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Relação entre Público e Privado na Atenção

Primária à Saúde: considerações preliminares


Public-Private Relationship in Primary Care: preliminary
considerations

Nivaldo Carneiro Junior Resumo


Médico sanitarista. Doutor em Medicina Preventiva. Professor da
Faculdade de Medicina do ABC e da Faculdade de Ciências Médicas Esse artigo tem como objetivo apresentar alguns
da Santa Casa de São Paulo. apontamentos sobre a relação público e privado na
Endereço: Av. Príncipe de Gales, nº 821, Vila Príncipe de Gales, CEP organização e prestação de serviços primários em
09060-870, Santo André, SP, Brasil.
E-mail: nicarneirojr@uol.com.br
saúde no contexto das políticas atuais do Sistema
Único de Saúde. O debate público e privado na saúde
Vânia Barbosa do Nascimento
tomou fôlego no contexto do movimento de reforma
Médica sanitarista. Doutora em Medicina Preventiva. Professora
da Faculdade de Medicina do ABC.
do Estado a partir de 1980, apresentando concepções
Endereço: Av. Príncipe de Gales, nº 821, Vila Príncipe de Gales, CEP que questionam o papel do Estado na execução dire-
09060-870, Santo André, SP, Brasil. ta de bens sociais, em que foi criticada sua eficiência
E-mail: vaniabn@uol.com.br para operar os serviços públicos. Nessa perspectiva,
Ieda Maria Cabral Costa as instituições sem fins lucrativos colocaram-se
Médica sanitarista. Mestre em Saúde Pública. Professora da Fa- como agentes sociais privilegiados para assumir
culdade de Medicina do ABC. essa função em parceria com o Poder público. Nos
Endereço: Av. Príncipe de Gales, nº 821, Vila Príncipe de Gales, CEP sistemas nacionais de saúde a atenção primária tem
09060-870, Santo André, SP, Brasil.
sido historicamente responsabilidade direta do Esta-
E-mail: iedacbr@uol.com.br
do. Contudo, no contexto das reformas aparecem pro-
posições para a flexibilização a centralidade estatal,
passando para o setor privado a função de viabilizar
os serviços primários. No Brasil, essa questão surgiu
fortemente a partir de 1990 com a estratégia saúde
da família, na contratação de profissionais, atra-
vés de parcerias entre o Poder público e entidades
filantrópicas e sem fins lucrativos, possibilitando
sua implantação e ampliação, particularmente nos
grandes centros urbanos. O estado de São Paulo tem
acumulado vasta experiência na articulação público
e privado em saúde, particularmente, na atenção
básica, através das organizações sociais. Faz-se
necessário qualificar o debate da relação público-
privado, em especial, na política da atenção básica
em saúde, reconhecendo possibilidades e limites da
atuação do setor não estatal.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde; Parceria
público-privada; Programa de Saúde da Família;
Modernização do setor público.

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Abstract Introdução
This paper aims to present some notes on the A participação do Estado na economia e na produ-
public-private relationship in the organization and ção de bens sociais e o tamanho de sua estrutura
provision of primary care services in the context of burocrática e de serviços ocupam boa parte das
the current policies of Sistema Único de Saúde (SUS preocupações, discussões e proposições de reforma
– Brazil’s National Health System). The debate on the por parte de agentes públicos e sociais. Esse debate
public-private relationship in health care emerged as aponta uma rearticulação da relação entre o Estado
a major issue in the context of the State reform mo- e a Sociedade ou a relação entre o público e o privado
vement from 1980 onwards, presenting views that (Fiori, 1995).
challenge the government’s role in providing social As três últimas décadas do Século XX foram do-
goods, and criticizing its efficiency in running pu- minadas centralmente por esse debate, formulações
blic services. Thus, the nonprofit (non-governmental e implantação de políticas reorientadoras do papel
– NGO) organizations arise as the social agents that do Estado, o que foi chamado de “movimento de re-
are suitable to play this role in partnership with forma do Estado”, polarizando-se a relação público-
public power/government. Traditionally, primary privado (Draibe, 1997; Evans, 1992).
health care has been a direct responsibility of the Nesse movimento de reforma da concepção do
government, but in the context of the reforms, Estado e de sua burocracia, predomina uma lógica
proposals have been made to change this central reducionista, com acento de um viés administrativo,
governance, moving the task of running primary isto é, considera-se questão gerencial a função do
care services and facilities towards the private sec- aparelho estatal na produção de bens sociais (Car-
tor. In Brazil, this question emerged more forcefully neiro Junior, 2002).
at the beginning of the 1990s with the recruitment Caracterizadas, fundamentalmente, por uma
of professionals through partnerships between the defesa intransigente nas necessárias mudanças das
public sector, charities and nonprofit organizations, instituições estatais ao preconizarem a contenção de
enabling the implementation and expansion of the custos e controle de gastos, as reformas resultaram
Family Health Strategy, particularly in large urban em extinção e fusão de órgãos próprios e repasse de
centers. The state of São Paulo has accumulated suas funções para setores do mercado – setor privado
extensive experience in the articulation between ou terceiro setor. Nessa direção, foram alteradas as
public and private in health care, particularly in formulações das políticas sociais, que passaram a
primary care, through social organizations. It is priorizar a execução de programas assistenciais
necessary to enhance the debate about the public- considerados básicos, dirigidos para segmentos
private relationship, especially in primary care, in populacionais em situação de pobreza (Gerschman,
order to recognize the possibilities and limits of 1999; Vergara, 2000).
actions by the non-governmental sector. No caso brasileiro, Cohn (2001) identifica essas
Keywords: Primary Health Care, Public-Private questões como parte de uma tendência que emergiu
Partnership, Family Health Program, Public Sector após a Constituição de 1988, quando se esvaziou a
Modernization. discussão política sobre as novas articulações im-
plementadas nas relações de Estado e Sociedade e
privilegiaram-se as temáticas mais tecnocráticas,
como gerenciamento, normatização, avaliação de
serviços, entre outras.
Há que se reconhecer nesse contexto as trans-
formações contemporâneas na relação Estado e
Sociedade, que exigem mudanças nas instituições,
visando a incorporar, na formulação e no planeja-

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mento das ações, agentes sociais relacionados ao A Relação entre Público e Privado
Estado, ao mercado e à comunidade, imbricados
numa relação política (Offe, 1999). na Política de Implantação da
Nessa perspectiva, as instituições de caráter pri- Atenção Primária à Saúde
vado sem fins lucrativos, situadas entre o mercado
O documento “A Atenção Primária em Saúde, agora
e o Estado, empresas administradas com a lógica do
mais do que nunca” divulgado pela Organização
setor privado, porém, com finalidades de interesse
Mundial de Saúde (OMS) em 2008 propõe sistemas
público, credenciam-se como um dos principais universais de saúde orientados à Atenção Primária
agentes da sociedade civil nesse processo de reforma à Saúde, significando a APS como estratégia de or-
do Estado (Franco, 1999). ganização pautada na saúde como direito universal,
Também denominadas de terceiro setor, essas equitativo e solidário (Göttems e Pires, 2009).
instituições têm origem, definições e vocações que Os sistemas de saúde baseados na atenção pri-
não são unívocas. Nos países centrais são, muitas mária possuem elementos estruturais e funcionais
vezes, denominadas economia social, setor volun- que asseguram cobertura e acesso universal a ações
tariado ou organizações não lucrativas. Nos países e serviços como: a) marco legal e organizacional sóli-
periféricos são conhecidas como organizações não dos; b) recursos humanos, financeiros e tecnológicos
governamentais, ONGs (Fernandes, 1994; Santos, adequados e sustentáveis; c) organização e gestão
1999). ótimas; d) atenção integral e continuada; e) ênfase
O fortalecimento do terceiro setor nessa relação na promoção e prevenção; f) atenção adequada; g)
com o Estado na execução de bens sociais, além de orientação familiar e comunitária; h) mecanismos
provocar mudanças de orientação da relação públi- de participação ativa; i) políticas e programas equi-
co-privado, faz ampliar o conceito de público como tativos; j) primeiro contato; k) respostas às necessi-
não exclusivamente sinônimo de estatal, emergindo dades de saúde da população e, l) ações intersetoriais
outro, isto é, o público não estatal. (OPAS, 2007).
No Brasil, nessas últimas décadas, particu- Aparentemente é consenso a noção de que os
larmente na área da saúde, a assistência médico- sistemas de saúde orientados à atenção primária
hospitalar tem sido o foco de implementações de quando comparados aos que se estruturam na lógi-
políticas e dispositivos legais que visam à delegação ca da atenção especializada apresentem melhores
de bens e serviços públicos para entes privados não resultados de saúde para a população, mais equida-
lucrativos, o que vem resultando em estratégias de de, melhor acesso, maior satisfação dos usuários e
reorganização dessa prestação de serviço à popula- custos globais menores, de acordo com evidências
ção (Carneiro Junior e Elias, 2006). internacionais (OPAS, 2007). Apesar disso, esses
Os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) atributos não devem ser de pronto generalizados
historicamente não foram vistos como alvos de dado que evidências da eficácia e da efetividade
repasses para o setor não estatal, ficando necessa- da atenção primária são observadas em ambientes
riamente sob responsabilidade direta do Estado a e países muito diversos, com entendimento não
execução de suas ações (Gerschman, 1999; Vergara, uniforme da atenção primária à saúde, diferentes
2000). arquiteturas e dinâmicas de sistemas de saúde,
Essa característica inserção da APS como de bem como formas de organização, financiamento e
responsabilidade da esfera estatal e orientada para modelos de prestação de serviços bastante diversi-
o reordenamento do sistema de saúde, tem, parado- ficados (Atun, 2004).
xalmente, demonstrado sua grande fragilidade, isto Os países com modelo de Sistema Nacional de
é, pouca influência no mercado de produção de bens Saúde, com financiamento fiscal, tendem a ter aten-
e de serviços, pois fica a margem das decisões das ção primária mais estruturada e com melhores resul-
esferas políticas e econômicas, em vários países, tados do que aqueles com o modelo de seguro social
particularmente no Brasil (Göttems e Pires, 2009). de saúde. Nos primeiros, os cuidados primários são

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financiados e predominantemente prestados por debate sobre o Programa de Agentes Comunitários
instituições governamentais. Contudo, a partir das de Saúde (PACS), discutiu-se a vinculação institucio-
reformas da saúde que se desenvolveram na década nal dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Desde
de 1990 essa situação foi mudando progressivamen- então já se procurava estabelecer “a diferença entre
te e a experiência adquirida pelos vários países na a vinculação institucional dos ACS e a sua forma de
estruturação e operação da APS levou a proposição contratação”. No referido evento chegou-se a conclu-
de “sistemas de saúde pluralísticos num contexto são de que “os ACS são vinculados as suas famílias/
globalizado” (OMS, 2008). comunidades”, sendo responsáveis pela interlocu-
No mundo inteiro, várias iniciativas têm sido ção com os serviços de saúde, “em uma ‘inovadora’
desenvolvidas no sentido de experimentar novas parceria sociedade-governo, logo, são ‘funcionários’
modalidades de gestão e de prestação de serviços públicos não estatais”, devendo ser contratados por
de atenção primária com mais autonomia de gestão, entidades não governamentais em função da “natu-
buscando mais eficiência e melhores resultados de reza do seu trabalho” (Sousa, 2001).
saúde para a população. Na Europa Ocidental, duas Em 2002, o Ministério da Saúde confirmou essa
estratégias têm sido principalmente utilizadas tendência ao divulgar o documento “Modalidade de
(Sheaff e col., 2006): contratação de agentes comunitários de saúde: um
• a instituição da competição entre prestadores pacto tripartite”, em que ofereceu às Prefeituras o
públicos através do chamado “mercado público”, Termo de Parceria com Organizações da Sociedade
concedendo incentivos financeiros aos prestadores Civil de Interesse Público (Oscip) como “alternativa
de serviços de atenção primária que diminuíssem concreta” para resolver a questão do vínculo dos
os custos ou aumentassem a quantidade de proce- ACS (Brasil, 2002). Entretanto, cabe esclarecer que
dimentos dentro de um teto financeiro estabelecido. atualmente a contratação dos ACS ocorre através
Além disso, vários países transformaram os presta- de processo seletivo público em conformidade com
dores públicos em “empresas públicas” com autono- a Emenda Constitucional nº 51, regulamentada pela
mia de gestão, mas reguladas pelo Governo. Lei Federal nº. 11.350/06 (Brasil, 2006a).
• a privatização da atenção primária com medidas Também no início da década de 1990, o município
como a substituição progressiva do financiamento de Niteroi (RJ), através da Fundação Municipal de
público pelo privado através da instituição de regi- Saúde, estabeleceu um contrato de cogestão com as
mes de copagamentos para utilização dos serviços Associações de Moradores das comunidades cober-
e a privatização de vários prestadores de serviços tas pelo Programa Médico de Família, delegando a
de atenção primária. elas a responsabilidade pela contratação dos pro-
Apesar de ter sido introduzida no Brasil no início fissionais e a fiscalização da prestação de serviços
do século passado, a atenção primária, aqui rebatiza- (Nascimento, 2006).
da como atenção básica, consolidou-se no início dos A reconfiguração da relação entre público e priva-
anos 1990, com a implantação do Programa de Saúde do na atenção primária decorrente da flexibilização
da Família (PSF) e do seu precursor o Programa de das relações de trabalho viabilizou a efetivação de
Agentes Comunitários de Saúde (Mendes, 2009). parcerias entre os municípios e uma variedade de
A implantação da estratégia de saúde da família novas e velhas instituições − Organizações Não Go-
desde o início foi marcada pela introdução de es- vernamentais, Cooperativas, Associações de Mora-
tratégias de flexibilização das relações de trabalho dores, Fundações de Apoio, Associações Religiosas,
para a inserção dos profissionais em suas equipes, Oscip, Organizações Sociais e Fundações Estatais
recorrendo a formas alternativas de contratação entre outras entidades similares – para contratação
de recursos humanos justificadas, em parte pela dos profissionais das equipes de saúde da família e,
singularidade do trabalho do agente comunitário mais recentemente, para gerenciamento e prestação
de saúde. direta dos serviços (Brasil, 2005).
Em 1991, em um seminário realizado no estado Para Viana e DalPoz (2005) o PSF, ao procurar
da Paraíba, com o objetivo de divulgar e ampliar o fugir dos limites impostos pela gerência pública

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para contratação e remuneração dos recursos hu- Não obstante, as características dos aglomera-
manos, estabeleceu novos tipos de parceria com a dos urbanos, por si só, já justificam as dificuldades
sociedade, tornando-se uma espécie de “laboratório relativas à implantação dos desenhos propostos
de experiências para reformas mais profundas nas para a organização do sistema de atenção à saúde
formas de operação das políticas sociais”. nessas localidades. Destacam-se aqui algumas delas
(Nascimento e Costa, 2009):
A Relação entre Público e Privado 1. Concentração populacional versus déficit expres-
sivo na oferta de serviços de saúde, que requerem
para Viabilizar a Implantação da intervenção audaciosa em termos de volume de
ESF nas Grandes Cidades serviços a serem implantados simultaneamente. Por
A transferência do poder de decisão e de execução vezes, atender apenas uma parcela dessa população
de determinadas tarefas públicas para as unidades concentrada torna-se praticamente impossível,
locais de governo é considerada ainda uma estraté- demandando agilidade técnica e administrativa,
comprometida muitas vezes pelo rito burocrático
gia complexa e de difícil operacionalização, quando
dos governos locais.
se trata de encarar as capacidades administrativas
e institucionais para operar no âmbito subnacional 2. Fragmentação urbana das grandes cidades é uma
programas sociais (Nascimento, 2001). realidade, dificultando a implantação das estraté-
No Brasil, existe um grande número de municí- gias recomendadas. Os condomínios residenciais,
pios sem capacidade fiscal e administrativa. Para os shoppings centers, hipermercados e áreas indus-
tanto, o governo federal tem adotado o recurso às triais contribuem para a segregação, desigualdades
estratégias de indução para compensar os obstá- intraterritoriais e a discriminação social nessas
culos à descentralização, diante da implantação de cidades. Os territórios tornam-se descontínuos em
suas prioridades políticas (Arretche, 1998). que núcleos populacionais de baixa renda ficam
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) passou a encravados em áreas industriais, comerciais e de
incorporar a agenda do governo federal como uma condomínios de alto padrão.
das prioridades na reorientação do modelo de organi- 3. A periferização e o perfil de morbi-mortalidade,
zação da atenção à saúde no país, no interior de uma com destaque para a violência e a pobreza, têm se
nova proposta de oferta de serviços e de financia- tornado um impedimento para a expansão e consoli-
mento da atenção básica à saúde. A partir de então, dação da saúde da família em áreas metropolitanas
o Ministério da Saúde tem adotado estratégias ar- devido a uma série de dificuldades, sendo a principal
ticuladas, procurando criar mecanismos indutores a fixação de profissionais de saúde, especialmente
para que os municípios passem a assumi-la com médicos, para atuar em tais áreas. A alta rotativi-
prioridade no conjunto de suas responsabilidades dade dos médicos nas equipes de saúde da família é
para com a saúde (Brasil, 2006b). outro fator que compromete a estratégia, que aposta
O grande desafio para o Ministério da Saúde tem no vínculo do profissional com a sua clientela. Ape-
sido expandir a ESF para os grandes centros urba- sar da não ser um fenômeno exclusivo das grandes
nos. Para induzir a conversão do modelo assistencial cidades, é evidente que a extensa malha urbana, com
nas médias e grandes cidades, em 2002, o Ministério dificuldade de deslocamento devido ao trânsito caó-
da Saúde instituiu, com financiamento do Banco tico e a longas distâncias, estimulam a rotatividade
Mundial, o Programa de Expansão e Consolidação dos profissionais. Esses profissionais são facilmen-
da Estratégia de Saúde da Família (Proesf) com te atraídos para trabalhar em locais mais centrais e
a expectativa de modificar o modelo assistencial com menos risco. Há que ter estratégias para atrair
vigente através do fomento a sua substituição pela novos profissionais e agilidade na contratação.
estratégia de saúde da família na atenção básica 4. Situação territorial e predial das cidades metropo-
em municípios com mais de 100 mil habitantes litanas, tais como extensas áreas não regularizadas
(Brasil, 2005). e imóveis sem título de propriedade. Isso impede

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que a administração pública construa ou alugue requerida pelas normas e portarias, parcerias com
um imóvel em territórios com essas condições, que entidades privadas têm sido realizadas, viabilizan-
remetem à busca de alternativas para superar esse do principalmente nos grandes centros urbanos a
problema. contratação de agentes comunitários de saúde e
5. A gestão descentralizada dos serviços de saúde demais profissionais de saúde; aluguel de imóveis
nos grandes aglomerados urbanos afirma-se no in- para transformá-los em unidades de atendimento em
terior de um contexto histórico marcado pela forte áreas urbanas irregulares; reformas e adequações
presença da medicina privada. Todavia, não se torna de imóveis; aquisição ágil de materiais e equipa-
imune a essa realidade. A concentração da iniciativa mentos, realização de capacitações; reposição de
privada nos aglomerados urbanos provoca uma gran- profissionais devido à alta rotatividade; incentivo
de tensão no modelo de atenção à saúde, diante das salarial para médicos atuarem nas periferias das
distintas racionalidades entre os sistemas públicos cidades; entre outros.
e o privado. Convive-se com dois movimentos contra- Há que ressaltar também a permanente tensão
ditórios. Se por um lado, denota-se um movimento de devido aos recursos limitados e as dificuldades
certo modo pacífico de vinculação do setor público gerenciais do setor público para atingir metas as-
aos interesses privados e corporativos, de comple- sistenciais e conferir eficácia e eficiência de ação,
mentaridade de ações em saúde e de segmentação exigências encontradas no cotidiano da iniciativa
da clientela usuária. De outro, a distinta lógica de privada. Essa tensão se expressa com muita ênfase
organização e utilização dos serviços pressiona o no setor saúde, já que envolve a necessária agilidade
sistema público a adotar mecanismos para satisfa- na aquisição de inovações tecnológicas, incremento
zer a necessidade de consumo de procedimentos em constante na oferta de procedimentos médicos,
saúde pela população, estimulados pela economia de exames e insumos, diversificação e especialização
mercado do setor privado. das práticas, instalações modernas e acolhedoras.
As singularidades do território das grandes ci- Isso também tem justificado a aproximação dos
dades, tais como as já apontadas, têm contribuído governos locais junto às instituições privadas sem
para retardar o ritmo do cumprimento das metas de fins lucrativos, como meio de otimizar os recursos
cobertura da Estratégia de Saúde da Família estabe- de acordo com as necessidades.
lecidas para o conjunto do país. Sobressai, ainda, o debate de como administrar
Superar as dificuldades encontradas pelo gover- grandes cidades dentro de um contexto político-
no local para garantir agilidade na administração institucional, que equilibra o poder político e tribu-
dos meios à implantação dos programas de saúde, tário das três esferas governamentais e que confere
tal como a ESF, coincide com o fenômeno apontado uma série de competências e responsabilidades ao
por Oliveira e Schwanka (2008) sobre o crescente governo local para a execução de políticas públicas.
consenso a partir da década de 1990, principalmente Convém lembrar que nessas cidades ainda convive-
na Europa, sobre a necessária articulação entre os se com a limitada capacidade institucional para
distintos níveis de Governo e entre este e as organi- operar uma realidade complexa e marcadas pela
zações empresariais e da sociedade civil, a fim de histórica desigualdade social e econômica intra e
garantir eficácia e legitimidade da atuação pública intermunicipal. O que se tem observado é a crescente
diante das demandas sociais. e variadas formas de parcerias entre governos e se-
Assim, parcerias do governo local com entidades tor privado da saúde, com preferência às entidades
não lucrativas surgem como novas alternativas não governamentais.
de gestão para garantir flexibilidade e agilidade Assim, em todo esse contexto, entram no jogo
diante do cumprimento das exigências colocadas decisório novos atores e instituições, públicas e pri-
pelo governo federal como condição para o finan- vadas, com o propósito de dar cabo às possibilidades
ciamento da ESF. Para atender aos prazos e às gerenciais, demandando um necessário processo de
metas de cobertura estabelecidas com a agilidade governança para dar conta dos interesses públicos.

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O Debate Público e Privado e sua Considerações Finais
Presença na Política de Atenção Este artigo expôs o debate ainda inicial da relação
Básica na Cidade de São Paulo público e privado na organização e na gestão pú-
blica da atenção primária à saúde. Com acúmulo
No contexto desse debate sobre o público e o privado, é já existente nos países centrais, em nosso meio é
merecedor de nota o que aconteceu a partir da metade incipiente, apesar de várias experiências e arranjos
dos anos 1990, na cidade de São Paulo, com a política jurídico-institucionais em andamento a partir da
de ampliação da Atenção Básica em Saúde, na qual foi implantação da estratégia saúde da família como
delegado a uma entidade privada sem fins lucrativos modelo de atenção primária e ordenador do Sistema
o gerenciamento e a execução desses serviços pelo Único de Saúde.
Governo estadual (Barradas e col., 2004). Em virtude da tendência crescente de parcerias
Essa política data de 1996, através de convênio público-privadas surge o debate da governança, como
entre o Ministério da Saúde, a Secretaria de Estado a ênfase na boa interação entre governo, sociedade
da Saúde de São Paulo (SES-SP) e a Casa de Saúde civil e setor privado. A dificuldade de estabelecer
Santa Marcelina, visando à implantação do Progra- resultados objetivos na Estratégia de Saúde da Fa-
ma de Saúde da Família em uma região densamente mília coloca para o setor público o papel de liderança
povoada, economicamente desfavorável e com dé- na definição de mecanismos de contratualização e
ficit de unidades básicas de saúde primárias com controle das ações a serem desenvolvidas, bem como
experiência na assistência à saúde. Essa iniciativa a capacidade de mobilização dos distintos atores
ficou denominada de Qualis (Qualidade Integral à envolvidos na criação de instrumentos de gestão
Saúde), tão logo ampliada para outras regiões da interorganizacionais e definição de prioridades e
cidade (Capistrano, 1999). processos.
A partir de 2001, com a organização da gestão Nessa perspectiva, experiências em andamento,
municipal do Sistema Único de Saúde (SUS) na particularmente na cidade de São Paulo, são pro-
cidade de São Paulo, ocorrendo a municipalização missoras e merecedoras de investigações com me-
dos serviços de saúde, o Poder público municipal todologias e referenciais teóricos necessariamente
adotou o PSF como modelo de Atenção Primária à reformulados para essa nova realidade social da
Saúde, seguindo a orientação do Ministério da Saú- organização dos serviços e das políticas públicas.
de, e elegeu a estratégia da parceria com entidades Essas são algumas questões que se apresentam
públicas não estatais para viabilizar a ampliação e neste texto, as quais visam incentivar e promover
a consolidação da política de Atenção Básica no mu- discussões necessárias, articuladas com outros
nicípio, firmando nesse momento termo de convênio aspectos constituintes da atenção primária à saúde,
com 12 instituições, que têm em seus “currículos” qualificando, assim, o seu papel ordenador do siste-
importantes trajetórias nas áreas da assistência ma de saúde e coordenador do cuidado integral.
social e de saúde, algumas delas com prestação de
serviços especializados em saúde − secundários e
terciários – e formadoras de recursos humanos na Referências
área (Tambellini, 2008). ARRETCHE, M. T. S. O processo de
Nos dias atuais a Prefeitura da Cidade de São descentralização das políticas sociais no Brasil
Paulo encaminhou à Câmara Municipal a Lei 14.132 e seus determinantes. 1998. Tese (Doutorado
de 24 de Janeiro de 2006 (São Paulo, 2006), que em Ciências Políticas) - Instituto de Filosofia e
institui as Organizações Sociais, estabelecendo Ciências Humanas, Universidade Estadual de
através de contrato de gestão o repasse de serviços Campinas, Campinas, 1998.
de saúde municipais, e nesse caso não se restringin-
do à Atenção Básica, em uma determinada região
para entidade sem fins lucrativo, orientado por um
conjunto de metas assistenciais.

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Recebido em: 12/05/2011


Aprovado em: 15/06/2011

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