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2010v16n3p620
Artigo Original
Resumo: A partir da observação participante de um grupo de capoeira na cidade do Natal/ RN, busca-se
evidenciar nuanças de uma racionalidade tatuada no corpo e no gesto, a partir do jogo da capoeira. Para
tanto, aplicamos o método da fenomenologia proposta por Merleau-Ponty, a partir da sistematização de
notas visuais como ferramenta metodológica para a observação do gesto e do corpo no jogo da capoeira.
São apresentados argumentos a partir da intencionalidade da experiência do corpo na capoeira, que dizem
do humano, da sociedade e da cultura, na medida em que o sentido da gestualidade e do corpo são
tecidos nas ações mútuas, estabelecidas e reconhecidas pelos sujeitos.
Palavras-chave: Corpo. Gesto. Capoeira.
compartilhado entre os sujeitos que compõem desenvolvida por mestre Bimba, redimensiona
aquele determinado grupo social. Um lugar em elementos do sistema cultural da capoeira, como
que os sujeitos buscam laços de pertencimentos, por exemplo, a prática da capoeira em espaços
assinalando um processo de reorganização pré-definidos, como as academia de capoeira.
social, marcado pela reinserção dos
Ressalta-se ainda o fato de que é nesse
desenraizados, na busca do estabelecimento de
momento que a prática da capoeira sai das ruas e
laços sociais.
passa a ocupar locais socialmente destinados
para aquela técnica corporal. Sem dúvida a busca
Notas sobre o espaço físico e social
por construir uma nova compreensão em torno da
Canarinho da Alemanha quem matou meu curió/
Eu jogo da capoeira da Bahia a Maceió capoeira e de seus praticantes, fomentado pelo
discurso populista e nacionalista de Getúlio
Considerando a categoria do espaço físico e
Vargas em seu projeto de modernização cultural,
social utilizado para a afirmação da capoeira na
considero que a esportivização da capoeira, do
rede de relações sociais, é significativo observar
ponto de vista histórico, contribuiu para essa
nas notas visuais os locais onde as rodas e
mudança territorial da prática da capoeira, que se
encontros de capoeira têm sido realizados
afastou cada vez mais das ruas, dos vícios e das
ultimamente. É possível perceber a inserção da
confusões, para afirmá-la enquanto “esporte
capoeira em novas localidades de convivência.
nacional”.
Nesse sentido, é interessante destacar que até
meados da década de mil novecentos e trinta, a Notas sobre as técnicas e as
prática da capoeira era proibida e reprimida por dinâmicas de movimento do corpo
força legal. Sua expressão era típica das Jogo de dentro é jogo de fora/
periferias da cidade. Hoje em dia, as mudanças Joga menino essa jogo de mola
são significativas no que tange sua visibilidade
No que se refere à técnica de movimento do
social, sendo praticada e divulgada nos mais
corpo enquanto categoria de análise nas notas
diferentes espaços sociais, como academias de
visuais, o repertório de movimentos utilizados nos
ginásticas, ginásios esportivos, clubes, centros
jogo de corpo na rodas de capoeira, identifica-se
culturais, escolas, universidades, entre outros. Há
uma variedade, uma multiplicidade de
aqui um deslocamento significativo do ponto de
combinações. A seguir apresentamos, de
vista físico e simbólico. A capoeira desloca-se do
maneira sintética, a recorrência dos gestos
espaço público para o privado. Das ruas e da
apresentados nas rodas observadas:
periferia para academias de ginástica, para
espaços reservados. Nas notas visuais pode-se angola: aú; aú com cabeça no chão; rabo
de arraria; benção; bananeira; passagem
perceber a inserção do grupo de capoeira lateral; queda de rim; parada de mão;
investigado, na cidade do Natal/RN, em praias, cocorinha; chamada de angola; rolê;
praças, centros comunitários, hotéis, áreas de carneirinho; macaquinho; currupio; tesoura;
lazer, shoppings, casas de shows, academias de transformação; rasteira; cabeçada; volta ao
ginástica, bem como o desenvolvimento de mundo; aranha.
regional: aú; aú de frente; aú de costas;
trabalhos mais sistemáticos em escolas e
aú voltando; aú batendo; aú com cabeça no
universidades. chão; arrependido; armada, queixada, meia
lua de frente; meia lua de compasso; salto
É interessante perceber, ao considerar a
mortal, grupada, parafuso, martelo rodado;
história social da capoeira, que sua visibilidade, “s” dobrado; bananeira; rasteira; parafuso;
bem como os diferentes espaços por ela peão com braços; peão com cabeça; benção;
ocupados, tem variado de acordo com dinâmicas martelo; galopante; rolê; negativa; parafuso
e interesses sociais. A presença da capoeira nas com os braços, com a cabeça; queda de rim;
macaco; carneirinho; transformação;
ruas, praças e largos das cidades de Salvador,
ponteira.
Rio de Janeiro e Recife, nos séculos XIX e início miudinho: suingue; volta por cima; rabo
do século XX, amplia-se em todo o território de arraia; currupio; aú; tesoura; negativa de
nacional. Na década de mil novecentos e trinta a angola; escorpião; cabeçada.
capoeira passa a ocupar espaços próprios para
No sentido de estabelecer possibilidades de
seu treinamento e a realização de rodas e
interpretação do corpo em movimento, a partir
batizados. A Luta Regional Baiana, mais tarde
das técnicas acima destacadas, distante da
denominada capoeira regional, sistematizada e
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J. C. N. S. N. Dias
pretensão de uma análise que esgote as mais curtos e quebrados, numa flexibilização do
possibilidades de percepção do movimento, gesto, bem como a ênfase no direcionamento
destacamos para na produção desse artigo as para o chão. Homens gigantes que ficam
dinâmicas de movimento do corpo (LABAN, minúsculos. O ritmo do jogo varia de lento a
1978), como um olhar sobre o corpo em moderado, favorecendo o controle do corpo. O
movimento no jogo da capoeira, considerando peso com que o movimento é realizado varia de
para tanto: a posição do corpo no espaço; os firme a suave. Na capoeira angola, os gestos
níveis e planos, se baixo ou alto, vertical ou fluem, nos diferentes planos, quais sejam,
horizontal; o tempo e sua velocidade de horizontal e vertical, com variações da fluência:
andamento, se lento, moderado ou rápido; o livre e controlada. O peso firme acentua a
peso e sua intensidade, se firme ou suave; bem dinâmica e a intensidade do gesto que é luta,
como a fluência do movimento, se livre ou dança, memória e esquecimento de uma tradição.
controlada. No jogo de regional, o tempo é acelerado,
Não buscamos aqui uma descrição analítica ritmando um jogo mais rápido, com a realização
ou biomecânica do movimento para estabelecer de saltos que desenham uma trajetória que se
um vocabulário, posto que a polissemia do corpo apropria do ar, ocupando um novo espaço social
e a plasticidade de sua gestualidade fogem às e simbólico. Durante o jogo, os movimentos
tentativas de uma “alfabetização corporal”, também são realizados no nível médio e baixo.
descritas de “A” a “Z”. Nas notas visuais Nas distintas abordagens do jogo, o corpo cultua
construídas durante a investigação, é possível a plasticidade e cria formas diversas. Essa
perceber a construção de uma memória inscrita expansão do corpo no jogo da regional,
no gesto, no corpo, em uma comunicação abre a possibilidade de utilização do plano alto
permanentemente aberta ao inesperado, à e, simbolicamente, „levanta o negro‟. Outro
exemplo dessa expansão espacial é a
criatividade, pois na recomposição e introdução das acrobacias, dos movimentos
decomposição da gestualidade do corpo nas giratórios no ar, próprios à seqüência de balão,
rodas de capoeira são criadas potencialmente que possibilitam ao capoeira apropriar-se do ar,
um território sem dono (...) Nessa capoeira
outras tantas possibilidades. mestiça, os corpos se tocam nos movimentos
corporais conhecidos como golpes ligados
Nessa movimentação do corpo, o elemento da
(REIS, 2000, p. 197).
repetição está em constante relação com a
O jogo do miudinho, é marcado por uma
criação de novas possibilidades gestuais,
movimentação em que os capoeiristas jogam
emergindo variações na gestualidade. Nessas
mais “dentro um do outro”, aproximando-se de
variações do corpo, elementos singulares são
maneira bem “curtinha”, ou seja, bem “miúda”,
suscitados no jogo, como por exemplo, a
evitando a distância um do outro, para além do
mandinga, ou malícia, “noção altamente
“rótulo”, se angola ou regional, e com recursos
politizadora na medida em que, inspirada na
que também desafiam a todo o momento o limite
surpresa do ataque, subverte as hierarquias e
do corpo na movimentação.
institui um contra-poder” (REIS, 2000, p. 115).
Aqui o corpo reapropria os espaços, reinventa Notas sobre a sonoridade
gestos, transgredindo as tentativas de
Gunga é meu/ Gunga é meu
racionalização do corpo. Gunga é meu/ Foi meu pai que me deu
Nas rodas realizadas pelo grupo de capoeira Considerando a dimensão da sonoridade nas
investigado, os movimentos corporais são categorias destacadas para análise, buscou-se
expressos nas diferentes direções, níveis, formas, evidenciar os ritmos desenvolvidos pelo grupo
planos, tempo, velocidade e peso, elementos investigado nas rodas de capoeira observadas,
semânticos relacionado ao uso da técnica bem como os instrumentos presentes nesse
corporal em questão, se angola, regional ou espaço. Em nossas notas visuais, predomina os
miudinho, articulados aos símbolos produzidos toques de “São Bento Pequeno”, relacionado ao
nesse saber-fazer, marcado permanentemente jogo de angola; o toque de “São Bento Grande”,
pela flexibilização do corpo na relação com a que identifica o jogo de regional, bem como o
técnica e com o rito. toque do “Miudinho”, relacionado ao jogo de
No jogo de angola, perceber-se movimentos miudinho. Nas rodas de capoeira o toque do
berimbau é um elemento constitutivo do jogo de
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Narrativas, corpo, gestualidade, capoeira.
corpo, na medida em que o ritmo empregado ao Nos trechos apresentados, observamos certa
som do berimbau determina o estilo de jogo a ser modificação, por exemplo, ao se pensar a
empregado pelos capoeirista. Há toques que são intencionalidade do jogo de capoeira. No primeiro
próprios à capoeira angola, outros à capoeira fragmento (música 01) enfatiza-se o perigo
regional, bem como os que caracterizam o implícito aos movimentos da capoeira. O que aos
miudinho (REIS, 2000). olhos de um estrangeiro seria mato, referindo ao
termo caá-puêra que significaria “mato que
Amplificando a melodia dos instrumentos, a
deixou de existir” (REGO, 1964, p. 19), o
musicalidade é acompanhada de cantigas,
brasileiro, mestiço, saberia que seu significado
entoadas como narrativas que apresentam
estaria relacionado a movimentos que poderiam
funções simbólicas nas rodas de capoeira,
levar o desafiante a morte. A noção de violência e
redimensionando a compreensão do tempo, que
perigo está implícita à mensagem. No segundo
na circularidade da roda inclui a sincronia e a
trecho (musica 02) destaca-se certa modificação
diacronia, bem como dando andamento ao jogo,
dessa perspectiva, em que o objetivo do jogo da
no sentido de envolver os camaradas ao contar,
capoeira passa a ser o da vadiação, da
cantando, histórias.
brincadeira, valorizando a vida, evitando brigas e
Segundo Vieira (1998), os cânticos de confusões.
capoeira materializam funções: a do ritual, bem
como a de um espaço dinâmico, portanto, Considerações Finais
respectivamente, uma função relacionada a Adeus, adeus/ Boa viagem
manter e recontar tradições. O cântico também é Eu vou embora/ Boa viagem
um lugar de constante repensar dessa mesma As análises e interpretações em torno da
tradição. Marcada pela tradição oral, os cânticos gestualidade do corpo nas rodas do grupo de
permitem um contato permanente com a história capoeira investigado, a partir das categorias
e com a tradição cultural da capoeira, e ao apresentadas para a configuração desse artigo,
mesmo tempo abre brechas antropológicas para nos dizem do sistema cultural da capoeira,
novas narrativas. fragmentos dos gestos e do corpo que constroem
o jogo da capoeira. De maneira sintética,
Destacamos, para esse artigo, dois trechos de
destacamos que na produção desse
cantigas presente no repertório musical do grupo
conhecimento do gesto e do corpo, o grupo de
de investigado e presentes nas notas visuais, que
capoeira investigado tem divulgado os
podem ser consideradas como materialidade que
conhecimentos da capoeira angola e regional,
nos revela nuanças da construção do imaginário
na capoeira, um indicador de novas condutas no reinventando seqüências de movimentos,
jogo da capoeira, bem como de modificações possibilitando novos diálogos corporais, marcada
nesse sistema cultural: pela dialética do espaço e pela relação dramática
de um jogo que é “dentro”, que é “em cima” e que
Música 01: Capoeira Ligeira joga “em baixo”, desafiando os limites do corpo.
Capoeira pra estrangeiro meu irmão/ É mato
Nesse sentido, o grupo investigado também tem
Capoeira brasileira meu cumpade/ É de matar
Olha o rabo de arraia, olha aí a ponteira e a meia desenvolvido uma movimentação, a partir de uma
lua pra matar releitura da gestualidade construída no sistema
O macaco e o aú, o mortal e a rasteira e o cultura da capoeira, a partir do jogo de miudinho,
arrastão pra derrubar como uma nova possibilidade de movimentação
Galopante faceiro vai se preprando para voar/
do corpo, de reinvenção e experimentação da
Capoeira é ligeira, ela é brasileira ela é de matar
gestualidade do corpo.
Música 02: Sou capoeira Segundo o mestre de capoeira que iniciou a
Sou capoeira olha eu sei que sou/ Eu vim aqui foi sistematização do miudinho há doze seqüências
para jogar
de movimentação. Em suas palavras, o
Faço bonito por que tenho talento
E solto meus movimentos com uma voz no “„Miudinho‟ veio da Capoeira angola; é a Capoeira
coração angola jogada com mais agilidade, mais
O capoeira é astuto é velhaco/ É inimigo do entrosamento. Eu peguei movimentos que
perigo e confusão estavam „esquecidos‟, movimentos da capoeira
Mais ele sabe o valor de uma vida/ Por isso foge
antiga que eu aprendi na Bahia com grandes
de briga e quer mais é vadiar
capoeiristas como Mestre João Pequeno, Mestre
Motriz, Rio Claro, v.16, n.3, p.620-628, jul./set. 2010 627
J. C. N. S. N. Dias
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da
percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins fontes,
1999.
Motriz. Revista de Educação Física. UNESP, Rio Claro,
MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São SP, Brasil - eISSN: 1980-6574 - está licenciada sob
Paulo: Cosac & Naif, 2002.
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