Você está na página 1de 81

JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA (ORG.

CÉREBROS, MÁQUINAS E CONSCIÊNCIA

UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA MENTE

, Editora da UFSCar
São Carlos
1996
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

Newton Lima Neto


Reitor

José Rubens Rebelatto


Vice-reitor

Deonísio da Silva
Diretor da Editora Universitária

Editora Universitária - EDUFSCar


Conselho Editorial
AGRADEC IMENTOS
João Carlos Massarolo
José Mindlin Ao professor Deonísio da Silva, diretor da Editora da
José Roberto Gonçalves da Silva Universidade Federal de S. Carlos (EDUFscar) pelo seu
Lucy Tomoko Akashi constante apoio para que este livro fosse publicado.
Marly de Almeida Gomes Vianna
Maurízio Ferrante Aos meus alunos e orientandos do Programa de Pós-
Modesto Carvalhosa Graduação em Filosofia da Universidade Federal de S.
Paulo Sérgio Machado Botelho Carlos.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva Ao Professor John R. Searle e à Cambridge University
Vânia Bernadete Barreira
Press pela permissão para traduzir o artigo Minds, Brains
Deonísio da Silva (Presidente)
and Programs.
Ao Professor Donald Davidson.
Maria Cristina Priore
Assistente em Administração À Oxford University Press.
Ao CNPq, cuja bolsa de produtividade científica nestes
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS últimos anos constituiu constante estímulo para prosseguir
EDUFSCar- Editora da Universidade em minhas pesquisas.
Via Washington Luís, Km 235- Caixa Postal676
Aos meus amigos e colegas do Grupo de Ciência
Telefax: (016) 274-8137
Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP.
13565.905 - São Carlos- SP
ÍNDICE

Prefácio..................................................................................... 13

Computação e Inteligência........................................,............... 19

Mentes, Cérebros e Programas .............................................. 61

A Mente Material. .................................................................. 95

O Fisicalismo......................................................................... 119

OndeEstouEu? .................. ................................................. 143

Sobre os Tradutores ......... ........................................ ..... ........ 167


PREFÁCIO
ESTE LIVRO FALA de cérebros, mentes e computadores. Ele apre-
senta cinco traduções de artigos filosóficos que refletem sobre
os principais problemas da Filosofia da Mente e suas relações
com a Inteligência Artificial.
Seu ponto de partida é um artigo de Alan Turing, um dos
fundadores da InteligênciaArtificial, publicado na revistaMind
em 1950. Nele, Turing refaz a célebre pergunta que tem ocupa-
do os filósofos da mente nas últimas décadas: "Pode uma má-
quina pensar?" As respostas de Turing a este tipo de pergunta
são, no mínimo, divertidas: ele tenta convencer o leitor de que
não há nenhuma razão para supor que uma máquina não possa
pensar. Infelizmente, a morte prematura deste grande matemá-
tico inglês parece tê-lo impedido de desenvolver mais refle-
xões sobre este assunto. Turing não era um filósofo e sim um
matemático, mas suas idéias filosóficas até hoje produzem gran-
de impacto e são profundamente instigantes. Sua obra foi capi-
tal para o desenvolvimento dos primeiros computadores digi-
tais e serviu de fundamento teórico para quase tudo o que se
desenvolveu posteriormente no campo da Inteligência ArtificiaL
n segundo artigo apresenta uma visão radicalmente oposta
ao primeiro, tentando mostrar, com base em reflexões acerca
da natureza da linguagem, porque a mente humana não pode
ser concebida como um computador digital. John Searle, pro-
fessor na Universidade da Califórnia, (Berkeley) notabilizou-
se pelos seus constantes ataques ao projeto científico e filosófi- gia, separar o cérebro de um ser humano do resto de seu corpo.
co da Inteligência Artificial. Estes ataques refletem grande in- O cérebro poderia ser mantido numa proveta de laboratório e o
dignação com a possibilidade de reduzir seres humanos a má- corpo poderia ser enviado para outro lugar, para executar tare-
quinas e levantam questões fundamentais para a Filosofia da fas perigosas. Cérebro e corpo manteriam comunicação através
Mente. O artigo que traduzimos aqui, o "Minds, Brains and de um canal de rádio-transmissão. Ora, Dennett se pergunta
Programs" ficou célebre na literatura filosófica contemporânea quais seriam as conseqüências filosóficas de uma situação des-
por apresentar um forte argumento contra a possibilidade de te tipo e suas conclusões são, na maioria das vezes, as mais
uma máquina pensar, o chamado "Argumento do Quarto do bizarras possíveis.
Chinês" (Chinese Room Argument). Nos anos seguintes a sua O leitor que percorrer atentamente estes cinco artigos terá
publicação, em 1982, vários filósofos tentaram refutá-lo, mas a percebido, no final de sua leitura, que hoje em dia não é mais
objeção de Searle parece ter resistido a esses esforços. possível fazer Filosofia sem levar em consideração o que a ci-
Os artigos que ocupam o terceiro e o quarto lugar nesta co- ência e a tecnologia têm realizado nestas últimas décadas. A
letânea tratam do problema das relações entre mente e cérebro. cada dia que passa, reflexão filosófica e realizações tecnológicas
Seus autores, Thomas Nagel (professor na City University de tomam-se mais próximas. Se no século XVll a Filosofia abria
Nova York) e Donald Davidson (professor na Universidade de caminho para a ciência, hoje esta situação parece se inverter. O
Califórnia) desenvolvem visões radicalmente opostas a tentati- filósofo que tenta ignorar esta situação corre o risco de tomar
va de reduzir fenômenos mentais a fenômenos cerebrais. sua reflexão fútil ou anacrônica.
Thomas Nagel chega a afirmar que sente repugnância por aque- Finalmente, antes de encerrar este prefácio, é preciso dizer
las teorias que sustentam a possibilidade de tal redução. Seu algumas palavras acerca da origem desta coletânea. Ela foi con-
trabalho é muito instigante, embora possa oferecer algumas di- cebida em 1989, quando eu era professor visitante no Progra-
ficuldades técnicas para o leitor leigo. Já o trabalho de Donald ma de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de
Davidson leva-nos para uma aventura teórica bastante exótica: S. Carlos. Na época, eu estava ministrando um curso sobre Fi-
ele nos convida a imaginar que tipo de conseqüências filosófi- losofia da Mente e InteligênciaArtificial, quando alguns de meus
cas emergiriam da construção de um autômato ou de um robot alunos fizeram notar que havia muito pouca bibliografia sobre
que fosse exatamente igual a um ser humano. Sua inspiração se este assunto em língua portuguesa. Surgiu então a idéia de for-
parece, em vários momentos, àquela que motivou filmes do marmos uma espécie de equipe de tradução, que reuniu alunos
tipo "O Caçador deAndróides" embora utilizando uma lingua- e professores do Programa, aos quais veio se juntar uma docen-
gem mais sofisticada. te qa Universidade Federal de Uberlândia. Infelizmente, um de
O último artigo, do professor Daniel Dennett (Tufts Univer- nossos alunos teve morte súbita no final de 1989 e a ele dedica-
sity, usA), leva-nos para um universo onde a ficção científica e mos este trabalho.
a Filosofia da Mente se confundem e se tomam indistinguíveis.
Ele imagina uma situação futura, na qual a tecnologia estaria João de Fernandes Teixeira
muito desenvolvida e onde seria possível, através de uma cirur- julho de 1994

16
17
COMPUTAÇÃO E INTELIGÊNCIA

ALAN TURING

tradução
FÁBIO DE CARVALHO HANSEM
1. 0 JOGO DA IMlTAÇÃO

PROPONHO A SEGUINTE QUESTÃO: "Podem as máquinas pensar?" A


reflexão sobre esta questão deveria ser iniciada com definições
do significado dos termos "máquinas" e "pensar". As defini-
ções poderiam ser esquematizadas de modo a refletir, na medi-
da do possível, o uso comum das palavras, mas tal atitude é
perigosa. Se os significados das palavras "máquina" e "pensar"
tiverem de ser encontrados por meio de um exame de seu uso
habitual, será difícil escapar à conclusão de que o significado e
a resposta à pergunta "Podem as máquinas pensar?" deverão
ser procurados numa pesquisa estatística do tipo Gallup. Mas
isto é absurdo. Em vez de tentar uma definição deste tipo, eu
substituiria a questão por outra, que está relacionada de perto
com ela e é expressa em palavras menos ambíguas.
A nova formulação do problema pode ser descrita em ter-
mos de um jogo a que nós chamamos "jogo da imitação" . É
jogado por três pessoas: um homem (A), uma mulher (B), e um
interrogador (C), que pode ser de qualquer dos sexos. O inter-
regador permanece num quarto, separado dos outros dois. O
objetivo do jogo, para o interrogador, é determinar, em relação
aos outros dois, qual o homem e qual a mulher. Ele os conhece
por rótulos X e Y e no fim do jogo dirá ou ''X é A e Y é B", ou
"X é B e Y é A". É permitido ao interrogador fazer perguntas a
A e B, tais como:
C: Será que X poderia me dizer qual o comprimento O novo problema tem a vantagem de traçar uma linha bas-
de seu cabelo? tante nítida entre as capacidades fisicas e intelectuais de um
homem. Nenhum engenheiro ou químico pode alegar ser capaz
Supondo-se agora que X seja realmente A, então A deverá
de produzir um material que seja indistinguível da pele huma-
responder. O objetivo do jogo para A é tentar induzir C a fazer
uma identificação errada. Sua resposta, portanto, poderia ser: na. É possível que algum dia isso possa ser feito, mas mesmo
supondo que tal invenção esteja disponível deveríamos perce-
"Meu cabelo é curto, e os fios longos têm cerca de 20 ber que há pouca vantagem em tentar tomar uma "máquina
centímetros de comprimento". pensante" humana vestindo-a com tal carne artificial. A forma
Para que tons de vozes não ajudem o interrogador, as res- na qual propusemos o problema reflete esse fato na condição
postas deveriam ser escritas, ou melhor ainda, datilografadas. que impede o interrogador de ver ou tocar os outros competi-
O arranjo ideal é um telegravador com comunicação entre os dores, ou ouvir-lhes as vozes. Algumas outras vantagens do
dois quartos. critério proposto podem ser demonstradas por amostras de per-
Alternativamente, a pergunta e as respostas podem ser repe- guntas e respostas, tais como:
tidas por um intermediário. O objetivo do jogo para a terceira P: Por favor, escreva-me um soneto cujo tema seja a
jogadora (B) é ajudar o interrogador. Sua melhor estratégia será "F orth Bridge".
provavelmente dar respostas verdadeiras. Ela pode acrescentar R: Poupe-me isso. Nunca consegui escrever poesia.
frases como: "Eu sou a mulher, não escute a ele". Mas isso será P: Some 34.957 e 70.764.
inútil, porque o homem pode dar respostas semelhantes. R: (Pausa de mais ou menos 30 segundos e depois
Agora formulemos a questão: "O que acontecerá quando uma como resposta) 105.721.
máquina ocupar o lugar de A nesse jogo?" Será que o interro- P: Você joga xadrez?
gador decidirá erroneamente com a mesma freqüência, quando R: Sim.
o jogo é jogado dessa forma, do que quando o fazia ao tempo P: Eu tenho R em meu R lo e nenhuma outra peça.
em que o jogo era jogado entre um homem e uma mulher? Es- Você tem somente R no R6 e T 1· É a sua vez. Qual o
tas questões substituem a pergunta original "Podem as máqui- seu lance?
nas pensar?" R: (Depois de uma pausa de 15 segundos)T-Tg mate.
O método de pergunta e resposta parece ser adequado para
2. CRÍTICA DO NOVO PROBLEMA ser usado em quase todos os campos de atividade humana que
desejemos abranger. Não queremos punir a máquina por sua
Assim como se pergunta: "Qual a resposta para essa nova inabilidade de brilhar em concursos de beleza, nem punir um
forma de pergunta?", pode-se perguntar: "Essa nova pergunta é homem por perder uma corrida contra um aeroplano.As condi-
digna de ser investigada?" Tal questão nós a investigaremos de ções de nosso jogo tomam essas inaptidões irrelevantes. As "tes-
pronto, evitando com isto uma regressão infinita. temunhas" podem vangloriar-se, se acharem conveniente, do

22 23
seu fascínio, força ou heroísmo, mas o interrogador não pode É difícil formular as definições de modo que satisfaçam essas
pedir demonstrações práticas. três condições. Poder-se-ia, por exemplo, insistir que os mem-
O jogo talvez possa ser criticado sob o pretexto de que as bros da equipe de engenheiros fossem todos do mesmo sexo,
desvantagens pesam bastante contra a máquina. Se o homem mas isso não seria de fato satisfatório, porque é possível criar
fosse tentar fingir -se de máquina, iria certamente fazer um tris- um indivíduo completo a partir de uma única célula de- diga-
te espetáculo. Iria trair-se imediatamente por sua lentidão e im- mos -pele humana. Realizar isto seria uma proeza da técnica
precisão em aritmética. Não podem acaso as máquinas realizar biológica digna dos maiores elogios, mas não estaríamos dis-
algo que deveria ser descrito como pensamento, mas que é muito postos a considerar tal procedimento como um caso de "cons-
diferente do que um homem faz? Tal objeção é muito forte, trução de uma máquina pensante". Isto nos induz a abandonar
mas ao menos podemos dizer que se, não obstante, pudermos o requisito de que todo tipo de técnica deveria ser permitido.
construir uma máquina capaz de jogar o jogo da imitação satis- Estamos tanto mais prontos a abandoná-lo quanto se sabe que o
fatoriamente, não precisaremos preocupar-nos com ela. atual interesse por "máquinas pensantes" foi despertado por um
Pode-se alegar que, ao jogar o "jogo da imitação", a melhor tipo particular de máquina, geralmente chamado de "computa-
estratégia para a máquina será possivelmente algo que não seja dor eletrônico" ou "computador digital". Seguindo tal suges-
a imitação do comportamento de um homem. Tal estratégia é tão, só permitimos que computadores digitais tomem parte em
plausível, mas não creio que possa surtir muito efeito. De qual- nosso Jogo.
quer modo, não desejamos investigar aqui a teoria do jogo e Essa restrição parece, à primeira vista, muito drástica. Ten-
. assumiremos que a melhor estratégia será tentar dar as respos- tarei mostrar que não é assim. Mas isto exige uma breve expli-
tas que seriam naturalmente dadas por um homem. cação da natureza e propriedade desses computadores.
Também poderíamos dizer que essa identificação de máqui-
nas com computadores digitais, tanto quanto nosso critério de
3. As MÁQUINAS ENVOLVIDAS NO JOGO
"pensar", só será insatisfatório se (contrariamente à minha cren-
ça), os computadores digitais se revelarem incapazes de um
A pergunta que fizemos no § 1 não será totalmente definida
bom desempenho no jogo.
antes que especifiquemos o que pretendemos dizer com a pala-
Já há um certo número de computadores digitais em funcio-
vra "máquina". É natural que queiramos permitir que todo tipo •' namento, e pode-se perguntar: "Por que não tentar a experiên-
de técnica de engenharia seja usado em nossas máquinas. Tam-
cia imediatamente? Seria fácil satisfazer as condições do jogo.
bém desejaríamos admitir a possibilidade de um engenheiro ou
Certo número de interrogadores poderia ser usado e uma esta-
uma equipe de engenheiros construir uma máquina que funcio-
tística compilada para mostrar a freqüência com que a identifi-
ne, mas cujo modo de operação não possa ser satisfatoriamente
cação certa fosse dada". A resposta imediata é que não estamos
descrito por seus construtores porque estes se utilizaram de um
perguntando se todos os computadores digitais fariam boa fi-
método em grande parte empírico. Finalmente, queremos ex-
gura no jogo nem se os computadores disponíveis no momento
cluir da categoria de máquina todos os homens de carne e osso.
teriam bom desempenho, e sim se podemos conceber computa-

24 25
dores capazes de fazer isto. Mas isso é unicamente a resposta A unidade executiva é a parte que realiza as várias opera-
imediata. Examinaremos a questão mais adiante, sob um as- ções individuais envolvidas num cálculo. Quais sejam tais ope-
rações individuais é coisa que poderá variar de máquina para
pecto diferente.
máquina. Normalmente podem-se fazer longas operações, tais
como "Multiplicar 3.540 675.445 por 7.076.345.687", mas em
4. CoMPUTADORES DIGITAIS algumas máquinas somente algumas operações muito simples,
tais como "Escreva O", são possíveis.
A idéia subjacente aos computadores digitais pode ser ex- Mencionamos que o "livro de regras" fornecido ao compu-
plicada afrrmando-se que essas máquinas são plan~jadas para tador pode ser substituído na máquina por uma parte de sua
realizar quaisquer operações passíveis de serem feitas por um memória. Ele é chamado então de "tabela de instruções". É dever
computador humano. O computador humano deve seguir re- do controle verificar que essas instruções sejam obedecidas cor-
gras fixas; não tem autoridade para se desviar delas em nenhum retamente e na ordem certa. O controle é construído de tal for-
detalhe. Podemos supor que essas regras sejam fornecidas por ma que isso necessariamente aconteça.
um livro, alterado sempre que ao operador se confie novo tra- As informações na memória são via de regra fundamentadas
balho. O operador dispõe de um suprimento ilimitado de pa- em blocos de tamanho relativamente pequeno. Numa máquina,
péis onde pode fazer seus cálculos. Ele também pode fazer suas por exemplo, um bloco pode consistir de 1O algarismos deci-
multiplicações e adições numa máquina de calcular de mesa, mais. Atribuem-se números às partes da memória nas quais os
mas isto não é importante. vários blocos de informações são estocados, de uma forma sis-
Se usarmos a explicação acima como uma definição, corre- temática. Uma instrução típica diria: "Adicione o número esto-
mos o risco de cair num argumento circular. Nós o evitaremos cado na posição 6809 àquele da 4302 e ponha o resultado de
dando um esboço da idéia de computador digital. Um compu- volta na última posição da memória".
tador digital pode ser usualmente visto como consistindo de Desnecessário dizer que isso não ocorreria na máquina sob
três partes: a forma de expressão lingüística. Seria mais provavelmente
a) Memória codificado numa forma tal como 6809430217. Aqui, o 17 nos
b) Unidade executiva diz qual das várias alterações possíveis será realizada nos dois
c) Controle números. Nesse caso, a operação é a descrita acima: "Adicione
o número ... " Notar-se-á que a instrução toma 1O algarismos
A memória é uma reserva de informação e corresponde ao
e assim forma um bloco de informação muito conveniente.
papel .utilizado pelo computador humano, seja este a folha de
O controle normalmente tomará as instruções a serem obe-
papel onde faz seus cálculos, ou o livro onde as regras estão
decidas na ordem das posições nas quais elas estão memori-
impressas. Na medida em que o computador humano faça cál-
zadas, mas ocasionalmente uma instrução tal como: "Agora
culos de cabeça, uma parte da memória corresponderá à sua
obedeça à instrução memorizada na posição 5606 e continue
própria memória.
daí", pode ser encontrada, ou então: "Se a posição 4505 con-

26 27
tém O, obedeça à instrução memorizada em 6707; do contrá- ou algum processo eletrônico equivalente; uma instrução que
. pross1ga
no, . '' . poderia ser, por exemplo: "Atire o dado e ponha o número que
Instruções destes últimos tipos são muito importantes por- resultou na memória 1000". Algumas vezes, tal máquina é des-
que possibilitam que uma seqüência de operações seja refeita crita como dotada de livre arbítrio (embora eu pessoalmente
várias vezes até que se satisfaça alguma condição, mas de for- não usasse essa frase) . É normalmente impossível determinar,
ma a obedecer, não instruções novas em cada repetição, mas as observando-se uma máquina, se ela possui ou não um elemen-
mesmas repetidamente. Para recorrer a uma analogia domésti- to aleatório, porque um efeito similar pode ser produzido por
ca, suponha-se que Mamãe queira que João passe pelo sapatei- artifícios como fazer escolhas que dependam dos algarismos
ro toda manhã, em seu caminho para a escola, para verificar se que compõem a seqüência decimal do número 1t.
os sapatos dela estão prontos; ela pode pedir-lhe isso todas as A maioria dos computadores digitais atuais possui somente
manhãs. Alternativamente, ela pode de uma vez por todas afi- uma memória finita. Não há dificuldade teórica em relação à
xar um lembrete na sala de entrada, que ele verá quando for idéia de um computador com memória limitada. Naturalmente,
para a escola, o que o lembrará de perguntar pelos sapatos e só uma parte dela pode ter sido usada de cada vez. Da mesma
também de destruir o lembrete quando trouxer os sapatos consigo. forma, somente uma soma finita pode ser realizada, mas pode-
O leitor deve aceitar como fato que computadores digitais mos imaginar mais e mais parcelas sendo adicionadas, se ne-
podem ser construídos, e até já foram construídos, de acordo cessário. Tais computadores têm interesse teórico especial e se-
com os princípios que descrevemos, e que podem, de fato, rão chamados computadores de capacidade infinita.
imitar, de forma muito aproximada, as ações de um computa- A idéia de um computador digital é antiga. Charles Babbage,
dorhumano . professor de Matemática em Cambridge, de 1828 a 1839, pla-
O livro de regras a que nos referimos, usado pelo nosso com- nejou tal máquina, a chamada Máquina Analítica, que nunca
putador humano, é uma ficção conveniente. Os computadores foi construída. Embora Babbage tivesse todas as idéias essen-
humanos lembram, em realidade, o que têm de fazer. Se al- ciais, sua máquina, na época, não apresentava perspectivas atra-
guém quiser construir uma máquina que imite o comportamen- entes. A velocidade então disponível era certamente maior que
to do computador humano em alguma operação complexa, terá a do computador humano, mas era cem vezes mais vagarosa
de perguntar-lhe como ela é feita e então traduzir a resposta na que a Máquina de Manchester; esta por sua vez, é uma das mais
forma de uma tabela de instruções. A construção de tabelas de vagarosas das máquinas modernas. A memória tinha de ser pu-
instruções é comumente descrita como "programação". Progra- ramente mecânica, por meio de rodas dentadas e cartões.
mar uma máquina que realize a operação "A" significa colocar O fato de que a MáquinaAnalítica de Babbage tivesse de ser
a tabela de instruções apropriada dentro da máquina, de tal for- inteiramente mecânica, ajuda-nos a livrar-nos de uma supersti-
ma que esta realize A. ção. Dá-se freqüentemente importância ao fato de que os com-
Uma variante interessante da idéia de um computador digi- putadores digitais modernos são elétricos e de que o sistema
tal é a do "computador digital com um elemento. aleatório". nervoso seja também elétrico. Como a máquina de Babbage
Estes têm instruções que envolvem o lançamento de um dado não era elétrica, e como todos os computadores digitais são, em

28 29
certo sentido, equivalentes, vemos que tal uso da eletricidade descrito pela posição da roda) pode ser qt, q2 ou qJ .. Há um
pode não ter importância teórica. É claro que a eletricidade nor- sinal de entrada iü ou il (posição da alavanca). O estado inter-
malmente aparece quando se trata de sinalização rápida, de for- no a qualquer momento é determinado pelo último estado, e o
ma que não surpreende que a encontremos em ambos os casos. sinal de entrada, de acordo com a tabela:
No sistema nervoso, os fenômenos químicos são tão importan-
tes quanto os elétricos. Em determinados computadores, o sis- Último Estado
tema de memória é principalmente acústico. A característica de
usar a eletricidade apresenta assim semelhança muito superfi- q,
cial. Se quiséssemos achar tais semelhanças precisaríamos vol- iO
tar-nos para as analogias matemáticas de função.
Entrada

5. A UNIVERSALIDADE DOS COMPUTADORES DIGITAIS


il q,

Os computadores digitais considerados na última seção po- Os sinais de saída, a única indicação externa visível do esta-
dem ser classificados como "máquinas de estado discreto". Es- do interno (a luz), são descritos pela tabela:
tas são as máquinas que funcionam por pequenos saltos ou es-
talidos súbitos de um estado bem definido para outro. Tais esta- Estado q,
dos são suficientemente diferentes para que não haja possibili-
dade de confusão entre eles. A rigor, tais máquinas não exis- Saída 00
tem. Tudo, na realidade, se move continuamente. Mas há mui-
tos tipos de máquinas que podem ser vantajosamente conside- Este exemplo é típico das máquinas de estado discreto. Elas
radas máquinas de estado discreto. Por exemplo, quando se podem ser descritas por tais tabelas sob a condição de que te-
consideram os interruptores de um sistema de iluminação, é nham somente um número finito de estados possíveis.
uma ficção conveniente admitir que cada interruptor tenha que Parecerá que, dado o estado inicial da máquina e os sinais de
estar definitivamente ligado ou desligado. Deve haver posições entrada, será sempre possível predizer todos os seus estados
intermediárias, mas, para a maioria dos propósitos, podemos futuros. Isto faz lembrar a concepção de Laplace de que, a par-
esquecê-las. Como um exemplo de máquina de estado discre- tir do estado completo do universo num dado momento de tem-
to, podemos considerar uma roda cujas posições se alternem de po, tal como descrito pelas posições e velocidades de todas as
1200 por segundo, mas que pode ser detida por uma alavanca partículas, seria possível predizer todos os estados futuros. A
operada de fora; ademais, uma lâmpada acende-se numa das predição que estamos considerando está, contudo, mais próxi-
posições da roda. Semelhante máquina pode ser descrita abs- ma da prática do que a considerada por Laplace. O sistema do
tratamente como segue. O estado interno da máquina (que é "universo como um todo" é tal que erros assaz pequenos nas

30 31
condições iniciais podem ter um efeito esmagador num tempo quinas são acopladas, suas capacidades têm que ser somadas
posterior. O deslocamento de um simples elétron por um para obter-se a capacidade da máquina resultante. Isto leva à
bilionésimo de centímetro, em determinado momento, pode possibilidade de enunciados como "A máquina de Manchester
representar a diferença entre um homem ser morto por uma contém 64 trilhas magnéticas, cada qual com uma capacidade
avalanche, um ano mais tarde, ou escapar dela. Propriedade de 2560, oito válvulas eletrônicas com uma capacidade de
essencial dos sistemas mecânicos a que chamamos "máquinas 1280. A memória mista chega a 300, dando uma capacidade
de estado discreto" é a de que tal fenômeno não ocorra. Mesmo de 174.380."
quando consideramos máquinas físicas reais, em vez de má- Dada a tabela correspondente à máquina de estado discreto,
quinas idealizadas, um conhecimento razoavelmente preciso do é possível predizer o que ela fará. Não há razão para que este
estado num determinado momento produz conhecimento razo- cálculo não seja feito por meio de um computador digital. Con-
avelmente preciso de certo número de passos mais adiante. quanto o cálculo seja feito com suficiente rapidez, o computa-
Como dissemos, os computadores digitais pertencem à clas- dor digital pode imitar o comportamento da máquina de estado
se das máquinas de estado discreto. Mas o número de estados discreto. O jogo de imitação poderia então ser jogado com a
de que essa máquina é capaz é normalmente enorme. Por exem- máquina em questão (como B) e o computador digital imitador
plo, para a máquina ora funcionando em Manchester, tal núme- (como A); o interrogador seria capaz de distingui-los. Natural-
ro é cerca de 2J65.ooo, isto é, cerca de l05o.ooo. Compare-se isto mente, o computador digital tem de ter uma capacidade de
com o nosso exemplo da roda dentada descrita acima, que pos- memória adequada bem como trabalhar com suficiente rapi-
sui só três estados. Não é difícil de ver porque o número de dez. Além disso, tem que ser programado novamente para cada
estados deva ser tão imenso. O computador inclui uma memó- nova máquina que se deseje imitar.
ria que corresponde ao papel usado por um computador huma- Descreve-se essa propriedade especial dos computadores
no. Tem que ser possível escrever na memória qualquer uma digitais de imitar qualquer máquina de estado discreto dizen-
das combinações de símbolos que poderia ter sido escrita no do-se que são máquinas universais. A existência de máquinas
papel. Para simplificar, suponhamos que somente algarismos com tais propriedades tem a importante conseqüência de que,
de O a 9 sejam usados como símbolos. Variações caligráficas considerações de velocidade à parte, é desnecessário projetar
são ignoradas. Suponhamos que se entregue ao computador 100 novas e diferentes máquinas para realizar diferentes processos
folhas de papel, cada qual com 50 linhas, cabendo em cada de computação. Eles podem ser todos realizados com um com-
linha 30 algarismos. Então o número de estados é 10JOOx50x30 putador digital, adequadamente programado para cada caso. Ver-
isto é, 10I50.ooo. Este é aproximadamente o número de estados se-á que, em conseqüência disso, todos os computadores digi-
de três máquinas de Manchester reunidas. O logaritmo de base tais são, em certo sentido, equivalentes.
dois do número de estados é usualmente chamado "capacidade Podemos agora considerar de novo o ponto suscitado no fi-
de memória" da máquina. Assim, a máquina de Manches ter tem nal do § 3. Sugeriu-se, conjecturalmente, que a questão "Po-
uma capacidade de memória de cerca de 165.000, e a máquina dem as máquinas pensar?" fosse substituída por, "Existem com-
de roda dentada do nosso exemplo, cerca de 1,6. Se duas má- putadores digitais concebíveis que possam ter bom desempe-
U" l c f.
· t..zn~o
ENf~O.Otal
UHrvtK:iiD" D!' ES1AOO!.L.~~•~IJAIIA
i)IBU()ThCA • UU'V""

32 33
nho no jogo de imitação?" Se quisermos, podemos generalizar nião geral esclarecida estarão tão mudados que se poderá falar
e perguntar "Existem máquinas de estado discreto capazes de de máquinas pensantes. Acredito, ademais, que não há nenhum
bom desempenho?" Mas, em vista da propriedade de universa- benefício em ocultar tais convicções. A noção popular de que
lidade, verificamos que qualquer uma dessas perguntas equiva- cientistas avançam inexoravelmente de fatos bem estabeleci-
le a isto: ''Fixemos nossa atenção num computador digital par- dos para outros fatos bem estabelecidos, jamais sendo influen-
ticular C. Será verdade que modificando-se este computador ciados por conjecturas não provadas, está totalmente errada.
para obter uma memória adequada, aumentando-lhe conveni- Desde que se esclareça o que são fatos provados e o que são
entemente a velocidade de ação, e provendo-o de um programa conjecturas, nenhum dano pode advir deste processo. As con-
apropriado, C pode ser preparado para desempenhar satisfato- jecturas são de grande importância, pois sugerem linhas úteis
riamente o papel de A no jogo de imitação, sendo o papel de B de investigação.
desempenhado por um homem?" Considerarei agora opiniões opostas às minhas.

(J) A OBJEÇÃO TEOLÓGICA


6. ÜPINlÕES CONTRÁRIAS À QUESTÃO PRINCIPAL

"Pensar é uma função da alma humana imortal. Deus deu


Podemos agora considerar que o terreno foi limpo e que es- uma alma imortal a todo homem e a toda mulher, mas a ne-
tamos prontos para prosseguir no debate de nossa questão "Po- nhum outro animal ou máquina. Logo, nenhum animal ou
dem as máquinas pensar?" e da variante dela citada no fmal da máquina pode pensar1 • "
última seção. Não podemos abandonar totalmente a forma ori- Sou incapaz de aceitar tal argumento, mas tentarei respon-
ginal do problema, porque as opiniões vão diferir quanto a ade- der em termos teológicos. Acharia o argumento mais convin-
quação da substituição, e precisamos, pelo menos, ouvir o que cente se os animais fossem postos na mesma classe dos ho-
tem a ser dito neste particular. mens, porque há uma diferença bem maior, para mim, entre o
As coisas se tomarão mais simples para o leitor se eu expli- ser animado e o inanimado típicos, do que entre o homem e
car primeiramente minhas próprias convicções acerca deste pro- outros animais. O caráter arbitrário da visão ortodoxa se evi-
blema. Considere-se, primeiramente, a questão de maneira mais dencia se considerarmos como ela deve parecer a um membro
precisa. Acredito que, dentro de cerca de 50 anos, será possível de alguma outra comunidade religiosa. Como encaram os cris-
programar computadores, com uma capacidade de memória de tãos o pensamento muçulmano de que as mulheres não têm
cerca de 109 para fazê-los jogar o jogo da imitação tão bem que alma? Mas vamos deixar esse ponto de lado e retomar ao argu-
um interrogador médio não terá mais de 70% de probabilidade
de chegar à identificação correta, após 5 minutos de interroga-
1. Possivelmente essa visão é herética. S. Tomás de Aquino [Suma Teológi-
tório. A pergunta original "Podem as máquinas pensar?" é, a ca], citação de Bertrand Russel (1945, p.458) aftrma que Deus não pode
meu ver, insignificante demais para merecer discussão. Contu- fazer um homem sem alma. Todavia, isto não pode ser uma restrição real de
do, acredito que no fliD do século, o uso das palavras e a opi- Seus poderes, mas unicamente resultado do fato de que as almas humanas
são imortais, e portanto indestrutíveis.

34 35
mento principal. Parece-me que o argumento citado acima im- seriam terríveis. Esperemos e confiemos que elas não possam
plica uma séria restrição à onipotência do Todo-poderoso. Ad- nunca fazer isso."
mite-se que há certas coisas que Ele não pode fazer, tal como Este argumento é raramente expresso de maneira tão osten-
tomar um igual a dois, mas não deveríamos acreditar que Ele siva quanto na forma acima. Mas afeta a maioria daqueles que
tem a liberdade de conceber alma a um elefante, se quisesse? pensam assim. Gostaríamos de acreditar que o Homem é, de
Poderíamos esperar que Ele só exercesse tal poder por via de alguma maneira sutil, superior ao resto da criação. É melhor
uma mutação que dotasse o elefante de um cérebro devidamen- que se mostre que ele é necessariamente superior, pois aí não
te aperfeiçoado para atender às necessidades de sua alma. Um há perigo de ele perder sua posição de comando. A popularida-
argumento semelhante pode ser invocado no caso das máqui- de do argumento teológico está claramente ligada a esse senti-
nas. Talvez ele pareça diferente porque é mais difícil de "engo- mento. É provável que ele seja mais forte em pessoas intelectu-
lir''. Mas isto apenas significa que acreditamos que fosse me- ais, pois elas valorizam o poder do pensamento mais que ou-
nos provável que Ele considerasse as circunstâncias apropria- tras, e estão mais inclinadas a basear em tal poder a crença na
das para conferir uma alma. As circunstâncias em questão são superioridade do Homem.
discutidas no decorrer deste trabalho. Ao tentar construir tais Não creio que este argumento seja suficientemente substan-
máquinas não estaríamos irreverentemente usurpando-lhe o cial para exigir refutação. Consolo seria mais apropriado; tal-
poder de criar almas, como não o usurpamos ao procriar crian- vez este deva ser buscado na transmigração das almas.
ças: ao contrário, somos, em ambos os casos, instrumentos de
Sua vontade providenciando moradas para as almas que Ele cria. (3) A OBJEÇÃO MATEMiiTICA
Entretanto, isto é mera especulação. Não fico muito impres-
sionado com argumentos teológicos, quaisquer que sejam as Há certos resultados da lógica matemática que podem ser
circunstâncias nas quais são utilizados. Tais argumentos mos- usados para mostrar que há limitações aos poderes das máqui-
traram-se freqüentemente insatisfatórios no passado. Na época nas de estado discreto. O mais conhecido desses resultados é o
de Galileu, sustentou-se que os textos "O sol se deteve no meio teorema de Gõdel (1931); ele mostra que em qualquer sistema
do céu e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro" (Josué, lógico suficientemente poderoso podem-se formular enuncia-
cap. 1O) e "Ele lançou os fundamentos da terra, para que não se dos que não são passíveis de prova ou refutação dentro do sis-
movesse em tempo algum." (Salmos, 104) eram refutações ade- tema, a menos que possivelmente o próprio sistema seja incon-
quadas à teoria de Copémico. Com o nosso conhecimento atu- sistente. Há outros resultados semelhantes devidos a Church
al, semelhante argumento parece fútil. Quando esse conheci- (1936), Kleene (1935), Rosser e Turing (1937).
mento não existia, ele causava uma impressão bem diferente. Este último é o mais conveniente para se considerar, de vez
que diz respeito diretamente a máquinas, enquanto os outros só
(2) A OBJEÇÃO DAS "CABEÇAS NA AREIA " podem ser usados como argumentos indiretos: por exemplo,
para usar o teorema de Gõdel, precisamos, ademais, dispor de
"As conseqüências da existência de máquinas que pensam certos meios de descrever sistemas lógicos em termos de má-

36 37
to ilusório? É, sem dúvida, bastante genuíno, mas não creio
quinas, e máquinas em termos de sistemas lógicos. O resultado
em questão se refere a um tipo de máquina que é essencialmen- que se lhe deva dar muita importância. Nós mesmos
te um computador digital de capacidade infmita. Afirma este freqüentemente damos respostas erradas a perguntas, e assim
resultado que há certas coisas que urna máquina deste tipo não não temos justificativa para estar muito satisfeitos com seme-
pode realizar. Se ela estiver aparelhada para dar respostas a per- lhante evidência de falibilidade por parte das máquinas. Mais
guntas, corno no jogo da imitação, haverá algumas perguntas ainda: só nos podemos sentir superiores, nessa ocasião, relati-
às quais dará ou resposta errada ou nenhuma resposta, não im- vamente à máquina específica sobre a qual conquistamos nos-
porta quanto tempo se lhe conceda para responder. Haverá cer- so insignificante triunfo. Não se trata de triunfar simultanea-
tamente muitas questões assim, que não podendo ser respondi- mente sobre todas as máquinas. Em resumo, haverá talvez ho-
das por uma máquina, poderão ser respondidas de modo mens mais inteligentes do que qualquer máquina dada, mas
satisfatório por outra. Claro que, de momento, estamos supon- mesmo assim poderão existir outras máquinas mais inteligen-
do que as perguntas sejam do tipo para o qual uma resposta tes, e assim por diante.
"Sim" ou "Não" é adequada, e não perguntas corno "Que acha Os que defendem o argumento matemático estariam, creio
de Picasso?". As perguntas que sabemos que a máquina não eu, dispostos sobretudo a aceitar o jogo da imitação corno base
conseguirá responder são deste tipo: "Considere a máquina a para discussão. Os que acreditam nas duas objeções anteriores
seguir especificada. (... )Responderá ela sempre "Sim" a qual- provavelmente não estariam interessados em critério algum.
quer pergunta?" As reticências devem ser substituídas por urna
descrição de alguma máquina, num modelo-padrão, que pode- (4) 0 ARGUMENTO DA CONSCIÊNCIA

ria ser semelhante ao usado no § 5. Quando a máquina descrita Este argumento está muito bem expresso no discurso ''Lister"
apresenta relação real comparativamente simples com a má- do Pro f. Jefferson, de 1949, de onde transcrevo: "Somente quan-
quina que está sendo interrogada, pode-se demonstrar que a do uma máquina puder escrever sonetos ou compor concertos
resposta ou é errada ou nula. Este é o resultado matemático: como resultado de pensamentos ou emoções sentidas, e não
demonstra-se que ele prova urna incapacidade das máquinas à por via de ocorrência casual de símbolos, é que concordaría-
qual o intelecto humano não está sujeito. mos que a máquina se iguala ao cérebro - isto é, que não ape-
A resposta mais simples a este argumento é a de que, embo- nas os escreveu ou compôs como também sabia que os escre-
ra esteja estabelecido que há limitações aos poderes de qual- vera. Nenhum mecanismo poderia experimentar (e não mera-
quer máquina específica, enunciou-se apenas, sem qualquer mente assinalar de modo artificial, por meio de uma engenhoca
espécie de prova, que nenhuma limitação desse tipo se aplica fácil) prazer pelos seus êxitos, tristeza quando suas válvulas
ao intelecto humano. Mas não creio que tal concepção possa queimam, deleite ante a lisonja; sentir-se infeliz por causa de
ser rejeitada tão levianamente. Sempre que a qualquer uma des- seus erros, encantar-se com o sexo, ficar irritado ou deprimido
sas máquinas se faz a pergunta crucial, e ela dá uma resposta por não poder alcançar o que deseja."
definida, sabemos que a resposta deverá estar errada, e isso nos Este argumento parece ser uma negação da validade de nos-
confere certo sentimento de superioridade. Será esse sentimen-

38 39
so teste. De acordo com a forma mais extremada de tal concep- creio que o Sr. Pickwick fizesse objeções a essa comparação.
ção, a única maneira de a pessoa estar segura de que a máquina Testemunha: Não creio que você esteja falando a sério. Quan-
pensa é ser ela a própria máquina e sentir-se pensando. Poderia do se diz "um dia de inverno", quer-se dizer um dia típico de
então descrever esses sentimentos ao mundo, mas naturalmen- inverno, não um dia especial como o Natal.
te não se justificaria que alguém lhe desse atenção. De modo
E assim por diante. O que diria o Prof. Jefferson se a máqui-
semelhante, e de acordo com a mesma concepção, a única ma-
na de escrever sonetos tivesse capacidade para responder assim
neira de saber se um homem pensa é ser esse homem. Trata-se,
no viva voce? Não sei se ele consideraria que a máquina estava
de fato, do ponto de vista solipsista. Pode ser a concepção mais
"apenas sinalizando artificialmente" tais respostas, se as res-
lógica a ser sustentada, mas dificulta a comunicação de idéias.
postas fossem tão satisfatórias e compreensivas como na pas-
A pode pensar que "A pensa, mas B não", da mesma maneira
sagem acima, e nem creio que ele descrevesse essa máquina
que B acreditar que "B pensa, mas A não". Em vez de discutir
como "uma engenhoca fácil". Esta frase, a meu ver, visa a de-
continuamente tal questão, é de hábito aceitar-se a convenção
signar dispositivos tais como a inclusão, na máquina, da grava-
cortês de que toda gente pensa.
ção de alguém a ler um soneto, com um interruptor para ligá-la
Tenho certeza de que o Prof. Jefferson não deseja adotar esse
e desligá-la de quando em quando. Em suma, penso que amai-
ponto de vista extremado e solipsista. Ele provavelmente con-
oria dos que sustentam o argumento da consciência poderiam
cordaria em aceitar o jogo da imitação como teste. O jogo (com
ser persuadidos a abandoná-lo em lugar de ver-se coagidos a
omissão do jogador B) é freqüentemente usado na prática sob o
assumir uma posição solipsista. Provavelmente, estariam então
nome de viva voee, para descobrir se alguém de fato compreen-
dispostos a aceitar a nosso teste.
de algo ou se o "decorou como um papagaio". Vamos ouvir
Não quero dar a impressão de que penso não existir nenhum
parte de um viva voee.
mistério no que diz respeito à consciência. Existe, por exem-
Interrogador: No primeiro verso do seu soneto, que diz "Devo plo, algo assim como que um paradoxo vinculado às tentativas
eu te comparar a um dia de verão", "um dia de primavera" não de localizá-la. Mas não acredito que tais mistérios tenham de
estaria igualmente bem ou ainda melhor? ser necessariamente resolvidos antes de podermos responder à
Testemunha: Não tem o número certo de sílabas. pergunta que nos preocupa neste artigo.
Interrogador: Que tal "um dia de inverno"? Metricamente
dá certo. (5) ARGUMENTO DAS VARIAS INCAPACIDADES
Testemunha: Mas ninguém quer ser comparado a um dia de
Esses argumentos assumem a forma de "Concordo que você
mverno.
é capaz de construir máquinas que façam todas as coisas men-
Interrogador: Por exemplo, você diria que o Sr. Pickwick
cionadas, mas você nunca conseguirá construir uma má-
faz lembrar o Natal?
quina que faça X". Numerosas características X são sugeridas,
Testemunha: De certo modo.
neste particular. Eis uma seleção delas:
Interrogador: Contudo, o Natal é um dia de inverno, e não
Seja bondosa, bela, amigável; tenha iniciativa; tenha senso

40 41
de humor; distingua o certo do errado, cometa erros; apaixone- ado p·ara aplicar a indução científica. Grande parte do espa-
se; delicie-se com morangos com creme; faça alguém apaixo- ço-tempo deve ser investigada, se se quiserem resultados
nar-se por você; aprenda com a experiência; use corretamente seguros. De outro modo, podemos decidir (como a maioria das
as palavras; seja o tema de seus próprios pensamentos; tenha crianças inglesas), que toda a gente fala inglês, e que é boba-
tanta diversidade de pensamento quanto um homem; faça algo gem aprender francês.
de realmente novo. Há, contudo, observações especiais a serem feitas acerca das
Nenhuma justificativa é, no geral, oferecida para esses enun- incapacidades que foram mencionadas. A incapacidade de sa-
ciados. Creio que eles estão, na maior parte, fundamentados no borear morangos com creme talvez tenha impressionado o lei-
princípio da indução científica. Um homem vê milhares de má- tor como frívola. Possivelmente, pode-se fazer com que uma
quinas durante a sua vida. Do que observou, tira certo número máquina saboreie esse prato delicioso, mas tal empenho seria
de conclusões gerais. As máquinas são feias; cada uma delas idiota. O que é importante, no que se refere a essa capacidade,
foi construída para um objetivo muito limitado; quando se lhes é que ela contribua para algumas das outras capacidades, por
pede algo um pouco diferente, elas se tomam inúteis; a varie- exemplo: a dificuldade de ocorrer entre homem e máquina a
dade de comportamento de qualquer uma delas é muito peque- mesma espécie de amizade existente entre um homem branco e
na; etc., etc. Naturalmente, a conclusão é a de que estas serão, outro, ou entre dois homens pretos.
necessariamente, propriedades das máquinas em geral. Muitas A alegação de que "as máquinas não podem cometer erros"
limitações advêm da capacidade de memória bastante reduzida parece curiosa. Sente-se a tentação de responder: "Será que elas
dessas máquinas (dou por entendido que a idéia de capacidade são inferiores por causa disso?" Mas vamos adotar uma atitude
de memória seja ampliada de alguma maneira, de forma a abran- mais simpática e procurar ver o que isto realmente significa.
ger outras máquinas que não as de estado discreto. A definição Penso que tal critica pode ser explicada em termos do jogo da
exata não importa, uma vez que não se pretende nenhuma pre- imitação. Pretende-se que o interrogador possa distinguir a
cisão matemática na presente discussão). Há alguns anos atrás, máquina do homem ao simplesmente propor-lhes certo núme-
quando quase não se falava de computadores digitais, era ro de problemas de aritmética. A máquina seria desmascarada
possível suscitar muita incredulidade a respeito deles, caso devido à sua precisão mortal. A resposta a este argumento é
se mencionasse suas propriedades sem descrever como eles simples. A máquina (programada para jogar o jogo) não procu-
são construídos. Isso se devia, provavelmente, a uma aplica- raria dar respostas corretas aos problemas de aritmética. Intro-
ção semelhante do princípio da indução. Tais aplicações do duziria deliberadamente erros, de um modo calculado a con-
princípio, na maioria dos casos, são evidentemente inconscien- fundir o interrogador. Um defeito mecânico provavelmente se
tes. Uma criança que já se queimou, teme o fogo, e mostra que revelaria através de uma decisão inapropriada quanto a que es-
o teme evitando-o, está aplicando, ao meu ver, o princípio da pécie de erro de aritmética seria feito. Mesmo tal interpretação
indução científica (claro que eu poderia também descrever o da critica não é suficientemente simpática. Não dispomos, en-
seu comportamento de muitos outros modos).As obras e hábi- tretanto, de espaço bastante para continuar a examiná-la. A meu
tos da humanidade não parecem ser material muito apropri- ver, semelhante critica deriva de uma confusão entre dois tipos

42 43
de erros. Podemos chama-los de "erros de funcionamento" e de estrutura. Pela observação dos resultados de seu próprio com-
"erros de conclusão". Os erros de funcionamento são devidos a portamento, pode modificar seus próprios programas, de modo
uma falha mecânica ou elétrica que faz com que a máquina se a alcançar algum objetivo mais eficazmente. Estas são possibi-
comporte de modo diferente do planejado. Nas discussões filo- lidades para um futuro próximo, não sonhos utópicos.
sóficas, prefere-se ignorar a possibilidade de tais erros; discu- A crítica de que uma máquina não pode ter muita diversida-
tem-se então "máquinas abstratas". Essas máquinas abstratas de de comportamento é simplesmente uma maneira de dizer
são muito mais ficções matemáticas do que objetos físicos. Por que ela não pode ter muita capacidade de memória. Até bem
definição, são incapazes de erros de funcionamento. Nesse sen- recentemente, uma capacidade de memória de algo como mil
tido, podemos dizer realmente que "máquinas nunca podem dígitos era coisa muito rara.
errar". Erros de conclusão só podem surgir quando algum sig- As críticas que estamos aqui considerando são freqüentemen-
nificado é atribuído aos outputs da máquina. A máquina pode- te formas disfarçadas do argumento da consciência. Em geral,
ria, por exemplo, escrever equações matemáticas ou frases se alguém sustentar que uma máquina pode fazer uma dessas
em inglês. coisas, e descrever o tipo de método que a máquina poderia
Quando uma proposição falsa é escrita, dizemos que a má- usar, não causaria grande impressão. Pensa-se que o método
quina cometeu um erro de conclusão. Claro que não existe ra- (qualquer que seja, pois deve ser mecânico) é realmente pouco
zão alguma para afirmar que a máquina não possa cometer erro importante.
desse tipo. Ela poderia não fazer mais do que escrever repetida-
mente "O = 1". Para usar um exemplo menos descabido, a má- (6) A OBJEÇÃO DE LADY LOVELACE

quina poderia ter algum método de tirar conclusões por indução Nossa informação mais pormenorizada sobre a máquina ana-
científica. Devemos esperar que tal método leve ocasionalmente lítica de Babbage vem de uma dissertação de Lady Lovelace
a resultados errôneos. (1842). Nela, declara-se que "a Máquina Analítica não tem ne-
A alegação de que uma máquina não pode ser o tema de seu nhuma pretensão de criar o que quer que seja. Pode fazer tudo
próprio pensamento só poderia ser respondida, evidentemente, quanto saibamos ordenar-lhe que faça (o grifo é de Lady
se se conseguisse demonstrar que a máquina tem algum pensa- Lovelace)." Esse enunciado é citado de Hartree (1949), que
mento sobre algum tema. Entretanto, o "tema das operações de acrescenta: "Isso não implica que não seja possível construir
uma máquina" parece de fato significar alguma coisa, pelo equipamento eletrônico que "pense por si mesmo", ou no qual,
menos para as pessoas que lidam com ela. Se, por exemplo, a em termos biológicos, alguém possa estabelecer um reflexo
máquina estivesse procurando achar uma solução para a equa- condicionado, que serviria de base para a "aprendizagem". A
ção x2-40x-11 = O, estaríamos tentados a descrever tal equação questão, muito estimulante, de se isso é ou não possível em
como parte do tema da máquina naquele momento. Neste sen- princípio, foi sugerida por algum desses recentes desenvolvi-
tido, uma máquina pode, sem dúvida, ser o seu próprio tema. mentos. Mas não parece que as máquinas construídas ou
Pode ser usada para participar na criação dos seus próprios pro- projetadas naquela época tivessem essa propriedade."
gramas, ou para predizer o efeito das alterações de sua própria

44 45
Estou inteiramente de acordo com Hartree neste ponto. Deve- mitir isto torna-me vulnerável a criticas, mas estas não lançam
se observar que ele não sustenta que as máquinas em questão dúvida alguma sobre a credibilidade do meu testemunho quan-
não tinham essa propriedade, mas que aquelas de que dispunha to às surpresas que experimentei.
Lady Lovelace não a encorajavam a crer que tivessem. É possí- Não espero que semelhante resposta possa silenciar o meu
vel que as máquinas em questão possuíssem, de certo modo, tal crítico. Ele dirá provavelmente que tais surpresas são devidas a
propriedade. Suponhamos que uma máquina de estado discreto algum ato mental criativo de minha parte e que não conferem
a possua. A Máquina Analítica era um computador digital uni- maior mérito à máquina. Isto nos leva de volta ao argumento da
versal, de forma que, caso sua capacidade de memória e sua consciência e para longe da idéia de surpresa. É uma linha de
rapidez fossem adequadas ela poderia, por meio de uma pro- argumentação que devemos considerar encerrada, mas talvez
gramação conveniente, ser levada a imitar a máquina em ques- valha a pena notar que a apreciação de algo como surpreenden-
tão. Este argumento provavelmente não ocorreu à Condessa nem te requer, de igual maneira, um "ato mental criativo", quer o
a Babbage. De qualquer modo, eles não tinham a obrigação de acontecimento surpreendente provenha de um homem, de um
alegar tudo quanto pudesse ser alegado. livro, de uma máquina ou de qualquer outra coisa.
A questão toda pode ser considerada de novo sob a rubrica A concepção de que as máquinas não podem suscitar sur-
de máquinas que aprendem. presas se deve, creio eu, a uma falácia a que estão particular-
Uma variante da objeção de Lady Lovelace afirma que a mente sujeitos filósofos e matemáticos. Refiro-me à suposição
máquina não pode nunca "fazer algo de realmente novo". A tal de que, tão logo um fato seja apresentado à mente, todas as
argumento poderíamos opor o velho ditado de que ''Não há nada conseqüências deste fato se impõem à mente simultaneamente
de novo sob o sol". Quem pode ter certeza de que a "obra origi- com ele. Trata-se de uma suposição útil em muitas circunstân-
nal" que fez não foi simplesmente o crescimento de uma se- cias, mas esquece-se facilmente que é falsa. Uma conseqüência
mente em si plantada pelo ensino ou o efeito de seguir princípi- natural desse esquecimento é a de pensar que não há mérito
os gerais conhecidos? Uma variante melhor da objeção diz que algum na simples dedução de conseqüências a partir de dados e
a máquina jamais "pode nos pegar de surpresa". Essa afirmati- de princípios gerais.
va é um desafio mais frontal e pode ser enfrentada de modo
direto.As máquinas me pegam de surpresa com muita freqüên- (7) 0 ARGUMEN TO DA CONTINUIDADE DO SISTEMA NERVOSO

cia. Isso ocorre em grande parte porque não faço cálculos sufi-
O sistema nervoso não é certamente uma máquina de estado
cientes para decidir o que devo esperar que façam, ou talvez
discreto. Um pequeno erro de informação acerca da grandeza
porque embora eu faça cálculos, faço-os apressadamente, assu-
de um impulso nervoso que atinja um neurônio pode influenci-
mindo riscos. Talvez eu diga comigo: "Suponho que a volta-
ar seriamente a grandeza do output. Pode-se argumentar que,
gem aqui deve ser a mesma de lá; de qualquer modo, vamos
sendo assim, não é de se esperar que seja possível imitar o
admitir que seja.". Naturalmente, engano-me com muita fre-
comportamento do sistema nervoso com um sistema de esta-
qüência e o resultado é uma surpresa para mim, pois quando o do discreto.
experimento se realiza, tais suposições foram esquecidas. Ad-

46 47
É verdade que uma máquina de estado discreto tem que ser máquinas. Tentarei reproduzir o argumento, mas temo que difi-
diferente de uma máquina contínua. Mas se nos ativermos às cilmente lhe farei justiça. Parece ser algo assim como "Se cada
condições do jogo da imitação, o interrogador não será capaz homem tivesse um conjunto de regras de conduta definidas pelas
de tirar qualquer vantagem dessa diferença. A situação poderá quais regulasse sua vida, não seria melhor do que uma máqui-
ser aclarada se considerarmos outras máquinas continuas mais na. Mas não existem tais regras, de modo que os homens não
simples. Um analisador diferencial servirá muito bem. (O podem sermáquinas".Apremissamenornão é abrangente. Não
analisador diferencial é um certo tipo de máquina que não a de acredito que o argumento seja sempre formulado exatamente
estado discreto, usado em alguns tipos de cálculo). Alguns dessa maneira, mas acredito, não obstante, que é o argumento
analisadores fornecem suas respostas em forma datilografada, usado. Pode, todavia, haver certa confusão entre "regras de con-
e assim mostram-se adequados para tomar parte no jogo. Não duta" e "leis de comportamento" a obscurecer a questão. Por
seria possível a um computador digital predizer exatamente que "regras de conduta" quero dizer preceitos tais como "Pare quan-
respostas o analisador diferencial daria a um problema, mas ele do avistar a luz vermelha", com base nos quais se pode agir e
seria bem capaz de dar o tipo certo de resposta. Por exemplo, se dos quais se pode estar consciente. Por "leis de comportamen-
requisitado a dar o valor de pi (na verdade, cerca de 3,1416), to" quero dizer leis da natureza aplicadas a um corpo humano,
seria razoável escolher ao acaso entre os valores 3,12, 3,13, tais como "Se você o beliscar, ele berrará". Se substituirmos
"leis de comportamento que regulam sua vida" por "leis de con-
3 14 3 15 3 16 comasprobabilidadesde0,05,0,15, 0,55,0,19,
' ' (digamos).
0,06 ' ' ' ' Nestas circunstâncias, seria muito difícil para duta pelas quais ele regula sua vida", no argumento acima, a
o interrogador distinguir o analisador diferencial de um com- dificuldade colocada não é mais insuperável. Pois acreditamos
putador digital. não apenas que ser governado por leis de comportamento im-
plica ser algum tipo de máquina (embora não necessariamen-
(8) 0 ARGUMENTO DA INFORMALIDADE DO COMPORTAMENTO te uma máquina de tipo discreto) como também, inversamen-
te, que ser uma máquina assim implica ser governado por tais
Não é possível produzir um conjunto de regras que pretenda leis. Entretanto, não podemos convencer-nos facilmente da
descrever o que um homem deveria fazer em cada circunstân- ausência de leis completas de comportamento, bem como da
cia imaginável. Alguém pode ter como regra parar quando vê a de regras completas de conduta. A única maneira que conhe-
luz vermelha do semáforo, e prosseguir quando vê o sinal ver- cemos de encontrar tais leis é a observação científica, e não
de, mas o que aconteceria se, por alguma falha, ambos os sinais sabemos absolutamente de quaisquer circunstâncias em que
aparecessem conjuntamente? Pode-se talvez decidir que é mais pudéssemos dizer: "Já investigamos o suficiente. Não exis-
seguro parar. Mas alguma dificuldade posterior talvez resulte tem tais leis."
dessa decisão. Tentar oferecer regras de conduta para abarcar Podemos demonstrar mais convincentemente que uma afir-
todas as eventualidades, mesmo as oriundas de semáforos, pa- mação desse tipo seria injustificada. Pois suponhamos que pu-
rece impossível. Concordo com tudo isso. déssemos estar seguros de encontrar tais leis, caso elas existis-
A partir de tal situação, sustenta-se que não podemos ser sem. Então, dada uma máquina de estado discreto, seria certa-

48 49
mente possível descobrir, por observação, o bastante sobre ela Um argumento mais especifico, baseado naPES, é formulável
para predizer seu comportamento futuro, e isso dentro de um como segue: "Joguemos o jogo da imitação usando como teste-
tempo razoável, digamos mil anos. Mas não parece ser esse o munha um homem que seja tão bom como receptor telepático
caso. Estabeleci no computador de Manchester um pequeno quanto como computador digital. O interrogador pode fazer
programa que usa somente 1000 unidades de memória, e no perguntas como: "À que naipe pertence a carta na minha mão
qual a máquina, alimentada com um número de 16 algarismos, direita?" O homem, por telepatia ou clarividência, dá a respos-
responde com outro em dois segundos. Eu desafiaria qualquer ta certa 130 vezes em 400 tentativas. A máquina só pode adivi-
pessoa a descobrir, com base nessas respostas, o suficiente acerca nhar ao acaso e talvez conseguir 104 respostas corretas e assim
do programa para poder predizer quaisquer respostas a valores sendo, o interrogador faz a identificação correta". Há uma pos-
não experimentados. sibilidade interessante, que se abre aqui. Suponhamos que o
computador digital contenha um gerador de números aleatóri-
(9) 0 ARGUMENTO DA PERCEPÇÃO EXTRA-SENSORIAL (P. E.S.} os. Será natural então usá-lo para decidir qual a resposta a dar.
Mas nesse caso o gerador de números aleatórios estará sujeito
Presumo que ao leitor seja familiar a idéia da percepção ex-
aos poderes psicocinéticos do interrogador. Talvez esta
tra-sensorial e o significado de seus quatro itens: telepatia, cla-
psicocinética possa fazer com que a máquina adivinhe com
rividência, precognição e psicocinética. Estes fenômenos
maior freqüência do que a esperada num cálculo de probabili-
perturbadores parecem negar todas as nossa idéias científicas
dades, de forma que o interrogador seria ainda incapaz de fazer
habituais. Como gostaríamos de desacreditá-los! Infelizmente,
a identificação correta. Por outro lado, talvez ele fosse capaz de
os indícios estatísticos, pelo menos quanto à t"elepatia, são es-
adivinhar corretamente, sem fazer pergunta alguma por meio
magadores. É muito dificil recompor nossas idéias para nelas
da clarividência. Com a PES, tudo pode acontecer.
encaixar estes novos fatos. Uma vez que temos de aceitá-los,
Se a telepatia for admissível, será necessário tomar nosso
não será despropositado acreditar em fantasmas e espectros. A
teste mais rigoroso. Poder-se-ia encarar a situação como análo-
idéia de que nossos corpos se movem tão-somente de acordo
ga à que ocorreria se o interrogador falasse consigo próprio e
com leis conhecidas da física, juntamente com outras ainda não
um dos competidores estivesse a escuta, o ouvido colado à pa-
descobertas, mas de alguma forma semelhantes, seria uma das
rede. Colocar os competidores numa "sala à prova de telepatia"
primeiras a desaparecer.
satisfaria todos os requisitos.
Esse argumento é, para mim, muito forte. Pode-se dizer, em
resposta, que muitas teorias científicas parecem permanecer
viáveis na prática, a despeito de colidirem com a PEs; que, de 7. MÁQUINAS QUE APRENDEM
fato, pode se viver muito bem se a esquecermos. Isso é muito
pouco confortador, sendo de temer que o pensamento seja exa- O leitor terá percebido que eu não disponho de muitos argu-
tamente o tipo de fenômeno em que PES possa ser especialmen- mentos convincentes de natureza positiva para sustentar os meus
te importante. pontos de vista. Se dispusesse, não teria tido tanto trabalho em

50 51
apontar as falácias dos pontos de vista contrários. Enumerarei contém? Neste caso, a mente toda é mecânica. (Não seria en-
agora os indícios de que disponho. tretanto uma máquina de estado discreto. Já discutimos isso).
Retomemos por um momento à objeção de Lady Lovelace, Estes dois últimos parágrafos não pretendem ser argumen-
que sustenta ser a máquina capaz tão-somente de fazer o que tos convincentes. Deveriam antes ser descritos como "recita-
lhe ordenarmos que faça. Digamos então que um homem pode- ções destinadas a suscitar crença."
ria "injetar" uma idéia na máquina e esta responderia, voltando O único apoio realmente satisfatório que pode ser dado à
em seguida à imobilidade, como uma corda de piano percutida concepção expressa no princípio do parágrafo 6 será esperar o
por um martelo. Outra analogia seria uma pilha atômica, de frm do século para então realizar o experimento descrito. Mas o
tamanho menor que o crítico: uma idéia injetada corresponderá que podemos dizer, entrementes? Que providências devem ser
a um nêutron entrando na pilha, vindo de fora. Cada nêutron tomadas desde já para que o experimento seja bem sucedido?
causará uma certa perturbação, que por flm desaparecerá. Se, Como já expliquei, o problema é principalmente de progra-
contudo, o tamanho da pilha for aumentado o bastante, a per- mação. Progressos de engenharia terão também de ser feitos,
turbação causada pelo nêutron entrante muito provavelmente mas parece pouco provável que estes possam satisfazer as exi-
continuará a aumentar até que toda a pilha seja destruída. Exis- gências. As estimativas da capacidade de memória do cérebro
te, acaso, um fenômeno correspondente para mentes e outro variam de 1010 a 1015 dígitos binários (bits). Inclino-me para
para máquinas? Parece haver um para a mente humana. Amai- valores mais baixos e acredito que apenas uma pequena fração
oria delas parece ser "subcrítica", isto é, correspondente, nesta dessa capacidade seja usada para os tipos superiores de pensa-
analogia, a pilhas de tamanho subcrítico. Uma idéia apresenta- mento. A maior parte dela é provavelmente usada para a reten-
da a uma mente dará, em média, menos de uma idéia em res- ção de impressões visuais. Eu ficaria surpreso se mais do que
posta. Pequena proporção é supercrítica. Uma idéia apresenta- 109 bits fossem necessários para atuação satisfatória no jogo da
da a uma mente dessas pode dar origem a toda uma "teoria" imitação, pelo menos contra um homem cego. (Nota: a capaci-
consistente de idéias secundárias, terciárias e mais remotas. As dade da Enciclopédia Britânica, 11 a. edição, é de 2 X 109). Uma
mentes animais parecem ser definitivamente subcriticas. Fir- capacidade de memória de 107 bits seria uma possibilidade muito
mados nessa analogia, perguntamos: "Pode-se fazer com que prática, mesmo pelas técnicas atuais. Talvez não seja absoluta-
uma máquina seja supercrítica?" mente necessário aumentar a velocidade de operação das má-
A analogia da "casca de cebola" também é útil. Ao conside- quinas. Setores de máquinas modernas que podem ser conside-
rar as funções da mente ou do cérebro, encontramos certas ope- rados como análogos das células nervosas trabalham cerca de
rações que podemos explicar em termos puramente mecânicos. 1000 vezes mais rapidamente que estas. Isto daria uma mar-
Isto que dizemos não corresponde à mente real: é uma espécie gem de segurança que poderia cobrir perdas de velocidade de
de casca que temos de retirar se quisermos chegar à mente ver- vários tipos. Nosso problema é então descobrir como progra-
dadeira. Mas então, no que resta, achamos outra casca a ser mar tais máquinas para jogar o jogo da imitação. No meu ritmo
arrancada, e assim por diante. Procedendo dessa maneira, che- de trabalho atual, produzo cerca de 1000 dígitos de programa-
garemos à mente real ou acabaremos por chegar à casa que nada ção por dia, de modo que uns 60 operadores, trabalhando sem

52 53
interrupção durante cerca de 50 anos, poderiam levar a cabo o Mudanças na máquina-criança = mutações
trabalho, se não se desperdiçasse nada. Alguns métodos mais Seleção natural =juízo do experimentador
expeditos parecem ser desejáveis.
No processo de tentar imitar a mente humana adulta, temos Pode-se esperar, contudo, que este processo seja mais rápi-
de refletir bastante sobre o processo que a levou até o ponto do do que a evolução. A sobrevivência do mais apto é um mé-
onde se encontra. Cumpre atentar para três componentes: todo vagaroso de medir vantagens. O experimentador, valen-
do-se da inteligência, deveria ser capaz de acelerá-lo. Igual-
(a) O estado inicial da mente, isto é, ao nascer; mente importante é o fato de que o experimentador não está
(b) A educação que recebeu; restrito às mutações casuais. Se conseguir determinar a causa
(c) Outras experiências, que não as descritas como educa- de alguma fraqueza, poderá provavelmente pensar no tipo de
ção, a que foi submetida. I
mutação apto a superá-la.
Em vez de tentar produzir um programa que simule a mente Não será possível aplicar à máquina exatamente o mesmo I
adulta, por que não tentar produzir um que simule a mente in- processo de ensino que se aplica a uma criança normal. A má- I
fantil? Se ele fosse então submetido à educação apropriada, ter- quina, por exemplo, não disporá de pernas; assim, não se pode
se-ia um cérebro adulto. Provavelmente, o cérebro da criança é pedir-lhe que vá buscar um balde de carvão lá fora. Possivel- I
mente não terá olhos. Todavia, ainda que estas deficiências se-
algo assim como um desses cadernos que se compram em pa-
pelaria. Pouco mecanismo e muitas folhas em branco. (Meca- jam superadas por uma engenharia inteligente, não se poderia
I
nismo e escrita são, do nosso ponto de vista, quase sinônimos). mandar a criatura à escola sem que as outras crianças a escar- I
Nossa esperança é a de que haja tão pouco mecanismo no cére- necessem. Melhor arranjar-lhe um professor particular. Não é
bro da criança que algo que se assemelhe possa ser programa- preciso que nos preocupemos tanto com pernas, olhos, etc. O
I
do. Numa primeira aproximação, a soma de trabalho gasto na exemplo de Helen Keller demonstra que a educação é possível I
educação pode ser considerada equivalente à gasta na educa- desde que a comunicação em ambas as direções, entre profes-
ção da criança humana. sor e aluno, ocorra de alguma forma.
I
Dividimos assim nosso problema em duas partes: o progra- Normalmente, associamos punições e recompensas ao pro- I
ma infantil e o processo de educação. Estas duas partes perma- cesso de ensino. Algumas máquinas-crianças simples podem j
necem intimamente ligadas. Não podemos esperar encontrar ser construídas ou programadas de acordo com esse tipo de prin-
uma boa máquina-criança logo na primeira tentativa. Deve-se cípio. A máquina tem que ser construída de forma tal que os I
experimentar ensinar uma máquina para ver como ela aprende. acontecimentos que antecedem a ocorrência de um sinal de
Pode-se então tentar ensinar outra para ver se se sai melhor ou punição sejam de repetição improvável, ao passo que um sinal I
pior. Há uma conexão óbvia entre esse processo e a evolução, de recompensa aumente a probabilidade de repetição dos acon- I
através destas identificações: tecimentos que levaram a ela. Estas definições não pressupõem
Estrutura da máquina-criança= material hereditário quaisquer sentimentos por parte da máquina. Fiz alguns expe-
rimentos com uma máquina-criança assim e consegui ensinar- I

54
55
lhe algumas coisas, mas o método de ensino era muito pouco como imperativas. A máquina deve ser construída de tal forma
ortodoxo para que o experimento pudesse ser considerado real- que tão logo um imperativo seja classificado como "bem esta-
mente bem sucedido. belecido", a ação apropriada ocorra automaticamente. Para ilus-
O uso de punições e recompensas pode, no melhor dos ca- trar isso, suponhamos que o professor diga à máquina: "Faça
sos, constituir uma parte do processo de ensino. Grosso modo, agora seus deveres de casa". Isto pode resultar em que "O pro-
se o professor não dispuser de outro meio de comunicação com fessor disse: faça agora seus deveres de casa" seja incluído en-
o aluno, a quantidade de informação que pode alcançá-lo, não tre os fatos bem estabelecidos. Outro fato pode ser: "Tudo o
excederá o número total de recompensas e punições aplicadas. que o professor diz é verdade". A combinação dos dois fatos
Uma criança que tivesse que aprender a repetir "Casabianca" pode levar o imperativo "Faça agora seus deveres de casa" a
provavelmente ficaria muito dolorida se o texto só pudesse ser ser incluído entre os fatos bem estabelecidos, e isso, dada a
descoberto por uma técnica de "Vmte Perguntas" em que cada construção da máquina, significará que os deveres de casa em
"Não" assumisse a forma de uma palmada. Por isso é necessá- verdade começarão a ser feitos. O processo de inferência utili-
rio dispor de outros canais de comunicação "não-emotivos". zado pela máquina não precisa ser de modo a satisfazer os lógi-
Se estes estiverem disponíveis, será possível ensinar uma má- cos mais exigentes. Pode não haver, por exemplo, hierarquia de
quina, através de punições e recompensas, a obedecer ordens tipos. Mas isso não tem de significar que falácias de tipo te-
dadas em alguma linguagem, por exemplo uma linguagem sim- nham de ocorrer com freqüência. Imperativos adequados (ex-
bólica. Essas ordens deverão ser transmitidas através de canais pressos dentro dos sistemas, não fazendo parte das regras do
"não-emocionais". O uso desta linguagem diminuirá enorme- sistema), tais como: "Não use uma classe a menos que seja
mente o número de recompensas e punições necessárias. subclasse de outra mencionada pelo professor", podem ter efeito
As opiniões podem variar quanto à complexidade conveni- similar a: "Não chegue tão perto da borda do penhasco".
ente para a máquina-criança. Pode-se tentar fazê-la tão simples Os imperativos que podem ser obedecidos por uma máqui-
quanto possível, dentro dos princípios gerais. Alternativamen- na não dotada de braços e pernas estão limitados a ser de cará-
te, pode-se optar por um sistema completo de inferência lógica ter bastante intelectual, como no exemplo acima (fazer os de-
embutido"2. Neste caso, a memória seria ocupada em grande veres de casa). Importantes entre tais imperativos serão aque-
parte por defmições e proposições. As proposições seriam de les que regulam a ordem em que as regras do sistema lógico
vários tipos; por exemplo, fatos bem estabelecidos, conjeturas, envolvido serão aplicadas. Porque, a cada estágio, quando al-
teoremas matemáticos demonstrados, enunciados de autorida- guém está usando um sistema lógico, há um grande número de
de, expressões que tenham a forma lógica de proposição mas escolhas alternativas, qualquer um deles de aplicação possível
não de valor-crença. Certas proposições podem ser descritas no que concerne à obediência das regras do sistema lógico. Essas
escolhas marcam a diferença entre um argumentador brilhante
2. Ou antes ''programado", pois a nossa máquina-criança será programa-
e outro inepto, mas não a diferença entre um argumentador cor-
da num computador digital. O sistema lógico, porém, não precisará ser reto e outro sofismador. Proposições que conduzam a imperati-
aprendido. vos dessa espécie poderiam ser: "Quando se mencionar Sócra-

56 57
tes, use o silogismo de Barbara", ou: "Se um método é mais portamento aleatório. Presume-se que o comportamento inteli-
rápido que outro, não use o método mais vagaroso". Algumas gente consista num desvio do comportamento inteiramente dis-
destas proposições podem ser dadas, "por autoridade", mas ciplinado implicado em computação, mas desvio pequeno, que
outras podem ser produzidas pela própria máquina, isto é, por não dê margem a comportamento aleatório ou a voltas
indução científica. repetitivas, sem objetivo. Outro resultado importante de prepa-
A indução numa máquina que aprende talvez pareça para- rarmos nossa máquina por meio de um processo de ensino e
doxal a alguns leitores. Como podem as regras de operação da aprendizagem para seu papel no jogo da imitação é o de que a
máquina mudar? Elas deveriam descrever completamente como "falibilidade humana" será provavelmente omitida de maneira
a máquina irá reagir, qualquer que possa ser sua história, quais- natural, isto é, sem "preparação" especial. (O leitor deve conci-
quer que sejam as mudanças que sofra. As regras são, pois, de- liar isto com o ponto de vista do argumento número 5, discuti-
veras invariantes no tempo. Isto é bem verdade. A explicação do páginas atrás.) Processos aprendidos não propiciam uma
do paradoxo está em que as regras que mudam nos processos certeza de cem por cento quanto ao resultado; se a propicias-
de aprendizagem são de caráter menos pretensioso, aspiram sem, não poderiam ser desaprendidos.
apenas a uma validade efêmera. O leitor pode compará-las à Será provavelmente sensato incluir um elemento aleatório
Constituição dos Estados Unidos. numa máquina aprendiz. Um elemento aleatório é bastante útil
Uma característica importante da máquina que aprende é a quando estamos buscando a solução de um problema. Supo-
de que seu professor freqüentemente ignorará a maior parte do nha-se que queiramos encontrar um número entre 50 e 200 que
que está se passando no interior da máquina, embora possa até seja igual ao quadrado da soma de seus algarismos; podería-
certo ponto predizer o comportamento de sua aluna. Isto se apli- mos começar com 51, depois experimentar 52, e continuar as-
caria muito mais à educação ulterior de uma máquina origina- sim até encontrar um número que satisfizesse essa condição.
da de projeto (ou programa) bem estabelecido, e contrasta cla- Alternativamente, poderíamos escolher números ao acaso até
ramente com o procedimento normal quando se usa uma má- achar um que servisse. Este método tem a desvantagem de se
quina em operações de computação: o objetivo é então ter um experimentar o mesmo número duas vezes. Isso não será gran-
nítido quadro mental do estado da máquina a cada momento da de inconveniente se existirem várias soluções. O método siste-
computação. Tal objetivo só pode ser alcançado com muito es- mático tem a desvantagem de que pode haver um enorme bloco
forço.Aconcepção de que "a máquina pode fazer somente aquilo sem qualquer solução na região que tem de ser investigada pri-
que saibamos como ordenar-lhe que faça" parece estranha di- meiramente. O processo de aprendizagem pode ser considera-
ante disto.3 A maioria dos programas que podemos colocar na do como busca de uma forma de comportamento que satisfaça
máquina dará como resultado ela fazer algo que não consiga- ao processo (ou a algum outro critério). Como provavelmente
mos absolutamente entender, ou que consideramos como com- existe um número muito grande de soluções satisfatórias; o
método aleatório parece ser melhor que o sistemático. Cumpre
3. Compare-se com a afirmação de Lady Lovelace, que não contém a pala- notar que ele é usado no processo análogo da evolução. Mas
vra "somente". nesta o método sistemático não é possível. Como se poderiam

58 59
guardar todas as diferentes combinações genéticas tentadas, de
modo a evitar sua repetição?
Esperamos que as máquinas acabem por competir com o
homem em todos os campos puramente intelectuais. Quais, po-
rém, os melhores para começar? Mesmo esta é uma decisão MENTES, CÉREBROS E PROGRAMAS
dificil. Muitas pessoas acham que uma atividade bastante abs-
trata, como o jogo de xadrez, seria o melhor. Pode-se também
JOHN SEARLE
sustentar que o mais conveniente é dotar as máquinas dos me-
lhores órgãos sensoriais que o dinheiro possa comprar, e ensiná-
las a compreender e falar inglês. Tal processo poderia acompa-
tradução
nhar o do ensino normal de uma criança. Coisas seriam aponta- CLÉA REGINA DE OLIVEIRA RIBEIRO
das e nomeadas, etc. Mais uma vez, não sei qual a resposta
certa, mas penso que ambos os enfoques deveriam ser tenta-
dos.
Podemos avistar só um pequeno trecho do caminho à nossa
frente, mas ali já vemos muito do que precisa ser feito.

60
DISTINGO ENTRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL no sentido forte e no sen-
1
tido fraco. De acordo com a IA no sentido forte, computadores
adequadamente programados literalmente têm estados
cognitivos, e, assim sendo, programas são teorias psicológicas.
Argumento que a IA no sentido forte deve ser falsa, uma vez
que um agente humano poderia instanciarum programa e, mes-
mo assim, não ter estados mentais. Examinarei alguns argu-
mentos contra esta afirmação e explorarei algumas conseqüên-
cias do fato de que o cérebro de seres humanos e de animais são
a base causal da existência de fenômenos mentais.
Que significado psicológico e ftlosófico devemos atribuir
aos esforços feitos recentemente para simular capacidades
cognitivas humanas através do computador? Para responder esta
questão considero útil distinguir entre o que denomino IA no
sentido "forte" e IA no sentido "fraco" ou "cautelosa". De acordo
com a IA no sentido fraco, o principal valor do computador
para o estudo da mente reside no fato de que este nos fornece
uma ferramenta extremamente poderosa. Por exemplo, ele nos
permite formular e testar hipóteses de maneira mais rigorosa e
precisa do que antes. Mas de acordo com a IA no sentido forte,
o computador não é meramente um instrumento para o estudo
da mente. Muito mais do que isso o computador adequadamen-

1. O termo ''Inteligência Artificial" será abreviado, daqui em diante por IA.


(N. do T.)
te programado é uma mente, no sentido de que, se lhe são da- "Um homem foi a um restaurante e pediu um hambúrguer.
dos os programas corretos pode-se dizer que eles entendem e Quando o hambúrguer chegou, estava torrado, e o homem
que eles têm outros estados cognitivos. Conforme a IA no sen- furioso saiu esbravejando do restaurante sem pagar e nem
tido forte, uma vez que o computador programado tem estados deixar gorjeta".
cognitivos, os programas não são meros instrumentos que nos Ora, se a seguinte questão for formulada: "O homem co-
capacitam testar explicações psicológicas: os programas cons- meu o hambúrguer?", você presumivelmente responderá:
tituem as próprias explicações. Não tenho objeções a IA no "Não, ele não comeu". Da mesma maneira, se for dada a
sentido fraco, pelo menos no que diz respeito ao escopo deste seguinte história:
artigo. Minha discussão será dirigida às afirmações que defini "Um homem foi a um restaurante e pediu um hambúr-
como caracterizando a IA no sentido forte, especificamente a guer; ao chegar o pedido ficou bastante satisfeito e na hora
idéia de que computadores adequadamente programados têm de ir embora deu uma boa gorjeta à garçonete antes de pagar
estados cognitivos e que os programas, a partir disso, explicam sua conta".
a capacidade cognitiva humana. Quando eu me referir a IA es- Se a seguinte questão for formulada: "O homem comeu o
tarei considerando a IA no sentido forte, definida através das hambúrguer?" Você certamente responderá: "Sim, ele comeu o
duas afirmações acima. hambúrguer". Ora, a máquina de Schank pode responder a ques-
Analisarei o trabalho de Roger Schank e seus colegas em tões deste tipo sobre restaurantes. Para poder fazer isto ela tem
Yale (Cf. Schank andAbelson, 1977), porque estou mais fami- a "representação" do tipo de informação que os seres humanos
liarizado com ele do que com outros trabalhos semelhantes. têm sobre restaurantes, o que a toma capaz de responder tais
Além do mais, ele fornece um exemplo claro do tipo de traba- questões quando tais tipos de história lhe são apresentadas.
lho que desejo examinar. Mas nada do que apresento a seguir Quando se fornece uma história para a máquina e se formula
depende de detalhes do programa de Schank. Os mesmos ar- uma questão, ela imprimirá respostas do mesmo tipo que espe-
gumentos se aplicariam ao programa de Winograd (1972), raríamos de seres humanos. Partidários da IA no sentido forte
SHRDLU, o programa de Weizembaum, ELIZA, (1965) e a qual- afirmam desta seqüência pergunta-resposta, que não somen-
quer simulação de fenômenos mentais humanos baseada na te a máquina está simulando uma habilidade humana mas
máquina de Turing. também que:
Deixando de lado vários detalhes, pode-se descrever o pro-
grama de Schank da seguinte maneira: seu objetivo é simular a A) A máquina compreende a história e fornece respostas às
habilidade humana de compreensão de histórias. É caracterís- questões;
tico na habilidade dos seres humanos para compreender his- B) O que a máquina e seu programa fazem explica a habili-
tórias que estes possam responder questões sobre elas, mes- dade humana para entender histórias e responder questões so-
mo se a informação não estiver explicitamente dada no tex- bre elas.
to. Neste caso, por exemplo, suponha que seja fornecida a
As afrrmações (A) e (B) parecem totalmente insustentáveis
seguinte história:

64 65
a partir do trabalho de Schank, como tentarei mostrar no que que eu saiba, as pessoas que me fornecem os textos com os
se segue. 2 referidos símbolos, denominam o primeiro bloco de "roteiro",
Uma maneira para testar qualquer teoria da mente é pergun- o segundo, de "história" e o terceiro de "questões". Ademais,
tar a alguém o que aconteceria se sua própria mente de fato eles intitulam os símbolos devolvidos em resposta ao terceiro
funcionasse sob os princípios que a teoria diz que toda mente maço de "respostas às questões", e o conjunto de regras em
funciona. Vamos aplicar este teste ao programa de Schank com inglês de "programa". Para complicar a história um pouquinho
o seguinte Gedankenexperiment 3• Suponha que estou trancado mais, imagine que estas pessoas também me forneçam históri-
em um quarto e suponha que me dão um calhamaço de papel as em inglês, as quais eu compreendo, e então elas me fazem
com um texto em chinês. Além disso, suponha que eu não co- questões em inglês sobre estas histórias, e eu as devolvo res-
nheça o idioma chinês, nem escrito nem falado, e que eu não pondendo em inglês. Suponha, ainda, que depois de um tempo
seja sequer capaz de reconhecer a escrita chinesa, ou seja, dis- eu me saia tão bem ao seguir as instruções para manipulação
tingui-la, por exemplo, da escrita japonesa ou de rabiscos sem dos símbolos em chinês e que os programadores consigam es-
significado. Suponha, agora, que além deste primeiro calhamaço crever tão bem os programas que do ponto de vista externo -
fornecem-me - também em chinês - um segundo, contendo um isto é, do ponto de vista de alguém que esteja do lado de fora do
roteiro com um conjunto de regras para correlacionar o segun- quarto no qual eu estou trancado - minhas respostas às ques-
do texto com o primeiro. As regras são em inglês e eu as com- tões são indistinguíveis de falantes nativos de chinês. Ninguém
preendo tão bem como qualquer outro falante nativo de inglês. observando minhas respostas pode dizer que eu não falo uma
Isto me possibilita relacionar um conjunto de símbolos formais palavra de chinês. Vamos também supor que minhas respostas
com o outro, e o que entendo por formal aqui é que posso iden- às questões em inglês são indistinguíveis de outro falante nati-
tificar os símbolos por seu formato. Nestas circunstâncias, ima- vo de inglês - pela simples razão de que eu sou um falante
gine também que me forneçam um terceiro calhamaço conten- nativo de inglês. Do ponto de vista externo,- na visão de al-
do símbolos em chinês junto com algumas instr,uções, outra guém que lê minhas respostas, - as respostas em chinês e em
vez em inglês, as quais me possibilitarão correlacionar elemen- inglês são igualmente satisfatórias. Mas no caso do idioma chi-
tos deste terceiro maço com os dois primeiros; estas regras me nês, eu obtenho respostas manipulando símbolos formais em
instruem como relacionar detern1inados símbolos em chinês com chinês, sem significação. No que diz respeito ao chinês, eu
certos tipos de configuração e os devolver como resposta a de- simplesmente me comportei como um computador; execu-
terminadas configurações dadas no terceiro calhamaço. Sem tei operações computacionais com base em elementos for-
malmente especificados. Para os propósitos do idioma chi-
2. Não estou dizendo, é claro, que o próprio Schank está comprometido nês, eu sou simplesmente uma instanciação de um programa
com essas afirmações. de computador.
3. O termo alemão Gedankenexperiment significa "experimento mental'', Assim sendo, as afirmações feitas pela IA no sentido forte
um recurso ftlosófico onde se imagina uma situação possivel, que não con-
traria possibilidades fisicas e lógicas e da qual podemos extrair conseqüên-
são de que um computador programado entende as histórias e
cias conceituais importantes. (N. do T.) que o programa, em algum sentido, explica a compreensão hu-

66 67
mana. Estamos agora em posição de examinar claramente estas mo se o programa de Schank não constituir uma explicação
afirmações no nosso experimento mental. completa da compreensão, talvez constitua uma parte de tal
a) Considerando a primeira afirmação, parece óbvio no exem- explicação. Ou seja, assumimos como possibilidade empírica,
plo acima, que eu não compreendo uma palavra das histórias embora sem razões para supor que ela seja verdadeira (uma vez
em chinês. Eu tenho inputs e outputs que são indistinguíveis que ela é apenas sugerida e não demonstrada) que o programa
para os falantes nativos de chinês e mesmo que eu tenha qual- de computador é irrelevante para minha compreensão da histó-
quer programa formal, ainda assim eu não compreendo nada. ria. No caso do idioma chinês tenho tudo que a IA poderia co-
Pelas mesmas razões, o computador de Schank não compreen- locar em mim por intermédio de um programa, e mesmo assim
de nada das histórias, sejam elas em chinês, em inglês, ou em não compreendo nada. No caso do inglês compreendo tudo e
qualquer outro idioma. No caso do idioma chinês eu desempe- até agora não tenho nenhuma razão para supor que minha com-
nho o papel do computador, e nos casos onde não desempenho preensão tenha alguma relação com programas de computador
tal papel, o computador não faz nada além do que eu poderia - isto é, com operações computacionais especificadas sobre
fazer, ou seja, em ambas as situações não há compreensão. elementos puramente formais. Na medida em que o programa é
b) Com relação a segunda afirmação - que o programa ex- definido em termos de operações computacionais baseadas em
plica a compreensão humana- podemos verificar que o com- elementos puramente formais, o que o exemplo sugere é que
putador e seu programa não fornecem as condições suficientes estes não têm conexão com a compreensão. Eles não são con-
para a compreensão, visto que o computador e o programa es- dição suficiente e não há, tampouco, razão para supor que eles
tão funcionando e não existe compreensão. Mas será que ele sejam condição necessária ou mesmo que eles tenham alguma
fornece uma condição necessária ou uma contribuição signifi- contribuição significativa para a compreensão. Observe-se que
cativa para a compreensão? Uma das afirmações sustentada pela a força do argumento não é simplesmente que máquinas dife-
IA no sentido forte é esta: quando eu compreendo uma história rentes podem ter o mesmo input e output enquanto operando
em inglês, o que estou fazendo é exatamente o mesmo - ou em princípios formais diferentes - não é este o ponto. O que
talvez mais que o mesmo - que fazia no caso da manipulação queremos dizer é que por mais que se coloque no computador
dos símbolos em chinês. No caso do inglês, que eu compreen- princípios formais isto não será suficiente para a compreensão,
do, há muito mais do que manipulação de símbolos formais do uma vez que um ser humano será capaz de seguir tais princípi-
que em relação ao chinês, que eu não compreendo. Não estou os formais sem compreender nada. Não há vantagem em supor
demonstrando que esta afirmação é falsa, mas certamente me que eles sejam necessários ou mesmo que contribuam em algo,
parece sem credibilidade no exemplo. A plausibilidade de tal visto que não há nenhuma razão para supor que quando eu com-
suposição deriva-se do fato de que podemos construir um pro- preendo inglês, estou operando com algum programa formal.
grama que terá os mesmos inputs e outpus como um falante O que há no caso das sentenças em inglês que não existe no
nativo, além disso pressupomos que falantes têm algum nível caso das sentenças em chinês? A resposta óbvia é que eu sei o
de descrição onde eles são também instanciações de um pro- que as primeiras significam, mas não tenho a menor idéia do
grama. Com base nestas duas suposições, assumimos que mes- que as últimas significam. No que isto consiste e por que não

68 69
posso atribuí-lo a uma máquina, qualquer que seja ela? Por que estão "por fora" seja por metáfora ou por analogia. Freqüente-
não posso atribuir a uma máquina aquilo que faz com que eu mente atribuímos "compreensão" e outros predicados cognitivos
saiba o que as sentenças em inglês significam? Voltarei a estas a carros, máquinas de somar e outros artefatos mas nada se pro-
questões depois de desenvolver um pouco mais o meu exemplo. va com tais atribuições. Dizemos: "a porta sabe quando abrir,
Tive oportunidade de apresentar este exemplo a vários pes- em razão de sua célula fotoelétrica"; "a máquina de somar sabe
quisadores da IA e, curiosamente, eles parecem discordar acer- como fazer soma e subtração, mas não divisão" e "o termostato
ca do que seja uma resposta para estas questões. Obtive urna percebe as mudanças de temperatura". A razão pela qual faze-
variedade surpreendente de respostas, e, no que se segue, anali- mos estas atribuições é interessante e tem a ver com o fato de
sarei várias delas (especificadas conforme suas origens geo- que estendemos nossa própria intencionalidade para os artefa-
gráficas). Primeiro entretanto, quero desmontar alguns equívo- tos5. Nossos instrumentos são extensões de nossos propósitos,
cos comuns sobre "compreensão". Em muitas destas discus- e assim achamos natural fazer atribuições metafóricas de
sões encontramos muita confusão sobre a palavra "compreen- intencionalidade a eles; mas estes exemplos não resolvem nos-
são". Meus críticos alegam que há diferentes graus de compre- so problema filosófico. O sentido no qual uma porta automáti-
ensão, que "compreensão" não é um simples predicado biná- ca "compreende instruções" através de sua célula fotoelétrica
rio, que existem de fato diferentes tipos e níveis de compreen- não é de jeito nenhum o sentido no qual eu compreendo inglês.
são e, freqüentemente, a lei do terceiro excluído não se aplica Se o sentido da compreensão de histórias dos computadores
de urna maneira direta a enunciados da forma "x compreende programados por Schank fosse o sentido metafórico no qual a
y''; em muitos casos se x compreende y é matéria de decisão e porta compreende e não o sentido no qual eu compreendo in-
não uma simples questão de fato e assim por diante. Sobre to- glês não valeria a pena discutir este problema. Newell e Simon
dos estes comentários eu digo: "está certo, é isso mesmo" mas escrevem afirmando que o sentido de "compreensão" para os
eles não tem nada a ver com o que está sendo discutido aqui. computadores é exatamente o mesmo que para os seres huma-
Há casos em que "compreensão" se aplica claramente e casos nos. Gosto do modo incisivo desta afirmação e é este tipo de
onde claramente ela não se aplica. São situações deste tipo que asserção que analisarei. Argumentarei que, em um sentido lite-
preciso para fundamentar meu argumento4 • ral, o computador não compreende nada da mesma maneira
Compreendo histórias em inglês, em grau inferior posso tam- que o carro e a máquina de somar também não compreendem
bém compreender histórias em francês, em um grau ainda me- nada. A compreensão do computador não é corno minha com-
nor, alemão, e em chinês, de jeito nenhum. Meu carro e minha preensão de alemão, ou seja, parcial ou incompleta, ela é zero.
máquina de somar, por um outro lado, não compreendem nada,

5. Intencionalidade é por defmição aquela característica de determinados


4. "Compreensão" implica não só na posse de estados mentais (intencio- estados mentais pelos quais eles são direcionados para, ou acerca de objetos
nais) como também em condições de verdade desses estados (validade, su- e estados de coisas no mundo. Neste caso, crenças, desejos e intenções são
cesso). No escopo desta discussão estamos interessados somente na posse estados intencionais; formas não direcionadas de ansiedade e de depressão
desses estados. não são. Para uma discussão adicional ver Searle (1979).

70 71
Examinemos agora as objeções: do com uma versão desta visão, enquanto o homem do exem-
I. A OBJEÇÃO DOS SISTEMAS (BERKELEY)- "Embora seja ver- plo dos sistemas intemalizados não compreende chinês como
dade que a pessoa que está trancada no quarto não compreende um falante nativo o faz (pois, por exemplo, ele não sabe que a
a história, ocorre que ela é meramente parte de um sistema glo- história se refere a restaurante e hamburguers etc ...) ainda as-
bal, e o sistema compreende a história. Essa pessoa tem uma sim o homem como sistema de manipulação de símbolos for-
grande tabela a sua frente na qual estão escritas as regras, tem mais realmente compreende chinês. O subsistema do homem,
um bloco de papel de rascunho, lápis para fazer cálculos; além que é o sistema de manipulação de símbolos formais para o
disso tem um "banco de dados" com um conjunto de símbolos chinês não deve ser confundido com o subsistema para inglês.
em chinês.Assim sendo, a compreensão não deve ser atribuída Assim sendo, existem dois subsistemas no homem, um com-
a um simples indivíduo, mas a totalidade de um sistema do preende inglês~ o outro, chinês, e "acontece que os dois siste-
qual ele faz parte". mas têm muito pouco a ver um com o outro''. Mas, quero res-
ponder que não somente eles tem muito pouco a ver um com o
Minha resposta à teoria dos sistemas é simples: deixe o indi- outro, como eles não são nem remotamente parecidos. O
víduo intemalizar todos estes elementos do sistema. Ele me- subsistema que compreende inglês (supondo que possamos usar
moriza as regras da tabela e o banco de dados com símbolos este jargão "subsistema" no momento) sabe que as histórias
chineses e então ele fará todos os cálculos em sua cabeça. O são sobre restaurantes e comer hamburguers, etc., ele sabe que
indivíduo, desse modo, incorpora todo o sistema. Não há nada estão formulando questões sobre restaurantes e que ele as res-
no sistema que ele não possa abarcar. Podemos até dispensar o ponde da melhor maneira possível, através de várias inferências
quarto e supor que ele trabalha do lado de fora. Do mesmo jei- sobre o conteúdo da história e assim por diante. Mas o sistema
to, ele continuará não compreendendo nada de chinês; portan- chinês não sabe nada disso; enquanto o subsistema inglês sabe
to, o sistema não compreende nada porque não há nada neste que hamburguers referem-se a hamburguers o sistema chinês
sistema que não esteja nele. Se ele não compreende, então o sabe somente que "tal e tal rabisco" é seguido de "outro rabis-
sistema não poderá compreender, pois o sistema é somente uma co". Tudo que ele sabe é que vários símbolos formais estão
parte dele. sendo introduzidos numa das extremidades e são manipulados
Na realidade, sinto-me até embaraçado ao dar uma resposta de acordo com regras escritas em inglês e que outros símbolos
a teoria dos sistemas. A idéia é que embora uma pessoa não estão saindo na outra extremidade. O ponto essencial do exem-
compreenda chinês, de alguma forma a conjunção pessoa e plo original era argumentar que tal manipulação de símbolos
pedacinhos de papel poderia compreender chinês. Não é fácil por si só não poderia ser suficiente para compreender chinês
para mim imaginar como alguém que não estivesse preso a uma nem no sentido literal, porque o homem poderia escrever "tal e
ideologia acharia esta idéia plausível. Entretanto, penso que tal rabisco" e depois "outro rabisco tal e tal" sem entender nada
muita gente que está comprometida com a ideologia da IA no
de chinês. E não vem de encontro ao argumento postular
sentido forte, estará propensa a dizer algo muito parecido com subsistemas dentro do homem, pois tais subsistemas não se
isto. Vamos então explorar um pouco mais esta idéia. De acor-
desempenham melhor do que o homem; eles não tem nem se-

72 73
quer alguma semelhança com o falante de inglês (ou cognição em mim com base no fato de que tenho um certo tipo
subsistema). De fato, na descrição feita, o subsistema chinês é de input e de output e um programa entre estes, então parece
simplesmente uma parte do subsistema inglês, uma parte que que todos os tipos de subsistemas não-cognitivos tomar-se-ão
processa uma manipulação de símbolos sem sentido de acordo cognitivos. Por exemplo, meu estômago tem um nível de des-
com regras em inglês. crição no qual faz processamento de informação e instancia um
Perguntemo-nos em primeiro lugar o que motiva a objeção grande número de programas de computador, mas suponho que
dos sistemas- ou seja que fundamentos independentes existem não queremos dizer que ele tem compreensão. Se aceitamos a
para se dizer que o agente deve ter um subsistema dentro dele objeção dos sistemas fica dificil de perceber como poderíamos
que literalmente compreende histórias em chinês? Pelo que sei evitar de dizer que o estômago, o coração, o fígado etc.. são
os únicos fundamentos são que no exemplo eu tenho o mesmo todos subsistemas que compreendem, uma vez que não há ne-
input e o mesmo output dos falantes nativos de chinês e um nhuma razão para distinguir entre falar que o subsistema chi-
programa que os intermedia. Mas o ponto do exemplo foi mos- nês compreende e que o estômago compreende. (Não constitui
trar que isto não poderia ser suficiente para a compreensão no uma resposta para este ponto dizer que o sistema chinês tem
sentido no qual compreendo histórias em inglês, pois uma pes- informação como input e ouput e que o estômago tem comida e
soa e portanto, o conjunto de sistemas que a compõe pode ter a produtos alimentares como input e output, pois do ponto de
combinação adequada de input, output e programa e mesmo vista do agente e do meu ponto de vista, não há informação
assim não compreender nada no sentido no qual compreendo nem na comida e nem no chinês; o chinês é só um conjunto de
inglês. A única motivação para dizer que deve haver um rabiscos sem significado. A informação no caso do chinês está
subsistema em mim que compreende chinês é que eu tenho um somente nos olhos dos programadores e dos intérpretes e não
programa e que posso passar no teste de Turing; posso enganar há nada que os impeça de tratar o input e o output de meus
falantes nativos de chinês. (Cf. Turing, 1950). Mas precisamente órgãos digestivos como informação, se eles assim o quiserem).
um dos pontos em discussão é a adequação do teste de Turing. Este último ponto diz respeito a alguns problemas na IA no
O exemplo mostra que pode haver dois "sistemas", ambos pas- sentido forte e vale a pena fazer aqui uma pequena digressão.
sam no teste de Turing mas apenas um deles compreende; e Se a IA no sentido forte é um ramo da Psicologia ela deve ser
não é um argumento contra este ponto dizer que se ambos pas- capaz de distinguir sistemas que são genuinamente mentais
sam no teste de Turing, ambos devem compreender, uma vez daqueles que não o são. Ela deve ser capaz de distinguir os
que esta afirmação não vem ao encontro do argumento de que o princípios com os quais a mente trabalha daqueles com os quais
sistema em mim que compreende inglês é muito mais comple- sistemas não-mentais trabalham; de outra maneira ela não po-
to do que o sistema que meramente processa chinês. Em suma, deria oferecer explicações acerca da natureza do que é especifi-
a objeção dos sistemas escamoteia a questão ao insistir em apre- camente mental. A distinção mental e não-mental não pode es-
sentar argumentos que o sistema deve compreender chinês. tar apenas no olho do observador - ela deve ser intrínseca aos
Além do mais, a objeção dos sistemas parece levar a conse- sistemas, pois de outra maneira ficaria a critério do observador
qüências absurdas. Se tenho que concluir que deve haver tratar pessoas como não-mentais e furacões como mentais. Mas

74 75
com muita freqüência, na literatura sobre IA, a distinção é que estamos levando esta idéia a sério, note-se que se fosse
esmaecida de tal maneira que toma-se desastroso afirmar que a verdadeira ela seria fatal para a proposta da IA de ser uma ci-
IA é uma investigação cognitiva. McCarthy, por exemplo, es- ência da mente, pois então a mente estaria em todos os lugares.
creve: "Podemos dizer que máquinas tão simples como os O que queremos saber é o que distingue a mente de termostatos,
termostatos têm crenças, e ter crenças parece ser uma caracte- fígados, etc. Se McCarthy estivesse certo a IA no sentido forte
rística de muitas máquinas capazes de resolver problemas" não teria a menor possibilidade de nos dizer em que se baseia
(McCarthy, 1979). Qualquer um que pense que a IA no sentido esta distinção.
forte tem alguma chance como uma teoria da mente deve pon-
derar as implicações desta observação. Pedem-nos para aceitar ll. A OBJEÇÃO DO ROBOT (YALE)- "Suponhamos que escre-
como sendo uma descoberta da IA no sentido forte que o peda- vêssemos um programa diferente daquele de Schank. Suponha-
ço de metal na parede que usamos para regular a temperatura mos que puséssemos um computador dentro de um robot e que
tenha crenças da mesma maneira que nós, nossas esposas e esse computador não fosse apenas receber símbolos formais
nossos filhos têm crenças, e além do mais que a "maioria" das como input e produzir esses símbolos como output, mas que
outras máquinas da sala- telefone, gravador, máquina de so- ele fosse operar o robot de tal maneira que este fizesse coisas
mar, interruptor elétrico, etc- também tenham crenças. Não é como perceber, andar, mover-se, pregar pregos, comer, beber
objetivo deste artigo argumentar ou discutir com McCarthy, por ou qualquer outra coisa. O robot teria uma câmara de televisão
isso afrrmaremos o seguinte, sem argumentar. O estudo da mente adaptada a ele - o que o capacitaria a ver - teria braços e
começa com o fato de que seres humanos têm crenças e que pernas que o capacitariam a agir e tudo isso seria controlado
termostatos, telefones e máquinas de somar não as têm. Se você pelo seu cérebro-computador. Tal robot teria compreensão ge-
concebe uma teoria que nega tal ponto, você produziu um con- nuína e outros estados mentais - ele seria diferente do compu-
tra-exemplo e a teoria é falsa. Têm-se a impressão de que os tador de Schank".
pesquisadores da IA que escrevem esse tipo de coisa pensam A primeira coisa a notar acerca da objeção do robot é que
que podem escapar disto porque eles realmente não levam tais ela tacitamente concede que a cognição não é só -qma questão
coisas a sério e não pensam que alguém o fará. Proponho, pelo de manipulação de símbolos, uma vez que esta objeção acres-
menos para o momento, levar estas coisas a sério. Pense por centa um conjunto de relações causais com o mundo externo.
um minuto o que seria necessário para estabelecer que o peda- Mas a resposta a objeção do robot é que o acréscimo de tais
ço de metal na parede tem, de fato, crenças- crenças com capacidades (perceptual e motora) não acrescenta nada em ter-
direcionalidade, conteúdo proposicional, condições de satisfa- mos de compreensão ou intencionalidade ao programa original
ção; crenças que têm a possibilidade de ser fortes ou fracas, de Schank. Para perceber isso basta notar que o mesmo experi-
ansiosas ou seguras, dogmáticas, racionais ou supersticiosas, mento mental se aplica ao caso do robot. Suponha que em vez
fé cega ou especulações hesitantes. O termostato não é um can- de um computador dentro de um robot você me ponha dentro
didato plausível a ter crenças, nem tampouco o são o estômago, do quarto e me dê novamente símbolos em chinês com instru-
o fígado, a máquina de somar ou o telefone. Contudo, uma vez ções em inglês para combinar estes símbolos com outros sim-

76 77
bolos em chinês. Suponhamos que sem eu saber, alguns dos mos a dizer isso não teríamos também que negar que falantes
símbolos em chinês que chegam a mim venham de uma câmara de chinês entendem histórias? Ao nível das sinapses, o que po-
de televisão adaptada ao robot, e que outros símbolos em chi- derá ser diferente no programa do computador e no programa
nês que estou produzindo sirvam para fazer com que o motor do cérebro dos chineses?"
dentro do robot mova seus braços e pernas. É importante
Antes de responder esta objeção quero fazer uma digressão
enfatizar que tudo que estou fazendo é manipular símbolos for-
para notar que esta é uma objeção estranha de ser feita por qual-
mais. Estou recebendo "informação" do "aparato perceptual"
quer adepto da IA (funcionalismo, etc.). Penso que a idéia cen-
do robot e estou fornecendo "instruções" para seu aparato mo-
tral da IA no sentido forte é que não precisamos saber como o
tor sem saber o que estou fazendo. Eu sou o homúnculo do
cérebro funciona para saber como a mente funciona. A hipóte-
robot, mas de maneira diferente do homúnculo tradicional, sem
se básica é que existe um nível de operações mentais que con-
saber o que está ocorrendo. Não sei nada a não ser as regras
siste em processos computacionais sobre elementos formais que
para manipulação de símbolos. Neste caso pode-se dizer que o
constitui a essência do mental e pode ser realizado através de
robot não tem estados intencionais; ele se move como resulta-
diferentes processos cerebrais, da mesma maneira que um pro-
do de seus circuitos elétricos e do seu programa. Além do mais,
grama computacional pode ser rodado em diferente hardwares.
a instanciação de um programa não produz estados intencio-
A pressuposição da IA no sentido forte é que a mente está para
nais de nenhum tipo relevante. Tudo que está sendo feito é seguir
o cérebro assim_ como o programa está para o hardware, e pode-
instruções formais acerca da manipulação de símbolos formais.
mos entender a mente sem fazer neurofisiologia. Se tivéssemos
III. A OBJEÇÃO DO SIMULADOR CEREBRAL (BERKELEY E M.l. T.) que saber como o cérebro trabalha para fazer IA esta não cons-
- "Suponhamos que nós projetássemos um programa que não tituiria um problema. Contudo, mesmo que cheguemos a um
represente a informação que temos acerca do mundo como é o conhecimento muito grande das operações do cérebro, isto não
caso da informação dos roteiros de Schank. O programa simula seria suficiente para produzir a compreensão. Senão vejamos:
a seqüência efetiva da atividade dos neurônios nas sinapses do imagine que ao invés de um ser monolingual num quarto com-
cérebro de um falante nativo de chinês, quando este entende binando símbolos tenhamos um homem operando um conjunto
histórias e dá respostas a elas. A máquina recebe histórias em complexo de canos de água com válvulas que os conectam.
chinês e questões acerca delas como input; ela simula a estrutu- Quando o homem recebe símbolos em chinês, ele consulta no
ra formal dos cérebros dos chineses ao processar estas histórias programa escrito em inglês quais válvulas ele deve abrir e quais
e fornece respostas em chinês como outputs. Podemos até ima- ele deve fechar. Cada conexão na tubulação corresponde a uma
ginar que a máquina não opera com um único programa serial, sinapse no cérebro do chinês e o sistema é equipado de tal ma-
mas com um conjunto de programas operando em paralelo, da neira que após ativar as conexões adequadas - ou seja, após
mesma maneira que cérebros humanos possivelmente operam abrir as torneiras adequadas - as respostas em chinês aparecem
quando processam linguagem natural. Em tal caso teríamos que no final da tubulação.
dizer que a máquina entenderia histórias, e se nos recusásse- Onde está a compreensão neste sistema? Ele recebe chinês

78 79
como input, simula a estrutura formal das sinapses do cérebro e mesmo irresistível aceitar a hipótese de que o robot teria
do chinês e produz textos em chinês como output. Mas o ho- intencionalidade, na medida em que não soubéssemos mais nada
mem certamente não entende chinês, e nem tampouco a tubula- sobre ele. Além da aparência e comportamento, os outros ele-
ção, e se estivermos tentados a adotar o que penso ser a idéia mentos da combinação são irrelevantes. Se pudéssemos cons-
absurda de que de alguma maneira a conjunção homem e tubu- truir um robot cujo comportamento não se distinguisse de uma
lação compreende, é preciso lembrar que em princípio o ho- grande parcela do comportamento humano, nós lhe atribuiría-
mem pode intemalizar a estrutura formal da tubulação de água mos intencionalidade, apesar de termos algumas razões para
e realizar toda a atividade neuronal em sua imaginação. O pro- não fazê-lo. Não precisaríamos saber de antemão que seu cére-
blema com o simulador cerebral é que ele está simulando coi- bro-computador é um análogo formal do cérebro humano.
sas erradas acerca do cérebro. Na medida em que ele simula Mas realmente não vejo como isto poderia ajudar nas pre-
unicamente a estrutura formal das seqüências de atividades tensões da IA no sentido forte e eis porquê: de acordo com a IA
neuronais nas sinapses, ele não está simulando o aspecto mais no sentido forte, instanciar um programa formal com o input e
importante do cérebro, ou seja, suas propriedades causais e o output adequados é condição suficiente e constitutiva da
sua habilidade para produzir estados intencionais. Que as pro- intencionalidade. Como Newell (1980) coloca, a essência do
priedades formais não são suficientes para produzir proprie- mental é a operação de um sistema de símbolos físicos. Mas as
dades causais é mostrado pelo exemplo da tubulação de água: atribuições de intencionalidade que fazemos ao robot neste
podemos ter todas as propriedades formais sem que estas te- exemplo não têm nada a ver com programas formais. Elas são
nham sido derivadas das propriedades causais neurobiológicas simplesmente baseadas na pressuposição de que se o robot se
relevantes. parece e se comporta como nós, teríamos que supor - até prova
IV. A OBJEÇÃO DA COMBINAÇÃO (BERKELEY E STANFORD)- "As em contrário- que ele deve ter estados mentais como os nossos
três objeções anteriores podem não ser convincentes como uma que causam e se expressam no seu comportamento, bem como
refutação do contra-exemplo do quarto chinês, mas se elas fo- um mecanismo interno capaz de produzir tais estados mentais.
rem tomadas conjuntamente são convincentes e decisivas. Ima- Se soubéssemos como explicar seu comportamento indepen-
gine um robot com um computador em forma de cérebro aloja- dentemente, sem tais pressuposições, não atribuiríamos intencio-
do em sua cavidade craniana; imagine que o computador está nalidade a ele, especialmente se soubéssemos que ele tem um
programado com todas as sinapses de um cérebro humano; programa formal. Este é o ponto de minha resposta à objeção 11.
imagine que o comportamento doroboté indistinguível do com- Suponhamos que nós soubéssemos que o comportamento
portamento humano e agora pense nisto tudo como um sistema do robot é inteiramente explicado pelo fato de um homem den-
unificado e não apenas como um computador com inputs e tro dele estar recebendo símbolos formais sem interpretação
outputs. Certamente em tal caso teríamos que atribuir dos receptores sensoriais do robot e enviando esses símbolos
intencionalidade ao sistema." para os mecanismos motores desse robot, e que o homem está
fazendo essa manipulação simbólica de acordo com um con-
Concordo inteiramente que em tal caso acharíamos racional junto de regras. Além do mais, suponha que o homem nada

80 81
sabe desses fatos acerca do robot; tudo que ele sabe é qual ope- de sua substância fisica fossem irrelevantes, abandonaríamos a
ração realizar sobre esses símbolos sem significado. Em tal caso, pressuposição de intencionalidade.
consideraríamos o robot como um engenhoso fantoche mecâ- Existem outras duas respostas ao meu exemplo que apare-
nico. A hipótese de que o fantoche tenha uma mente seria então cem freqüentemente (e então valeria a pena discuti-las) mas
injustificada e desnecessária, pois não haveria mais razão para elas realmente fogem ao ponto.
atribuir intencionalidade ao robot ou para o sistema do qual ele V. A OBJEÇÃO DAS OUTRAS MENTES (YALE)- "Como saber que
é uma parte (com exceção da intencionalidade do homem que outras pessoas compreendem chinês ou qualquer outra coisa,
está manipulando os símbolos). A manipulação de símbolos unicamente por seus comportamentos? Ora, o computador pode
formais continua, o input e o output são combinados correta- passar por testes de comportamento tão bem quanto elas (em
mente, mas o único locus de intencionalidade é o homem, e princípio), assim se atribuímos cognição a outras pessoas, de-
ele não sabe nada dos estados intencionais relevantes; por vemos em princípio atribuí-la também a computadores".
exemplo ele não vê o que chega aos olhos do robot, ele não
tem a intenção de mover o braço do robot, ele não compreen- A objeção merece apenas uma resposta curta. O problema
de as observações que são feitas pelo robot ou que lhe são em questão não é como eu sei que outras pessoas têm estados
feitas. Nem tampouco, pelas razões colocadas acima, o siste- cognitivos, mas o que estou lhes atribuindo ao dizer que elas
ma do qual o homem e o robot são parte, compreendem algu- têm estados cognitivos. O ponto central do argumento é que
não poderiam ser apenas processos computacionais e seus
ma coisa.
outputs porque estes podem existir sem o estado cognitivo. Não
Para esclarecer este ponto façamos um contraste com os ca-
é resposta para este argumento fmgir que estados cognitivos
sos onde achamos completamente natural atribuir intencionali-
dade a membros de algumas outras espécies, como gorilas e não existem. Em "ciências cognitivas" pressupõe-se a realida-
de e a possibilidade de se conhecer o mental, da mesma manei-
macacos e a animais domésticos como os cães. As razões pelas
quais achamos isto natural, são, grosso modo, duas. Sem atri- ra que em ciências físicas temos de pressupor a realidade e a
buir intencionalidade aos animais, seu comportamento não faz capacidade de se conhecer objetos físicos.
sentido, e podemos ver que os animais são feitos de material VI. A OBJEÇÃO DAS ''vÁRIAS cASAs" (BERKELEY) - "A totalida-
semelhante ao nosso: olhos, nariz, pele, etc. Dada a coerência de de seu argumento pressupõe que a IA trata apenas de com-
do comportamento animal e a pressuposição de um mesmo putadores analógicos e digitais. Ocorre que este é apenas o es-
material causal subjacente a ele, pressupomos que o animal deve tágio atual da tecnologia. Quaisquer que sejam esses processos
ter estados mentais subjacentes a seu comportamento e que es- causais que você diz serem essenciais para a intencionalidade
ses estados mentais devem ser produzidos por mecanismos fei- (pressupondo que você esteja correto), possivelmente seremos
tos de um material semelhante ao nosso. Certamente podería- capazes de construir dispositivos que exibirão esses processos
mos fazer pressuposições semelhantes acerca do robot, mas na causais e isto será também inteligência artificial. Assim, seus
medida em que soubéssemos que seu comportamento resulta argumentos não se aplicam a capacidade da IA para produzir e
de um programa formal e que as propriedades causais efetivas explicar a cognição".

82 83
Não tenho resposta a esta objeção a não ser dizer que ela outros fenômenos intencionais. Parte do núcleo deste argumento
trivializa o projeto da IA no sentido forte ao redefini-la como é que só algo que tenha estes poderes causais pode ter
qualquer coisa que produza e explique a cognição artificial- intencionalidade. Talvez outros processos físicos e químicos
mente. O interesse das afirmações originais feitas em favor da pudessem produzir exatamente estes efeitos, talvez, por exem-
IA é que ela era uma tese precisa e bem definida: processos plo, os marcianos também tenham intencionalidade, mas os seus
mentais são processos computacionais sobre elementos formal- cérebros são feitos de um material diferente. Esta é uma ques-
mente definidos. Minha preocupação tem sido desafiar esta tese. tão empírica, semelhante à questão de se a fotossíntese pode
Se sua proposta é redefinida de tal maneira que ela não mais se ser feita com uma química diferente da que compõe a clorofila.
constitui nesta tese, minhas objeções não se aplicam mais, pois Mas o ponto principal do presente argumento é que um mo-
não há mais uma hipótese testável sobre a qual elas se aplicam. delo puramente formal nunca será, por si só, suficiente para
Retomemos às questões as quais prometi que tentaria res- produzir intencionalidade, pois as propriedades formais não são
ponder. Dado que no exemplo original eu compreendo inglês e constitutivas da intencionalidade e não têm poderes causais,
não chinês, e dado que a máquina não compreende nem inglês com exceção do poder de produzir o estágio seguinte do
nem chinês, deve haver algo em mim que faz com que eu com- formalismo quando a máquina está rodando. E mesmo que uma
preenda inglês e algo que falta em mim que faz com que eu não realização específica do modelo formal venha a exibir proprie-
compreenda chinês. Por que não podemos dar essas coisas, se- dades causais, estas são irrelevantes pois este modelo pode tam-
jam lá o que forem, a uma máquina? bém ser efetivado através de uma realização diferente onde tais
Não vejo razão, em princípio, porque não poderíamos con- propriedades estarão ausentes. Mesmo que por algum milagre
ceder a uma máquina a capacidade de compreender inglês ou falantes de chinês realizem exatamente o programa de Schank,
chinês, pois nossos corpos com nossos cérebros são precisa- podemos colocar o mesmo programa em falantes de inglês, tu-
mente tais máquinas. Não há argumentos fortes para dizer que bulação de água ou computadores; nenhum destes compreende
não poderíamos atribuir tal coisa a uma máquina se sua opera- chinês e nem tampouco o programa.
ção for definida somente em termos de processos computacio- O que importa nas operações do cérebro não é a sombra do
nais sobre elementos formalmente defmidos, ou seja, onde a formalismo dado pela seqüência das sinapses, mas as proprie-
operação da máquina é defmida como uma instanciação de um dades efetivas de tais seqüências. Todos os argumentos em fa-
programa de computador. Não é porque eu sou a instanciação vor da versão forte da IA que examinei insistem em delinear
de um programa de computador que eu sou capaz de entender estas sombras lançadas pela cognição para então sustentar que
inglês e ter outras formas de intencionalidade (eu sou, supo- tais sombras são a própria cognição.
nho, a instanciação de qualquer programa de computador) mas Com o intuito de concluir, quero enunciar alguns pontos fi-
pelo que sabemos é porque eu sou um certo tipo de organismo losóficos gerais implícitos no argumento. Por uma questão de
com uma certa estrutura biológica (física e química) e esta es- clareza tentarei fazer isto na forma de perguntas e respostas e
trutura, em termos causais, é capaz, sob certas condições, de começo com a velha questão:
produzir a percepção, a ação, a compreensão, o aprendizado e "Pode uma máquina pensar?"

84 85
A resposta é, obviamente, sim. Nós somos precisamente tais tadores parecem ter está apenas nas mentes daqueles que os
máquinas. programam e daqueles que os usam, ou seja, de quem envia o
"Sim, mas pode um artefato, uma máquina feita pelo ho- input e interpreta o output.
mem, pensar?" O objeto do exemplo do Quarto Chinês foi tentar mostrar
Assumindo que seja possível produzir artificialmente uma isso, pois na medida em que colocamos algo no sistema que
máquina com sistema nervoso, neurônios com axônios e realmente tem intencionalidade, um ser humano, e o programa-
dendritos e tudo o mais, suficientemente semelhante a nós, de mos com o programa formal pode-se ver que este programa
novo a resposta a esta questão parece ser, obviamente, "sim". não exibe intencionalidade adicional. Por exemplo, isto nada
Se você pode duplicar exatamente as causas, você pode dupli- acrescenta à habilidade do ser humano para compreender chinês.
car os efeitos. E de fato seria possível produzir consciência, Precisamente a característica da IA que parece tão atrativa-
intencionalidade e tudo o mais usando princípios químicos di- a distinção entre programa e realização - mostra-se fatal para a
ferentes dos usados por seres humanos. Como eu disse, é uma proposta de que simulação possa ser duplicação. A distinção
questão empírica. entre o programa e sua realização no hardware encontra parale-
"O.K., mas pode um computador digital pensar?" lo na distinção entre o grau de operações mentais e o grau de
Se por um "computador digital" queremos dizer algo que operações cerebrais. E se pudéssemos descrever o grau de ope-
tem um nível de descrição através do qual esse algo pode corre- rações mentais como um programa formal, poderíamos descre-
tamente ser descrito como a instanciação de um programa de ver o que é essencial acerca da mente sem fazer psicologia
computador, então de novo a resposta é sim, uma vez que so- introspectiva ou neurofisiologia do cérebro. Mas a equação: "a
mos as instanciações de um grande número de programas de mente está para o cérebro assim como o software está para o
computador e podemos pensar. hardware" tropeça em vários pontos, entre eles, os três seguintes:
"Mas pode algo pensar, compreender, etc. somente em vir- Primeiro, a distinção entre programa e realização tem a con-
tude de ser um computador com o tipo de programa adequado? seqüência de que o mesmo programa poderia ter vários tipos de
Pode a instanciação de um programa, de um programa adequa- realizações absurdas sem nenhuma forma de intencionalidade.
do é claro, ser por si só condição suficiente para compreensão?" Weizembaum (1976), por exemplo, mostra em detalhes como
Esta para mim é a questão correta a ser formulada, embora construir um computador usando um rolo de papel higiênico e
seja usualmente confundida com uma ou mais das questões uma pilha de pedrinhas. Similarmente, o programa para com-
anteriores e a resposta para ela é "não". preensão de histórias em chinês pode ser programado numa
"Por que não?" seqüência de canos de água, um conjunto de cata-ventos ou um
Porque a manipulação de símbolos formais por si só não falante monolingual de inglês, nenhum dos quais entretanto
tem intencionalidade: eles não têm significado, eles nem mes- adquire uma compreensão de chinês. Pedras, papel higiênico,
mo são manipulações de símbolos, uma vez que esses símbolos vento e canos de água são os materiais errados para gerar
não simbolizam nada. No jargão lingüístico, eles têm apenas intencionalidade (apenas algo que tenha os mesmos poderes
sintaxe, mas não semântica. A intencionalidade que os compu- causais do cérebro pode ter intencionalidade), e embora o f a-

86 87
lante de inglês tenha o material correto para a intencionalidade, precisa é um input e um output corretos e um programa que os
pode-se ver facilmente que ele não adquire nenhuma intermedie, transformando o primeiro no segundo. Isto é tudo o
intencionalidade extra por memorizar o programa, uma vez que que o computador tem e tudo o que ele pode fazer. Confundir
memorizá-lo não vai lhe ensinar chinês. simulação com duplicação é o mesmo erro, seja com dor, amor,
Segundo, o programa é puramente formal, mas os estados cognição, incêndio ou tempestade.
intencionais não são formais . São definidos em termos de seu Mesmo assim, há várias razões pelas quais a IA deve ter
conteúdo e não de sua forma. A crença de que está chovendo, parecido - e para muitas pessoas ainda parece - reproduzir e
por exemplo, não é definida como uma determinada configura- explicar fenômenos mentais, e, acredito que não conseguire-
ção formal, mas como um determinado conteúdo mental com mos remover estas ilusões até que tenhamos exposto as razões
condições de satisfação, de racionalidade, etc. (Searle, 1979). que as originaram.
Com efeito, a crença como tal não tem sequer uma configura- Em primeiro lugar, e talvez o mais importante, está a confu-
ção formal no sentido sintático, uma vez que a uma e a mesma são a respeito da noção de "processamento de informação".
crença pode ser dado um número indefinido de expressões sin- Muitas pessoas, em ciência cognitiva, acreditam que o cérebro
táticas diferentes em diferentes sistemas lingüísticos. humano com sua mente faz algo chamado "processamento de
Terceiro, como mencionei anteriormente, estados e eventos informação" e, analogamente o computador com seu programa
mentais são produtos da operação do cérebro, mas o programa faz processamento de informação, mas, por outro lado, incên-
não é um produto do computador. dios e tempestades não o fazem. Embora o computador possa
"Bem, se os programas não são constitutivos de processos simular aspectos formais de qualquer tipo de processo, ele está
mentais, por que tantas pessoas acreditaram no oposto? Isso numa relação especial com a mente e o cérebro, pois, quando o
precisa ser explicado." computador é adequadamente programado, idealmente com o
Não sei a resposta para isto. A idéia de que as simulações mesmo programa do cérebro, o processamento de informação
computacionais poderiam ser a própria mente deve ter pareci- é idêntico nos dois casos e este processamento de informação é
do suspeita, em princípio, porque o computador de nenhuma realmente a essência do mental. Mas o problema com este ar-
maneira se limita a simular operações mentais. Ninguém supõe gumento é que ele repousa sobre uma ambigüidade na noção
que simulações computacionais de um alarme contra fogo cau- de "informação". O sentido pelo qual as pessoas "processam
sarão um incêndio na vizinhança ou que uma simulação informação" quando elas refletem sobre problemas aritméti-
computacional de uma tempestade deixar-nos-á encharcados. cos, ou quando elas lêem e respondem questões sobre histórias
Por que alguém suporia então que uma simulação computacional não é o sentido no qual o computador programado "processa
da compreensão de fato entenderia alguma coisa? Diz-se informação". Em vez disso o que ele faz é manipular símbolos
freqüentemente que seria extremamente difícil fazer computa- formais. O fato de que o programador e o intérprete dos outputs
dores sentir dor ou se apaixonarem, mas amor e dor não são do computador usem símbolos para representar objetos do
nem mais fáceis nem mais difíceis de simular do que a cognição mundo está totalmente além do escopo do computador. Repe-
ou qualquer outra coisa. Para fazer uma simulação, tudo que se tindo, o computador tem sintaxe mas não tem semântica. Dessa

88 89
forma, se você digita: 2+2 igual?, ele vai apresentar "4". Mas de somar tem capacidade de calcular mas não intencionalidade,
ele não tem idéia que "4" significa 4, ou que isto signifique e neste artigo tentei mostrar que um sistema pode ter capacida-
alguma coisa. O ponto não é que ele não tenha alguma infor- des de input e output que duplicam aquelas de um falante nati-
mação de segunda ordem acerca da interpretação de seus sím- vo de chinês e ainda assim não compreender chinês, a despeito
bolos de primeira ordem, mas o fato é que estes símbolos de de como ele é programado. O Teste de Turing é típico na tradi-
primeira ordem não têm nenhuma interpretação no que diz res- ção de ser abertamente behaviorista e operacionalista, e acredi-
peito ao computador. Tudo que ele tem são mais símbolos. As- to que se os pesquisadores da IA repudiassem totalmente o
sim sendo a introdução da noção de "processamento de infor- behaviorismo e o operacionalismo muito da confusão entre si-
mação" produz um dilema: ou bem construímos a noção de mulação e duplicação seria eliminada.
"processamento de informação" de tal maneira que ela impli- Em terceiro lugar, este operacionalismo residual junta-se a
que a intencionalidade como parte do processo, ou bem nós uma forma residual de dualismo; de fato a IA no sentido forte
não o fazemos. No primeiro caso, então, o computador progra- só faz sentido com uma pressuposição dualista onde aquilo que
mado não processa informação, ele somente manipula símbo- diz respeito a mente nada tem a ver com o cérebro. Na IA no
los formais. No segundo caso, então, apesar do computador sentido forte (bem como no funcionalismo) o que importa são
processar informação, é somente no sentido em que máquinas programas, e programas são independentes de sua realização
de somar, máquinas de escrever, estômagos, termostatos, tem- em máquinas; de fato, no que diz respeito a IA um mesmo
pestades e furacões o fazem - a saber, eles têm um nível de programa pode ser realizado por uma máquina eletrônica, uma
descrição no qual podemos descrevê-los como recebendo in- substância mental cartesiana ou o espírito do mundo hegeliano.
formação, transformando-a e produzindo informação como A descoberta mais surpreendente que eu fiz ao discutir estes
output. Mas nesse caso, depende de observadores externos in- problemas é que muitos pesquisadores da IA estão chocados
terpretar o input e o output como informação no sentido co- com a minha idéia de que fenômenos mentais humanos podem
mum. E nenhuma semelhança é estabelecida entre o computa- ser dependentes das efetivas propriedades físico-químicas dos
dor e o cérebro em termos de uma similaridade de processamento cérebros humanos. Mas eu não deveria estar surpreso, pois a
de informação nos dois casos. não ser que se aceite alguma forma de dualismo, o projeto da
Em segundo lugar, em grande parte da IA há um behavioris- IA no sentido forte não tem nenhuma chance. O projeto consis-
mo residual ou operacionalismo. Uma vez que computadores te em reproduzir e explicar o mental projetando programas, mas
adequadamente programados podem ter padrões de input/óutput a não ser que a mente não seja apenas conceitual, mas empiri-
semelhantes ao de seres humanos, somos tentados a postular camente independente do cérebro, este projeto não poderá ser
estados mentais no computador similares a estados mentais executado, pois o programa é completamente independente de
humanos. Mas uma vez que percebemos que é conceitual e qualquer realização. A não ser que se acredite que a mente é
empiricamente possível para um sistema ter capacidades hu- separável do cérebro, conceitual e empiricamente- um dualismo
manas em algum domínio sem ter nenhuma intencionalidade, em uma versão forte- não se pode esperar reproduzir o mental
devemos ser capazes de superar este impulso. Minha máquina escrevendo e rodando programas, uma vez que estes devem ser

90 91
independentes dos cérebros ou de qualquer outra forma especí- Na defesa desse dualismo, expressam essa esperança na for-
fica de sua instanciação. Se operações mentais consistem em ma de que o cérebro é um computador digital (computadores
operações computacionais sobre símbolos formais, segue-se que antigos eram freqüentemente chamados de "cérebros eletrôni-
eles não têm nenhuma conexão importante com o cérebro, e a cos"). Mas isto não adianta nada. É claro que o cérebro é um
única conexão seria que o cérebro poderia ser um dentre os computador digital, uma vez que tudo é um computador digi-
múltiplos tipos de máquinas capazes de instanciar o programa. tal, os cérebros também o são. O ponto é que a capacidade cau-
Esta forma de dualismo não é a versão cartesiana tradicional, a sal do cérebro para produzir intencionalidade não pode consis-
qual sustenta que existem dois tipos de substâncias, mas é tir na instanciação de um programa de computador, pois para
cartesiana no sentido de que ela insiste que aquilo que é especi- qualquer programa, sempre é possível que haja algo que o
ficamente mental não tem nenhuma conexão intrínseca com as instancie e contudo não tenha estados mentais. Seja lá o que o
propriedades efetivas do cérebro. Este dualismo subjacente é cérebro faça para produzir intencionalidade, esta não pode con-
mascarado pelo fato de que a literatura sobre IA contém fre- sistir na instanciação de um programa, pois nenhum programa
qüentes ataques contra o "dualismo", mas o que estes autores é por si só suficiente para produzir a. intencionalidade.
não percebem é que sua posição pressupõe uma versão forte
do dualismo. AGRADECIMENTOS - Estou em débito com um grande número de
"Pode uma máquina pensar?" Meu ponto de vista é que so- pessoas que discutiram este assunto e por seu paciente esforço
mente uma máquina pode pensar, e de fato apenas máquinas de em superar minha ignorância em IA. Gostaria de agradecer es-
um tipo muito especial, a saber, cérebros e máquinas que têm pecialmente a Ned Block, Hubert Dreyfus, John Haugeland,
os mesmos poderes causais do cérebro. E esta é a principal ra- Roger Schank, Robert Wilensk:y e Terry Winograd.
zão pela qual a IA no sentido forte tem tão pouco a dizer acerca
do pensamento: ela não tem nada a dizer acerca de máquinas.
Por definição, ela trata de programas, e programas não são
máquinas. O que quer que seja a intencionalidade, é um fenô-
meno biológico o qual deve ser tão causalmente dependente da
bioquímica específica de suas origens como o é a lactação, a
fotossíntese ou quaisquer outros fenômenos biológicos. Nin-
guém suporia que poderíamos produzir leite e açúcar rodando
uma simulação computacional das seqüências formais da
lactação e da fotossíntese; mas no que diz respeito a mente
muitas pessoas querem acreditar em tal milagre por causa de
sua fidelidade profunda ao dualismo: concebem a mente como
processos formais e como algo independente de causas materi-
ais específicas, algo que não ocorre com o açúcar e o leite.

92 93
A MENTE MATERIAL

DONALD DAVIDSON

REFERÊNCIAS
tradução
RICHARD T. SIMANKE
1. McCarthy, J. ( 1979) "Ascribing Mental Qualities to
Machines", Stanford, California: StanfordAI Lab Memo 326.
2. Newell, A. (1980) "Physical Symbol Systems" Cognitive
Science.

3. Schank, R. & Abelson, R.P. (1977) "Natural Language,


Philosophy and Artificial Intelligence" in Ringle, M. (ed)
Philosophical Perspectives in Artificial Intelligence N.J.:
Humanities Press.
4. Searle, J. (1979) "What is an Intentional State?", Mind, 88.
5. Turing,A. (1950) "Computing Machinery and Intelligence"
Mind, 59.
6. Weizembaum, J. (1976) Computer Power and Human Reason
San Francisco: W.H. Freeman.

94
DESEJO DISCUTIR ALGUMAS questões metodológicas gerais acerca
da natureza da Psicologia como ciência, pressupondo que este-
jamos de posse de um grande conhecimento acerca do cérebro
e do sistema nervoso do ser humano. Suponhamos que enten-
demos perfeitamente o que ocorre no cérebro, no sentido de
que possamos descrever cada um de seus detalhes em termos
puramente físicos-que mesmo os processos elétricos e quími-
cos, bem como os neurológicos, tenham sido reduzidos a pro-
cessos físicos. E suponhamos, ademais, que podemos assumir
que, da maneira pela qual o sistema foi construído, as
indeterminações da física quântica sejam irrelevantes para nos-
sa habilidade de prever e explicar os eventos que estão ligados
aos inputs dados pelas sensações ou aos outputs na forma de
movimentos do corpo.
Já que estamos sonhando, sonhemos também que o cérebro
e o sistema nervoso a ele associado possam ser entendidos como
sendo um computador. Teríamos chegado realmente a uma com-
preensão tão grande do que ocorre que poderíamos construir
uma máquina que, quando exposta às luzes e sons do mundo,

- imitaria os movimentos de um ser humano. Nada disto seria


absurdo, embora pouco provável e distante de qualquer verifi-
cação empírica.
Finalmente, seja por diversão ou para evitar questões que
não seriam fundamentais para o nosso tema, imaginemos que o
homme machine seja efetivamente construído, com o formato psicologia? Argumentarei que eles contribuem muito menos do
de um ser humano e sintetizado a partir da água ou outros ma- que o esperado, pelo menos na medida em que mantivermos
teriais que possam ser facilmente obtidos. Nossa evidência que uma certa visão acerca da natureza da psicologia.
ele foi construído de forma apropriada pode ser obtida de duas Para delimitar o escopo deste artigo, trataremos da psicolo-
maneiras. Em primeiro lugar, tudo que podemos saber acerca gia como uma disciplina que lida com fenômenos descritos por
da estrutura física e do funcionamento de cérebros e corpos conceitos que envolvem intenção, crença, e outras atitudes ins-
humanos foi replicado. Em segundo lugar, Art (como nós o tintivas como por exemplo, o desejo. Seriam incluídos entre
chamaremos) age exatamente como um ser humano: Art tem esses conceitos as ações, decisões, memória, percepção, apren-
expressões adequadas no seu rosto, responde questões e inicia dizado, volição, atenção, discriminação e muitos outros. Mui-
movimentos iguais aos de um ser humano quando é exposto à tas tentativas foram feitas para mostrar que a psicologia não
mudanças ambientais. Todas as correlações que foram desco- precisa desses conceitos-ou pelo menos não preci~a de alguns
bertas entre o que sabemos acerca de processos mentais e o que deles- ao se defmir noções como crença ou desejo em termos
ocorre no sistema nervoso humano foram fielmente preserva- comportamentais ou em termos de conceitos usados pelas ci-
das na construção de Art. Quem não soubesse queArt é artifici- ências físicas. A eliminação direta destes conceitos através da
aljamais poderia descobrir este fato, mesmo que o observasse, defmição de termos psicológicos não parece mais ser uma tare-
o ouvisse,o espetasse ou conversasse com ele. Aqueles que o fa plausível e se o raciocínio que desenvolvo aqui estiver corre-
construíram podem dizer exatamente o que acontece no seu to, a redução a essa definição não será possível. Claro que po-
interior em termos físicos e podem igualmente explicar, em ter- demos imaginar outras formas de redução. Este fato marca o
mos físicos, porque Art se move de uma determinada maneira limite de nossa discussão: na medida em que a psicologia não
quando submetido a certos tipos de estímulos. Mas isto certa- toma essencial o uso desses conceitos que acabei de descrever,
mente não deve servir de motivo para que o observador perce- as considerações que se seguem não se aplicam a ela.
ba que Art veio do laboratório de algum cientista louco, uma De qualquer maneira, seria tolice sustentar que a existência
vez que uma explicação similar é também possível para o caso de Art não faria diferença para a psicologia. Ele mostraria, por
de seres humanos produzidos a partir de métodos convencionais. exemplo, que o determinismo (na medida em que a física é
(A pressuposição de que a biologia e a neurofisiologia são determinista) é compatível com o aparecimento da ação inten-
redutíveis a física não é essencial para nossos raciocínios, e cional: deixando de lado questões de origem, temos razão para
esta pressuposição deve ser provavelmente falsa. Nossos racio- considerar Art um agente voluntário como qualquer outro. Art
cínios não dependem, tampouco, da pressuposição de que o seria tão livre quanto qualquer um de nós. E Art provaria que
indeterminismo seja irrelevante. Ambos pressupostos poderi- embora fossem muito diferentes, não existiria nenhum conflito
am ser eliminados, mas isto possivelmente tomaria nossos ar- entre os modos de explicação da física e os da psicologia.
gumentos muito complicados). Além destas questões metodológicas gerais, a existência de
A questão agora é a seguinte: o que estes conhecimentos de Art teria sem dúvida uma influência nos objetivos da pesquisa
física (e também de neurofisiologia) podem nos dizer acerca da em ciências sociais, na maneira de conceber experimentos e

98 99
nas hipóteses a serem testadas. Assumimos que um conheci- Mas por que? Suponha que numa determinada ocasião al-
mento detalhado da neurofisiologia do cérebro fará diferença- guém enfiou um alfinete na pele de Art, ele pulou para trás, fez
a longo prazo, uma enorme diferença- para o estudo de assun- uma expressão de dor e gritou "Ai!". Somos tentados a descre-
tos como percepção, memória, sonhos e talvez até processos ver fenômenos deste tipo da seguinte maneira: pressupomos
inferenciais. Mas uma coisa é o desenvolvimento de uma área que podemos descrever a penetração da pele de Art e todos os
produzir mudanças numa disciplina correlata e outra coisa pre- seus movimentos em termos puramente físicos - termos que
tender estender os conhecimentos num determinado campo para poderiam ser acomodados em leis físicas. Conhecendo os as-
outro, pura e simplesmente. Num sentido geral, não podemos pectos relevantes da estrutura deArt podemos saber exatamen-
duvidar da relevância da biologia e das neurociências para a te como a penetração da pele causou a reação (fisicamente des-
psicologia. O que me interessa é que parece haver limites crita). Podemos também descrever causa e efeito em termos
para o que a psicologia pode assimilar diretamente de outras mais triviais - como acabamos de fazer. Consideremos agora
ciências (ou através de Art) e são esses limites que pretendo duas descrições: a descrição física oficial da causa (ou estímu-
explorar aqui. lo) e a descrição psicológica do efeito (movimento corporal,
Vamos delimitar o que participa e o que não participa direta- exclamação, expressões faciais, surpresa, dor).Estas são des-
mente da confecção de Art. Art é fisicamente indistinguível de crições de causa e efeito e como tais esses eventos de:em, s~r
um ser humano tanto no aspecto interno quanto no externo, seu subsumidos a leis. Se isto vale para todos os eventos ps1colog1-
comportamento é também idêntico àquele de um ser humano cos- o que estivemos pressupondo até agora- então não esta-
na maneira como reage às mudanças do seu meio ambiente. remos por acaso comprometidos com a visão de que todos os
Partes identificáveis do interior de Art estão fisicamente eventos psicológicos são estritamente previsíveis e que o mes-
conectadas com seus movimentos, de acordo com tudo o que mo vale para Art, isto é, que podemos igualmente predizer t~­
se sabe acerca da construção do cérebro e do sistema nervoso. dos seus estados e eventos psicológicos? Se temos conheci-
Contudo, isto está longe da pressuposição de que conseguimos mentos de descrições físicas e psicológicas dos mesmos even-
identificar coisas como desejos, intenções, inferências, deci- tos, por que não correlacionar estas duas descrições siste~ati­
sões, etc. com estados específicos de seu cérebro ou de seus camente? Então como poderíamos negar que ao constrmr Art
mecanismos. Claro que pode haver razões para ligar partes do reduzimos a psicologia a física e portanto solucionamos todos
cérebro com vários processos cognitivos, mas partes não são os problemas específicos da psicologia?
mecanismos. Ademais, nada em nossa descrição de Art requer Concordamos que neste caso estamos comprometidos com
que sejamos capazes de identificar mecanismos físicos especí- uma importante tese filosófica e metafísica. Se eventos psico-
ficos com estados e eventos cognitivos particulares. Na medida lógicos causam e são causados por eventos físicos ~e ce~amen­
em que estados e eventos como pensar, crer, perceber são fun- te este é o caso) e se relações causais entre eventos 1mphcam na
damentais para a construção de conceitos psicológicos parece existência de leis conectando tais eventos; se essas leis são,
que temos razão em sustentar queArt não pode nos ajudar mui- como supusemos ao construir Art, leis físicas, então deve se
to no que diz respeito ao avanço da psicologia. seguir que eventos psicológicos são (no sentido de que eles são

100 101
idênticos a) eventos físicos. Se isto é materialismo, estamos esperar que qualquer predicado físico, não importando quão
comprometidos com esta tese ao pressupor a existência de Art. complexo, tenha a mesma extensão que um dado predicado
Nossos compromissos, contudo, não seriam tão rígidos se psicológico - muito menos de que exista um predicado físico
não estivéssemos comprometidos com a idéia de que eventos relacionado de maneira legiforme a um dado predicado psico-
psicológicos podem ser preditos da mesma maneira que even- lógico. Para tomar um exemplo de uma área diferente: conside-
tos físicos; nem que eventos psicológicos possam ser reduzi- remos uma linguagem razoavelmente rica "L" que tem recur-
dos a eventos físicos; nem que nós tivéssemos, ao construir sos para descrever qualquer sentença de "L". Vamos pressupor,
Art, mostrado que poderíamos explicar eventos psicológicos em particular, que "L" pode apreender com uma descrição úni-
da mesma maneira que explicaríamos eventos fisicos. Pois não ca cada uma das sentenças verdadeiras de "L". Mas "L" não
pressupusemos em nenhum momento que podemos efetivamen- pode conter um predicado, não importando quão complexo, que
te correlacionar classes de eventos descritos em termos fisicos se aplique somente as sentenças verdadeiras de "L" - pelo me-
com classes de eventos descritos em termos psicológicos. nos se "L" é consistente. Este fato surpreenderia alguém que
O que supusemos foi que para cada evento psicológico es- não conhecesse paradoxos semânticos. Certamente essa pessoa
pecífico, ocorrendo a um certo tempo, podemos fornecer uma diria "uma vez que eu posso apreender cada sentença verdadei-
descrição em termos puramente físicos e, da mesma maneira, ra, eu poderia especificar a classe". E essa pessoa começa a
para qualquer classe finita de eventos podemos estabelecer uma percorrer as sentenças verdadeiras, notando quais as proprieda-
correlação entre descrições fisicas e psicológicas. Mas, con- des que elas tem que não são compartilhadas pelas sentenças
quanto isto possa ser feito, não se segue que predicados psico- falsas. Mas essa pessoa estaria errada, pois sabemos de ante-
lógicos tais como "X deseja a mulher de seu vizinho" ou "X mão que ela não poderia ser bem sucedida. Creio que esta é
quer um café com creme" ou "X acredita que Beethoven mor- mais ou menos a situação com predicados psicológicos em re-
reu em Veneza" ou "X assinou um cheque de 20 dólares" que lação aos físicos: sabemos de antemão que todos os recursos da
determinam, classes infinitas ou pelo menos classes potencial- fisica são insuficientes para apreender importantes classes de
mente infinitas de eventos; isto não implica que para tais eventos (abertas ou infinitas) que são defmidas por predicados
predicados correspondam, nomologicamente, predicados físi- psicológicos.
cos. Claro que se uma certa classe de eventos psicológicos é Vimos assim que um conhecimento completo da fisica do
finita, e se cada evento psicológico tem uma descrição fisica, ser humano que cubra, sob seu modo de descrição, tudo o que
então segue-se trivialmente que existe um predicado físico que acontece, não fornece necessariamente conhecimento psicoló-
determina uma classe de predicados psjcológicos. Mas isto não gico (uma observação feita muito tempo atrás pelo Sócrates de
interessa a ciência. A ciência está interessada em conexões Platão). E por que não ocorre que existam correlações estabele-
nomológicas, conexões cuja validade seja garantida por exem- cidas indutivamente entre eventos físicos e eventos psicológi-
plo~, mesmo que estes últimos não esgotem os casos possíveis. cos? Afmal, não sabemos que essas correlações existem? Sem
E fácil de ver que embora todos os eventos e estados psico- dúvida podemos afirmar a existência dessas correlações, se por
lógicos tenham uma descrição física isto não nos dá razão para leis entendermos generalizações estatísticas. A criança que se

102 103
queimou evita a chama (e a psicologia contém exemplos mais faculdades (como é o caso do computador) e se isto seria infor-
sofisticados). Mas estas generalizações, diferentemente daque- mação para ele. Pressupor este ponto de vista é assumir que Art
las da física, não podem ser muito precisas e não podem ser vê as coisas da mesma maneira que nós as vemos e que ele quer
transformadas em leis de uma ciência e mantidas no interior de dizer as mesmas coisas que nós queremos dizer quando ele emite
seu campo de aplicação. Ao dar as razões para chegar a esta sons. Mas isto só podemos decidir se entendermos como tais
conclusão, voltemos novamente por um momento para a ques- pressuposições se encaixam no quadro geral do comportamen-
tão de o que nos faz pensar que Art foi adequadamente to de Art. Este é um ponto bastante simples. Se queremos deci-
construído do ponto de vista psicológico. Creio que a resposta dir seArt tem propriedades psicológicas, devemos parar de pen-
é que Art tem toda a aparência de pensar, sentir e agir como um sar nele como sendo uma máquina que construímos e começar
ser humano. E não só aparências superficiais. Se ele for corta- a julgá-lo como se ele fosse um ser humano. Somente desta
do, ele sangrará, se se joga luz nos seus olhos, ele piscará, se maneira podemos estudar a questão das possíveis correlações
dissecamos seus olhos, descobriremos células iguais as nossas. entre propriedades psicológicas e físicas.
É importante, na decisão de se ele tem características psicoló- A esta altura seria melhor admitir que o fato de Art ser arti-
gicas, que ele seja como um ser humano. Se descobríssemos ficial não é uma parte essencial de nossos raciocínios. A razão
um receptor dentro dele e soubéssemos que uma outra pessoa é que não supusemos que ele foi construído com base no co-
estava mandando sinais para fazerArt se mover, então não serí- nhecimento de leis que correlacionam fenômenos físicos e psi-
amos tentados a atribuir-lhe características psicológicas. Qual- cológicos: tudo o que se sabia era o correlato físico de cada
quer diferença sob a pele nos leva a hesitar. Contudo, nossa movimento ou ato específico. É verdade que podemos prever
compreensão detalhada do funcionamento deArt não nos força os movimentos fisicos de Art. Mas se queremos saber se um
a concluir que ele está nervoso ou que ele acredita que Beethoven determinado movimento em particular será interpretável como
morreu em Viena. Para decidir isto teríamos, em primeiro lu- uma ação ou como uma resposta poderemos sabê-lo unicamen-
gar, que observar os movimentos macroscópicos de Arte deci- te se considerarmos todos os aspectos físicos em detalhe (in-
dir como interpretá-los, da mesma maneira que decidimos para cluindo, é claro, como será o meio ambiente) e então julgando
seres humanos. o caso como se se tratasse do movimento de um ser humano.
Seria fácil cometer um erro de raciocínio aqui, em parte por- Não temos razões claras para dizer que Art vai continuar a pa-
que nós pressupusemos que, deliberadamente, construímosArt recer um ser humano. Assim a existência de Art não acrescenta
para fazer o que ele faz. E, provavelmente, ao construir Art nada à suposição de que podemos ter um conhecimento global
usamos circuitos do tipo usado para construir uma máquina que da física de um ser humano- ou seja, aquele conhecimento que
pudesse processar informação e assim por diante. Mas é claro supusemos ter quando o imaginamos. Art serviu ao propósito
que não devemos adiantar a conclusão de que quando esses heurístico de não pressupor a existência de nenhum tipo de pro-
circuitos estão ligadosArt está processando informação. É par- priedade misteriosa ou desconhecida. Mas de fato, tudo o que
te do que está em questão saber o que seria informação para fizemos foi não pressupor a existência de nenhuma proprieda-
nós se Art fosse meramente uma extensão de nossas próprias de física desconhecida, e o mesmo poderíamos fazer com qual-

104 105
quer ser humano. Esta suposição não resolve a questão de se
um ser humano tem uma alma (isto é, propriedades psicológi-
dada ocasião constituir um cumprimento e numa outra consti-
tuir um insulto. Mas é claro que se as ocasiões são diferentes,
~
I
cas irredutíveis) e nem tampouco resolve a questão de se nós os eventos devem diferir em termos de características físicas. A
conferimos a ele (aArt) uma alma. diferença pode estar nos estados internos do agente. Por exem-
Retomemos agora, à questão de porque não devemos espe- plo, pode haver uma diferença em intenção: essa diferença, pres-
rar descobrir correlações legiformes precisas (ou leis causais) supomos, tem seu aspecto físico, uma vez que ela é refletida
ligando eventos e estados psicológicos a eventos e estados físi- nas inclinações do agente e no seu movimento físico. Dada uma
cos - ou, em outras palavras, porque uma compreensão total de descrição completa do cérebro, devemos esperar que essa dife-
como funciona o cérebro e o corpo não constitui conhecimento rença corresponda a alguma diferença fisiológica - ou, em últi-
do pensamento e da ação. Mas antes que ofereçamos aquilo ma análise, corresponda a algo físico.
que consideramos ser a razão correta, mencionaremos algumas Contudo, podemos imaginar casos onde até as intenções e
razões mal formuladas que foram freqüentemente enunciadas. as crenças são as mesmas, a parte física também é igual, e,
(Estamos constrangidos pelo fato de que a este respeito aceita- mesmo assim, ações diferentes acabam resultando. Assim, um
mos uma conclusão que foi, entretanto, obtida através de argu- homem pode querer manter sua palavra indo à ópera. Contudo,
mentos espúrios defendidos por vários filósofos. Queremos nos em uma ocasião o fato de ele ir à ópera pode constituir a obedi-
dissociar do trabalho desses filósofos). ência a uma promessa e em outras ocasiões não (ele pode ter
Afirma-se freqüentemente, sobretudo na literatura filosófi- esquecido que dia era a ópera). Mas aqui novamente a situação
ca recente, que não pode haver um predicado físico com a ex- física não é idêntica em todos os aspectos. Simplesmente deve-
tensão de um verbo de ação porque existem muitas maneiras mos defmir o evento físico ou a situação mais amplamente- na
diferentes pelas quais uma ação pode ser realizada. Assim, um medida em que manter uma promessa depende da ocorrência
homem pode cumprimentar uma mulher inclinando a cabeça, de certos eventos antecedentes e assim, a ocorrência de um even-
ou dizendo algumas coisas ou assobiando e cada uma dessas to físico de um certo tipo pode depender de todo um conjunto
coisas pode, por sua vez, ser feita de maneiras diferentes. Tal de circunstâncias físicas nas quais ele ocorre. Se quisermos,
ponto de vista é ridículo. Características particulares que reca- podemos definir um super-eclipse da lua como sendo um eclip-
em sob um predicado diferem de várias maneiras na medida se que foi precedido, há uma semana atrás, por um eclipse do
em que existam pelo menos duas características. Se este argu- sol. Um super-eclipse pode não ser de muito interesse para a
mento fosse bom, poderíamos mostrar que adquirir uma carga ciência, mas é, sem dúvida, um conceito físico respeitável.
positiva não constitui um evento físico, uma vez que existem Ademais, diz-se que o relativismo cultural afeta a classifica-
infinitas maneiras pelas quais isto pode acontecer. ção das ações mas não a classificação de eventos físicos. As-
Existe um argumento simétrico a este que é igualmente co- sim, o mesmo gesto pode indicar concordância na Áustria e
mum e igualmente ruim: diz-se que o mesmo evento físico pode discordância na Grécia. Neste caso, precisamos apenas alargar
contar como ações diferentes. Assim, por exemplo, o mesmo um pouco os referenciais para achar uma diferença relevante: a
movimento e o mesmo som emanando de um agente pode numa Áustria é flSicamente diferente da Grécia e assim qualquer even-

106 107
to na Austria é fisicamente diferente de um evento na Grécia. Estes dois temas, quais sejam, a distinção entre eventos in-
Talvez seja sugerido que o mesmo gesto peculiar de um ho- dividuais e classes de eventos e a superveniência do psicológi-
mem possa ser julgado ser um ato de concordância por um aus- co sobre o físico estão relacionados. Pois o que precisa serres-
tríaco e um ato de discordância por um grego deslocado. Con- saltado é que é a descrição de eventos psicológicos individuais
tudo, neste caso, as duas descrições não podem se contradizer. que é superveniente em relação a descrições físicas e não a des-
Assim como um objeto pode adquirir velocidade em relação a crição de tipos de eventos. Se um certo conceito psicológico se
um quadro referencial e não em relação a outro, da mesma aplica a um evento e não a outro, deve haver uma diferença
maneira um gesto pode parecer como concordância para um descritível em termos fisicos. Mas disto não se segue que há
austríaco e como discordância para um grego. Somente se acei- uma única diferença fisicamente descritível que distingue dois
tarmos uma visão indevidamente restrita dos predicados que eventos que diferem num certo aspecto psicológico.
podem ser formados usando conceitos físicos, aceitaremos que Existe uma outra classe de argumentos que não poderemos
tais argumentos podem ter algum atrativo. abordar em detalhe: estes são os argumentos baseados no pon-
Dois importantes temas emergem a partir destas considera- to de vista de que conceitos psicológicos são essencialmente
ções. Um é a necessidade de distinguir eventos com suas carac- valorativos, enquanto que conceitos fisicos não o são. Se isto
terísticas individuais e localização temporal de classes de even- significa que quando chamamos um evento de uma ação nós
tos. Podemos com certeza dizer que "o mesmo gesto" tem um não estamos meramente descrevendo tal evento mas também o
significado na Áustria e outro na Grécia: o que temos em men- julgando como bom ou ruim, recriminável ou razoável, acredi-
te são gestos de um determinado tipo relevante. O outro tema tamos que esta posição é errônea. Sempre que dizemos alguma
diz respeito às relações entre descrição e caracterização psico- coisa podemos estar expressando um valor de algum tipo, mas
lógica de eventos e sua descrição física (ou biológica e fisioló- isto não significa que o que dizemos não possa também ser
gica). Conquanto características psicológicas não possam ser verdadeiro ou falso . Em qualquer caso, para que a questão de
reduzidas a outras, elas podem ser fundamentalmente depen- porque não existem leis ligando fenômenos fisicos a fenôme-
dentes destas (e eu penso que elas o são). Num certo sentido, as nos psicológicos possa fazer sentido, devemos pressupor que
características físicas de um evento (ou objeto/estado) determi- julgamentos a respeito destes fenômenos sejam verdadeiros
nam as características psicológicas; para usar as palavras de ou falsos.
G.E. Moore, conceitos psicológicos são supervenientes em re- Num sentido bastante diferente pode-se pensar que conside-
lação aos físicos. A explicação de Moore para esta relação (que rações valorativas integrem nossos julgamentos acerca de ações
ele sustentava que ocorria entre características descritivas e realizadas pelas pessoas. Pode-se sustentar que existem certos
valorativas) é a seguinte: é impossível que dois eventos ( obje- elementos reguladores ou constitutivos na aplicação de concei-
tos ou estados) tenham as mesmas características fisicas (ou tos psicológicos. Isto certamente é verdadeiro, mas o mesmo
como diria Moore, suas características descritivas) e difiram pode ser dito quanto a aplicação de conceitos físicos. Contudo,
no que diz respeito a suas características psicológicas aqui estamos muito mais próximos da verdade.
(valorativas). Consideremos um evento hístórico particular, digamos, o fato

108 109
de David Hume admitir no apêndice de seu Tratado que ele não nas tentando mostrar porque não podemos estabelecer correla-
pode perceber como conciliar duas de suas teses. Admitir algu- ções legiformes, gerais e precisas entre descrições físicas e des-
ma coisa é necessariamente um ato intencional e isso implica crições psicológicas. A complexidade nas atribuições de esta-
que o que é admitido de fato ocorre - em nosso exemplo, o dos psicológicos não prova por si o que sustentamos, mas a
reconhecimento de Hume implica que ele não pode ver como qualidade desta complexidade será fundamental.
reconciliar as duas teses. Uma vez que o ato de admitir foi in- A esta altura ajudaria determo-nos num fenômeno psicoló-
tencional, sabemos também que Hume deve ter acreditado que gico um pouco mais abstrato - a habilidade de falar e entender
ele não podia perceber como conciliar as duas teses e ele deve linguagem. Não podemos esperar lidar com todas as caracterís-
ter querido (provavelmente por alguma outra razão) revelar este ticas e sutilezas de traços psicológicos sem levar em considera-
fato . Não apenas Hume tinha este desejo e esta crença, mas eles ção a linguagem, pois as distinções mais sutis entre desejos e
foram eficazes para produzir seu reconhecimento - ele reco- crenças, pensamentos e medos, intenções e inferências depen-
nheceu porque ele tinha o desejo e a crença. Se interpretamos dem de pressupor a existência de uma estrutura cognitiva tão
este "porque" como implicando (entre outras coisas) uma rela- complexa como a da linguagem- uma estrutura que não pode
ção causal- e creio que de fato devemos interpretá-lo assim - ser entendida independentemente desta última.
então ao descrever uma ação como realizada com uma certa Queremos ser capazes de explicar atos de fala que são inten-
intenção nós a teremos descrito como uma ação com uma certa cionais e caracterizar as outras ações que acabamos de mencio-
história causal. Assim, ao identificar a ação com um evento nar. Parte da explicação de tais atos é sua interpretação, no sen-
físico devemos ao mesmo tempo estar certos de que a história tido de sermos capazes de dizer o que as palavras do falante
causal do evento físico inclui eventos ou estados idênticos aos expressam na ocasião em que são usadas. Apreendemos o que
desejos e estados cognitivos que dão lugar a explicação psico- uma pessoa disse quando ela emitiu certos sons somente se nós
lógica da ação. conhecemos a linguagem dessa pessoa- isto é, quando esta-
Contudo, este é só o começo das complicações, pois amai- mos preparados para interpretar um grande número de coisas
oria dos estados emocionais, volições, percepções, etc. têm que ela possa dizer. Pois não compreendemos uma sentença
conexões causais com outros estados e eventos psicológicos ou específica proferida por uma pessoa a não ser que saibamos o
pelo menos requerem que estes outros estados existam. Assim, papel das palavras em outras sentenças que ela possa proferir.
ao dizer que um agente realizou uma determinada ação intenci- Para interpretar um ato de fala singular devemos ter uma com-
onal, nós atribuímos a ele um sistema de estados e eventos alta- preensão das disposições potenciais do falante para efetuar ou-
mente complexo e tudo isto deve ser levado em conta ao se tros atos de fala. Assim sendo, podemos conceber que ter ou
fornecer os eventos e estados físicos correspondentes. Não es- conhecer uma linguagem é uma disposição específica e alta-
tamos argumentando que não existe uma descrição física cor- mente estruturada do falante. Descrevemos essa disposição ao
respondente - estamos certos de que tal descrição existe. Não especificar o que o falante quereria dizer ao proferir um dentre
estamos tampouco argumentando que não podemos produzir a um grande número de sentenças numa situação específica.
descrição correspondente em casos particulares. Estamos ape- Quando a descrevemos psicologicamente a habilidade lin-

110 111
güística de um falante constitui uma disposição complexa. Quan- máquina de falar uma linguagem. Isto pode ser correto, mas em
do a descrevemos fisicamente, ela não constitui uma disposi- que a palavra "máquina" pode nos ajudar?
ção e sim um estado real, um mecanismo. Neste caso, como em Interpretamos um determinado ato de fala a partir de uma
outros, parece que um conhecimento detalhado do mecanismo teoria da linguagem que serve de pano de fundo. Tal teoria es-
físico deve ajudar a psicologia. Não há dúvida de que em cada tabelece as condições de verdade de cada uma das infmitas
ser humano existem alguns estados físicos, a maioria deles con- sentenças que tal ser humano pode proferir- tais condições
centrada no cérebro e que constituem a habilidade lingüística. dependem da ocasião e das circunstâncias em que a sentença
Mas como podemos identificar estes estados? (Não queremos é proferida.
dizer meramente localizá-los, mas descrever em detalhes o Ao construir tal teoria, como antropólogo ou como lingüis-
mecanismo relevante). Como podemos saber que um certo es- ta, ou apenas inconscientemente como uma criança que apren-
tado físico do cérebro, um certo mecanismo, é o mecanismo de sua língua nativa, nunca estamos na situação de aprender o
que explica o comportamento lingüístico do falante e o fato de significado das palavras um por um, e depois aprender, inde-
ele expressar e dizer o que ele deseja quando está falando? Es- pendentemente, regras para agrupá-los em sentenças significa-
tamos pressupondo, como o fizemos antes, que se o agente fala, tivas. Começamos com sentenças como um todo para em se-
podemos em cada ocasião identificar o evento físico particular guida inferir uma estrutura subjacente. O significado é um as-
correspondente. Assim, não existe problema quanto a testar o pecto operacional dessa estrutura. Uma vez que a estrutura é
ponto de vista de que um mecanismo físico particular (por exem- quase sempre inferida e dá lugar ao que chamamos de comuni-
plo, Art) seja um mecanismo falante de uma linguagem: pode- cação, devemos conceber o significado como sendo uma cons-
mos testar isto da mesma maneira que podemos testar a habili- trução teórica. E como todo constructo, ele é arbitrário, com
dade lingüística de um ser humano, isto é, ao observar como exceção das restrições empíricas ou formais que possamos lhe
ele se comporta em várias circunstâncias. Contudo, isto não vai impor. No caso do significado, as restrições não podem estabe-
nos fornecer aquilo que desejamos: uma correlação legiforme lecer uma única teoria da interpretação. A razão disto (como
entre o funcionamento do mecanismo e comportamento Quine tentou mostrar) está no fato de que as sentenças que o
lingüístico. Queremos saber qual é a propriedade física da má- falante supõe serem verdadeiras são determinadas pelo que ele
quina - de qualquer máquina - a propriedade que a faria falar quer dizer a partir de suas palavras e pelas suas crenças acerca
como um ser humano. do mundo que o cerca. Uma melhor maneira de dizer isto seria
Por que não podemos simplesmente dizer: a propriedade fí- a seguinte: crença e significado não podem ser reconstruídas
sica é aquela que produz os resultados observados? Isto é ina- de uma única maneira a partir do comportamento lingüístico.
dequado, pois os resultados que são requeridos suplantam aque- Esta sub-determinação não pode ser julgada como uma falha
les que são observados e queremos a propriedade física que de interpretação, mas como uma conseqüência lógica da natu-
produziria comportamento lingüístico. De fato temos uma des- reza das teorias do significado (da mesma maneira que não cons-
crição da propriedade física, mas é uma descrição que usa con- titui uma falha o fato de ser arbitrária a escolha de uma certa
ceitos psicológicos. É o mesmo que dizer que o homem é uma escala para medir temperatura).

112 113
A sub-determinação da interpretação implica num outro fato como este mecanismo funciona. Mas será que podemos locali-
subjacente. Suponha que alguém diz o seguinte: "Lá está uma zar os correlatos físicos do significado? Será que não seria pos-
estrela explodindo". Devo assumir que essa pessoa realmente sível dissipar as ambigüidades acerca do que devemos inferir,
quer dizer que aquilo era uma estrela, mas que essa pessoa acre- ou tratar como um constructo, ao nível físico, tomando como
dita que algumas estrelas são muito pequenas e frias ou deve- ponto de partida a observação do comportamento lingüístico?
mos pensar que ele queria dizer que aquilo não era uma estrela, Bem, como isto poderia ser feito? Poderiamos descobrir o
mas um meteorito e que ela acredita que estrelas são sempre que sons e cheiros, descritos em termos de inputs físicos fazem
muito grandes e quentes? Fatos adicionais podem resolver este nossa máquina dizer "Isto é uma baleia" quando lhe pergunta-
problema, mas sempre haverá casos onde toda evidência possí- mos "O que é aquilo?". (E assim por diante para muitos outros
vel sempre deixará aberta a escolha entre atribuir ao falante um casos). Poderíamos então saber o que Art quer dizer? Penso
significado padrão e um padrão de crença peculiar, ou um sig- que a resposta seria a seguinte: não saberíamos nem mais nem
nificado diferente e uma opinião ortodoxa. Se o falante profere menos acerca da natureza do significado, ou seja, nada além do
as palavras "Lá está uma baleia" como posso saber o que ele que podemos saber a partir de seres humanos. Pois o que Art
quer dizer? Suponhamos que exista um objeto que se pareça diria se ele "aprendesse" que um objeto com a aparência de um
com uma baleia no alto mar, mas que eu saiba que não se trata cetáceo não é um mamífero? Como podemos decidir sem saber
de um mamífero? Parece não haver critérios precisos para de- o que ele quer dizer com "mamífero"? Suponhamos que aba-
terminar que algo seja ou não uma baleia. Mas, felizmente, no leia aparecesse como algo muito pequeno, ou de cabeça para
que diz respeito a possibilidade de comunicação, não precisa- baixo, mas que Art "acreditasse" que ele estava olhando pelo
mos exigir tais critérios de decisão. Ter uma linguagem e saber lado contrário de um telescópio ou usando lentes especiais?
coisas acerca do mundo são coisas que só podem ser parcial- Estas questões e outras nesta linha, devem fazer-nos perceber
mente separadas; a interpretação toma-se possível porque acei- que não podemos simplesmente associar algumas partes do
tamos um grande número de teorias acerca do que um ser hu- cérebro de Art com os critérios para a aplicação de uma deter-
mano pode querer dizer- se fizermos alguns ajustes nas cren- minada palavra. Não são palavras separadas, mas o todo que
ças que a ele atribuímos. O que fica claro, contudo, é que a deve ser interpretado.
construção de tal teoria deve ser holística: não podemos decidir Não deveríamos identificar o significado de uma sentença
como interpretar a sentença "Lá está uma baleia" indepen- com a intenção com a qual ela é proferida, e então procurar um
dentemente de como interpretamos "Lá está um mamífero" correlato físico da intenção e assim evitar o problema das rami-
e toda uma série de palavras que são normalmente conectadas ficações infinitas que afeta as teorias do significado e da inter-
a estas sentenças. Temos de interpretar o todo, não apenas pretação? O problema é que intenções específicas são tão difí-
palavras separadas. ceis de interpretar quanto o são algumas sentenças. Nosso me-
A esta altura deveríamos esperar que um conhecimento dos lhor atalho para uma identificação detalhada de intenções e cren-
correlatos físicos do mecanismo da linguagem poderiam ser ças é uma teoria do comportamento lingüístico. Não faz senti-
valiosos. Afinal de contas, o uso das palavras se deve ao modo do supor que podemos primeiramente intuir todas as intenções

114 115
e crenças de uma pessoa para depois tentar apreender o que ela funções cognitivas mais complexas, o conhecimento terá que
quer dizer com suas palavras. ser obtido de modo indireto. Não existe nenhuma maneira pela
Se estou certo, isto quer dizer que um conhecimento deta-
qual a psicologia possa ser reduzida à física.
lhado da física ou da fisiologia do cérebro ou do homem como
um todo, não nos auxilia no tipo de interpretação requerida para
a aplicação de conceitos psicológicos mais sofisticados. Inter-
pretar o que l 'homme machine quer dizer não é mais fácil do
que interpretar o que um ser humano quer dizer: o problema
seria essencialmente o mesmo. (Haveria apenas uma diferença:
no caso de um ser humano tentaríamos resolver o problema
criando situações experimentais, no caso do homem-máquina
nós o desmontaríamos. Mas após desmontá-lo, poderíamos ape-
nas dizer, em termos psicológicos, o que ele teria feito em cir-
cunstâncias específicas, não poderíamos extrair daí leis gerais
acerca de seu comportamento). Tanto no caso da máquina como
no do ser humano, teríamos que interpretar seus comportamen-
tos observáveis como um todo. Nossos padrões para aceitar um
sistema de interpretação teriam de ser os mesmos: teríamos de
reservar um espaço para possíveis erros; teríamos de pressupor
um alto grau de coerência para poder atribuir sentido ao que
eles dizem ou fazem; teríamos igualmente, de pressupor um
padrão de crenças e motivos que estivesse próximo do nosso
para poder construir uma base comum que permitisse a com-
preensão do que dizem e fazem e até mesmo possibilitar a in-
terpretação de possíveis discordâncias. Estas condições, que
incluem critérios de consistência e de racionalidade, podem ser
aperfeiçoadas e tomadas mais objetivas. Mas não vejo nenhu-
ma razão para que elas pudessem ser estipuladas num vocabu-
lário puramente físico.
Descobertas que já foram feitas acerca da natureza do cére-
bro e novas descobertas que podemos esperar das pesquisas
nesta área esclarecerão a natureza da percepção humana, do
aprendizado e do comportamento. Mas no que diz respeito a

116
117
...

O FISICALISMO

THOMAS NAGEL

tradução
JOSÉ ANTÔNIO FINOCCHIO
I
O PROPÓSITO DESTE ARTIGO é examinar porque O fisicalismo não
pode ser uma teoria verdadeira I. Entendo por fisicalismo a tese
de que uma pessoa, com todos seus atributos psicológicos, não
é nada além de seu corpo com todos seus atributos físicos. As
várias teorias que sustentam este ponto de vista podem ser clas-
sificadas de acordo com o tipo de identidade que elas alegam
existir entre o mental e o físico2. Essas identidades podem ser
ilustradas pelo exemplo padrão de um litro de água que é idên-
tico a um conjunto de moléculas, cada uma contendo 1 átomo
de oxigênio e 2 de hidrogênio.
Todos os estados da água são estados desse conjunto de
moléculas: se a água se encontra em uma determinada garrafa,
aquelas moléculas estão na garrafa; se a água está congelada é
porque as moléculas estão dispostas numa estrutura de reticulado
com forte atração intermolecular e movimento vibratório indi-
vidual relativamente fraco; se a água está fervendo é porque as
moléculas têm energia cinética suficiente para produzir uma
pressão de evaporação igual à pressão atmosférica, e assim por
diante. Além de identidades gerais como essas, há identidades

1. Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada numa reunião da


American PhilosophicalAssociation em Seattle, em 5 de setembro de 1964.
2. Não considerarei aqui nenhum tipo de behaviorismo ou reducionismo.
1
específicas3. Uma delas é a identidade entre esparramar uma Tendo a acreditar que uma teoria fisicalista branda do tercei-
certa quantidade de água e o deslocamento repentino de deter- ro tipo é verdadeira e que qualquer fisicalismo irá sempre deri-
minadas moléculas - uma identidade que não implica que um var identidades gerais ou particulares a partir de alguns estados
determinado esparramo seja sempre idêntico àquele tipo parti- e eventos. Portanto, até mesmo numa visão branda, precisamos
cular de deslocamento. Em todos esses casos podemos dizer nos defender contra objeções à possibilidade de identificar qual-
o seguinte: que o esparramar da água não é nada além do quer condição psicológica a uma condição física. É com tais
que o deslocamento daquelas moléculas; elas são as mes- objeções gerais que nos ocuparemos a seguir.
mas ocorrências. Sustentarei que tais objeções fracassam enquanto tentativas
Não é trivial que toda teoria fisicalista deva afirmar a identi- de refutação do fisicalismo, mas sustentarei igualmente que elas
dade de cada pessoa com seu corpo, nem tampouco é fácil des- não caracterizam devidamente a fonte real de descontentamen-
crever uma conexão entre esta identidade e a identidade entre to com esta posição. Esta conclusão é derivada de meu próprio
estados psicológicos e físicos. Contudo, podemos especificar caso. Eu sempre achei o fisicalismo extremamente repelente. A
uma gama de visões possíveis desta última relação. 1) Um fisi- despeito de minha crença atual de que essa tese é verdadeira,
calismo radical (e possivelmente implausível) poderia afmnar este sentimento persiste, e tem sobrevivido à refutação dessas
a existência de uma identidade geral entre cada condição psico- objeções ao fisicalismo.Aorigem de tal descontentamento deve
lógica e sua contrapartida física. 2) Uma posição menos radical residir noutra parte, e farei uma sugestão a respeito disso mais
afirmaria algumas identidades gerais, especialmente no âmbito adiante4. Primeiro, entretanto, será necessário mostrar porque
das sensações, e identidades particulares para todo o resto. 3) as objeções comuns falham, e que tipo de identidade pode exis-
Uma posição mais branda ainda não requereria que, mesmo em tir entre fenômenos físicos e mentais.
casos específicos, fosse atribuída uma condição física idêntica
para toda condição psicológica, principalmente se essa fosse li
uma condição intensional. 4) A posição mais branda de todas
Desde que Smart as refutou, supõe-se ser desnecessário
as concebíveis não afirmaria sequer qualquer identidade parti-
discutir as objeções que se apoiam na confusão entre identi-
cular, mas não estaria claro se as outras asserções sobre a rela-
dade de significado e identidade de fato5. Devemos nos con-
ção mente-corpo propostas por esta teoria poderiam ser classi-
ficadas como fisicalistas.
4. A seção ll constitui uma tentativa de refutar algumas objeções correntes
e a III contém uma discussão geral da identidade cujos resultados são apli-
3. Todas as identidades cujos termos são universais na forma serão chama- cados ao fisicalismo na seção IV
das gerais , mesmo que sua especificação envolva referência a elementos 5. J.J.C. Smart, "Sensations and Brain Processes", Philosophical Review,
particu1ares.Assim, "A água é H 20", "Para a água ser gelada é preciso que LXVIII (1959), 141-156, reeditado em The Philosophy of Mind ed. por
suas moléculas estejam na condição F" e "Para esta água ser gelada é preci- V. C. Chappell (Eng1ewood Cliffs 1962). Veja-se também o livro de Smart,
so que suas moléculas estejam na condição F" são todas identidades gerais. Philosophy and Scientific Realism (London, 1963) e seu artigo
Por outro lado, "Para que esta água (agora) esteja gelada é preciso que suas "Materialism",Journal ofPhilosophy, LX (1963), 651-662 para discussões
moléculas (agora) estejam na condição F"é uma identidade particular. mais detalhadas da tese da identidade.

122 123
centrar, pois, em dois tipos de objeção que ainda parecem Assim, nós devemos olhar a atribuição de propriedades à
ser atuais. sensação simplesmente como parte de especificação de um es-
A primeira é que o fisicalismo viola a lei de Leibniz, que tado psicológico que está sendo atribuído à pessoa. Quando
requer que se duas coisas são idênticas, elas devem ter todas afirmamos que uma pessoa tem uma sensação de uma certa
suas propriedades não-intensionais e não-modais em comum. descrição B, isto não deve ser interpretado como afirmando a
Afirma-se que impressões sensoriais, dores, pensamentos, etc ... existência de um x e um y tal que x é uma pessoa e y é uma
têm várias propriedades que os estados cerebrais não têm e vice- sensação e B(y), ex temy. Ao invés, devemos interpretar como
versa. Mais adiante proporei uma modificação da lei de Leibniz, afirmando a existência de uma única coisa, x, tal que x é uma
porque não acredito que ela, em sua forma estrita, governe a pessoa, e além do mais C(x), onde C é o atributo "tem uma
relação postulada pela tese da identidade. Neste ponto, entre- sensação de descrição B". A especificação deste atributo é ob-
tanto, a tese pode ser defendida sem recurso a tais métodos tida em parte pela atribuição de propriedades à sensação; mas
' isso é só parte da atribuição de estados psicológicos à pessoa.
através de uma versão um tanto modificada de um argumento
utilizado por Smart e, mais recentemente, por U.T. Place6. Esta posição me parece atraente independentemente do fisica-
Ao invés de identificar pensamentos, sensações, ilusões e lismo, e pode ser estendida a outros estados psicológicos dife-
coisas do gênero com processos cerebrais, eu proponho identi- rentes das sensações. Qualquer atribuição de propriedades a eles
ficar a sensação de uma pessoa com o fato de seu corpo estar deve ser considerada simplesmente como parte da atribuição
num estado físico ou submetido a um processo físico. Note que de outros atributos à pessoa que os tem - como especificação
ambos os termos dessa identidade são do mesmo tipo lógico, daqueles atributos.
isto é (usando uma terminologia neutra) um sujeito possuindo Eu me afasto de Smart ao fazer o lado da identidade uma
certos atributos. Os sujeitos são a pessoa e seu corpo (não seu condição do corpo, ao invés de uma condição do cérebro?, por-
cérebro), e os atributos são condições psicológicas, aconteci- que me parece duvidoso que algo sem um corpo do tipo con-
mentos, etc. e condições físicas. O termo psicológico da identi- vencional pudesse ser sujeito de estados psicológicoss. Não
dade deve ser a pessoa tendo uma dor em sua canela ao invés pretendo sugerir que a presença de uma sensação particular
da dor em si, porque embora seja inegável que dores existam e tenha que depender da condição de qualquer parte do corpo
que as pessoas as tenham, é também claro que isso descreve fora do cérebro. Tomando o termo físico da identidade igual
uma condição de uma identidade, a pessoa, e não uma relação a um estado corporal e não a um estado cerebral, isso impli-
entre duas entidades, uma pessoa e uma dor. Para que dores ca, simplesmente, que o cérebro está num corpo. Identificar
existam é necessário pessoas para tê-las. Isto me parece perfei- a dor de uma pessoa com um cérebro estando num estado X
tamente óbvio, a despeito das sugestões inocentes da nossa lin-
7. Pode-se, alternativamente, tomar esta uma condição da p essoa de tal
guagem em favor do contrário. maneira que os dois atributos identificados teriam, garantidamente, o mes-
6. U.T. Place "Is Consciousness a Brain Process?", British Journal of mo sujeito. Não saberia dizer como tal mudança afetaria o argumento.
8. Vej a-se Norman Malcolm, "Scientific Materialism and the Identity
Psychology 4 7 ( 1956). Minha formulação do lado físico da identidade d ife-
re da de Smart, e não aceito seu reducionismo psicológico. Theory"em Dialogue III (1964), 124-125.

124 125
iria implicar, por outro lado, que se o cérebro de um indiví- cerebral, mas ao contrário, meu corpo estando naquele estado
duo pudesse estar naquele estado enquanto o resto do corpo especificado como "tendo o processo relevante acontecendo no
estivesse destruído, ele ainda estaria no estado psicológico cérebro". Tal estado não está localizado no cérebro; ele foi lo-
correspondente. calizado tão precisamente como pode ser quando nós somos
Dado que os termos da identidade estão assim especifica- avisados da localização precisa daquilo do qual ele é um estado
dos, nada nos obriga a identificar uma sensação ou uma dor ou -isto é, meu corpo. O mesmo é verdadeiro quando eu tenho
um pensamento com algo físico, e isso desfaz numerosas obje- uma sensação: aquilo está se processando onde quer que eu
ções. Pois, embora, eu possa ter uma impressão visual cujos venha a estar naquela hora, e sua localização não pode ser
atributos de forma e cor correspondem precisamente àqueles especificada mais precisamente do que pode a minha própria.
que caracterizam a "Monalisa", o meu ter a impressão sensori- (Isto é, mesmo se uma dor estiver localizada na minha canela
al não possui aqueles atributos, e não há portanto nenhuma causa direita, eu estou tendo aquela dor em minha sala na universida-
para se preocupar com o fato de que nada em meu cérebro se de). A localização de sensações corporais é uma coisa muito
pareça com a "Monalisa". Dadas as nossas especificações do diferente da localização de verrugas. É uma localização de fe-
lado psicológico da identidade, o que é requerido no lado físico nômeno, e deve ser considerada como um traço de um atributo
diminui consideravelmente. Os equivalentes físicos da impres- psicológico possuído pelo todo da pessoa, ao invés da localiza-
são auditiva podem ser silenciosos, os da impressão olfativa ção de um evento que acontece numa parte dela.
inodoros e assim por diante. O outro tipo de objeção que eu deverei discutir é que o fisi-
O mais importante é que podemos nos ver livres de obje- calismo falha em dar conta da privacidade ou da subjetividade
ções recalcitrantes desse tipo, que tem a ver com a localiza- dos fenômenos. Esta objeção é muito importante, mas difícil
ção9. Processos cerebrais são localizados no cérebro, mas uma de ser formulada precisamente.
dor pode ser localizada na canela e um pensamento, definitiva- Há um sentido trivial no qual um estado psicológico é priva-
mente, não tem localização. Se os dois lados da identidade não do para seu possuidor, isto é, desde que ele seja seu, ele não
são uma sensação e um processo cerebral, mas o meu ter uma pode ser de mais ninguém. O mesmo vale para cortes de cabelo
certa sensação ou pensamento e meu corpo estando num deter- ou, ainda neste campo, para condições fisiológicas. Sua trivia-
minado estado fisico, então eles estarão ambos no mesmo lu- lidade se evidencia quando olhamos pensamentos e sensações
gar, isto é, onde eu e meu corpo porventura estivermos. É im- como condições da pessoa e não como coisas às quais a pessoa
portante que o lado físico da identidade não seja um processo está relacionada. Quando vemos que o que era descrito como
se fosse uma relação entre duas coisas é na verdade a condição
de uma das coisas, não nos surpreende que apenas uma pessoa
9. Veja-se Malcolm, op.cit, pp. 118-120. Veja-se também Jerome Shaffer
possa estar na condição atribuída a uma dada sensação ou pen-
"Could Mental States Be Brain Processes?", Journal of Philosophy LVTII
(1961). Shaffer considera que a dificuldade pode ser superada, mas isto samento. Neste sentido, estados corporais são tão privados para
depende da possibilidade de uma mudança no nosso conceito de estado seus possuidores como os estados mentais com os quais eles
mental, a qual daria sentido à idéia de que eles podem ter localização. podem ser igualados.

126 127
A objeção do acesso ao privado é algumas vezes expressa missa- que x é idêntico a y- é contingente, tomando a conse-
epistemologicamente. A privacidade de cortes de cabelo é qüente contingente 11•
desinteressante porque neste caso falta uma conexão entre pos- Poderíamos falar mais coisas sobre a objeção do acesso es-
se e conhecimento que está presente no caso das dores. Consi- pecial, mas ainda não encontrei uma versão dela que fosse bem
dere a seguinte afirmação da objeção da privacidade lO. "Quan- sucedida. Discutiremos mais à frente uma interpretação um tanto
do eu estou num estado psicológico - por exemplo, quando eu diferente da afirmação de que os estados mentais são subjetivos.
tenho uma certa sensação - é logicamente impossível que eu
possa errar em saber que eu estou num tal estado. Isto, entre- III
tanto, não é verdadeiro para qualquer estado corporal. Assim
nenhum estado psicológico é idêntico a um estado corporal". Consideremos agora a natureza da identidade que o fisica-
Desta maneira, eu acredito que a primeira cláusula desta obje- lismo defende. Eventos, estados de coisas, condições, psicoló-
ção - isto é, a tese da incorrigibilidade - é falsa, mas eu não gicas e não-psicológicas, podem ser idênticas num sentido per-
tenho que basear meu ataque negando-a, pois mesmo que a tese feitamente correto e que obedeça à lei de Leibniz da mesma
da incorrigibilidade fosse verdadeira ela não implicaria no fato maneira que o faz a identidade entre o único cavalo de Berkeley
de que o fisicalismo deveria ser descartado. e o maior mamífero de Berkeley. Tais identidades entre eventos
Se o estado x é idêntico ao estado y não se segue pela lei de podem ser devidas à identidade das duas coisas referidas em
Leibniz que se eu sei que estou no estado x então eu sei que eu suas descrições -por exemplo, eu sendo coiceado pelo único
estou no estado y , dado que o contexto é intensional. Dessa cavalo de Berkeley e eu sendo coiceado pelo maior maior ma-
maneira, tampouco segue de "Se eu estou no estado x então eu mífero de Berkeley-ou podem não ser-como, por exemplo, o
sei que estou no estadox" que se eu estou no estado y eu sei que afundamento do Titanic e o maior desastre marinho em tempo
estou no estado y . Tudo o que se segue é que se eu estou no de paz. Se elas se derem tanto entre coisas, como entre eventos
estado y eu sei que estou no estado x. Além disso essa conexão ou condições, devo me referir a elas como identidades estritas.
não é uma conexão necessária, dado que apenas uma das pre- Estamos interessados, entretanto, em identidades de um tipo
missas - a tese da incorrigibilidade - é necessária. A outra pre- diferente - entre eventos psicológicos e eventos físicos, ou en-
tre a fervura da água e a atividade das moléculas. Chamá-las-ei

10. Veja-se Kurt Baier, "Smart on Sensations" e J.J.C. Smart, "Brain Pro- 11. É preciso notar que se dois estados mentais estão necessariamente
cesses and Incorrigibility",Australasian Journal ofPhilosophy, 40 (1962). conectados, esta conexão deve ser retratada ao nível dos estados físicos
Esta é vista como uma séria dificuldade por Smart e outros defensores do com os quais os identificamos. Embora a conexão entre estados físicos não
fisicalismo . Veja-seArmstrong, D. M. "Is Introspective Knowledge Incorrigi- precise ser uma conexão necessária, esta seria uma característica desejável
ble?",Philosophica/Review, LXXXII (1963), 418-419. Por outro lado, Hílary numa teoria fisicalista, e de fato, parece estar presente no exemplo da água
Putnam argumenta que todos os problemas acerca de privacidade e acesso e das moléculas: o fato da água estar gelada necessariamente inclui o fato
especial que podem ser levantados no que diz respeito a pessoas podem ser de ela estar fria, e a especificação de um estado molecular que constitui o
formulados para as máquinas. Veja-se seu artigo "Minds and Machines"em fato de ela estar gelada implica que as moléculas terão uma energia cinética
Dirnensions of Mind, editado por Sidney Hook (New York, 1960). baixa - o que significa exatamente o mesmo que dizer que a água está fria.

128 129
i

de identidades teóricas12, e irei me deter, no momento, em suas Isto é mais do que mera conjunção constante, é na verdade,
aplicações a eventos e atributos, ao invés de coisas, embora um forte requisito para a identidade. Entretanto, é mais branda
elas se apliquem para coisas também. É uma relação mais fraca que a versão usual da lei de Leibniz na qual não se requer posse
do que a identidade estrita, e a posse comum de atributos cau- por cada termo de todos atributos do outro. Ela não requer que
sais e condicionais é crucial para o seu estabelecimento 13. Iden- o evento molecular complexo que podemos identificar com o
tidades estritas são, provavelmente, estabelecidas de outras for- fato de eu ser coi ceado por um cavalo de Berkeley seja caracte-
mas, e podemos inferir a identidade de todos atributos causais rizado independentemente como ridículo -por exemplo, se no
e condicionais. Assim, se ser coiceado pelo único cavalo de contexto o último evento era ridículo e se o primeiro não pode
Berkeley causou-me uma perna quebrada, então ser coiceado ser dito ridículo, ele carece de um atributo que o último pos-
pelo maior mamífero de Berkeley tem o mesmo efeito, dado suía. Existem alguns atributos de cuja posse comum se segue a
que eles são a mesma criatura; e se for verdade que eu não seria identidade, e outros que, ou os atributos não importam ou que
coiceado pelo único cavalo de Berkeley caso eu tivesse ficado não podemos decidir o que lhes atribuímos a um dos termos
em minha sala naquela tarde, então segue-se que se eu tivesse sem primeiro decidir se a identidade em questão é válida.
ficado em minha sala eu não teria sido coiceado pelo maior Para tomar isso preciso, introduzirei a noção de atribuição
mamífero de Berkeley. independente. Existem alguns atributos tais como ser quente
Mas se nos faltam bases como essas, devemos estabelecer ou frio, ou fervente ou ofensivo, que não podem ser imputados
identidade de atributos condicionais independentemente, e isso a um conjunto de moléculas per se. Pode ser que tais atributos
depende da descoberta de leis gerais a partir das quais os con- possam ser imputados a um conjunto de moléculas, mas tal atri-
dicionais particulares se seguem. Nossa base para acreditar que buição é independente, para seu significado, de sua atribuição
um determinado litro de água fervendo é o mesmo evento que primeira a algo de tipo diferente, como um volume de água ou
um conjunto de moléculas se comportando de um certo modo é uma pessoa, com as quais as moléculas são idênticas. Tais atri-
a base que podemos ter para acreditar que todas as causas e os butos não são imputáveis independentemente às moléculas,
efeitos de um evento são também causas e efeitos do outro, e embora eles possam ser imputáveis dependentemente. De for-
que todas proposições verdadeiras sobre as condições, sob as quais ma similar, a propriedade de ter 83 trilhões de membros não é
111
1

um evento não ocorreria, ou sobre o que aconteceria se não tivesse independentemente imputável a uma quantidade de água, em-
acontecido, ou sobre o que teria acontecido se ele tivesse conti- bora ela possa ser possuída por um conjunto de moléculas de
nuado, e assim por diante, são também verdades sobre o outro. H 2 0. Existe entretanto, em tais casos, uma classe de atributos
que são imputáveis independentemente a ambos os termos e a
12. Seguindo Hilary Putnam, op.cit que diz que o "é"em questão é aquele condição para identidade teórica pode ser expressa da seguinte
da identificação teorética. A palavra "identidade"para estes casos é muito forma: que os dois termos devem possuir ou carecer em co-
forte, mas adotá-la-ei por uma questão de conveniência. mum de todos aqueles atributos que podem ser imputáveis in-
13. Um atributo, para nossos propósitos, será dado por qualquer esquema
dependentemente para cada um deles individualmente-com o
sentencia! contendo uma variável livre (em todas suas ocorrências) onde
ela pode ser uma variável recaindo sobre objetos, eventos e assim por diante. requisito de que nada é, por este critério, idêntico a uma outra

li
130 131
coisa da qual ele é distinto pelo mesmo critériot4. De fato, isto sem ser verdade que há uma correlação geral entre fenômenos
irá servir como uma condição para identidade em geral; uma macroscópicos e microscópicos desse tipo. Por exemplo, pode
identidade estrita irá ser simplesmente aquela entre termos su- se seguir de leis gerais que outros tipos de fenômenos micros-
ficientemente similares em tipo para permitir uma imputação cópicos, diferentes do apresentado neste caso, compartilhem
independente, a ambos, de todos os mesmos atributos e irá in- também as propriedades condicionais necessárias.
cluir casos como o afundamento do Titanic sendo o maior de- O sentido técnico no qual até em tais casos a identidade par-
sastre marinho ocorrido em tempo de paz, ou a estrela da ma- ticular deve ser uma instância de uma geral, é que ela deve ser
nhã sendo a estrela da tarde. As identidades que caracterizei olhada corno uma instância da identidade entre o fenômeno
como teóricas se dão entre categorias de descrição suficiente- macroscópico e a disjunção de todos aqueles fenômenos mi-
mente diferentes para proibir imputação independente, a am- croscópicos que estão associados a ele da maneira descrita, via
bos os termos, de todos os mesmos atributos, embora, como eu leis gerais. Pois suponha que nós tenhamos um tipo de fenôme-
tenho observado, tais atribuições podem ser significativas como no rnacroscópicoAe dois tipos de fenômenos microscópicos B
conseqüência da identidade. A questão que surge naturalmente e C assim associados a ele. Suponha que numa ocasião, casos
é: em que grau identidades teóricas particulares dependem das particulares de A e B estejam ocorrendo na mesma hora e lugar
gerais? Nos exemplos que eu dei sobre o caso da água, a depen- etc., e suponha que está garantido que, uma vez que se seguem
dência é óbvia. Nestes casos as identidades particulares tinham de leis gerais, eles têm também, todos seus atributos condicio-
sido simplesmente instâncias das gerais, que são conseqüênci- nais em comum; A, neste caso, é idêntico a B no sentido espe-
as da mesma teoria que dá conta da posse comum de atributos cificado. Eles, entretanto, não têm em comum o atributo condi-
relevantes nos casos particulares. Agora, existe um sentido téc- cional F(X), definido da seguinte maneira: "Se C e não B, en-
nico pelo qual toda identidade teórica particular deve ser uma tão X". Isto é, F(A) mas não F(B). Portanto, nós devemos iden-
instância de uma identidade geral, mas nem todos os casos pre- tificar, até neste caso, a ocorrência de A com a ocorrência da
cisam ser como o da água. Embora seja essencial que identida- disjunção B ou C. Entretanto, isto não nos exime, de ter que
des particulares devam decorrer de leis gerais ou de urna teoria apresentar como um sentido subsidiário da identidade, para
geral, isto não nos impede de distinguir entre casos nos quais, casos particulares, aquele no qual A é B porque a disjunção B
por exemplo, a contrapartida molecular de um fenômeno ou C que é justamente idêntica a A, é de fato, satisfeita por B.
macroscópico é sempre a mesma, e aqueles nos quais ela varia Existe, é claro, uma gama de casos entre os dois tipos descritos,
de instância para instância. A posse comum de atributos condi- casos nos quais os disjuntos na identidade geral consistem de
cionais pode se seguir, para um caso particular, de leis gerais, conjunções que ultrapassam para um grau inferior ou superior,
e isso complica a questão consideravelmentels. Contudo, po-
14. Esta qualificação leva em consideração casos problemáticos tais como
eu sou a raiz quadrada de 2, pois embora possa ocorrer que compartilhemos 15. Um tratamento completo teria de incluir a discussão da relação não-
todos os atributos que podem ser independentemente imputados a cada um simétrica " ... consiste de ..." que é distinta da identidade. Um evento
de nós, compartilho tais atributos com a raiz quadrada de 3, cujos atributos macroscópico, (a água congelar-se, por exemplo) pode ser idêntico com um
claramente contradizem aqueles da raiz quadrada de 2. evento microscópico A descrito em tennos gerais (energia cinética média,

vNH.... c.l>ll 1'1 \.J


I •·" IAD€ ESTACill..,lllt.! t;Hll llO O 1
132 133 UOl ECA CUMW UAVA

I
demos, a despeito da tecnicalidade, fazer uma diferenciação, termos de um amontoado de moléculas e seus atributos, mas
grosso modo, entre identidades particulares que são num senti- que os dois sistemas de explicação fossem tão diferentes em
do estrito instâncias de identidades gerais e aquelas que não estrutura que seria impossível achar um único atributo das mo-
são - isto é, que são instâncias apenas de identidades gerais léculas que explicasse todas e somente todas aquelas coisas
radicalmente disjuntivas. Daqui por diante, quando eu me refe- explicadas por um atributo particular da água.
rir à identidades gerais estarei excluindo essa última classe. Se isso é verdadeiro ou não para o caso da água, a possibili-
Detive-me em identidades entre estados, eventos e atributos dade tem uma relevância óbvia para o fisicalismo. Poder-se-ia
porque é, geralmente, nestes termos que o fisicalismo é conce- definir um critério "flexível" de identidade teórica que fosse
bido; mas, se também faz parte do fisicalismo sustentar que as satisfeito em tal caso, e isto poderia, por sua vez, dar sentido a
pessoas são seus corpos, toma-se apropriado perguntarmos so- uma identificação de pessoas com seus corpos o que não de-
bre a relação entre identidade teórica entre coisas e a identida- penderia sequer da descoberta de uma única contrapartida físi-
de teórica de seus atributos. Infelizmente não tenho uma res- ca para qualquer evento ou condição psicológica. Contudo, pre-
posta generalizada para essa pergunta. O caso da identidade firo me abster de uma investigação do assunto; esta discussão
estrita não apresenta nenhum problema, pois, aí todo atributo genérica sobre identidade deve ser vista apenas como algo
de um termo é estritamente idêntico ao atributo correspondente programático.
do outro; e em nosso exemplo-padrão de identidade teórica,
cada atributo da água parece ser idêntico teoricamente a alguns N
atributos das moléculas, mas não vice-versa. Isto pode ser uma
Contudo, esta discussão permite-nos dizer algumas coisas
condição (assimétrica) para a identidade teórica entre coisas.
sobre a tese do fisicalismo. Em primeiro lugar, as bases para
Não está claro, porém, se a identidade de coisas deve sempre
aceitá-lo virão de maiores conhecimentos de a) uma explicação
estar tão estreitamente ligada à identidade de seus atributos.
de eventos mentais e b) da explicação fisiológica de aconteci-
Por exemplo, poderia ser que tudo que pudéssemos explicar
mentos que esses eventos mentais, por sua vez, explicam. Em
nos termos da água e seus atributos pudesse ser explicado em
segundo lugar, tendo em vista a condição de imputabilidade
independente, o fisicalismo não precisa ser ameaçado pela difi-
ordenação espacial e coisas similares ) e ao mesmo tempo consiste de uma culdade de que embora a raiva possa ser, por exemplo,
li coleção muito especifica B de eventos microscópicos com os quais ela não
é idêntica, pois se uma delas (o movimento de uma molécula específica)
justificada, não faz nenhum sentido dizer isto de um estado fí-
sico com o qual nós pudéssemos identificá-la. Terceiro, não se
fosse diferente, aquele complexo de eventos microscópicos não teria ocor-
rido, embora A e o evento macroscópico tivessem ocorrido. (Possivelmente
requer identidades gerais em todos níveis; isto é, não precisa
em tais casos a ocorrência de B implica a ocorrência de A , mas nada além haver, nem para todas as pessoas ou mesmo para cada indiví-
disto precisa ser dito acerca da relação entre os dois). O mesmo conceito se duo, um estado idêntico à intenção de votar nos Republicanos
aplica a relação entre a Segunda Grande Guerra e uma imensa coleção de na próxima eleição, ou ter uma dor de barriga, para que o fisi-
ações e eventos no qual ela consistiu, ou entre a Torre Eiffel e os parafusos calismo seja verdadeiro. Parece provável que haverá identida-
e rebites que a compõem.

134 135
des gerais grosso modo para estados não-intensionais, tais como ções, pensamentos e desejos podem também implicar num con-
ter certa sensação ou impressões sensoriais, desde que as cau- texto, numa relação com as coisas fora da pessoa. A tese de que
sas fisicas destas sejam plenamente uniformes. Mas pode-se todos estados de uma pessoa são estados de seu corpo requer.
estar praticamente certo de que estados mentais intensionais, uma concepção ampla do que constitui um estado - na qual
apesar de serem idênticos a algum estado físico em cada caso deve-se admitir atributos relacionais. Isto não é algo específico
particular, não terão nenhuma contrapartida fisica geral, por- dos estados mentais: é característico de atributos intensionais
que tanto as causas como os efeitos de uma dada crença, desejo onde quer que eles ocorram. Que um aviso diga que pescar é
ou intensão são extremamente variadas em diferentes ocasiões proibido não consiste simplesmente em ter uma certa distribui-
até para o mesmo indivíduo, para não falar em pessoas distin- ção geométrica de tinta preta sobre a sua superficie; embora
tas. Alguém poderia facilmente esperar encontrar um equiva- neste caso não estejamos tentados a negar que o aviso é um
lente geral, em termos moleculares, de um prédio ruindo ou de pedaço de madeira com tinta sobre ele, ou postular uma subs-
uma ponte insegura - e mesmo assim cada instância de tal evento tância não-corpórea que é o sujeito dos atributos intensionais
ou circunstância será idêntica a algum fenômeno microscópico. do aviso.
A relação entre estados mentais intensionais e estados fisi- Contudo, mesmo com todas essas qualificações, pode ser
cos pode ser mais complicada do que isto. Pois, se eles forem um exagero esperar uma contrapartida fisica para cada fenô-
disposicionais no sentido clássico, então o fisicalismo requere- meno psicológico particular. Assim, embora possa ocorrer que
rá apenas que os eventos e os estados resultantes das disposi- o que explica e é explicado por uma sensação particular possa
ções sejam idênticos a estados e eventos físicos. Não se requer também explicar e ser explicado por uma condição neurológica
que eles sejam idênticos a qualquer estado físico independente particular, pode igualmente ocorrer que isto não seja exatamente
adicional, existente até mesmo quando a disposição não está se verdadeiro para uma intenção. Ao contrário, é possível que as
exercendo. (Na verdade, não acredito que as disposições ope- várias conexões que traçamos entre causas e efeitos via inten-
rem de acordo com o modelo ryleano clássico, e isto irá afetar ção possam ser compreendidas em termos de muitas condições
mais adiante o modo pelo qual a tese da identidade se aplica a fisicas diferentes, algumas das quais também explicam cone-
estados mentais disposicionais; mas não cabe aqui discutir essa xões que nós, num discurso psicologizante, estabelecemos via
questão). outros estados que não a intenção, e nenhum subconjunto des-
Existe ainda outro ponto: muitos predicados intensionais não ses estados, próprios ou impróprios, pudessem dar conta de to-
apenas atribuem uma condição a uma pessoa, mas têm implica- das e somente todas aquelas conexões que a intenção explica.
ções sobre o resto do mundo e sobre sua relação com o mundo. Por esta razão, um fisicalismo completo teria de recorrer a um
O fisicalismo não irá, é claro, requerer que estes sejam sim- critério para identidade entre coisas não dependente da identi-
plesmente idênticos aos estados do corpo de uma pessoa, con- dade de seus atributos-um critério do tipo daquele examinado
cebido estritamente. Um caso óbvio é o do conhecimento, que no fmal da seção anterior.
implica não somente na verdade do que é conhecido, mas tam- Obviamente qualquer teoria fisicalista, enquanto oposta à
bém numa relação entre a coisa e o sujeito cognoscente. Inten- tese pura e simplesmente filosófica do fisicalismo, será extra-

136 137
ordinariamente complexa. Estamos ainda muito longe de ter consistir meramente num objeto possuindo certo atributo? Isto
uma teoria física de como os seres humanos funcionam e não poderia ser colocado da seguinte maneira:
sabemos se as evidências empíricas disponíveis apontam para Estados do meu corpo, estados físicos são reconhecidamente
a possibilidade de que os avanços da neurologia possam desco- estados físicos de mim mesmo, mas isto não se deve ao fato de
brir algo neste sentido. Minha preocupação até agora foi ape- que eles são estados deste corpo mas porque além disto, este é
nas refutar a posição filosófica de que uma identidade entre o meu corpo. Ser o meu corpo consiste em ter uma certa rela-
físico e mental seja impossível e que nenhuma informação fu- ção, possivelmente causal, com o sujeito de meus estados men-
tura pudesse se constituir numa evidência em favor dela. tais; isto conduz, naturalmente, à conclusão de que eu, o sujeito
de meus estados mentais, sou alguma coisa a mais-talvez uma
v substância mental. Meus estados físicos são somente derivada-
mente meus, uma vez que eles são estados de um corpo que é
Mesmo que tenhamos respondido a todas as objeções-pa-
meu em virtude de estar relacionado de maneira apropriada com
drão, acredito que ainda permanece uma outra fonte para a con-
meus estados psicológicos. Mas isto é possível somente se es-
vicção filosófica de que o fisicalismo é impossível. Ela se ex-
tes estados psicológicos forem meus num sentido original e não
pressa como um sentimento de que há uma distinção funda-
meramente derivativo; assim, o sujeito deles não pode ser o
mental entre o objetivo e o subjetivo que não pode ser resolvi-
corpo que é derivadamente meu. O sentimento de que o fisica-
da. Objeções relativas a privacidade e ao acesso especial repre-
lismo não leva em conta a subjetividade essencial dos estados
sentam tentativas de expressá-lo, mas falham em fazê-lo: este
psicológicos é o sentimento de que em nenhum lugar da descri-
sentimento permanece mesmo após descartarmos tais objeções.
ção do estado do corpo humano poderia haver espaço para um
O sentimento é que eu (e portanto qualquer "eu") não posso ser
equivalente do fato de que eu (ou qualquer selj) e não apenas
um mero objeto físico, porque possuo meus estados mentais:
aquele corpo, sou o sujeito daqueles estados.
eu sou o sujeito deles, de um modo tal que nenhum objeto físi-
Esta é possivelmente a fonte de minha inquietação com o
co pode ser sujeito de seus atributos. Eu tenho um tipo de
fisicalismo. Infelizmente, quaisquer que sejam seus méritos,
intemalidade que as coisas físicas não têm; assim, além da co-
este não é um argumento decisivo contra o fisicalismo nem
nexão que todos meus estados mentais reconhecidamente têm
tampouco contra outras teorias da mente. Neste sentido ele não
com meu corpo, eles são também meus - isto é, eles têm um
nos fornece nenhuma razão para além daquelas que já apresen-
certo se/f como sujeito, sendo mais do que meros atributos de
tamos ao discutir as objeções-padrão para rejeitar o fisicalismo
um objeto. Se qualquer estado mental deve ter um se/f como
e aceitar o dualismo. Poderíamos mostrar que se levarmos até
sujeito, ele não pode ser idêntico a um mero atributo de algum
as últimas conseqüências este tipo de argumento isto nos daria
objeto como um corpo, e o se/f do qual ele é seu sujeito não
razões igualmente fortes para rejeitar qualquer visão que iden-
pode ser um corpo.
tifica o sujeito de estados psicológicos com uma substância e
Por que dever-se-ia pensar que o fato de eu ter uma certa
constrói esses estados como atributos dessa substância. Uma
sensação - estar num determinado estado mental - não pode
substância não corpórea parece algo seguro pois ao subtrair-

138 139
mos a substância fisica como candidata a ser o se/f estaremos Disto se segue não apenas que uma sensação pertencente a
tão ocupados em achar o sujeito cujos estados são originaria- mim não pode consistir simplesmente em ser um atributo de
mente meus- um sujeito ao qual o corpo físico pode ser relaci- um determinado corpo, segue-se também que ela não pode con-
onado de tal maneira que se explique como ele pode ser meu- sistir num atributo de uma determinada alma ligada àquele cor-
que simplesmente postulamos tal sujeito sem nos perguntar se po, pois nada na especificação dessa alma irá determinar que
as mesmas objeções não se aplicariam igualmente a ele, ou seja, ela é minha, que eu sou aquela pessoa. Se construímos estados
se haveria uma substância na qual tais estados poderiam ser de psicológicos como atributos de uma substância, não importan-
modo não derivativo meus. do que substância tenhamos escolhido, ela pode ser jogada jun-
Poderíamos generalizar este problema da seguinte maneira: tamente com o corpo no mundo "objetivo"; seus estados e sua
considere tudo que pode ser dito sobre o mundo sem empregar relação com um corpo particular pode ser descrita completa-
nenhuma expressão nominalmente rejlexivai6. Isto irá incluir a mente sem se tocar no fato de que eu sou aquela pessoai7. Daí
descrição de todos seus conteúdos físicos e seus estados, ativi- resulta que, dados os requisitos que nos conduzem a rejeitar o
dades e atributos. Isto incluirá também uma descrição de todas fisicalismo, a busca pelo self, por uma substância que sou eu e
as pessoas no mundo e suas histórias, memórias, pensamentos, cuja posse de atributos psicológicos resulta do fato de ela ser
sensações, percepções, intenções e assim por diante. Desta minha, acaba se tomando a busca por algo que não poderia exis-
maneira, eu posso descrever sem reflexivos nominais o mundo tir. A única conclusão possível é que o se/fnão é uma substân-
inteiro e tudo que está acontecendo nele - isto incluirá uma cia e que um tipo especial de posse que caracteriza a relação
descrição de Thomas Nagel e o que ele está pensando e sentin- entre eu e meus estados psicológicos não pode ser representada
do. Mas pode restar uma coisa que não posso dizer desta ma- como posse de certos atributos por um sujeito, não importando
neira - isto é, quais das várias pessoas no mundo sou eu. Até o que esse sujeito possa ser. A subjetividade do verdadeiro su-
quando tudo que pode ser dito de uma maneira especificada jeito psicológico é de um tipo diferente daquele do mero sujei-
tiver sido dito, e o mundo tiver sido completamente descrito, to de atributos. E se eu for estender este caso para além do
parece haver um fato que permanece não expresso, e este fato é meu próprio, devo concluir que ter uma sensação particular
que eu sou Thomas N ageL Claro que isto não é o fato comumente não consiste em ter um determinado atributo ou estar num
transmitido por estas palavras, quando usadas para informar determinado estado.
alguém quem é o falante - pois isto seria facilmente expressa- Não discutirei as razões para rejeitar esta posição. Minha
do de outra maneira. É o fato de que eu sou o sujeito destas atitude em relação a ela é precisamente o reverso de minha ati-
experiências; este corpo é o meu corpo, o sujeito ou o centro de tude em relação ao fisicalísmo, que me repugna, embora eu
meu mundo é esta pessoa, Thomas Nagel. esteja persuadido de sua verdade. É claro que as duas teses es-
tão relacionadas, uma vez que o que me incomoda acerca do
fisicalismo é o pensamento de que não posso ser um mero ob-
16. Ou seja, expressões fUncionando como nominalmente reflexivas. Tais
palavras perdem sua função em citações e em certos casos de oratio (or
cogitatio) obliqua :por exemplo, "John Smith pensa que ele é Napoleão". 17. Veja-se Wittgenstein, Tractatus, 5.64.

140 141
jeto fisico, não posso nem mesmo ser alguma coisa no mundo e
minhas sensações etc. não podem ser simplesmente atributos
de alguma substância.
Mas se rejeitarmos esta posição (como parece provável que
devamos fazê-lo) e aceitarmos a alternativa de que uma pessoa ONDE ESTOU EU?
é algo no mundo e que seus estados mentais são estados dessa
coisa, então não há nenhuma razão a priori para que ela não
DANIEL DENNETT
pudesse ser um corpo físico e esses estados serem estados físi-
cos. Ficamos assim livres para investigar esta possibilidade e
buscar um tipo de entendimento dos estados psicológicos que tradução
nos capacitarão a formular teorias fisicalistas específicas à me- JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA
dida em que a neurologia for progredindo.

142
AGORA QUE GANHEI MEU PROCESSO, invocando a lei de liberdade
de informação, sinto-me à vontade para revelar, pela primeira
vez, um episódio curioso da minha vida que pode ser de inte-
resse não apenas para os pesquisadores da Filosofia da Mente,
da Inteligência Artificial e da Neurofisiologia como também
para o público em geral.
Há alguns anos atrás, fui procurado por agentes do Pentágono
que me pediram para realizar uma missão altamente perigosa e
secreta. Em colaboração com a NASA e Howard Hughes, o De-
partamento de Defesa estava gastando bilhões para desenvol-
ver um dispositivo supersônico de túnel subterrâneo, o STUD
(Supersonic Tunneling Underground Device). Este dispositivo
deveria cavar um túnel sob a terra, em grande velocidade, e
colocar uma ogiva atômica especialmente projetada "bem em
cima do depósito de mísseis soviéticos", como estava escrito
numa placa de bronze do Pentágono.
O problema foi que durante um teste preliminar, eles acaba-
ram colocando a ogiva uma milha abaixo de Tulsa, em
Oklahoma, e eles queriam que eu fosse até lá para recuperá-la.
"Por que eu?", perguntei. Bem, a missão envolvia algumas apli-
cações pioneiras de pesquisas sobre o cérebro, e eles tinham
ouvido falar do meu interesse por cérebros, e, é claro, de minha
curiosidade de Fausto, de minha grande coragem e assim por
diante. Bem, como poderia eu recusar? A dificuldade que levou
o Pentágono a me procurar era que o dispositivo que eles ti- fazer uma tentativa. Fui submetido a uma enorme série de exa-
nham pedido que eu recuperasse era altamente radioativo e mes de sangue, mapeamentos cerebrais, experimentos, entre-
poderia apresentar efeitos imprevisíveis. De acordo com ins- vistas e coisas do gênero. Eles anotaram minha autobiografia
trumentos de controle, alguma característica do dispositivo e nos seus mínimos detalhes, gravaram listas enfadonhas de mi-
sua complexa interação com bolsões de material geológico ti- nhas crenças, esperanças, medos e gostos. Eles até mesmo
nha produzido uma radiação que poderia causar graves danos listaram minhas músicas favoritas e me submeteram a uma sé-
ao tecido cerebral. Não se achou nenhuma maneira de proteger rie de sessões intensivas de psicanálise.
o cérebro desses raios mortíferos que, aparentemente, não cau- O dia da cirurgia finalmente chegou e, é claro, eu fui
savam nenhum dano a outros órgãos do corpo. Assim, tinha anestesiado e não me lembro nada da operação. Quando eu acor-
sido decidido que a pessoa a ser mandada para recuperar o dis- dei da anestesia, abri meus olhos, olhei em volta e formulei a
positivo deveria "separar-se de seu cérebro". Seu cérebro de- inevitável e tradicional pergunta-chavão: "Onde estou eu?" A
veria ser mantido num lugar seguro e executar suas funções enfermeira sorriu para mim. "Você está em Houston", ela disse,
normais de controle através de ondas de rádio. Eu iria me sub- e eu pensei que esta resposta ainda tinha grande chance de ser a
meter a uma cirurgia que removeria completamente meu cére- verdade, de uma maneira ou de outra. Ela me passou um espe-
bro, que seria então mantido vivo através de um sistema artifi- lho. Certifiquei-me da existência de pequenas antenas saindo
cial desenvolvido pelo Manned Spacecraft Center o f Houston. de seus suportes de titânio afixados no meu crânio.
Todos os fluxos entre inputs e outputs seriam re-estabelecidos "Acho que a operação foi um sucesso", eu disse. "Quero ir
por um par de transmissores de rádio micro-miniaturizados, um ver meu cérebro". Eles me levaram (eu estava um pouco tonto
deles ligado ao cérebro e o outro aos ligamentos nervosos do e cambaleante) por um longo corredor, até chegar ao laborató-
crânio vazio. Nenhuma informação seria perdida, todas as co- rio de manutenção artificial da vida. Uma salva de palmas par-
nexões seriam preservadas. No início, fui um pouco relutante. tiu do grupo de cientistas que estava reunido, e eu respondi
Será que isto iria realmente funcionar? Os neurocirurgiões de com um gesto que acreditei ser um cumprimento gracioso.Ainda
Houston logo me encorajaram: "Pense nisto - eles diziam- me sentindo tonto, ajudaram-me a chegar até a proveta. Olhei
1
como um mero alongamento dos nervos. Se o seu cérebro fos- através do vidro. Lá, flutuando em algo que pareciaginger ale
se deslocado cerca de uma polegada no interior de seu crânio, estava, inegavelmente, um cérebro humano, embora quase todo
isto não iria alterar ou prejudicar a sua mente. Nós simples- recoberto por circuitos elétricos, pequenos tubos de plástico,
mente, vamos tomar os nervos indefinidamente elásticos atra- eletrodos e toda uma parafernália. "Aquele é o meu?", eu per-
vés de sua ligação com ondas de rádio". guntei. "Aperte o botão de transmissão de output lá do lado da
Eles me mostraram as instalações do laboratório de Houston proveta, e confira você mesmo", disse o diretor do projeto. Movi
e eu vi a proveta borbulhante onde meu cérebro seria colocado, o botão para "DESLIGA" e imediatamente eu comecei a cair,
seu eu concordasse. Conheci o grande e brilhante grupo de neu-
rologistas, hematologistas, biofisicos e engenheiros elétricos. 1. Ginger ale é um tipo de refrigerante que foi muito popular nos anos 60 e
Após vários dias de discussões e demonstrações, concordei em 70. (N. do T.)

146 147
grogue e enjoado, nos braços dos técnicos até que um deles do laboratório", mas "aqui na proveta" sempre parecia uma es-
gentilmente recolocou o botão na posição "LIGA". Enquanto eu tranha sentença na minha mente, sem nenhum significado. Tentei
recuperava o equilibrio e a postura, pensei comigo mesmo: fechar meus olhos enquanto pensava nisto. Isto parecia ajudar,
''Bem, aqui estou eu sentado numa cadeira dobrável, olhando mas mesmo assim eu não conseguia afastar esta idéia, exceto
através de um pedaço de vidro, para o meu próprio cérebro... talvez por uma fração de segundo. Eu não podia ter certeza. A
Mas, um momento -disse para mim mesmo- não deveria eu descoberta de que eu não podia ter certeza era também inquie-
ter pensado: Aqui estou eu, suspenso num fluído borbulhante, tante. Como poderia eu saber onde era referido por "aqui" quan-
sendo olhado pelos meus próprios olhos?" Tentei elaborar este do eu pensava "aqui"? Poderia eu pensar que eu me referia a
último pensamento. Tentei projetá-lo para o tanque, oferecen- um lugar quando de fato eu me referia a outro? Eu não via como
do-o esperançosamente para meu cérebro, mas não consegui admitir isto a não ser desfazendo os pequenos limites que sepa-
fazer isto com qualquer convicção. Tentei novamente. "Aqui ram a intimidade entre uma pessoa e sua própria vida mental-
estou eu, Daniel Dennett, suspenso num fluido borbulhante, limites que teriam sobrevivido ao massacre de neurocientistas
sendo olhado pelos meus próprios olhos". Não, não funcionou. e de filósofos fisicalistas e behavioristas. Talvez eu fosse incor-
Era ainda mais inquietante e confuso. Sendo um filósofo de rigível acerca de onde eu me referia quando eu dizia "aqui".
firme convicção fisicalista, eu acreditava piamente que meus Mas nas circunstâncias presentes tudo indicava que havia duas
pensamentos estavam ocorrendo em algum lugar do meu cére- possibilidades: ou eu estava condenado a sistematicamente con-
bro: contudo, quando eu pensei "Aqui estou eu" onde o pensa- ceber falsos pensamentos dêiticos2 pela pura e simples força
mento ocorria para mim era aqui, fora da proveta, onde eu, de hábitos mentais ou a conceber que onde uma pessoa está (e
Dennett, estava de pé, olhando para meu cérebro. portanto onde seus pensamentos são identificados quando se
Tentei várias vezes pensar em mim mesmo como estando efetua uma análise semântica) não é necessariamente onde o
dentro da proveta, mas não deu certo. Tentei treinar-me fazen- seu cérebro, ou seja, o estofo fisico de sua alma, está. Estonte-
do alguns exercícios mentais. Pensei comigo mesmo: "O sol ado por tanta confusão, tentei me orientar usando um estratage-
está brilhando lá", cinco vezes, numa sucessão rápida, cada vez ma preferido pelos filósofos. Comecei por atribuir nomes às
me imaginando num lugar diferente: por ordem, o canto cmsas.
ensolarado do laboratório, depois, o gramado do jardim do hos- "Yorick", disse em voz alta para meu cérebro, "você é o meu
pital, Houston, Marte e Júpiter . Achei que eu tinha pouca difi- cérebro". O resto do meu corpo, sentado nesta cadeira, eu cha-
culdade em fazer meu "lá" saltar por todo o mapa celestial com marei de ''Hamlet". Assim, aqui estamos todos nós: Yorick é
suas referências adequadas. Eu podia enviar um "lá" num ins-
tante, para os mais distantes confms do espaço, e em seguida 2. Os dêiticos ou "indexicals" (no inglês) constituem os instrumentos
dirigir o próximo "lá" para o quadrante superior esquerdo de lingüísticos para efetuar a designação demonstrativa e não simbólica. Por
exemplo, os pronomes demonstrativos "este" e "aquele" quando aponto
uma sarda do meu braço. Por que eu estava tendo problema
para dois vasos que se encontram diante de mim permite-me distingüi-los
com "aqui"? "Aqui em Houston" funcionava bem, e assim era sem ter de descrevê-los ou referir-me a uma de suas características indivi-
com "aqui no laboratório" e até mesmo com "aqui nesta parte duais. (N. do T.)

148 149
meu cérebro, Hamlet é meu corpo, e eu sou Dennett. E então, fosse voar para a Califórnia, roubar um banco e ser preso. Em
onde estou eu? E quando eu penso: "onde estou eu?", onde qual estado eu seria processado: na Califórnia, onde o roubo
ocorre tal pensamento? Ele ocorre no meu cérebro, perambulan- aconteceu, ou no Texas, onde são mantidos os equipamentos
do pela proveta, ou exatamente aqui, entre minhas orelhas, onde especiais que conservam meu cérebro? Seria eu um criminoso
ele parece ocorrer? Ou em nenhum lugar? Suas coordenadas do Texas, manipulando, por controle remoto, um cúmplice da
temporais não parecem causar problemas, mas ele deve ter mesma espécie na Califórnia? Parecia possível que eu poderia
também coordenàdas espaciais. Comecei a fazer uma lista levar vantagem sobre a falta de uma decisão sobre essa questão
de alternativas: de jurisdição, embora, talvez este fosse considerado um crime
interestadual e portanto federal. De qualquer maneira, supo-
1. Onde vai Hamlet, Dennett vai também - Este princípio
nhamos que eu fosse condenado. Será que o estado da Califórnia
foi facilmente refutado recorrendo-se aos já conhecidos experi-
se satisfaria em jogar Hamlet na masmorra sabendo que Yorick
mentos mentais com transplantes de cérebros, tão apreciados
estava vivendo a boa vida e se banhando luxuriosamente nas
pelos filósofos . Se Tom e Dick trocam de cérebro, Tom é a pes-
águas do Texas? Será que o estado do Texas encarceraria Yorick
soa com o corpo que era de Dick - pode-se perguntar para ele,
deixando Hamlet livre para pegar o próximo navio para o Rio
e ele dirá ser Tom e contará os detalhes mais íntimos da autobi-
de Janeiro? Esta alternativa me era atraente. A não ser no caso
ografia de Tom. Era suficientemente claro, então, que meu cor-
de pena capital ou alguma outra punição cruel e pouco habitu-
po e eu poderíamos ser bons companheiros, mas não que , da
al, o estado seria obrigado a manter o sistema de manutenção
mesma maneira, eu poderia ser separado de meu cérebro. O
de vida artificial para Yorick, embora eles pudessem removê-lo
corolário que emerge tão claramente a partir de experimentos
de Houston para Leavenworth, e a não ser pela humilhação, eu
mentais é que numa operação de transplante de cérebro quer-se
não me incomodaria e me consideraria um homem livre nessas
o doador e não o receptor. É melhor chamar tal operação de
circunstâncias. Se o estado tem interesse em mostrar sua eficá-
transplante de corpo. Esta parece ser a verdade.
cia em prender pessoas em instituições, ele falharia ao tentar
2. Onde Yorick vai, Dennet vai também- Esta alternativa me prender colocando Yorick lá. Se isto for verdade, eu sugiro
não parece ser boa. Como poderia eu estar na proveta e não uma terceira alternativa.
estar indo para nenhum lugar, quando eu estava fora da prove-
3 - Dennett está onde quer que ele pense estar - Generali-
ta, olhando para ela e começando a fazer planos secretos de
zando, isto corresponde a seguinte afirmação: num dado tempo
retomar para o meu quarto para um almoço substancioso? Isto
uma pessoa tem um ponto de vista e a localização do ponto de
significaria escamotear a questão, mas mesmo assim parecia
vista (que é determinada internamente pelo conteúdo do ponto
que, com isto, se chegava a algo importante. Na procura de
de vista) é também a localização da pessoa.
algum apoio para minha intuição topei com um argumento
Tal proposição também me deixa um pouco perplexo, mas
legalista que poderia ter sido considerado interessante por Locke.
ela me parece um passo na direção correta. O único problema
Suponhamos, eu argumentava comigo mesmo, que eu agora
era que ela parecia nos colocar numa situação pouco confiável,

150 151
do tipo "cara você ganha e coroa você perde" no que diz respei- estivessem numa câmara isolada que eles estão observando.
to a localização. Não estivera eu freqüentemente errado acerca Através de esforço mental, eles conseguem mudar seu ponto de
de onde eu estava, ou pelo menos freqüentemente incerto? Não vista para frente e para trás, como se estivessem fazendo um
se pode ficar perdido? Claro que perder-se geograficamente não cubo de Necker transparente ou fazendo um desenho de Escher
é a única maneira de perder-se. Se alguém se perde num bosque mudar de orientação diante dos olhos de alguém. Parece extra-
esse alguém pode tentar encontrar um caminho, com o consolo vagante supor que ao fazer essa pequena ginástica mental eles
de que pelo menos sabia onde estava: estava bem aqui nos ar- estejam se transportando para a frente e para trás.
redores conhecidos de seu próprio corpo. Talvez neste caso não O exemplo dessas pessoas me trouxe esperança. Se eu esti-
fosse necessário fazer um esforço de atenção muito grande. vesse de fato na proveta, a despeito de minhas intuições, eu
Contudo, há enrascadas muito piores que podemos imaginar, e poderia ser capaz de me treinar para adotar tal ponto de vista,
eu não estaria certo de não estar numa dessas situações nes- mesmo que como um hábito. Eu deveria "ser um habitante" de
te momento. imagens de mim mesmo confortavelmente flutuando em mi-
Ponto de vista certamente tem a ver com localização pesso- nha proveta, emitindo ordens para aquele corpo familiar lá fora.
al, mas esta é uma noção pouco clara. É óbvio que o conteúdo Eu refleti que a facilidade ou a dificuldade desta tarefa era,
do ponto de vista de alguém não coincide nem é determinado presumivelmente, independente da verdade acerca da localiza-
pelo conteúdo das crenças ou pensamentos dessa pessoa. Por ção do cérebro de uma pessoa. Se eu tivesse praticado antes da
exemplo, o que dizer acerca do ponto de vista de uma pessoa operação poderia agora estar achando que isto seria minha se-
que assiste Cinerama e que grita e se contorce na sua cadeira na gunda natureza. Você poderia tentar agora exercer esta ilusão
medida que o carrinho da montanha russa desliza rapidamente de ótica. Imagine que você tenha escrito uma carta inflamada,
e faz com que ela perca a noção real das distâncias? Terá ela se que foi publicada no Times, e que resultou na decisão do go-
esquecido que está sã e salva, sentada numa cadeira do auditó- verno de colocar o seu cérebro por um período probatório de
rio? Sobre isto inclino-me a dizer que a pessoa está três anos na sua temida Clínica Cerebral, em Bethesda,
experienciando uma mudança ilusória de ponto de vista. Em Maryland. Claro que ao seu corpo é concedida a liberdade de
outros casos, minha inclinação para chamar tais mudanças de ganhar um salário e gerar uma renda sobre a qual recairão im-
ilusórias seria menor. Os operadores de laboratórios e de fábri- postos. Neste momento, contudo, seu corpo está sentado num
cas que manipulam materiais perigosos ao se utilizar de braços auditório ouvindo um relato peculiar de D. Dennett acerca de
e de mãos mecânicas controladas por feedback sofrem uma uma experiência semelhante. Tente isto. Pense em Bethesda e
mudança de ponto de vista que é mais nítida e muito mais acen- depois volte seus olhos demoradamente para seu corpo, tão dis-
tuada do que qualquer coisa que o Cinerama possa provocar. tante, embora parecendo estar tão próximo. É somente através
Eles podem sentir o peso e o jeito escorregadio dos frascos que de um esforço a grande distância (seu? do governo?) que você
eles manipulam com seus dedos metálicos. Eles sabem perfei- pode controlar seu impulso de fazer suas mãos baterem pal-
tamente bem onde eles estão, não geram falsas crenças através mas, num aplauso educado, antes de pilotar o velho corpo para
de sua experiência, e apesar disto tudo se passa como se eles a sala de estar e tomar um merecido copo de sherry no salão. A

152 153
tarefa para a imaginação é certamente dificil, mas se você atin- similares, eu tomo aspirina oralmente para uma distensão no
gir seu objetivo, os resultados poderão ser consoladores. pulso, mas se a dor persiste, eu peço a Houston para me minis-
De qualquer forma, lá estava eu em Houston, perdido no trar codeína in vitro. Nas ocasiões em que fico doente a conta
pensamento, (como alguém poderia dizer), mas não por muito de telefone pode ser astronômica.
tempo. Minhas especulações foram logo interrompidas pelos Mas vamos voltar para minha aventura. Finalmente, tanto
médicos de Houston, que queriam testar meu novo sistema ner- os médicos quanto eu estávamos convencidos de que eu estava
voso protético antes de me mandarem para aquela missão arris- pronto para iniciar minha missão subterrânea. Assim, deixei
cada. Como eu disse antes, eu estava um pouco tonto no come- meu cérebro em Houston e fui de helicóptero para Tulsa. Bem,
ço, e isto não era surpreendente, embora eu logo tivesse me era assim que as coisas pareciam ser. É dessa maneira que eu as
habituado às novas circunstâncias (que eram, afinal de contas, descrevia, da perspectiva de minha cabeça. Durante a viagem
quase indistinguíveis de minhas antigas circunstâncias). Mi- refleti mais um pouco acerca de minha ansiedade inicial e che-
nha acomodação não era perfeita, e até então eu estava ainda guei a conclusão de que minhas especulações no período pós-
sendo incomodado por pequenas dificuldades de coordenação. operatório tinham sido marcadas pelo pânico. A questão não
A velocidade da luz é muito grande, apesar de fmita, e a medi- era tão estranha ou metafísica como eu tinha suposto até então.
da em que meu corpo e meu cérebro se separavam cada vez Onde estava eu? Certamente em dois lugares: dentro da prove-
mais, a delicada interação de meu sistema de feedback sofria ta e fora dela. Da mesma maneira que alguém pode estar com
desarranjos, por causa das diferenças nos intervalos de tempo. um pé em Connecticut e outro em Rhode Island, eu estava em
Da mesma maneira que alguém fica quase incapaz de falar na dois lugares ao mesmo tempo. Eu tinha me tomado um dos
medida em que ouvir sua própria voz ou o eco de sua própria indivíduos mais espalhados de que se ouvira falar. Quanto mais
voz ocorrer com atraso no tempo, assim por exemplo, eu tam- eu pensava sobre esta resposta, mais ela me parecia obviamen-
bém fico virtualmente incapaz de seguir um objeto em movi- te verdadeira. Mas, estranhamente, quanto mais ela parecia ver-
mento com os meus olhos quando meu cérebro e meu corpo dadeira, menos importante parecia ser a questão para a qual
estão separados a uma distância de umas poucas milhas. Sob tinha encontrado resposta. Um destino triste, mas não incomum
muitos aspectos, este defeito é dificilmente detectável embora para uma questão filosófica. Claro que a resposta não me satis-
eu não possa mais chutar uma bola imediatamente, quando ela fazia completamente. Havia algumas interrogações para as quais
se aproxima de mim. É claro que há algumas compensações. eu gostaria de ter uma resposta, e elas não eram "Onde estão
Embora bebidas alcoólicas adquiram um sabor melhor do que todas as minhas partes?" nem "Qual meu ponto de vista habitu-
nunca, e aqueçam minha goela ao mesmo tempo que corroem al?" ou pelo menos me parecia que havia tal questionamento.
meu fígado, posso bebê-las a vontade, o quanto eu quiser sem Pois parecia inegável que em algum sentido EU e não apenas a
me sentir nem um pouco inebriado, uma curiosidade que al- maior parte de mim~ estava descendo para o interior da terra,
guns de meus amigos mais próximos devem ter notado (embo- sob Tulsa, para procurar uma ogiva atômica.
ra eu ocasionalmente tenha simulado embriaguez para não cha- Quando eu encontrei a ogiva, senti-me feliz pelo fato de ter
mar muito a atenção para minha situação peculiar). Por razões deixado meu cérebro em outro lugar, pois o ponteiro do conta-

154 155
dor Geiger especialmente construído que eu levava, estava quase cisei fazer algum esforço para manter essa ilusão. Pois certa-
estourando. Chamei Houston através de meu rádio, e informei mente era uma ilusão supor que eu estava em Oklahoma: eu
a central de controle de operações de minha posição e de meus tinha perdido qualquer contato com aquele corpo.
progressos. Em resposta, eles me deram instruções para des- Ocorreu-me então, num desses momentos de revelação so-
mantelar a ogiva baseados em minhas observações locais. Eu bre os quais é preciso pensar com alguma suspeita, que eu tinha
tinha iniciado meu trabalho com o maçarico quando de repente topado com uma impressionante demonstração da imaterialidade
algo terrível ocorreu. Fiquei totalmente sem comunicação. De da alma baseada em princípios e premissas fisicalistas. Pois à
início pensei que meus fones de ouvido tivessem quebrado, mas medida em que o último sinal de rádio entre Tulsa e Houston
quando bati no meu capacete, não ouvi nada. Aparentemente desapareceu, não tinha eu mudado de Tulsa para Houston na
os transmissores auditivos tinham pifado. Eu não podia mais velocidade da luz? E por acaso não tinha eu conseguido fazer
ouvir Houston, nem minha própria voz, mas eu podia falar, e isto sem nenhum acréscimo de massa? O que se moveu de A
assim, eu comecei a contar o que tinha acontecido. Em suma, para B em tal velocidade era certamente eu, ou, de alguma
eu sabia que havia alguma outra coisa que estava indo mal. maneira, minha mente ou minha alma - o centro imaterial de
Meu aparato vocal tinha ficado paralisado. Então minha mão meu ser e a sede de minha consciência. Meu ponto de vista
direita ficou mole- um outro transmissor tinha quebrado. Eu tinha, de alguma maneira, ficado para trás, mas eu já tinha no-
estava realmente numa encrenca muito grande. Mas coisa pior tado a influência indireta do ponto de vista sobre a localização
estava por vir. Depois de mais alguns minutos fiquei cego. pessoal. Eu não podia entender como um filósofo fisicalista
Amaldiçoei minha sorte, e amaldiçoei os cientistas que me co- podia discordar disto, a não ser tomando o horripilante e con-
locaram diante de perigo tão grave. Lá estava eu: surdo, mudo tra-intuitivo caminho de banir qualquer tipo de discurso sobre
e cego, num buraco radioativo mais de uma milha abaixo de pessoas. Mesmo assim a noção de pessoa estava tão entranhada na
Tulsa. Por fim, minha ligação com meu cérebro, por ondas de visão de mundo de todos- ou pelo menos isto era o que me pare-
radio, foi interrompida, e eu estava subitamente diante de um cia - que qualquer negação desta noção seria tão pouco convin-
novo e ainda mais chocante problema: enquanto no instante cente e tão pouco engenhosa como a negação cartesiana "non sum".
anterior eu tinha sido enterrado vivo em Oklahoma, agora eu A alegria da descoberta filosófica sobreveio a mim à medi-
estava desencamado em Houston. Após alguns minutos de an- da em que horas e minutos de desesperança acerca de minha
siedade, abateu-se sobre mim a idéia de que meu pobre corpo situação ficavam claros. Ondas de pânico e até mesmo de náu-
jazia centenas de milhas à distância, com o coração pulsando e sea se apossaram de mim, tomadas ainda mais horríveis pela
os pulmões respirando, mas por outro lado, tão morto quanto o ausência de uma fenomenologia corporal. Não havia fluxo de
corpo de qualquer doador num transplante de coração, estava adrenalina latejando nos braços, eu não sentia o coração dispa-
meu crânio com um sistema eletrônico quebrado, inútil. A mu- rar nem havia salivação premonitória. A uma certa altura senti
dança de perspectiva que antes me parecia quase impossível, uma sensação de afundamento nas minhas entranhas e isto me
agora era bastante natural. Embora eu pudesse me pensar como causou a ilusão momentânea que me fez ter a falsa crença de
estando de volta para meu corpo no túnel abaixo de Tulsa, pre- que eu estava sofrendo o reverso do processo que tinha me dei-

156 157
xado nesta situação- uma gradual reencarnação. Mas o isola- rência de inteligência brilhante e caráter resoluto, mas certa-
mento e o caráter único daquela pontada logo me convenceram mente era um novo rosto.Algumas auto-explorações de caráter
de que aquele era simplesmente o primeiro flagelo da alucina- íntimo confirmaram que aquele era um novo corpo e o diretor
ção com corpos fantasmas que eu, como qualquer vítima de do projeto confirmou minhas conclusões ~ Ele não forneceu ne-
amputação, provavelmente sofreria. nhuma informação acerca da história passada do meu novo corpo
Meu humor estava caótico. De um lado, eu estava aceso e e eu decidi (sabiamente, quando olho em retrospectiva) não pedir
entusiasmado com minha descoberta filosófica e forçando meu nenhuma. Como vários ftlósofos pouco familiares com meu
cérebro (uma das poucas coisas familiares que eu ainda podia suplício especularam mais recentemente, a aquisição de um novo
fazer) a imaginar como eu comunicaria minha descoberta para corpo deixa a pessoa intacta. E após um período de ajuste a
jornais e revistas especializadas, enquanto, por outro lado, eu uma nova voz, novas forças musculares, fraquezas e etc. a per-
me sentia amargo, solitário, cheio de horror e incerteza. Feliz- sonalidade de alguém é de uma maneira geral também preser-
mente este estado não durou muito, pois a equipe científica me vada. Mudanças mais acentuadas de personalidade foram ob-
sedou, colocando-me num sono sem sonhos, do qual eu acor- servadas regularmente em pessoas que se submeteram a cirur-
dei ouvindo com incrível fidelidade a abertura do meu trio de gia plástica ostensiva e em operações de troca de sexo, mas
piano favorito, tocando Brahms. Era para isto que eles queriam creio que ninguém contestaria o fato de que a pessoa sobrevive
ter uma lista das minhas músicas preferidas! Não levou muito a tais casos. De qualquer maneira, eu logo me acomodei ao
tempo para perceber que eu estava ouvindo música sem ter ou- meu novo corpo ao ponto de me tomar incapaz de registrar
vidos. O output do stereo estava sendo colocado em mim atra- suas novidades em minha consciência e até mesmo em minha
vés de alguma sofisticada retificação do circuito, diretamente memória. Minha visão no espelho logo se tomou completamen-
no meu nervo auditivo. Eu estava "dopado" com Brahms, uma te familiar. Nesta imagem ainda havia antenas, e assim eu não
experiência inesquecível para qualquer fanático por música. No fiquei surpreso ao saber que meu cérebro não tinha sido removi-
fim da gravação não foi surpresa escutar a voz do diretor do do de seu habitat no laboratório de manutenção artificial da vida.
projeto reaparecendo e falando num microfone que agora era Eu decidi que o velho e bom Yorick merecia uma visita. Eu
meu ouvido protético. Ele confirmou minha análise do que ti- e meu novo corpo, que poderemos chamar de Fortinbras fomos
nha saído errado e me assegurou que já estavam tomando pro- ao laboratório para receber mais uma rodada de aplausos dos
vidências para me reencarnar. O diretor científico não entrou técnicos, que estavam, é claro, se congratulando a si próprios e
em detalhes e, após mais algumas músicas, eu estava caindo no não a mim. Uma vez mais parei defronte da proveta e contem-
sono outra vez. Meu sono durou, eu soube mais tarde, quase · plei o pobre Yorick, e numa atitude extravagante, mais uma vez
um ano, e quando acordei encontrei meus sentidos totalmente empurrei o interruptor para a posição DESLIGA. Imaginem
recuperados. Contudo, quando olhei no espelho senti-me um minha surpresa quando nada anormal aconteceu. Não senti que
pouco amedrontado ao ver um rosto pouco familiar. Estava com ia desmaiar, nem náusea, nem nenhuma mudança perceptível.
a barba crescida e um pouco mais pesada, ainda refletindo al- Um técnico correu a colocar o interruptor na posição LIGA,
guma semelhança com minha antiga face e com a mesma apa- mas mesmo assim eu não senti nada. Exigi uma explicação,

158 159
que o diretor do projeto se apressou em dar. Parece que antes de para Hubert. O interruptor estava na posição H e eles me expli-
eu ser operado, eles tinham construído um computador que era caram que se quisesse, eu podia mudá-lo de volta para B. Com
uma réplica de meu cérebro, reproduzindo toda a estrutura de o coração nas mãos (e com o cérebro na proveta), eu decidi
processamento de informação e a velocidade computacional de mudar o interruptor para B. Nada aconteceu. Só um clique, foi-
meu cérebro- tudo foi reproduzido num programa computacio- tudo. Para testar o que diziam, e com o interruptor principal
nal gigante. Após a operação - mas antes deles ousarem me agora na posição B, apertei o transmissor de outputs de Yorick
mandar para minha missão em Oklahoma - eles rodaram este na proveta. Comecei a desmaiar. Quando o interruptor foi
sistema computacional e Yorick lado a lado. Os sinais de rádio recolocado na posição anterior e eu recuperei a consciência (por
que saiam de Hamlet foram simultaneamente enviados para os assim dizer), eu continuei a brincar com o interruptor principal,
receptores de Yorick e para a placa de inputs do computador. E empurrando-o para a frente e para trás. Descobri que com exce-
os outputs de Yorick não eram apenas enviados de volta para ção do momento do "click" eu não podia detectar nenhum tipo
Hamlet , meu corpo, eles eram gravados e comparados com os de diferença. Eu podia mudar o interruptor no meio de uma
outputs simultâneos do programa de computador, que era cha- sentença, e assim a sentença que eu tinha começado a falar sob
mado de Hubert-por razões obscuras para mim. Por dias e até o controle de Yorick era completada, sem nenhum intervalo ou
por semanas, os outputs eram idênticos e sincronizados, o que, dificuldade de qualquer espécie sob o controle de Hubert. Eu
é claro, não provava que eles tinham conseguido copiar a estru- tinha um cérebro sobressalente, um dispositivo protético que
tura funciónal do cérebro, mas os resultados empíricos eram, poderia algum dia manter meu equilíbrio, no caso de algum
de qualquer forma, muito encorajadores. tropeção desajeitado de Yorick. Alternativamente, eu poderia
Os inputs de Hubert, e portanto sua atividade, foram manti- deixar Yorick como sobressalente e usar Hubert. Não parecia
dos em paralelo com os de Yorick durante os dias em que eu fazer nenhuma diferença qual deles eu escolhia, pois o desgas-
estava desencamado. E agora, para demonstrar isto, eles de fato te e a fadiga do meu corpo não tinham qualquer efeito debilitante
ligaram o interruptor mestre que colocava Hubert pela primeira sobre nenhum dos cérebros, estivesse ele de fato causando os
vez em linha direta para controle do meu corpo- não Hamlet , movimentos de meu corpo ou estivesse ele apenas produzindo
mas Fortinbras . (Eu soube que Hamlet nunca mais foi retirado seus outputs por aí afora.
de sua tumba subterrânea e podia agora ser considerado como O único aspecto verdadeiramente inquietante deste novo
algo que voltou a ser pó. Na lápide de meu túmulo ainda está a aperfeiçoamento era a possibilidade, da qual logo me apercebi,
grandiosa carcaça do dispositivo abandonado, com a palavra de alguém separar o sobressalente - Hubert ou Yorick, confor-
STUD resplandecente e escrita com letras enormes - algo que me o caso - de Fortinbras e colocá-lo num outro corpo-algum
provavelmente dará aos arqueólogos do próximo século uma Johnny Rosencrantz ou Guildenstern. Então haveria duas pes-
curiosa intuição acerca dos rituais fúnebres de seus ancestrais). soas, isto ficava claro. Uma delas seria uma espécie de super-
Os técnicos do laboratório logo me mostraram o interruptor irmão gêmeo. Se houvesse dois corpos, um sob o controle de
principal, que tinha duas posições, uma B para Cérebro (eles Hubert e outro sendo controlado por Yorick, então qual deles o
não sabiam que o nome de meu cérebro era Yorick), e outra H mundo reconheceria como sendo o verdadeiro Dennett? E, seja

160 161
qual fosse o que o mundo decidisse, qual deles seria eu? Seria sair para uma vida de aventuras e de viagens- sentindo falta da
eu aquele com o cérebro de Yorick, em virtude da prioridade família, é claro, mas feliz por saber que o outro Dennett cuida-
causal de Yorick e em virtude da primeira relação íntima com o ria do lar. Eu podia ser fiel e adúltero ao mesmo tempo. Eu
corpo original de Dennett, Hamlet? Isso pareceria um pouco poderia até mesmo me comear- sem falar de outras possibili-
legalista, algo que recenderia demais ao arbítrio da consangüini- dades mais lúgubres que meus colegas tentariam impor sobre
dade e à idéia de posse legal para ser convincente a nível meta- minha imaginação já tão carregada. Mas meu suplício em
físico . Pois suponhamos que antes da entrada do segundo cor- Oklahoma (ou foi em Houston?) tomou-se menos aventureiro
po em cena, eu tivesse mantido Yorick como sobressalente por e por isso eu desisti dessa oportunidade que me estava sendo
anos e que eu tivesse deixado os outputs de Hubert dirigir o oferecida (embora, é claro, eu nunca estive certo de que ela
meu corpo- ou seja Fortinbras- todo aquele tempo. O casal estava sendo oferecida para mim).
Hubert-Fortinbras pareceria então por usucapião (para comba- Havia uma outra perspectiva ainda mais desagradável: que
ter uma intuição legalista com outra) ser o verdadeiro Dennett o sobressalente, Hubert ou Yorick conforme fosse o caso, fosse
e o herdeiro legal de tudo aquilo que era de Dennett. Esta era, separado de qualquer input de Fortinbras e mantido desse jeito,
com certeza, uma questão interessante mas não tão premente isto é, separado. Então, como no outro caso, haveria dois Den-
quanto uma outra que me inquietava. Minha intuição mais for- netts, ou pelo menos dois requerentes do mesmo nome e pos-
te era que em tal caso Eu sobreviveria à medida em que qual- ses, um incorporado em Fortinbras e o outro, triste e miserável,
quer uma das duplas cérebro/corpo permanecesse intacta, mas sem corpo. O egoísmo e o altruísmo fizeram-me tomar provi-
eu mesmo tinha sentimentos confusos acerca de se eu deveria dências para que isto não acontecesse. Assim eu perguntei que
desejar que ambos sobrevivessem. medidas deveriam ser tomadas para me certificar que ninguém
Discuti minhas preocupações com os técnicos e com o coor- nunca poderia se intrometer nas conexões do receptor ou assu-
denador do projeto. A perspectiva de haver dois Dennetts me mir o controle do interruptor sem meu (nosso? não, meu) con-
horrorizava sobretudo por razões sociais. Eu não gostaria de sentimento. Uma vez que eu não desejava passar minha vida
ser meu próprio rival na disputa pelo afeto de minha esposa, montando guarda no equipamento em Houston foi decidido por
nem me agradava a perspectiva de dois Dennetts dividindo meu ambas as partes que todas as conexões eletrônicas no laborató-
modesto salário de professor. Ainda mais vertiginosa e desa- rio seriam mantidas trancadas. Tanto aqueles que controlavam
gradável, contudo, era a idéia de saber demais acerca de uma o sistema de manutenção artificial de vida para Yorick como
outra pessoa, o mesmo ocorrendo dele em relação a mim. Como aqueles que controlavam o fornecimento de energia para Hubert
poderíamos nos encarar mutuamente? Meus colegas no labora- seriam guardados com dispositivos a prova de falhas e eu leva-
tório argumentariam que eu estava ignorando o lado positivo ria comigo o único interruptor-mestre, equipado com controle
do assunto. Não havia uma porção de coisas que eu gostaria de remoto de rádio, onde quer que eu fosse. Eu carrego isso amar-
fazer, mas pelo fato de ser somente uma pessoa eu me tomava rado em volta de minha cintura e- espere um momento - aqui
incapaz de realizar? Agora um Dennett podia ficar em casa e está ele. Uma vez por mês eu inspeciono o equipamento, tro-
ser o professor e o homem de família, enquanto o outro poderia cando os canais. Faço isso somente na presença de amigos, é

162 163
claro, pois se o outro canal estiver, que Deus não permita, ou ilusão de que eu estava controlando meu corpo- nosso corpo-
desligado ou ocupado com alguma outra coisa, haveria alguém foi completamente dissipada. Não havia nada que eu pudesse
que defenderia meus interesses e o mudaria, trazendo-me de fazer - eu não podia chamar você. VOCÊ NEM SABIA QUE
volta do vazio. Pois conquanto eu ~udesse sentir, ver, ouvir e EU EXISTIA! É o mesmo que ser carregado dentro de uma
sentir seja lá o que for que faz cair meu corpo após uma mudan- jaula ou estar possesso- ouvindo minha própria voz dizer coi-
ça no interruptor, eu seria incapaz de controlá-lo. Por falar nis- sas que eu não queria dizer, olhando com frustração minhas
so, as duas posições do interruptor estão propositadamente sem mãos fazerem coisas que eu não tinha a menor intenção de fa-
marca, e assim eu nunca tenho a menor idéia de se eu estou zer. Você se coçava, mas não da maneira que eu o teria feito e
passando de Hubert paraYorick ou vice-versa. (Alguns de vocês você me manteve acordado, tossindo e se revirando. Eu estava
podem pensar que neste caso eu realmente não sei quem eu totalmente exaurido, à beira de um colapso nervoso, carregado
sou, e muito menos onde eu estou, mas tais reflexões não têm por aí sem defesa, seguindo todo o seu roteiro infernal de ativi-
mais a menor influência sobre minha Dennetticidade essencial, dades, mantido vivo apenas pelo conhecimento de que algum
no meu próprio sentir quem eu sou. Se é verdade que num sen- dia você viraria o interruptor.
tido em não sei quem eu sou, então essa é uma outra verdade Agora é sua vez, mas pelo menos você terá o conforto de
ftlosófica de significado espantoso). saber que eu sei que você está lá dentro. Como uma mulher
De qualquer maneira, até agora todas as vezes que eu mexi grávida estou comendo - ou pelo menos experimentando co-
no interruptor, nada aconteceu. Por isso, vamos fazer uma pe- mida, cheirando, olhando- por dois agora, e eu tentarei facili-
quena tentativa... tar as coisas para você. Não se preocupe. Assim que o colóquio
GRAÇAS A DEUS, EU PENSEI QUE VOCÊ NUNCA MAIS FOSSE VIRAR O terminar, você e eu vamos voar para Houston e veremos o que
INTERRUPTOR; você não pode imaginar como foram horríveis estas pode ser feito para arranjar para um de nós um outro corpo.
duas últimas semanas - mas agora você sabe, é a sua vez de ir Você pode ter um corpo de mulher - e seu corpo poderia ser da
para o purgatório. Quanto tempo estive esperando por este cor que você quiser. Mas vamos pensar bem. Eu te digo uma
momento! Você sabe, cerca de duas semanas atrás- descul- coisa: para ser justo, se nós dois queremos este corpo, eu pro-
pem-me senhoras e senhores, mas eu tenho que explicar isto meto deixar o coordenador jogar uma moeda para estabelecer
para meu ... hum, irmão, creio que poderíamos dizer, mas ele já quem de nós fica com este, e quem tem que escolher um novo
lhes contou os fatos, assim os senhores entenderão. Cerca de corpo. Isso vai garantir uma decisão justa, não é? De qualquer
duas semanas atrás, nossos dois cérebros saíram um pouco de forma, eu cuidarei de você, eu prometo. Estas pessoas são mi-
sincronia. Eu não sei, mais do que vocês, se o meu cérebro é nhas testemunhas.
agora Hubert ou Yorick, mas de qualquer maneira, os dois cére- Senhoras e senhores, esta comunicação que acabam de ou-
bros se separaram, e, é claro, uma vez que o processo se iniciou vir não é exatamente a comunicação que eu teria feito, mas eu
foi tomando vulto pois eu estava num estado receptivo ligeira- lhes asseguro que tudo o que foi dito era perfeitamente verda-
mente diferente com relação ao input que nós dois recebemos, deiro. E agora, com licença, acho que eu - ou nós - gostaria-
uma diferença que logo se ampliou. Em nenhum momento a mos de sentar.

164 165
SoBRE os TRADuToREs

CLÉA REGINA DE ÜUVEIRA RmEIRO é formada em Filosofia pela


UNESP (1984) e é mestranda em Filosofia pela PUC-SP. Atu-
almente é professora no Departamento de Filosofia da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (MG).

FÁBIO DE CARVALHO HANSEM é formado em Ciência da Compu-


tação pela USP-S. Carlos, mestre em Filosofia pela Universi-
dade Federal de S. Carlos (1995) e doutorando em Filosofia na
USP-SP.

JoÃo DE FERNANDES TEIXEIRA é bacharel em Filosofia pela USP-


SP, mestre em Filosofia pela UNICAMP e PhD pela University
ofEssex, Inglaterra. Foi professor visitante no Centro de Estu-
dos Cognitivos da Tufts University (USA) a convite do Prof.
Daniel C. Dennett (1995). É autor de O que é Inteligência Arti-
ficial, na Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense (1990)
O que é Filosofia da Mente (1994, na mesma coleção) e Filo-
sofia da Mente e Inteligência Artificial na Coleção CLE-
UNICAMP (1996). Atualmente é professor no Departamento
de Filosofia da Universidade Federal de S. Carlos e colabora-
dor pleno do Grupo de Ciência Cognitiva e Psicobiologia do
Instituto de Estudos Avançados da USP-SP.

JOSÉ ANTONIO FINOCCHIO, bacharel em Ciência da Computação


pela Universidade Federal de S. Carlos, iniciou seu curso de
mestrado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da mes-
ma universidade. Faleceu em dezembro de 1989.

RICHARD T. SIMANKE é bacharel em Psicologia pela Universida-


de Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de S. Carlos e doutorando na USP-SP.
Desde 1994 é professor assistente no Departamento de Filoso-
fia da Universidade Federal de S. Carlos.

Você também pode gostar