às comunicações da «percepção interna» cidos pelo sonho de que o Novo Mundo é, por detrás das suas aparências
foram comparadas a um «Hamlet» sem Príncipe da Dinamarca. Mas de natureza diferente, uma espécie de duplicado do Antigo Mundo e a
o herói expulso em breve pareceu tão exangue e inarticulado que mes- criança não ficará tão desorientada por uma casa estranha se, onde quer
mo os próprios opositores desta teoria começaram a sentir acanha- que a levarem, os objectos forem sentidos pelas suas mãos como aqueles
mento em impor fardos teóricos tão pesados sobre os seus ombros que conheceu na sua casa.
espectrais. Mas não faz parte do objectivo deste livro desenvolver a metodo-
Os romancistas, os dramaturgos e os biógrafos contentaram-se logia da psicologia ou debater as hipóteses especiais desta ou daquela
sempre em expor os motivos, pensamentos, perturbações e hábitos das ciência. O seu objectivo foi mostrar que a história dos dois mundos
pessoas, descrevendo os seus feitos, ditos e imaginações, os seus esga- é um mito dos filósofos, embora não seja uma fábula e, mostrando
res e gestos e os seus tons de voz. Ao concentrarem-se no que Jane isto, começar a reparar os prejuízos que este mito causou durante
Austen se concentrou, os psicólogos começaram a pensar que isto era, algum tempo no seio da filosofia. Tentei estabelecer este ponto, não
sobretudo, a essência, e não simplesmente o mero aspecto exterior, das aduzindo evidências das dificuldades dos psicólogos, mas argumen-
personagens. Continuaram evidentemente a sofrer escrúpulos desneces- tando que os principais conceitos mentais foram creditados pelos pró-
sários de ansiedade, com receio de que este desvio da psicologia da prios filósofos com espécies erradas de comportamento lógico. Se os
tarefa de descrever o fantástico os pudessem comprometer nas tarefas meus argumentos têm alguma força, então estes conceitos foram de
de descrever o meramente mecânico. Mas a influência do mecanismo uma maneira geral mal atribuídos, embora de formas particulares opos-
foi perdendo a sua importância ao longo de um século porque, entre tas, tanto pelos mecanicistas e para-mecanicistas, como por Hobbes e
outras razões, as ciências biológicas firmaram o seu título de «ciên- Descartes.
cias». O sistema newtoniano já não era o único paradigma da ciência Se em conclusão tentarmos comparar a inutilidade teórica das
natural. O homem não necessitava de ser degradado ao nível de uma histórias de Hobbes-Gasssndi sobre o espírito com as cartesianas, deve-
máquina para ser negada a existência de um fantasma na máquina. mos admitir indubitavelmente que as teorias cartesianas foram mais
Poderia finalmente ser uma espécie de animal, por exemplo um mamí- produtivas. Podemos descrever aquilo em que se opõem nesta imagem:
fero da classe mais elevada. Tem ainda de ser dado um salto arriscado uma companhia de defensores de um país instala-se num forte. Os sol-
para a hipótese de que talvez seja um homem. dados da segunda companhia notam que o fosso está seco, que não há
O programa metodológico dos behavioristas teve uma importância portões e que as paredes estão esburacadas. Desprezando a protecção
revolucionária para o programa da psicologia. Mas, o que é mais, foi de um forte tão frágil e ainda dominados pela ideia de que o país está
uma das principais fontes da suspeita filosófica de que a história dos apenas defendido por fortes como este, acampam em qualquer sítio, por
dois mundos é um mito. É assunto de pouca importância que os defen- exemplo na sombra do primeiro forte decrépito que vêem. Nenhuma
sores deste princípio metodológico tenham tido tendência para abraçar posição é defensável e evidentemente a sombra tem a mesma vulnera-
328 INTRODUÇÃO A PSICOLOGIA

bilidade do forte de pedra, com algumas vulnerabilidades a mais que


lhe são próprias. Ainda sob alguns aspectos os ocupantes da sombra
do forte mostraram ser melhores soldados por terem visto a fraqueza
do forte de pedra, mesmo que seja disparatado pensar que estão em
segurança num forte que não tem quaisquer pedras. Os presságios
de vitória não são bons, mas eles deram algumas evidências da sua
possibilidade de aprender coisas. Exerceram algum sentido estratégico.
Compreenderam que um forte de pedra cujas paredes estão partidas
não é uma defesa conveniente, e que a sombra de qualquer forte
também não é uma defesa conveniente talvez seja a próxima lição
que venham a aprender. Í N D I C E
Podemos aplicar esta imagem a um dos nossos principais temas.
Pensar, sob determinado aspecto, é idêntico a dizer. Os defensores do
ponto de vista rival rejeitam esta identificação mas fazem esta rejeição,
natural mas erradamente, pela razão de que dizer é fazer uma coisa
i pensar é fazer outra. A s operações de pensar são numericamente dife-
rentes das operações verbais e eles controlam estas operações verbais
le um lugar diferente do lugar em que estas operações verbais ocorrem.
Isto, no entanto, também não será verdade, exactamente pelas mesmas
•azoes que mostram a vulnerabilidade da identificação de pensar com
) simples dizer. T a l como dizer indisciplinadamente e sem atenção não
i pensar mas tagarelar, também quaisquer operações-sombra que pos-
lam ser postuladas como ocorrendo noutro lugar podem ser indiscipli-
íadas e feitas sem atenção e então por sua vez também não seriam
)ensar. Mas mesmo oferecer uma descrição errónea do que distingue
. tagarelice indisciplinada e desatenta é reconhecer uma distinção fun-
lamental. O mito cartesiano repara, com efeito, os defeitos do mito de
lobbes apenas pela sua duplicação. Mas mesmo a homeopatia doutrinal
mplica o reconhecimento de confusões.

f
INTRODUÇÃO

Cap. I—O MITO DE DESCARTES


1. A doutrina oficial
2. O absurdo d a doutrina oficial
3. A origem do erro-categoria ..
4. Nota histórica

Cap. I I — S A B E R COMO E SABER QUE

1. Prólogo
2. Inteligência e Intelecto
3. S a b e r como e saber que
4. O s motivos da fábula intelectualista
5. «Na m i n h a cabeça»
6. O saldo positivo de saber como
7. Capacidades intelectuais versus hábitos
8. O exercício da inteligência
9. Compreensão e má compreensão
10. Solipsismo

VCJap. III— A VONTADE

1. Prólogo
2. O mito das volições
3. A distinção entre voluntário e involuntário
4. L i v r e arbítrio
5. A s teorias do mecanicismo
Cap. V I I I - A IMAGINAÇÃO
I V — EMOÇÃO

1. Prólogo 2 4 4

1. Prólogo 82 2. Representar e ver 245


2. Sensações versus inclinações 83 3. ' A teoria das imagens de estatuto especial 247
3. Inclinações versus agitações 92 4. Imaginar 255
4. Disposições 98 5. Simular 257
5. Agitações e sensações 104 6. Simular, fantasiar e imaginar 263
6. Satisfação e carência 106 7. Memória 271
7. O critério dos motivos 110
8. A s razões e a s c a u s a s das acções 113
Cap. IX— O INTELECTO
9. Conclusão 114
1. Prólogo 278
2. A demarcação do intelecto 279
/ Cap. V — PREDISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS
y 3. A construção, posse e utilização de teorias 284
4. A aplicação c o r r e c t a e i n c o r r e c t a dos termos episte-i
1. Prólogo 116
mológlcos 290
2. A lógica das frases predisposicionais 117
5. D i z e r e ensinar 307
3. Capacidades mentais e tendências 125
6. A p r i m a z i a do intelecto 312
4. Ocorrências mentais 135
7. Epistemologia 315
5. Realizações 188

/ « Cap. X — PSICOLOGIA

/ 1.
2.
O p r o g r a m a da P s i c o l o g i a
Behaviourismo
317
325

'^>Cap. VI — AUTOCONHECIMENTO
1. Prólogo 154.
2. Consciências 156
3. Introspecção 163
4. A u t o conhecimento s e m acesso privilegiado 167
5. Revelação por c o n v e r s a espontânea 181
6. O Eu 185
7. O sistemático carácter ilusório ao « E u » 194
<^Cap. VII —SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO

1. Prólogo 199
2. Sensações 201
3. A teoria dos dados dos sentidos 210
4. Sensação e observação 222
5. Fenomenismo 234
6. Conclusões 239

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