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FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade?

In: LE GOFF,
Jacques; NORA, Pierre (dir.). História: novos objetos. 4.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1995, p. 199 - 215.

Marc Ferro assinou o presente ensaio no mês de julho de 1971. Voltado à


reflexão dos registros fílmicos enquanto acervo a constar do rol de fontes
aceitas pelos historiadores, o texto passou a representar uma espécie de
referência obrigatória para aqueles que desejassem teorizar a relação entre a
história e o cinema. A coleção na qual o texto foi publicado dizia muito acerca
da necessidade de endossar o que já vinha sendo realizado há algumas
décadas pelas propostas teórico-metodológicas presentes em um vórtice maior
voltado à renovação historiográfica.

No bojo desse processo, a Escola dos Annales, e mais especificamente a


chamada “Nova História”, movimento renovador abraçado por Ferro, no qual
esse historiador ocupa lugar de destaque, com discurso alinhado sob os novos
problemas, as novas abordagens e os novos objetos. Cabe observar que, de
forma geral, os autores dos textos-manifestos organizados em três volumes por
Jacques Le Goff e Pierre Nora, e levados à estampa em 1974, representam
uma espécie de ponto axial na terceira geração de annalistes.

Passando em revista a reação dos intelectuais – entre esses os


historiadores – em relação aos produtos originados do cinematógrafo nos
primeiros anos do século XX, Marc Ferro informa sobre o status a que esse 1
invento havia sido relegado, considerado como uma máquina de
embrutecimento, dissolução, passatempo de iletrados, criaturas miseráveis, o
filme fora recebido pelas classes dirigentes como uma espécie de ‘atração de
feira’.

Alguns (poucos) anos agitados por guerras e revoluções fizeram com que o
instituto da censura fizesse a que os governos e o status quo percebessem que
o cinema fascina e inquieta, e que em decorrência disso, pode desempenhar
um efeito de natureza corrosiva e desetruturar o edifício ideológico montado
por veneráveis instituições que vieram contribuindo ao longo de incontáveis
gerações nos campos da teoria do Estado, da ciência jurídica, da Educação.
Tudo que afinal era sólido, podia se desmanchar no ar, pela simples projeção
pública de uma película em uma sala escura, pois os registros fílmicos revelam
bem além daquilo que seus exibidores pretendiam mostrar.

A tese de Marc Ferro sobre o uso do cinema para o conhecimento histórico


não considera fatores semiológicos, nem incursiona pela estética ou pela
história do cinema, e muito menos se propõe a abordar o produto
cinematográfico como obra de arte. Assim, o registro cinematográfico se
apresenta a Ferro como uma imagem-objeto, cujas significações não são
somente cinematográficas, mas que valem por aquilo que testemunham. Dessa
forma, seguimos ao autor, “a crítica não se limita somente ao filme, integra-o no
mundo que o rodeia e com o qual se comunica necessariamente. Nessas
condições, empreender a análise de filmes, de fragmentos de filme, de planos,
de temas, levando em conta, segundo a necessidade, o saber e o modo de
abordagem das diferentes ciências humanas, não poderia bastar. É necessário
aplicar esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras,
imagens não sonorizadas), às relações entre os componentes dessas
substâncias; analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as
relações do filme com o que não é o filme: o autor, a produção, o público, a
crítica, o regime. Pode-se assim esperar compreender não somente a obra
como também a realidade que representa”. (p. 203).

O autor identifica nos imprevistos do cotidiano aspectos que produzem


testemunhos involuntários da realidade, proporcionando aos registros fílmicos
uma riqueza muitas vezes não percebida por seus próprios realizadores. De
acordo com Marc Ferro, essa observação é patente para os chamados ‘filmes
de atualidades’, ou ‘cinejornais’, porém não menos verdadeira para os filmes de
ficção. Assim, é do aparente e do não visível, das ausências e do não-revelado
que o historiador constitui seus materiais de trabalho, os testemunhos obtidos
mediante o lapso tantas vezes voluntário do criador ou de uma ideologia.

Marc Ferro insiste no ponto que um determinado rótulo ou letreiro pode ter
como objetivo real a constituição de uma espécie de biombo, a mascarar o real
significado de determinada obra cinematográfica. A partir disso se torna
possível a crítica a uma determinado regime político, o desmascaramento a
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tradições da sociedade inscritas e tacitamente aceitas desde priscas eras. O
potencial do cinema foi explorado nos primeiros dias da revolução russa, expõe
o autor, chancelado por Anatol Lunatcharski, ministro da cultura do governo
dos bolcheviques, que levou às telas ‘Uplotnenie’ (Estreitamento), produção
estatal que intencionava representar nas telas a necessidade de fusão entre o
proletariado e a classe intelectual. Em razão da importância assumida pela
propaganda cinematográfica, logo veio a público o primeiro filme anti-soviético,
‘Dias de terror em Kiev’, de autor desconhecido, mas promovido pelas
autoridades alemãs que na época, ocupavam parte do território russo. Ainda
em termos ficcionais, ‘Outubro’, de Sergei Eisenstein e ‘O fim de São
Petersburgo’, de Pudovkin, ofereceram à análise de Marc Ferro, argumentos de
que “...um filme, qualquer que seja, sempre excede seu conteúdo...[o que
permite ao historiador]...atingir cada vez um zona da história que permanecia
oculta, inapreensível, não-visível”.

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