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ORIGENS DA PRESENcA NEGRA /

EM GUARULHOS

Arte: Jefferson Galdino

A Áf r i c a em n ó s

Elton Soares de Oliveira


José Abílio Ferreira

1
Copyright © 2013 by Noovha América Editora

Autores
Elton Soares de Oliveira
José Abílio Ferreira

Editor Responsável
Nelson de Aquino Azevedo

Projeto Gráfico e Diagramação


Braz Cardoso Junior

Revisão
Ana Lúcia Mendes

Imagem da capa
Igreja da Irmandade dos Imãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos, 1912. Atual
Rua Dom Pedro II – Praça Conselheiro Crispiniano.

Agradecimentos especiais
Alguns textos desta publicação (devidamente revisados e ampliados) fazem
parte da publicação “Inventário de Fontes sobre as Origens da Presença
Negra em Guarulhos”, elaborada pelos mesmos autores para o Projeto
Funcultura, da Secretaria de Cultura – Prefeitura de Guarulhos, 2012.
A todos aqueles que colaboraram com a cessão de dados e fotos para esta
publicação.
A arte de abertura dos capítulos desta publicação foi produzida pela ar-
tista plástica Aparecida Pereira (Cidinha), mulher negra e funcionária da
Secretaria de Educação.
Agradecemos ainda as fotos do acervo do arquivo histórico municipal,
Igreja Matriz de Guarulhos, Elton Soares de Oliveira, Edna Roland, Pre-
feitura de Guarulhos, Haroldo Santos e Jefferson Galdino (ilustrações).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oliveira, Elton Soares de


Origens da presença negra em Garulhos : a
Atual Igreja Nossa Senhora do Rosário Mãe dos Homens Pretos e São Benedito, 1955.

África em nós / Elton Soares de Oliveira, José


Abílio Ferreira. -- São Paulo : Noovha América,
2013.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7673-328-7

1. Afro-brasileiros - História 2. Escravidão -


Guarulhos (SP) - História 3. Negros - Guarulhos
(SP) - História I. Ferreira, José Abílio.
II. Título.

13-11535 CDD-981.612

Índices para catálogo sistemático:


1. Guarulhos : São Paulo : Estado : Negros :
História 981.612
2. Negros : Guarulhos : São Paulo : Estado :
História 981.612

(De acordo com a Nova Ortografia da Língua Portuguesa)


1a edição
2013

Todos os direitos desta edição reservados à:


Noovha América Editora Distribuidora de Livros Ltda.
Rua Lincoln Albuquerque, 319 – Perdizes
São Paulo/SP – CEP 05004-010
Telefax: (0xx11) 3675-5488
Site: www.noovhaamerica.com.br
E-mail: diretoria@noovhaamerica.com.br
nova.america@tavola.com.br
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D uas palavras sintetizam o conteúdo
deste livro: humanidade e desumanização. Origens
da Presença Negra em Guarulhos – A África em Nós
revela-nos a história, ainda que de forma resumida,
do aparecimento dos primeiros seres humanos no
nosso planeta, bem como a evolução do gênero
Homo e o povoamento dos continentes, onde ha-
bitam atualmente sete bilhões de seres humanos.
São pessoas que trazem na pele, no tipo de cabelo
e na coloração dos olhos as raízes genéticas de um
passado africano. Cabe lembrar que, de acordo com
a ciência, a África é considerada o “berço da huma-
nidade”. Foi lá que surgiram e se dispersaram os
primeiros hominídeos. Tempo histórico, calculado,
aproximadamente, em dois milhões de anos.
A segunda virtude desta publicação é o vínculo
que faz do processo de escravização “dos Negros da
Terra e dos Negros da Guiné” no território guaru-
lhense e brasileiro. De acordo com o Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entraram
pelos portos do Brasil Colônia 3,6 milhões de pessoas
negras escravizadas. Homens e mulheres, violentados
em seus direitos, foram transplantados do continente
africano. Em 2001, o processo de escravização de
pessoas negras foi denunciado e julgado em Durban,
África do Sul, como crime contra a humanidade.
Por fim cabe destacar que este ensaio publi-
cado em nossa cidade a respeito da escravização de
homens e mulheres, chamadas “negras” a partir do
século XVI, é um marco importante na História do
Brasil. Além desse aspecto historiográfico, as ima-
gens expõem a crueldade impingida aos paleoíndios,
aos indígenas e aos africanos escravizados. Tratam-se
de imagens que revelam as faces desumanizadoras do
processo da escravização de pessoas em seus diferen-
tes momentos: captura, transporte, comercialização,
trabalho forçado e castigo. Não existe opressão que
dure eternamente. O fim do trabalho escravo, como
visto, foi uma conquista das lutas de resistência dos
negros e negras, bem como do movimento abolicio-
nista, organizado em vários países.
Nos dias atuais, mais e mais pessoas assumem
sua negritude e se juntam no Movimento Negro para
combater o racismo e em busca da garantia de direitos.

Prof. Moacir de Souza


Secretaria Municipal de Educação
Guarulhos/2013.
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SUMÁRIO

1 - Presença Negra: Trabalho Escravo e Livre 7


Trabalho Escravo 7
Trabalho Livre 9
2 - África: Berço da Humanidade 11
Homo habilis – 2,4 a 2 Milhões de Anos 14
Homo erectus – 2 a 1,7 Milhões de Anos 14
Homo sapiens – 200 Mil Anos 15
Homo neanderthalensis 16
Homo sapiens sapiens – 40 Mil Anos 17
Homem de Cro-Magnon 18
Homem Americano – 14 Mil Anos 18
Luzia – 11,5 Mil Anos 19
3 - Negros da Terra e Negros da Guiné na Formação de Guarulhos 22
Fundação de Guarulhos 23
Criação do Município de Guarulhos 23
Descoberta do Ouro 24
Registro de Escravos em Livros de Propriedades 25
4 - Marcas e Memórias... A Guarulhos dos 328 Anos de Escravidão 26
Os Indígenas Tupi-Guarani e os Negros Africanos na Mineração de Ouro 28
Memórias e Resistências 31
Memórias e Imaginário – Exaltação e Capelas de Santa Cruz 31
Memórias e Imaginário – O Bom Jesus e Capelas 34
Sofrimento e Salvação 35
Festas da Carpição e de Nossa Senhora do Bonsucesso 36
Igreja dos Pretos de Nossa Senhora do Rosário 37
Igreja de São Benedito dos Homens Pretos 37
Quilombo 38
Quilombolas 38
Memórias e Sincretismo Religioso 39
Memórias de Negros na Literatura Guarulhense 40
André 40
Preto Rosendo 40
Velho Negro 41
Nhô Quim de Ferro 41
Negro Beijo 41
Jacinto Flores 42
5 - Guarulhos: Da Abolição da Escravidão à Industrialização 43
Guarulhos e o Mercado Nacional de Escravos 44
Esgotamento da Mineração de Ouro 45
Declínio Demográfico em Guarulhos 45
Mercado Interprovincial de Escravos 46
Criação do Município de Guarulhos 47
Junta Classificadora de Escravos de Guarulhos – Fundo de Indenização aos Proprietários 47

4
Alistamento de Escravos 48
Lei do Ventre Livre 48
Lei dos Sexagenários 49
Tabela de Preços por Escravo Liberto 49
Total de Africanos Escravizados 50
Lei Áurea 50
Guarulhos: Industrialização e Embranquecimento do Trabalho 50
Recenseamento Demográfico (1872) – Serviço Nacional de Recenseamento 51
População de Guarulhos por Nacionalidades 52
Guarulhos: Industrialização e Repovoamento Negro da Cidade 54
6 - Negritude... Explosão e Afirmação 55
A Presença de Luís Gama 56
A Memória como Objeto de Disputa 57
7 - Guarulhos, Cidade Símbolo: Releitura 68
A Epopeia Luso-Africana em Guarulhos 71
O Mito do Gigante Adamastor 73
Sangue Paulista 75
GALERIA DE PREFEITOS DE GUARULHOS 84
Referências Bibliográficas e Dicas de Leitura 86
autores 88

Protesto
Mesmo que voltem as costas De cada um dos que vivem
Às minhas palavras de fogo Juntos comigo enjeitados da Pátria
Não pararei de gritar
Não pararei Senhores
Não pararei de gritar O sangue dos meus avós
Senhores Que corre nas minhas veias
Eu fui enviado ao mundo São gritos de rebeldia
Para protestar Um dia talvez alguém perguntará
Mentiras ouropeis nada Comovido ante meu sofrimento
Nada me fará calar Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Senhores Quem é
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba (...)
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo O poeta negro Carlos Assunção, autor
Reúnem-se em minha casa do poema cujo trecho reproduzimos, nasceu
E nos pomos a conversar em 1927, na cidade paulista de Tietê. Partici-
pou da Associação Cultural do Negro (ACN),
Sobre coisas amargas
que, fundada em 1954, na cidade de São Paulo,
Sobre grilhões e correntes
é considerada um marco da rearticulação dos
Que no passado eram visíveis movimentos sociais negros da metade do sécu-
Sobre grilhões e correntes lo XX. Frequentemente declamado por Assun-
Que no presente são invisíveis ção, com grande sucesso, Protesto notabilizou-se
Invisíveis mas existentes entre a intelectualidade negra. O poema só foi
Nos braços no pensamento publicado em 1982, no livro Protesto, custeado
Nos passos nos sonhos na vida pelo autor.

5
Igualdade. Homenagem ao Brasil, ao Estado de São Paulo e a Guarulhos.
Obra do artista negro Aroldo Santos, 2000.

6
1 - PRESENÇA NEGRA: TRABALHO ESCRAVO E LIVRE

D e modo geral, podemos dizer que em Guarulhos a palavra “negro” passou a ser difundida a
partir do dia 8 de dezembro de 1560, data oficial da fundação da cidade.
“Negro da terra” foi o termo atribuído pelos colonizadores portugueses para identificar os indígenas
cinquenta anos antes da chegada dos negros transplantados do continente africano para o Brasil Colônia, na
condição de escravos, chamados de negros da Guiné, em 1550, data oficial.
Os termos “negro da terra” e “negro da Guiné” são construções sociais da Idade Moderna no início do
século XVI. O conceito “origens da presença negra”, na verdade, oculta a origem negroide brasileira que extra-
pola a periodização clássica da História, dividida em antiga, medieval, moderna e contemporânea, em seis mil
anos (60 séculos).
Achados antropológicos, referentes ao povoamento do Brasil, datam de 14 mil anos (140 séculos). As
conclusões dos especialistas comprovam
que os primeiros brasileiros são negroides
– Homo sapiens – descendentes dos abo-
rígenes australianos; esses, por sua vez,
vieram do homo sapiens africano. Entre
os cientistas é consenso que a África é o
berço da humanidade.

TRABALHO ESCRAVO
Não temos dúvidas de que o tra-
balho escravo no Brasil e em nossa cidade
sugou as energias e ceifou vidas de milha-
res de negros da terra e de negros africa-
nos. O processo foi tão violento que, em
conferência realizada em 2001 a respeito
de racismo e xenofobia em Durban, Áfri-
ca do Sul, a escravidão de africanos foi re-
conhecida pela ONU como crime contra
a humanidade. Nessa publicação, as in-
Luzia, o fóssil humano mais antigo do Brasil (11,5 mil anos).

7
Captura de escravos. Obra de David Livingstone.

formações a respeito da presença negra em Guarulhos transatlântica, que durava, aproximadamente, 60 dias.
estão organizadas em três períodos da História: antes e O tráfico de escravos negros da  África  para o  Brasil
durante a fundação de Guarulhos e na criação do mu- teve grande crescimento com a expansão da produção
nicípio. Nos dois últimos períodos, houve vigência de de cana-de-açúcar, a partir de 1560, e com a descober-
trabalho escravo e de trabalho livre, respectivamente, ta de ouro, no final do século XVII em Minas Gerais,
nas lavras de ouro e na indústria. 100 anos depois da descoberta de ouro nas minas de
Entre 1550 e 1855, entraram pelos portos bra- São Paulo: Pico do Jaraguá, Guarulhos, Sorocaba, Pa-
sileiros 3,6 milhões de africanos escravizados. Os na- ranaguá e Santana de Parnaíba.
vios que traziam os negros ao Brasil eram chamados Dos 453 anos (1560-2013), do município, no
de tumbeiros, porque grande parte da tripulação, cer- que se refere à construção da riqueza material e imate-
ca de 20 a 30%, morria durante a dramática viagem rial de Guarulhos, durante 328 anos ela esteve baseada

Negros no porão de navio. Obra de Johann Moritz Rugendas, 1835.

8
Negros serradores de tábuas. Obra de Jean-Baptiste Debret, 1835.

no trabalho escravo. Somam-se mais de três séculos de época da escravidão. Foram mais de três séculos de tra-
escravidão e apenas pouco mais de um século de tra- balho e; por meio de herança, muitas pessoas se torna-
balho livre, ou seja, 125 anos. Este livro, como dito na ram os modernos proprietários dos meios de produção
linguagem futebolística, é o “pontapé” inicial para um social da era capitalista industrial. No Brasil, foi na
tema de tamanha abrangência e impor-
tância histórica.

TRABALHO LIVRE
Muitas pessoas confundem a con-
dição dos antigos escravos com a do tra-
balhador assalariado dos dias atuais. É um
erro. O trabalhador vende, aluga, troca,
como quiser denominar, parte do seu
tempo (jornada de trabalho) pelo paga-
mento de salário. O escravo era compra-
do, se tornava uma propriedade particu-
lar, era mantido e controlado pelo dono.
Este podia explorá-lo, vendê-lo, alugá-lo
e até matá-lo, e isso não era considerado
crime. É verdadeiro que ainda nos dias
atuais encontram-se muitas pessoas em
condição de trabalho escravo, porém, não
se tratam de escravos. Tanto que elas po-
dem ser resgatadas e com isso o explora-
dor é preso e incriminado.
Os antigos donos dos escravos
acumularam toda a riqueza produzida na
Operário em fábrica guarulhense, 1992.

9
A primeira lavra de ouro
de Guarulhos (1597) era cha-
mada de Jaguamimbaba (do
tupi, a onça de criação) e ficava
localizada na atual Serra do Ita-
beraba, nos bairros da Capeli-
nha e Morro Grande. Em Gua-
rulhos, são inúmeras as marcas
na história em meio à paisagem
urbana e rural da presença dos
“Negros da terra e da Guiné”.
Atualmente, 45% da
população é negra (IBGE
Casa da Candinha (nome atual). Construída em taipa de pilão, por escravos, em 1825. 2010). É um povo que traz na
transição do século XIX para o XX que os capitalistas pele, nos cabelos, na alma, na culinária e no vestuário
deixaram de comprar escravos e passaram a contratar um passado forjado na luta contra a opressão. Milha-
força de trabalho, pagando salários. res de negros e negras, conscientes da história, não es-
No início do século XVI, a escravidão dos po- condem e denunciam o crime que foi a escravidão. Por
vos locais (paleoíndios e indígenas) não interessava aos meio de várias formas de lutas sociais, mantêm viva a
traficantes como força de trabalho, situados em Portu- chama da liberdade e pedem o fim da desigualdade so-
gal e na África. cial, do racismo e do preconceito que reina no Brasil.
Se mantido o processo de escravização dos negros No dia 22 de maio de 2013, a Secretaria de
da terra como única alternativa de força de trabalho, os Educação comemorou 10 anos da Lei no 10.639,
mercadores portugueses estariam excluídos do lucrativo lançando uma publicação inédita em nossa cidade:
comércio de escravos para o mercado americano. Afrobrasileiros[as] e currículo – Olhar para trás para se-
Não foi o que aconteceu. Em 1550, chegou a guir em frente. Em novembro de 2013, por ocasião da
Salvador a primeira remessa de africanos para ser ven- Semana da Consciência Negra, publicou o livro Origens
dida no mercado negreiro. da presença negra em Guarulhos – a África em nós.

Marcha da Consciência Negra em Guarulhos, 2009.

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2 - ÁFRICA: BERÇO DA HUMANIDADE

O portunamente o título do livro Origens da presença negra em Guarulhos – a África em nós, nos
faz compartilhar de uma constatação que surgiu antes de iniciarmos este capítulo e que acabou como título
da obra. Naturalmente, cada um de nós tem uma opinião a respeito da origem do homem moderno. Quiçá
teremos a oportunidade de ouvi-la, não só sobre o título, mas também no tocante ao conteúdo do trabalho
ora apresentado.
Uma volta à origem da vida e ao passado da humanidade, pensar o tempo e olhar os espaços, refletir a res-
peito dos hominídeos, do gênero Homo, bem como da parte da África que nos toca, se faz necessário. Assim como
as famílias modernas possuem linhagens

Arte: Jefferson Galdino


históricas – pai, mãe, tios, avós, bisavós,
tataravós etc. – a humanidade teve o
seu marco inicial: de onde se originou o
homem moderno? Nosso parente mais
próximo é possível de ser localizado há
cerca de 6,6 mil gerações. Visitas, so-
mente por meio da História.
As duas questões levantadas ini-
cialmente são verdadeiras. Existe uma
forte presença negra na cidade, resul-
tado de uma construção histórico-cul-
tural e uma hereditariedade africana
em nós.
Entre os cientistas, há a concor-
dância de que foi no continente africa-
no que o hominídeo e o gênero Homo
evoluíram e se espalharam, povoando o
planeta Terra e formando uma huma-
nidade sem raças. Mas, como pergun-
tou o poeta: “E a vida o que é? Diga lá,
meu irmão...” (Gonzaguinha).

11
...Toda matéria viva compartilha do mesmo ma- hominóideos. Os hominóideos, por sua vez, dividem-
terial e é constituída sobre a mesma molécula replicante, -se em três subgrupos: pongídeos, gorilíneos e hominí-
o DNA. Isso indica a unidade da vida, o fato de que as deos. A família hominídea inclui as espécies que evolu-
diferentes formas de vida não tiveram origens separadas. íram desde a separação dos chipanzés e tem parentesco
Ainda é surpreendente, embora seja fato conhecido, que mais próximo com os humanos. O gênero Homo evo-
todas as plantas e animais, e organismos uni e multicelu- luiu de uma única espécie hominídea.
lares se utilizam exatamente do mesmo código genético... Os restos de um hominídeo de 7 milhões de anos
Os genes são, essencialmente, a maneira de transmissão de – considerado o mais antigo representante da humani-
informação (para construção de novos indivíduos) de uma dade conhecido e próximo aos mais recentes antepassados
geração a outra. A fidelidade do mecanismo de cópia que comuns do chipanzé e do homem – foram desenterrados
está no cerne da estrutura do DNA é a base sobre a qual por uma missão de paleontólogos franco-chadiana no nor-
a continuidade e a similaridade são mantidas nas formas te do deserto do Chade (África saheliana) em 2001. (O
vivas... (FOLEY, 2003. p 40). Gênero Homo - Site – UNESP).
Por bilhões de anos o Universo existiu sem os hu- Ainda a respeito do desenvolvimento humano,
manos. A idade do Universo é calculada em 14 bilhões antes da descoberta de 2001, o fóssil mais conhecido
de anos. A Terra tem 4,6 bilhões de anos e a vida 3,5 era Lucy, Australopithecus Afarencis, com idade de 5 a
bilhões. Os hominídeos, 7 milhões de anos. Os huma- pelo menos 3 milhões de anos. Trata-se de descoberta
nos modernos: Homo sapiens, 200 mil, o Homo sapiens de 1974 feita pelo professor Donald Johanson na Eti-
sapiens, 40 mil anos e o homem americano, 14 mil anos. ópia, no deserto de Afar. O esqueleto Lucy é pequeno,
esbelto, de cérebro diminuto e bípede.
Dirk Beyer

120

O controle do fogo por seres humanos aconteceu há


1,5 milhão de anos.

A evolução humana é baseada em dados de pes-


Mpinedag

quisas de arqueólogos, biólogos, antropólogos, geólo-


gos, entre outros especialistas. Tudo que conhecemos
a respeito da evolução física e cultural do homem se
baseia nos fósseis que demonstram o desenvolvimento
corporal e linguístico que teve a espécie humana até
atingir sua forma atual.
O percurso evolutivo da humanidade foi longo.
No grande grupo dos antropoides estão dois subgru-
pos de primatas: os macacos propriamente ditos e os Esqueleto de Lucy. Em destaque, uma representação.

12
Durova
A disponibilidade dos recursos naturais: ali-
mento, água, rochas, abrigos, fogo etc. foram funda-
mentais para a manutenção física da espécie. Por meio
do relacionamento dos gêneros (macho-fêmea) se deu
a perpetuação da espécie, a transmissão de caracterís-
ticas genéticas e a multiplicação humana. A dispersão
a partir da África e o povoamento do planeta Terra
foram consequência do processo evolutivo.
Na África, há 2,5 milhões de anos, ocorreram
Do lado esquerdo: reconstrução de um crânio do Australo- mudanças climáticas que influenciaram o habitat. Um
pithecus. Do lado direito: crânio do Homo Sapiens.
ambiente fechado, de florestas úmidas, foi transfor-
Acreditamos que sobre a primeira parte do tema mando-se em campos mais abertos, de florestas áridas
deste capítulo foram fornecidas informações muito re- (savana). A alteração climática ocasionou a redução da
levantes para a nossa reflexão, porém ainda não foram quantidade de alimentos.
apresentados os nomes dos atores, seus feitos no tempo e O período coincide, por exemplo, na Etiópia e
no espaço, e, muito menos, o porquê e como eles se dis- na Tanzânia, com a descoberta de ferramentas em pe-
persaram para os continentes asiático, europeu, oceânico dras lascadas, que eram utilizadas pelo gênero Homo
e americano. Antes de expormos sobre os protagonistas, na coleta de alimentos mais duros: raízes e tubérculos.
cabe destacar que, dentre todas as características analisa- Desertificação e vida humana, pelo jeito, desde o início
das a respeito da evolução do gênero Homo, quatro me- da história da humanidade, não combinam. Onde o fe-
recem destaque: bipedalismo, aumento do tamanho do nômeno ocorre, grosso modo, parte da população pode
cérebro, relação com o meio ambiente e dos seres entre si. morrer, se adaptar ou migrar. Veja o que diz um espe-
À medida que se deu a evolução do gênero cialista, a respeito da separação da ascendência hominí-
Homo, é possivel observar que o tamanho do cérebro dea para o gênero Homo no período mencionado: [...]
foi aumentando (de 800 para 1.400 cm³). Postar-se Por volta de 2,5 milhões de anos atrás, e se sobrepondo em
de pé, entre outros fatores, significou liberar as mãos termos temporais com o Australopithecus[...] Há o gênero
para locomover-se e transformar a natureza com maior Homo[...] A maior parte dessas ocorrências são específicas
agilidade e eficiência. De modo especial, mereceu des- da África oriental ou meridional e não há hominídeos co-
taque a importância do dedo polegar opositor para se- nhecidos datados daquela época em qualquer outra região
gurar, atracar e manipular objetos. do continente ou do mundo. (FOLEY, 2003. p. 115).

Savana africana: mudança climática ocorrida há 2,5 milhões de anos.

13
Da África para o mundo, eles são os persona- cerca de 30% maior, quando confrontados com os cé-
gens de uma trama chamada humanidade. rebros dos Australopithecus afarencis e africanus.
Duas perguntas para a nossa reflexão: O que O Homo habilis vivia em grupo. Transportava
existe em comum e diferente entre o Homo sapiens ar- alimentos, provavelmente restos deixados por grandes
caico e nós? O que pode haver de comum e diferente carnívoros (carniça), e usava ferramentas rudimentares
entre eles: sapiens arcaicos e sapiens? Questões bastante de pedra lascada. Com a descoberta da espécie Homo
complexas. Por isso mesmo, temos a obrigação intelec- rudolfensis, instalou-se uma discussão entre os pesqui-
tual de fazê-las. sadores, ainda não concluída.
Após a apresentação deste capítulo, nossas res- O Homo rudol-

Durova
postas podem ser consideradas insuficientes, já que fensis pode ser o mais
apenas uma síntese foi mostrada sobre um tema tão antigo da espécie ha-
amplo, complexo, inconcluso, com visões e enfoques bilis. Um fóssil datado
diferenciados, mas, nem por isso, superficiais. de 1,9 milhão de anos
As indagações estão colocadas. No final deste foi encontrado, em
capítulo, as dicas do “Para Saber Mais” podem escla- 1972, no lado leste
recer ou aumentar o repertório de questões. É próprio do Lago Rudolf, Qu-
da gênese humana questionar, protestar, formular e ênia, cujo nome de-
responder às perguntas. Todo homem é um filósofo nominou a descober-
(Gramsci), portanto, todos os homens e mulheres são ta. Atualmente, ele se
sábios! Você sabe como começou essa história? chama Lago Turkana.
HOMO HABILIS – 2,4 A 2 MILHÕES Reconstrução do crânio do Em 1993, no Lago
Homo rudolfensis.
DE ANOS Malawi, fósseis en-
contrados foram datados em 2,4 a 1,6 milhões de anos.
Lillyundfreya

O volume craniano do Homo rudolfensis é maior (600 a


800 cm³), em relação ao Homo habilis. As duas espécies
coexistiram há cerca de 2 milhões de anos. Não se sabe
ainda qual das espécies é ancestral dos mais recentes
exemplares do gênero Homo.

HOMO ERECTUS – 2 A 1,7 MILHÕES


DE ANOS
Lillyundfreya

Homem habilidoso. O habilis viveu no leste e


no norte africano. Foram descobertos apenas alguns
restos fósseis, que exibem uma tendência clara para o
aumento do tamanho do cérebro (500 a 650 cm³). São

14
Yan Li HOMO SAPIENS – 200 MIL ANOS
Homem sábio. O Homo sapiens é a única espé-
cie animal de primata bípede do gênero Homo sobre-
vivente. Durante a era sapiens, ele ocupou a África, a
Ásia e a Europa. A partir da era Homo sapiens sapiens,
seus membros passaram a ocupar todos os quadrantes
do planeta Terra, hoje soma 7 bilhões de habitantes.

Ausejo1000
Reconstrução do crânio do Homen de Pequim.

Homem de postura corporal ereta. Manter-se de


pé (bipedalismo), olhar de frente e para cima, com ple-
no domínio corporal, só foi possível com a evolução da
espécie durante milhões de anos. A principal diferen-
ças, entre o Homo habilis e o erectus está no tamanho do
cérebro. Com um volume craniano entre 900 a 1.200
cm3, o Homo erectus tem seu ascendente no Homo er-
gaster. É, também, chamado de Homo sapiens arcaico.
Ele foi o primeiro a
Claire Houck

sair da África em busca de


alimento. Os fósseis mais
antigos foram descobertos
a partir do século XIX, na
China (Homem de Pequim
– dispersão de 1,7 milhão
de anos) e em Java, na In-
donésia (dispersão de 1,6
milhão de anos). A partir
dos anos 1950, foram loca-
lizados fósseis, também, na Estátua de Homo Sapiens no Museu da Evolução Humana,
em Burgos (Espanha).
África. O mais conhecido é
o do “Menino de Turkana”, Como foi visto, a caminhada da África para onde
encontrado no lago de mes- chegaram foi bastante longa. Quais explicações você co-
mo nome, na fronteira entre nhece a respeito do povoamento dos continentes? Já ou-
Etiópia e Quênia. Trata-se viu falar das hipóteses da radiação e a multiregional?
de crânio datado em 1,8 Entre os cientistas a teoria dominante é a da ra-
Reconstrução do Menino milhões de anos. Eram ha- diação, chamada também de origem única. Por meio de
de Turkana.
bitantes de cavernas, produ- provas materiais, argumentam que o Homo sapiens arcai-
ziam e usavam ferramentas bem mais elaboradas (como co começou sua evolução na África há cerca de 2 milhões
machados de mão). Provavelmente, foi a primeira espé- de anos. Percebe-se que a evolução sapiens foi longa e
cie a controlar o fogo. Esse marco no desenvolvimento cheia de minúcias. Homo sapiens arcaico (erectusergastus),
humano aconteceu entre 1,5 e 1 milhão de anos. O Homo sapiens e Homo sapiens sapiens. De acordo com os
controle do fogo, certamente, possibilitou o desloca- pesquisadores Walter Neves e Luís Beethoven: A saída
mento deles para os climas mais frios (Ásia-Europa). do homem moderno da África para o resto do mundo se deu

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em três grandes episódios: um por volta de 120 mil anos, e a garantia da sobrevivência fora do continente afri-
outro há cerca de 70 mil anos e o último e mais importante cano, em temperaturas muito frias. A partir da Europa
há aproximadamente 45 mil anos. (2008. p. 56). e da Ásia foram povoados os demais continentes. O
A hipótese de evolução multirregional defende Homo sapiens só atingiu o comportamento moderno
que populações regionais, anteriormente dispersas a por volta de 40 mil anos atrás.
partir da África (Homo erectusergastus, há mais de 1,5
milhão de anos) para a Ásia e a Europa, teriam evoluí-
do lentamente e se dirigido rumo à Oceania e à Améri-
ca. De acordo com essa hipótese, as características dos
humanos modernos apareceram em alguns grupos e se
espalharam por meio da miscigenação (fluxo gênico).
Nikolas Zalotockyj

Mapa da evolução multirregional.

Mapa da radiação (origem única).

Reconstituição facial do Homo ergaster. A presença do Homo sapiens (africano) na Euro-


Com base na hi- pa e na Ásia levou à extinção do Homo sapiens arcaico
Durova

pótese da origem única, (homo neanderthalensis).


concluimos que o povo- HOMO NEAnDERTHALENSIS
amento do planeta Terra
Ele está, em termo
Claire Houck

coube aos três fluxos sa-


de tempo, exatamente na
piens dispersos a partir da
transição da era Homo sa-
África, respectivamente:
piens – Homo sapiens sa-
120, 70 e 45 mil anos
piens. É, também, chamado
atrás. Um dos motivos
de sapiens arcaico. Convi-
para os dois últimos gru-
veu, conflitivamente, por
pos dispersarem-se pode
cerca de 60 mil anos com o
estar relacionado aos im-
Homo sapiens africano e foi
Reconstrução cranial do pactos planetários, causa-
Homo ergaster. extinto. Contam-nos Neves
dos pela supererupção do
e Piló [...] há 38 mil anos,
vulcão do Lago Monte Toba, iniciada há 74 mil anos.
ele [Continente Europeu]
Não podemos esquecer da importância que teve
estava densamente ocupado
o domínio de tecnologias que permitiram a dispersão

16
pelos neandertais, que resistiram bravamente à invasão

Anynobody
do homem moderno [africano] por pelos menos 60 mil
anos.. (2008. p. 58). O homo neanderthalensis foi uma
espécie humana robusta que viveu durante os últimos
135 e 29 mil anos. Os fósseis mais conhecidos foram
descobertos na Alemanha.
Tim Evanson

Erupção do vulcão Monte Toba.

Aqueles que pensam que as mudanças do pla-


neta se estagnaram, estão completamente enganados.
O clima está mudando e os continentes continuam
se afastando (cerca de 1 cm por ano). Novas mudan-
ças climáticas estão previstas. O planeta, assim como
a vida, continuam em plena erupção. A vida pulsa e
Reconstituição do homo neanderthalensis. os continentes se afastam. Quais as respostas para os
HOMO SAPIENS SAPIENS – 40 MIL ANOS novos desafios?

A era Sapiens Sapiens é um período de culminân-


cia e desfechos da nossa história social e natural. É um
momento de resumo, onde podemos visualizar a totali-
dade das barreiras “erguidas” pelo meio físico à evolução
humana. Foram desafios que obrigaram o gênero Homo
a se superar. Vencer impecilhos que tornaram seus re-
presentantes “donos” do planeta Terra, ultrapassando o
período de busca de alimento – caçador-coletor (noma-
dismo), chegando ao estágio sedentarizado (urbanizado).
Da experiência do Homo sapiens arcaico ao
Homo sapiens sapiens, somam-se mais de 2 milhões de
anos de evolução física e cultural. Nós somos o que
somos porque os nossos antepassados souberam desar-
mar as armadilhas “montadas” pelo meio ambiente.
Por armadilhas nos referimos aos impactos de
grandes proporções ambientais, causadores de mu-
danças climáticas, com interferências no modo de
vida dos nossos antepassados: savana africana (2,5
Último período glacial, também conhecido como Idade do
milhões de anos), efeitos do vulcão Monte Toba (74 Gelo, ocorreu aproximadamente entre 110 a 10 mil anos
mil anos) e a última Era do Gelo (110 a 10 mil anos). atrás e é a mais conhecida das glaciações.

17
HOMEM DE CRO-MAGNON No transcorrer do estilo de vida nômade (caça-
dor-coletor) para a forma sedentária (fixação inicial,
Elapied

por conta do desenvolvimento da agricultura) são


encontradas algumas respostas a respeito da gestação
dos primeiros núcleos com características urbanas. O
início das cidades europeias, asiáticas e orientais foi
forjado a partir dessa reviravolta no estilo de vida no
Paleolítico (2,5 milhões de anos a 10 mil anos a.C.).

Prof saxx
Desenho nas cavernas de Lascaux, na França, feitas pelo
Homem de Cro-Magnon.
Reconstituição do Homem de Cro-Magnon.
HOMEM AMERICANO – 14 mil anos
Em 1868, um crânio foi encontrado pelo geólogo

Pollini
Louis Lartet na Gruta de Cro-Magnon, sul da França, e
datado em 28 mil anos. Pelo visto os Cro-Magnon são
sapiens sapiens originários dos fluxos de dispersão dos sa-
piens africanos que, na Europa, com maiores evidências,
ocuparam o território da França, Espanha e Portugal.
O povo de Cro-Magnon ocupava as mesmas
cavernas durante todas as estações do ano, e tudo indi-
ca que foram os primeiros a começar a desenvolver o
estilo de vida sedentário. Migravam somente em caso
de necessidade.
Os Cro-Mag-
120

Ossada encontrada em Lagoa Santa, MG, Brasil.


non faziam pequenas
esculturas, gravavam Luzia – 11,5 mil anos – e Clóvis – 11,4 mil anos
e pintavam pedras – são os dois fósseis do homem americano – mais co-
(representações de ho- nhecidos e envoltos em polêmicas. Eles são motivo de
mens e animais). As discórdia científica, quando se trata da datação da ocu-
pinturas rupestres, de pação do continente americano, bem como da primeira
surpreendente beleza, etnia a chegar ao território brasileiro.
podem ser vistas em Quando se fala de Clóvis, os cientistas se di-
cavernas na França e videm em dois grupos de discussões: clovistas e pré-
Crânio do Homem de Cro-Magnon. na Espanha. -clovistas. Respectivamente, a maioria dos cientistas

18
Achados da Cultura Clóvis.

norte-americanos – defensores da Cultura Clóvis – e e originários da segunda onda de dispersão do Homo


dos sul-americanos – defensores, entre outros, de Lu- sapiens africano, ocorrida há 70 mil anos. Dizem eles:
zia. Entre os pré-clovistas, as conclusões em termos de Dessa vez, nossos primeiros representantes limitaram sua
tempo da ocupação do Brasil são bastante díspares. expansão para fora da África à faixa de clima quente que
De modo geral, as datas da ocupação da América do acompanha o sul da Ásia, abaixo do Himalaia, tendo
Sul giram em torno de 12 mil anos atrás. No caso do chegado ao Sudeste Asiático por volta de 60 mil anos e à
Brasil, variam entre: 100 mil e 14 mil anos. As dife- Austrália por volta de 45 mil anos [aborígenes australia-
renças de tempo estão em torno dos estudos efetuados nos]. É provável que os primeiros humanos que chegaram
em São Raimundo Nonato, no Piauí, e Lagoa Santa, à América, por volta de 14 mil anos [Povo de Luzia],
em Minas Gerais. sejam derivados dessa expansão a partir do Sudeste Asiá-
A Cultura Clóvis é assim chamada desde 1932 tico, só que em direção ao norte da Ásia, provavelmente,
por conta de o principal sítio arqueológico estar perto por via litorânea. (2008. p. 57).
da cidade de Clóvis, Califórnia, EUA. Clóvis era tido,
até o começo do século XX, como o mais antigo habi- LUZIA – 11,5 MIL ANOS
tante da América. Essa visão vem sendo contestada nos O nome Luzia, na verdade um apelido, foi dado
últimos anos por vá- por Walter Neves. Ele se
rias descobertas que inspirou em Lucy, fóssil
aparentam ser mais Australopithecus afarensis
antigas. Entre elas, de cerca de 3,5 milhões
pelas provas (antro- de anos, achado na Eti-
pológicas-arqueoló- ópia, em 1974, onde
gicas) em Lagoa San- “passeou” inicialmente
ta, Minas Gerais. a nossa reflexão a res-
Segundo Ne- peito dos seres humanos
ves e Piló, quanto ao modernos e seu passado
homem americano e, africano. Ao estudar a
especialmente, aos morfologia craniana de
primeiros brasilei- Luzia, Neves e Héctor
ros, argumenta-se que Pucciarelli (do Museo
Aborígene australiano. Reconstituição facial de Luzia. de Ciencias Naturales
eles eram negroides

19
Cesar Cunha Ferreira
Claire Houck

Fonte: OLIVEIRA, 2012. p. 27.

de La Universidad de La Plata) identificaram traços característico dos asiáticos, dos quais os índios modernos
semelhantes aos dos atuais aborígenes da Austrália e derivam. (Pesquisa Fapesp, número 195). Walter Alves
dos negros da África em Luzia. Neves é arqueólogo e antropólogo, coordenador do La-
O crânio de Luzia é de uma mulher com aproxi- boratório de Estudos Evolutivos Humanos do Institu-
madamente 20 anos de idade. Foi encontrado por uma to de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
missão arqueológica franco-brasileira, coordenada pela Como foi visto, nossas raízes biológicas e cul-
arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, no iní- turais brasileiras têm origem na África. Todo ser hu-
cio de 1970. Ele estava em Lapa Vermelha, município mano traz em si a forma inteira da condição humana.
de Lagoa Santa, região metropolitana de Belo Horizon- As diferenças de cor da pele encontram explicação na
te. Esse local é muito conhecido desde a segunda metade evolução biológica adaptativa. Sem atribuição de juízo
do século XIX, por descobertas arqueológicas do natu- valorativo, a antropologia classifica os grandes grupos
ralista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880). humanos em “europoide” (branca), “mongoloide”
Hector e Neves são autores da hipótese de que o (amarela) e “negroide” (negra).
povoamento das Américas teria sido feito por duas cor- A respeito do tema “raças humanas”, para apro-
rentes migratórias de caçadores-coletores, ambas vindas fundamento da nossa reflexão, veja o que diz o prof.
da Ásia, provavelmente pelo Estreito de Bering, e ultra- Sérgio Pena: Não existem “raças” humanas. Elas são pro-
passado os dois continentes por meio de um braço de duto da nossa imaginação cultural, um conceito emprega-
terra chamada Beríngia (que se formou com a queda do do não só para estudar populações, mas também para criar
nível dos mares durante a última idade do gelo). esquemas classificatórios que parecem justificar a domina-
Disse Neves: O nosso continente foi colonizado por ção de alguns por outros [...] A emergência do racismo e
duas levas de Homo sapiens vindas da Ásia. A primeira a cristalização do conceito de raças coincidiram historica-
onda migratória teria ocorrido há uns 14 mil anos e foi mente com dois fenômenos da Era Moderna: o início do
composta por indivíduos parecidos com Luzia, com mor- tráfico de escravos da África para as Américas e o esvane-
fologia não mongoloide, semelhante à dos atuais austra- cimento do tradicional espírito religioso em favor de inter-
lianos e africanos... A segunda leva teria entrado aqui há pretações científicas da natureza [...] O genoma humano
uns 12 mil anos e seus membros apresentavam o tipo físico tem cerca de 20 mil genes e sabe-se que poucas dúzias deles

20
controlam a pigmentação da pele e a aparência física dos em torno de 500 anos, quando surgiria entre nós os
humanos. Está 100% estabelecido que esses genes não têm termos “negros da terra” e “negros da Guiné”.
influência alguma sobre qualquer traço comportamental O termo raça foi ressignificado pelo Movimento
ou intelectual. (2008. p. 10 e 14) Negro que, em várias situações, utiliza com um sentido
Como visto nos estudos a respeito do genoma político e de valorização do legado deixado pelos afri-
humano, este não identifica diferenças intelectuais e canos. É importante, também, explicar que o emprego
comportamentais em pessoas, tendo por base os tipos do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para
de cores da pele humana. O termo “raça” é um con- marcar que essas relações tensas por conta das diferen-
ceito cultural que passou a ser difundido a partir da ças na cor da pele e traços fisionômicos o são também
colonização portuguesa, no início do século XVI, algo em virtude da raiz cultural plantada na ancestralida-
de africana, que difere em visão de mundo, valores e
Jacques Taberlet

princípios da de origem indígena, europeia e asiática.


Fonte: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-
cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africano (p. 13).
Ser negro no Brasil não se limita às características
físicas. Trata-se, também, de uma escolha política. Por
isso, o é quem assim se define [...] Cabe lembrar que preto
é um dos quesitos utilizados pelo IBGE para classificar,
ao lado dos outros – branco, pardo, indígena –, a cor da
Habitante do Benin, África. população brasileira. Pesquisadores de diferentes áreas,
inclusive da educação, para fins de seus estudos, agregam
Karpidis

dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já


que ambos reúnem, conforme alerta o Movimento Negro,
aqueles que reconhecem sua ascendência africana.
Fonte: Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africano (p. 15).

:: PARA SABER MAIS ::


Habitante do Cazaquistão, Ásia. • Pena, Sérgio. Humanidade sem raças?,
São Paulo: PubliFolha, 2008 (Série 21).
Christopher

• Neves, Walter Alves e Piló, Luís Be-


ethoven. O povo de Luzia. São Paulo:
Globo, 2008.
• Foley, Robert. Os humanos antes da
humanidade: uma perspectiva evolucionista.
São Paulo: Editora UNESP, 2003.
• Site da UNESP de Assis. O Gênero Homo.
• Documentário: Como nos tornamos huma-
nos: uma história de adaptação e sobre-
vivência. DVD. Ediouro – Duetto Editora.
Habitante de Cuba, América Central.

21
3 - NEGROS DA TERRA E NEGROS DA GUINÉ NA
FORMAÇÃO DE GUARULHOS

A cidade foi fundada em 1560 e o ouro foi descoberto na região em 1597. A criação do Mu-
nicípio se deu em 1880 e a libertação da escravidão no dia 13 de maio de 1888. Entre o ciclo do ouro (1597)
e o da indústria (1960) encontra-se a proto-indústria, produção artesanal de telhas e tijolos cozidos, com início
na transição do século XIX para o século XX. Período rico de acontecimentos históricos, como a chegada dos
imigrantes estrangeiros, a libertação da escravidão, a proclamação da República, repovoamento do negro de
Guarulhos (por meio da migração nacional – campo – cidade).
Dos 453 anos da história de Guarulhos, por 328 anos prevaleceu a forma de trabalho escravo – soma
dos tempos de trabalho dos negros da terra e dos negros da Guiné. Toda a riqueza produzida no período tem as
marcas das mãos escravizadas.

Ian Beatty

Tapuia. Obra de Albert Eckhout. Negro africano.

22
Procissão do Divino Espírito Santo em 1906 em frente à Igreja Matriz de Guarulhos (inaugurada em 1761). Aparentemente, os ho-
mens negros que carregam o andor foram libertos da escravidão a aproximadamente 18 anos passados (Lei Áurea, 13/05/1888).

FUNDAÇÃO DE GUARULHOS de Guarulhos. Os demais registros a respeito dos 320


De acordo com a Lei Municipal n 2.789/1983
o anos de escravidão (anteriores à criação do Município de
Guarulhos foi fundada no dia 8 de dezembro de 1560 Guarulhos) se acham nos livros Atas da Câmara de Ve-
pelo padre jesuíta Manoel de Paiva. Em torno da data de readores de São Paulo e nos arquivos públicos da capital.
fundação, do local da edificação da primeira capela do Antes da presença dos colonizadores portugue-
aldeamento e do povo aldeado não há consenso histo- ses em terras brasileiras e em Guarulhos, segundo Aziz
riográfico. A emancipação de Guarulhos da Vila de São Ab’ Saber, em Gênova, em 1447, havia sido decidido
Paulo se deu quando foram criados os três poderes polí- que o ouro era a base monetária internacional, tipo
ticos locais: Executivo, Legislativo e Judiciário, no dia 24 moeda única, a exemplo do dólar atualmente. A caça
de março de 1880, por meio da Lei Provincial no 34. ao ouro teria sido um dos elementos propulsores, das
Dos 453 anos da história da cidade, duran- incursões nas terras da Capitania de São Vicente. (Ab’
te 320 anos da vida política e administrativa (aldeia Saber, Aziz, 2004, p. 229).
[1560], distrito [1675] e freguesia [1685]), Guarulhos No transcorrer do século XVI, alguns aconteci-
foi subordinado ao Município de São Paulo. mentos irão marcar definitivamente a história de Gua-
rulhos. No dia 22 de janeiro de 1532, Martim Afonso
CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE GUARULHOS
de Sousa fundou a Vila de São Vicente. São Paulo foi
Do dia 24 de janeiro de 1881 ao dia 13 de maio fundado em 1554 e tornou-se vila em 1560, mesmo ano
de 1888, respectivamente, data da instalação e posse dos da fundação de Guarulhos. Passados 36 anos da funda-
primeiros vereadores eleitos, bem como os sete anos que ção de Guarulhos, em 1597, Afonso Sardinha, o velho,
antecedem a libertação da escravidão, os registros se en- e Afonso Sardinha, o moço, descobrem ouro na Serra
contram no primeiro livro Ata da Câmara de vereadores Jaguamimbaba em Guarulhos (Taques 1980, p. 94, 95).

23
DESCOBERTA DO OURO Correia Sardinha recebeu uma carta de sesmaria para
Em 1598, o governador geral das minas de ouro minerar ouro no Rio Maquirobu (atual Rio Baquirivu
do Brasil, d. Francisco de Souza, ao ser informado dos Guaçu). Portanto, no início do século XVI já estavam
achados dos Sardinha mandou da Bahia como admi- dadas as condições materiais, políticas e jurídicas para
nistrador e capitão de São Paulo, Diogo Gonçalves a extração de ouro, prioritariamente, no território pau-
Laço, o alferes Jorge João e os experimentados minera- lista. Obviamente, utilizando-se da força de trabalho
dores: Gaspar Gomes Mualha e Miguel Pinheiro Zu- escravo – dos negros da terra e dos negros da Guiné.
rara, todos com salários fixos. (Taques 1980, p. 33). Do primeiro lote de escravos vendidos no mer-
Em 1600 foi aberta a Estrada Geral (trechos cado em Salvador, em 1550, ao início da descoberta do
das atuais, Avenida Guarulhos, Ladeira Campos Sales, ouro em Guarulhos, já haviam decorrido 47 anos de
Rua Dom Pedro II, Avenida Monteiro Lobato, Es- efetivação do trabalho escravo no Brasil. A atividade de
trada de Nazaré Paulista, Estrada do Saboo, Avenida mineração de ouro em Guarulhos demarca o início da
Papa João Paulo I, entre outros trechos). formação urbana da cidade, tendo por base o trabalho
Em 1603 foi publicado o primeiro regimen- escravo. Por meio das mãos escravizadas foram abertas es-
to das minas de ouro do Brasil e, em 1612, Geraldo tradas, erguidas igrejas, construídas casas e lavrada a terra.
Registros documentais a
respeito da existência de escravos
negros em Guarulhos se encon-
tram nos arquivos públicos da
cidade de São Paulo e em dois
livros dos cartórios da cidade,
livros zero e um – “Livros de
Registro de Propriedades”. Pode
parecer estranho, mas não é. Es-
cravo era propriedade de um ou
de vários homens bons da terra,
assim chamados por possuir fa-
zendas, dinheiro, escravos, se-
rem brancos e católicos.
A escravidão pode ser
definida como o sistema de tra-
balho no qual o indivíduo (o es-
cravo) é propriedade de outro,
podendo ser vendido, doado,
emprestado, alugado, hipote-
cado, confiscado. Legalmente,
o escravo não tem direitos: não
pode possuir ou doar bens e
nem iniciar processos judiciais,
mas pode ser castigado e puni-
do. Fonte: Instituto Brasileiro de
Atual Ladeira Campos Sales, em 1925. Ao fundo, torre da Igreja Matriz (construída em Geografia e Estatística (IBGE).
taipa de pilão, entre 1741 e 1761) vista a partir de trecho da antiga Estrada Geral.

24
Mercado de Negros. Obra de Johann Moritz Rugendas, 1835. Local de venda de negros escravizados no Rio de Janeiro.

REGISTRO DE ESCRAVOS EM LIVROS de escravos eram: Matheus da Silva Bueno (Itaverava),


DE PROPRIEDADES 50; Antônio Pedroso de Almeida (Bom Jesus), 18; alfe-
Ser escravo era pertencer a um proprietário, res Félix da Silva Lopes (Guavirotuba), 16; alferes João
portanto, passível de registro em cartórios. Da época, Manoel Machado (Lavras), 15; capitão José de Almei-
quando Guarulhos era freguesia (1685 a 1880), nos da Ramos (Lavras e Tapera Grande), 14. Livro Cidade
livros pares e ímpares, nos dois primeiros cartórios da Símbolo (p. 45). Do total de 183 escravos, 70 estavam
cidade, há registros de propriedades rurais e partilhas distribuídos entre médios e pequenos proprietários.
de escravos nas divisões de bens. Refletindo sobre a situação do negro escravizado
O livro Guarulhos: cidade símbolo traz uma mos- no Brasil colonial, Walter e Wlamyra chamam a aten-
tra do começo do século XIX, enfocando a quantidade ção para alguns aspectos: O índio escravizado era cha-
de propriedades, o número de proprietários e de escra- mado de negro da terra, distinguindo assim do negro da
vos. Nos livros do primeiro e do segundo cartórios de Guiné, como era identificado o escravo africano nos séculos
Guarulhos, na sequência dos livros pares (zero, dois, XVI e XVII [...} O apresamento de indígenas não atendia
quatro etc.), o livro zero foi aberto em 26 de março de ao interesse da Coroa portuguesa de ligar o Brasil ao comér-
1840 e está no segundo cartório. No primeiro cartório cio europeu e africano [...] era uma atividade exclusiva dos
há os livros ímpares (um, três, cinco etc.). O livro núme- colonos (colonizadores), dele ficava de fora o grande comer-
ro um foi aberto em 19 de setembro de 1875. ciante sediado em Portugal ou aquele que atuava no tráfico
O tombamento das propriedades rurais de Gua- africano. (Uma história do negro no Brasil, pg, 40).
rulhos de 1817, feito pelos capitães Francisco Leandro
Leme de Moraes e José de Almeida Ramos, registrou
183 escravos pertencentes a 28 proprietários de terras
(a data coincide com o esgotamento da mineração de
ouro). Localização dos proprietários por bairros: Bom
Jesus – três; Bonsucesso – sete; Guavirotuba – três; Ita-
verava – dois; Lavras – cinco; Pirucaia – quatro; São
Gonçalo – um; e São Miguel (bairro dos Pimentas) – Livro de registro de propriedade de Guarulhos (inclusive
dois. De acordo com Noronha, os maiores proprietários de negros escravizados) de 1840.

25
4 - MARCAS E MEMÓRIAS... A GUARULHOS DOS 328
ANOS DE ESCRAVIDÃO

C omo vimos no capítulo anterior, nos 453 anos da história de Guarulhos, em 328 anos prevaleceu
a forma de trabalho escravo. Antes de investirem maciçamente no tráfico africano, os colonos portugueses recor-
reram à exploração do trabalho dos povos indígenas, e logo em seguida dos negros africanos.
Em Guarulhos, a mineração de ouro iniciada em 1597 com a descoberta das antigas lavras de Nossa Se-
nhora da Conceição dos Maromomi, nome antigo de Guarulhos (1560–1640), foi atribuída ao bandeirante pau-
lista Afonso Sardinha, o velho, e a seu filho, Afonso Sardinha, o moço, além de ao minerador Clemente Álvares.

Soldados índios de Curitiba escoltando selvagens. Obra de Jean-Baptiste Debret.

26
Capitania de São Vicente com as quatro vilas: São Vicente, Itanhaém, Santos, São Paulo e aldeamentos indígenas sob
a catequese dos padres jesuítas (1552-1597). Adaptada por Benedito Calixto.

Conforme o pesquisador João Barcellos, em O à conquista do Pico do Jaraguá (1593). Em 1597, che-
império do capitão Afonso, Sardinha possuía terras em gou a Guarulhos e estabeleceu garimpo na atual Serra
Santos e fazia comércio de um pouco de tudo, incluin- do Itaberaba, nos bairros Capelinha e Morro Grande.
do escravos. Quase sempre estava acompanhado pelo Possivelmente, também no Tanque Grande.
filho, o moço, e pelo perito em minas de ouro Cle- Afonso Sardinha, o moço, morreu em com-
mente Álvares, que ele fez seu sócio. Quando Sardi- bate em 1604, e seu pai Afonso Sardinha, o velho,
nha decidiu montar casa na Vila de Piratininga, já era em 1616. Corroborando as afirmações de Barcellos
um homem poderoso, e isso o deixou muito à vontade em um mapa intitulado Capitania de São Vicente e
para se integrar ao poder político. adjacências (original – 1553-1597), versão de Bene-
dito Calixto de 1927 (acima), é possível visualizar a
localização do Pico do Jaraguá, bem como a Serra Ja-
guamimbaba (parte de Guarulhos – Itaberaba), o Rio
Anhemby (Tietê), Guarus, São Miguel, Pinheiros, Ca-
rapicuhyba, São Paulo de Piratininga etc.
Assinatura de Afonso Sardinha, o velho. Data desconhecida. Por mais de 300 anos, a maior parte da riqueza
Na casa da vereança da Vila de São Paulo, ele consumida no Brasil ou exportada foi fruto da explo-
foi vereador-almotacel (controlador dos pesos e me- ração do trabalho escravo. As mãos escravas extraíram
didas) e presidente da edilidade. Em 1592, propôs-se ouro e diamantes das minas, plantaram e colheram
“capitão de gentes de guerra” para defender a vila e, cana, café, cacau, algodão, entre outros produtos tro-
ao mesmo tempo, cuidar dos seus interesses rurais e picais de exportação.
mineralógicos. Depois de ter faiscado e extraído ouro Veja o que nos diz os historiadores Walter e
em Cubatão e em Guarulhos, ele saiu de Santos para Wlamyra: Os escravos também trabalhavam na agri-
fixar residência na Vila de São Paulo, e logo deu início cultura de subsistência, na criação de gado, na produção

27
de charque, nos ofícios manuais e nos serviços domésticos. nheciam os caminhos e locomoviam-se rapidamente,
Nas cidades, eram eles que se encarregavam do transporte tendo em vista a experiência em busca de frutos, raízes,
de objetos e pessoas e constituíam a mão de obra mais mel, caça e pesca. Por serem hábeis “andarilhos”, por
numerosa empregada na construção de casas, pontes, fá- certo, a partir de 1640, foram intensamente utilizados
bricas, estradas e diversos serviços urbanos. Eram também no transporte de carga entre Guarulhos e o Porto de
os responsáveis pela distribuição de alimentos, como ven- Santos, passando por Bonsucesso – sentido São Mi-
dedores ambulantes e quitandeiras que povoaram as ruas guel Paulista ao Porto de Santos.
das grandes e pequenas cidades brasileiras. (Uma história
OS INDÍGENAS TUPI-GUARANI E OS
do negro no Brasil, p.65).
NEGROS AFRICANOS NA MINERAÇÃO
Há indícios históricos e arqueológicos de que
DE OURO
pode ter havido uma combinação de trabalho escravo
dos negros da terra e dos negros da Guiné nas lavras Em 1598, d. Francisco de Souza, governador-
de ouro de Guarulhos. Paleoíndios, indígenas e negros -geral do Brasil à época, mandou trazer do Espírito
africanos, possivelmente, ocuparam funções diferen- Santo 200 “índios” para as minas de ouro de São Pau-
ciadas na cadeia produtiva das lavras de ouro. lo, denominadas na época como: Jaguamimbaba, Jara-
Os paleoíndios Maromomi, os primeiros a “ha- guá, Sorocaba, Paranaguá e Parnaíba.
bitar” Guarulhos, eram coletores e muito fortes. Co- O período de 1597 a 1820 compõe o início e o
fim da mineração de ouro em Guarulhos, portanto, 223
anos de história que deixaram muitas marcas das “mãos”
negras escravizadas na paisagem e na memória da cidade.
Em 1983, a arqueóloga Lúcia Juliani encontrou
no garimpo de ouro do Ribeirão das Lavras um caco
de cerâmica que possui traços em ‘x’ e zigue-zague. O
emprego de incisões em estilos geométricos está re-
lacionado aos padrões usuais no oeste da África. No
Brasil, as decorações incisas foram associadas às po-
pulações da África, inicialmente, por Dias Júnior. É
necessário estudar a cerâmica encontrada no local para
reconstituir e certificar-se da presença negra no garim-
po de ouro do Ribeirão das Lavras.

Lavagem do minério de ouro. Obra de Johann Moritz Rugendas. Caco de cerâmica encontrado no Ribeirão das Lavras, em 1983.

28
portância histórica que possui, no dia 8 de dezembro
de 2008 a Rua Dom Pedro II ganhou uma marca es-
cura no chão, símbolo que ilustra o uso exclusivo da
igreja pelos escravos.
A Igreja do Rosário integrou o cenário do cen-
tro histórico por 180 anos. Foi demolida após quatro
anos de discussões (1927 a 1930), no mês de agosto de
1930. Em compensação, no local da Igreja dos Pretos,
demolida na Rua Dom Pedro II, na atual Praça do Ro-
sário, foi reconstruída outra igreja. Em 20 de novem-
bro de 2010, por ocasião das comemorações dos 450
anos de fundação de Guarulhos, a Folha Diocesana
informou a alteração do antigo nome Nossa Senhora
Parede de taipa de pilão. Bairro das Lavras, em Guarulhos.
do Rosário de Fátima para Nossa Senhora do Rosário,
No bairro das Lavras há um fragmento de uma Mãe dos Homens Pretos, e São Benedito.
parede de taipa de pilão, no bosque do loteamento Ma- As confrarias ou irmandades religiosas, dedicadas à
ria Clara, mencionado como remanescente do Casarão devoção de santos católicos, espalharam-se por diversas loca-
do bairro das Lavras ou da senzala dos escravos.
Em 1795, constam registros no Arqui-
vo Público do Estado de 249 pessoas caracte-
rizadas como escravos no perímetro das lavras
de ouro de Guarulhos, assim distribuídas: 23
no bairro do Senhor do Bom Jesus; 86 no
bairro da Capela; e 140 no bairro de Lavras.
Mais três lugares são apontados como
senzalas no perímetro das lavras de ouro. No
Pico do Itaberaba existem fragmentos de uma
parede de adobe da senzala dos escravos da Ta-
pera Velha, local onde moraram os descendentes
de famílias escravizadas: Beijo, Gino e Donária
Pantaleão (relatos orais); no Tanque Grande, os
alicerces da Casa de Pedra; e na casa sede da Fa-
zenda Bananal. No caso desta última, atual Sítio
da Candinha, não há dúvida sobre a existência
de escravos na fazenda. Pesquisadores divergem
apenas quanto à localização da senzala dos es-
cravos. No casarão da fazenda, construído em
1825, suas grossas paredes de taipa de pilão tam-
bém foram erguidas pelos braços escravizados.
A igreja e o cemitério da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Irmãos Pretos,
bentos em 1750, foram patrimônios erguidos Mapa da mineração de ouro de Guarulhos (adaptado). Fonte: Inst. Geográ-
pela Irmandade dos Irmãos Pretos. Pela im- fico e Geológico – IGG/Sec. da Agricultura do Estado de São Paulo, 1950.

29
lidades brasileiras, destacando-se como instituições em tor-
no das quais os negros se agregaram de forma mais ou me-
nos autônoma. Elas funcionavam como sociedades de ajuda
mútua. Seus associados contribuíam com joias de entrada
e taxas anuais, recebendo em troca assistência quando do-
*
entes, quando presos, quando famintos ou quando mortos.
Quando mortos, porque uma das principais funções das ir-
mandades era proporcionar aos associados funerais solenes,
com acompanhamento dos irmãos vivos, sepultamento den-
tro das capelas e missas fúnebres. (João José Reis. Revista
Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3, 1996, p. 1)

* Luís Ponte, mestre do grupo de Congada do


Taboão, morador da antiga Estrada dos Veigas,
atual P.A. Paraíso. Foto da década de 1950/1960.

como patrimônios da humanidade, não encontrou os


nomes dos seus construtores e dos cozinheiros. Do
outro lado da Calunga Grande (nome dado pelos ne-
gros africanos no Brasil ao Oceano Atlântico) Brecht
atreveu-se a perguntar:
“Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros
Trecho da escritura do terreno da Igreja da Irmandade dos estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra?
Imãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário da Fregresia de
Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos (nome original), E a Babilônia, várias vezes destruída, quem a reconstruiu
lavrada no dia 30 de agosto de 1930. tantas vezes? Em que casas da Lima dourada moravam os
As formas de organização e exploração da força construtores? Para onde foram os pedreiros na noite em
de trabalho dos negros da terra e de africanos em Gua- que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma
rulhos duraram por mais de três séculos (1560–1888). está cheia de Arcos do Triunfo. Quem os ergueu?
Foram milhões de horas de trabalho e vidas humanas “Sobre quem triunfaram os Césares? A decan-
ceifadas para extrair o ouro, abrir caminhos, construir tada Bizâncio tinha somente palácios para os seus ha-
estradas, bem como as igrejas de Nossa Senhora da Con- bitantes? Mesmo na lendária Atlântida, os que se afo-
ceição, do Bom Jesus da Cabeça, do Pirapora (antiga), gavam gritaram por seus escravos na noite em que o
de São Benedito e de Nossa Senhora do Bonsucesso. mar a tragou. O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ainda não existe pesquisa para responder e talvez Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer
nunca saibamos quais foram os escravos que ergueram os um cozinheiro? Filipe da Espanha chorou, quando sua
aquedutos, as taperas, os casarões, os canais de mineração Armada naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico
revestidos de pedra seca, os valos velhos de demarcação das II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além
propriedades, quais os componentes dos grupos de Mo- dele? Cada página, uma vitória. Quem cozinhava o
çambique, de Congadas, de Reisados etc., que hoje são banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem
considerados patrimônios culturais, materiais e imateriais. pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões”.
Bertold Brecht, observando fatos da história Perguntas de um trabalhador que lê. (Brecht, Poe-
e a construção de alguns monumentos reconhecidos mas: 1913-1956, Brasiliense, 1986)

30
Duto de 96 metros de extensão no Ribeirão Tomé Gonçalves. Água utilizada para extração de ouro, 2011.

MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS
O processo de ocupação humana no território
não pode ser visto apenas do lado da produção de ri-
queza econômica. Para além do processo produtivo, é
possível observar nas múltiplas manifestações da cul-
tura material e imaterial, na toponímia, no modo de
se alimentar e de se vestir, como foi a interferência e a
assimilação dos diferentes povos na localidade.
No tocante à resistência dos negros africanos
escravizados em Guarulhos, seis aspectos chamam a
atenção: as atitudes do preto Damião; a existência das
igrejas dos negros, as festas da Carpição e de Nossa
Senhora do Bonsucesso; o Ribeirão do Quilombo e o Santa Cruz de Cabrália (BA). Coroa Vermelha, local da primeira
Capão do Quilombo; o aparato repressivo de combate missa celebrada no Brasil pelo Capelão da frota de Pedro
Álvares Cabral.
às fugas de escravos.
Erguer uma cruz, construir uma capela para
MEMÓRIAS E IMAGINÁRIO – EXALTA- apresentar aos negros da terra e aos negros da Guiné
ÇÃO E CAPELAS DE SANTA CRUZ – outro modelo religioso –, significava mais que uma
A cruz é considerada o símbolo maior da fé cris- premissa colonial. Era uma missão que extrapolava os
tã. No Brasil, a exaltação a Santa Cruz foi o primeiro limites terrestres, significava uma conquista para além
ato religioso dos colonizadores que desembarcaram em dos limites físicos do território e das riquezas naturais.
Porto Seguro no dia 22 de abril de 1500. Esse foi o Era na verdade vencer a “disputa” no campo do imagi-
local da celebração da primeira missa, onde foi erguida nário religioso e, aí sim, conquistar as mentes e os co-
uma cruz e batizaram o Brasil com o nome de Terra rações dos habitantes do Novo Mundo: a conversão de
de Vera Cruz (1500 a 1501) e, depois, Terra de Santa povos politeístas (que acreditavam em vários deuses,
Cruz (1501 a 1503). Os poleoíndios, os indígenas e os considerados pagãos) para a religião cristã (crença em
negros africanos eram considerados pessoas pagãs, por um único Deus, o monoteísmo). A conversão dos na-
não serem batizados dentro da religião católica. tivos era o maior objetivo da missão católica no Brasil.

31
Nesse contexto, Jesus Cristo, o filho de Deus,
é apresentado pregado em uma cruz de madeira. A
cruz, para os cristãos, simboliza ao mesmo tempo o
sofrimento, a morte e a ressurreição de Cristo. Assim,
como aconteceu em 1500 em Porto Seguro (exalta-
ção a Santa Cruz) os colonizadores, por onde passa-
ram, expandiram a religião católica, edificando cruzes
e construindo pequenas capelas, chamadas de Santa
Cruz. Guarulhos teve várias delas.
Antiga Capela de Santa Cruz, na Praça Oito de Dezembro,
No mapa mais antigo de Guarulhos, datado de
no Taboão, demolida em 1965. 1932, estão registradas sete capelas de Santa Cruz. Um
detalhe chama atenção, todas estão localizadas às mar-
gens de estradas. Na Capela de Santa Cruz da Praça
Oito de Dezembro, outro fato desperta nosso olhar: a
capela foi construída em meio a uma “aldeia” de negros
africanos escravizados. Partindo do centro de Guaru-
lhos pela antiga Estrada Geral, temos: Capela de Santa
Cruz do Valo Velho (atual bairro Vila Fátima); San-
ta Cruz do Taboão (Praça Oito de Dezembro, atual
Paróquia Santa Cruz); Santa Cruz do Morro dos Sete
Pecados (Estrada dos Veigas); Santa Cruz de Seis Pon-
tes (Parque CECAP); Capela de Santa Cruz dos Olhos
D’Água (Jardim Presidente Dutra, atual Paróquia de
Santa Cruz); Capela de Santa Cruz da Estrada Velha
de São Miguel (Cumbica); e a Capela de Santa Cruz
do Cabuçu (Estrada do Morro do Sabão). Nos livros
dos autores Noronha e Ranali citados nas referências
bibliográficas, há registros de outras capelas de Santa
Capela de Santa Cruz, reconstruída no Sítio Bom Jardim,
próximo à Praça Oito de Dezembro, no Taboão. Cruz em território guarulhense.

Interior da Capela reconstruída, onde estão as duas cruzes


Réplica da Capela de Santa Cruz, inaugurada em de cedro em homenagem ao negro sepultado na Praça Oito
03/03/1980, no Sítio Bom Jardim. de Dezembro, por volta de 1850.

32
Em um recorte de jornal não identificado, sem
data, pertencente à família Adão Prado, extraímos as se-
guintes informações a respeito da Capela de Santa Cruz
do Taboão: A antiga Capela de Santa Cruz se erguia onde
hoje se acha a Praça Oito de Dezembro (situada, exata-
mente, onde está a base comunitária da polícia militar).
Foi demolida [...] No entanto, as velhas imagens de an-
tigamente foram abandonadas, o que revoltou os antigos
moradores do bairro. Assim, reuniram as velhas imagens, as
cruzes de cedro, o cruzeiro, e construíram a diminuta capela
na Rua Manoela Pires Adão, seguindo fielmente a imagem Cacilda Adão do Prado, Sítio Bom Jardim, 2013.
da velha igreja, embora em tamanho reduzido, 2 x 2,20 muita gente. Um dos escravos havia contraído a moléstia
m. A nova capela foi inaugurada em 3 de março de 1980. e faleceu. Como era muito querido, foi sepultado tendo
duas cruzes de cedro. No local de sua sepultura é que nas-
ceu a capela, e essas duas cruzes é que ainda figuram na
pequena capela que a substituiu.
Finaliza a reportagem: Na Capela de Santa
Cruz havia congadas, festas juninas, e o grande acon-
tecimento foi a vinda da imagem de Nossa Senhora de
Fátima, que ali esteve várias semanas quando da sua
vinda de Portugal para o Brasil.
Segundo Cacilda Adão do Prado (89 anos de
idade), certamente uma das herdeiras do escravo afri-
Capela de Santa Cruz do Morro dos Sete Pecados, local-
izada na Variante da Estrada dos Veigas. cano sepultado na Praça Oito de Dezembro (1850), o
terreno situado entre o CEU Taboão, o Supermercado
Lopes, a Tecelagem Santo Amaro, o Centro Social da
Igreja Católica e o Banco Bradesco (Rua do Bom Jesus)
era uma aldeia de antigos negros de origem africana. Seu
depoimento foi colhido no dia 24 de julho de 2013. No
Sítio Bom Jardim, Praça Oito de Dezembro, os afrodes-
cendentes moram e mantêm duas capelas de Santa Cruz
em funcionamento. Esses Terrenos que foram reconhe-

Capela de Santa Cruz do Cabuçu, Estrada do Sabão.

Continua a reportagem: Sem documentação que


comprove, a velha igreja de Santa Cruz foi erguida em
meados do século XIX (1850) por um negro africano, a
mando da princesa Isabel. O próprio imperador d. Pedro
II, em suas viagens que fazia a São Paulo, costumava
passar pelo Taboão e visitar a capela. Detalha o recorte
de jornal: Houve uma época em que uma grande pra-
No centro da foto, Cacilda Adão do Prado entre familiares, s/d.
ga assolou a região. Era a bexiga (Varíola), que matava

33
cidos como seus, mediante processo judicial movido mundo Fortes, responsável pela construção da Capela
pelo advogado Miguel Mastrobuono Neto, formal de do Bom Jesus da Cabeça, e também o que representou
partilha, de 29 de abril de 1958, 16a vara cível da ca- a introdução da imagem do Bom Jesus no imaginário
pital, julgado por sentença no dia 7 de março de 1958. da população negra escravizada no contexto colonial
De acordo com o depoimento da senhora Ca- português e guarulhense.
cilda Adão do Prado, filha de Manoela Rafaela de Al- Estão no território guarulhense três igrejas ca-
meida e de Joaquim Adão, além de neta da senhora tólicas dedicadas ao Senhor Bom Jesus: Bom Jesus da
Rafaela, a avó faleceu em 1942 aos 110 anos de vida. Capelinha, no bairro da Capelinha; Bom Jesus do Pi-
Portanto, a senhora Rafaela nasceu em 1832. Pela pro- rapora, no bairro do Macedo; e Bom Jesus da Cabeça,
ximidade temporal, conclui-se que Rafaela é contem- no Cabuçu.
porânea do negro sepultado na Praça Oito de Dezem- Na agenda da Secretaria de Cultura estão as se-
bro. Ele pode ser, inclusive, filha ou irmã dele. Em re- guintes informações: Capela do Senhor Bom Jesus da
lação ao conteúdo do processo movido pelo advogado Cabeça, localizada no Cabuçu, foi construída em 1850,
Miguel Mastrobuono Neto, não tivemos acesso. como capela particular de fazenda, pelo negro Raymundo
O processo judicial reconheceu a posse da terra Fortes, o mestre Raymundo, nas terras de Joaquina Fortes
aos filhos do casal Manoela Rafaela de Almeida e Joa- Rendon de Toledo, onde foi escravo e pajem. A primeira
quim Adão, sendo eles: João Adão, Maria Adão Custo- cabeça do Bom Jesus de Pirapora está cercada por lendas
dia, Cacilda Adão do Prado, Benedito Adão, Santa Adão, sobre sua origem e a forma como chegou até o Cabuçu.
Josefina Adão, Nelson Adão e Odete Adão. Grande parte Foi venerada em oratório particular da fazenda por d.
dos moradores do Sítio Bom Jardim ocupa terrenos her- Joaquina até sua morte, quando passou ao mestre Ray-
dados que vêm da época da escravidão em Guarulhos. mundo, e deste para o neto, também Raymundo Fortes.
(Agenda Cultura – julho de 2004).
MEMÓRIAS E IMAGINÁRIO – O BOM
No que diz respeito à introdução do culto ao
JESUS E CAPELAS
senhor do Bom Jesus, a devoção a ele foi herdada da
Não seria correto com a temporalidade históri- tradição medieval portuguesa. No Brasil, esse culto
ca avançar o relato sem antes mencionar o negro Ray- aparecerá sob vários nomes, que lembram os diversos

Capela do Bom Jesus do Pirapora no bairro Macedo, em Guarulhos, 2013.

34
momentos da paixão. A difusão desse culto foi bastan- SOFRIMENTO E SALVAÇÃO
te grande na São Paulo colonial. Santuários importan-
A seguir, há um
tes surgiram em várias regiões, como em Iguape, Pirapora
trecho do sermão em que
do Bom Jesus, Bom Jesus dos Perdões e Guarulhos. Não
o padre Antônio Vieira
se pode esquecer de que os maiores santuários do Nordeste
equipara a vida dos es-
são dedicados ao Bom Jesus, como em Lapa e Monte San-
cravos nos engenhos ao
to, no interior baiano, e a igreja do Bonfim, em Salvador.
martírio de Cristo, pro-
Com a introdução dos escravos africanos, que eram tra-
ferido em 1633, em um
tados com muito rigor na sociedade brasileira, a religião
engenho baiano: Não se
católica apresentava a figura de Jesus Sofredor, exemplo e
pudera nem melhor nem
refúgio para o cristão, que vive “num vale de lágrimas”.
mais altamente descrever
E para aqueles que aceitassem com paciência as agruras
que coisa é ser escravo em
desta terra, prometia-se o Céu. Livro Revelando a Histó-
um engenho do Brasil. Cabeça do Bom Jesus –
ria do São João e Região. (p. 19). Cabuçu
Não há trabalho nem gê-
nero de vida no mundo mais parecido à Cruz
e Paixão de Cristo que o vosso, em um destes
engenhos. Bem aventurados vós, se soubéreis
conhecer a fortuna do vosso estado e, com a
conformidade e imitação de tão alta e divina
semelhança, aproveitar o santificado trabalho.
Em um engenho são imitadores de Cristo cru-
cificado, porque padeceis em um mundo muito
semelhante ao que o Senhor padeceu na cruz e
em toda a sua paixão. A cruz foi composta de
dois madeiros, e a vossa em um engenho é de
três. Também ali não faltaram as canas, por-
que duas vezes entraram na paixão: uma vez
Capela do Bom Jesus da Cabeça do Cabuçu, em Guarulhos, construída em adobe, s/d. servindo para o centro do escárnio, e outra vez
para as esponja em que lhe deram fel. A Pai-
xão de Cristo foi de noite sem dormir, parte foi
de dia sem descansar, e tais são as vossas noites
e os vossos dias. Cristo despido e vós despidos;
Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em
tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.
Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os no-
mes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa
imitação, que, se for acompanhada de paci-
ência, também terá merecimento de martírio.
O padre Antônio Vieira justifica o tra-
balho infernal nos engenhos como forma de
salvação das almas dos escravos, em 1633. Li-
vro: Uma história do Negro no Brasil. (p.72).
Capela do Bom Jesus do bairro Capelinha, em Guarulhos, 1945.

35
FESTAS DA CARPIÇÃO E DE NOSSA negros africanos eram politeístas, ou seja, acreditavam
SENHORA DO BONSUCESSO em uma gama variada de deuses. Era comum venera-
No mês de agosto de 2011 foram realizadas as rem o Sol, a Lua, a terra, a chuva, o fogo etc. A forma-
festas da Carpição e de Nossa Senhora do Bonsucesso ção religiosa dos colonizadores portugueses (bandei-
de no 270. Trata-se da segunda festa mais antiga do rantes, padres e agentes do governo) era voltada para
Brasil, de acordo com a coordenação do evento. Após a crença na existência de um único Deus, monoteísta.
147 anos de sua primeira realização, ocorreu a liberta- Católicos, evangélicos, judaicos e mulçumanos são
ção dos escravos, em 1888. exemplos de seguidores dessa formação religiosa.
A festa da Igreja do Bonsucesso é realizada em A terra, desde a mais remota antiguidade, está as-
dois momentos. Antes da festa da padroeira, na pri- sociada à vida, à procriação e à regeneração [...] Segura-
meira segunda-feira de agosto, acontece a Carpição; e mente herdamos de nossos ancestrais indígenas e africanos
no último dia de semana do mesmo mês é realizada a a necessidade de se ter símbolos materiais eloquentes e efi-
Festa de Nossa Senhora do Bonsucesso. No período da cazes para acompanhar nossa vida. Mas a maior eficácia
escravidão, o tempo de trabalho consagrado à limpeza do efeito terapêutico da terra da Carpição está na fé das
do entorno da Igreja do Bonsucesso (carpir) pode ser pessoas que vão ali buscar um auxílio para suas necessi-
calculado em 150 anos. dades do corpo e da alma. Livro Revelando a história do
A Carpição é uma espécie de elo entre a religio- Bonsucesso e região, p. 39.
sidade politeísta e monoteísta. Os povos indígenas e os
Nivaldo Oliveira

Festa da Carpição, 2013.

36
IGREJA DOS PRETOS DE NOSSA IGREJA DE SÃO BENEDITO DOS
SENHORA DO ROSÁRIO HOMENS PRETOS
A Igreja da Irmandade do Rosário dos Irmãos
Pretos, benta em 1750, ficava a 250 metros de dis-
tância e de frente para a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição dos Guarulhos, templo de brancos, elevado
à paróquia em 1685. A existência da Igreja do Rosário
é simbólica, do ponto de vista da quantidade de negros
escravizados e do grau de organização deles, ao ponto
de erigir uma igreja e mantê-la funcionando por apro-
Festa de São Benedito em frente à capela em Bonsucesso, s/d.
ximadamente 180 anos na região central.
Nas proximidades da Paróquia do Bonsucesso
está a Capela de São Benedito dos Homens Pretos,
que abriga a imagem de Santa Ifigênia. Trata-se de dois
santos negros na hierarquia católica.
No início do século XVIII, os franciscanos portu-
gueses trouxeram o culto de São Benedito ao Brasil, di-
fundindo-o entre a população pobre e, sobretudo, entre os
negros escravizados. Com a descoberta do ouro em Minas
Gerais, houve uma grande concentração de negros nessa
região, surgindo ali, então, muitas igrejas e capelas a ele
dedicadas. Em Guarulhos, a Capela de São Benedito está
próxima às antigas lavras de ouro, onde deveria haver
muitas famílias negras. Deve ter sido construída no fi-
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, 1928. nal do século XVIII, devendo ter abrigado também uma

Pequena moenda portátil. Obra de Jean Baptiste Debret. Negros escravizados moendo cana-de-açúcar em engenho.

37
confraria [...] Com a abolição da escravatura, em 13 de
maio de 1888, em muitos locais sua festa passou a ser
celebrada nesse mesmo dia. Em Bonsucesso, atualmente, é
celebrada no dia 5 de outubro. Livro Revelando a Histó-
ria do São João e Região (p. 23).

Capela de São Benedito, no bairro Bonsucesso, 2012. Castigo de escravos. Obra de Jacques Etienne Arago, 1839.

QUILOMBO tuação que envolve repressão a escravos fugidos e o


mecanismo de controle social da antiga Freguesia de
Em um mapa sobre ocorrências minerais em
Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos. Diz
Guarulhos, do Instituto Geográfico e Geológico de
ele: Martim Lobo Sardinha, em 1776, mandava que o
São Paulo (1950), na parte nordeste do município fica
sargento-mor Teotônio José Zuzarte sem perda de tempo
o Ribeirão dos Quilombos ou dos Pinheiros. Não é
possível afirmar se no referido local houve somente
trabalho escravo associado à mineração de ouro ou se
existiu um quilombo, nos moldes de outras experiên-
cias do território brasileiro.
Informações sobre o Capão do Quilombo podem
ser encontradas no Livro de registros de propriedades do ar-
quivo histórico municipal. Entre alguns moradores, a loca-
lidade é conhecida por Morro do Quilombo. No Dicio-
nário Aurélio, a palavra “capão” é definida como “porção
de mato isolado no meio do campo”, enquanto “quilom-
bo” significa “local constituído de negros fugidos”.
Não é possível afirmar com certeza que no local
tenha existido um quilombo; talvez tenha havido uma
casa de moradia de negros escravizados que trabalha-
vam na mineração no Bairro das Lavras de Ouro.

QUILOMBOLAS
O pesquisador Clovis Moura, por meio de
um pequeno trecho do seu livro Rebeliões da senza-
la: quilombos, insurreições e guerrilhas, narra uma si- Capitão do Mato. Obra de Johann Moritz Rugendas, 1835.

38
É preciso considerar
essas manifestações do Ca-
tolicismo como uma espécie
de comportamento social-
mente aceito, que não exclui
os cultos aos orixás, tal como
se pode constatar no caráter
a um só tempo sagrado e
profano do tradicional ritual
da Carpição, em Bonsuces-
so, por isso mesmo incorpo-
rado ao programa de ação
do conjunto de entidades
estruturadoras do Conselho
das Religiões Umbanda e
Feitores castigando os negros. Obra de Jean-Baptiste Debret.
Candomblé de Guarulhos,
convocasse os auxiliares necessários para dar combate aos fundado em abril de 2010. O Conselho é formado por
quilombolas que se encontravam na saída da cidade, na oito entidades: ATUCAG (Associação dos Templos de
Aldeia Pinheiros e Sítio da Ponte [...] Mandava aquela Umbanda e Candomblé de Guarulhos), INTECAB/
autoridade que o capitão-mor providenciasse “capitães- SP, FENUG, FERO (Federação Espiritualista Reino
-do-mato e sertanejos” para desinfetar os caminhos [...] dos Orixás), FETUCAM (Federação das Tendas de
Mas, ao que parece, as coisas não iam muito bem. Os Umbanda e Candomblé de Guarulhos), MOVIASÉS
quilombolas continuavam desafiando as autoridades. (Movimento de União e Luta dos Asés), NAFRO/PM
Daí ter sido organizado um plano de proporções bem (PMs do Axé), UARAB (União dos Adeptos das Religi-
maiores para combatê-los. O governador Cunha Meneses ões Afro-brasileiras) e UMUG.
enviou ofício aos capitães-mores dos bairros da Penha, Esse segmento organizado da sociedade guaru-
Cotia, Santo Amaro, Conceição dos Guarulhos, Cangus- lhense, além de reivindicar o respeito às garantias cons-
su e São Bernardo. No documento dava instruções para titucionais, constantemente agredidas, da “liberdade de
que fosse executado um plano de vasta envergadura con- consciência e de crença” e do “livre exercício dos cultos
tra os escravos fugidos. (Moura, p. 228). religiosos”, Constituição da República Federativa do Bra-
A partir do relato de Clovis Moura, é possível
concluir que existia em Guarulhos um sistema de con-
trole para combate de fugas e rebeliões dos escravos
confinados no território da Freguesia de Nossa Senho-
ra da Conceição dos Guarulhos. Quando necessário,
as forças eram reunidas para a repressão dos rebelados.
MEMÓRIAS E SINCRETISMO RELIGIOSO
A respeito das Igrejas das Irmandades do Rosário
dos Irmãos Pretos, a exemplo de Guarulhos, cabe des-
tacar que representam uma estratégia de sobrevivência,
uma vez que simulam incorporar totalmente os precei-
Integrantes do conselho das religiões Umbanda e
tos católicos em detrimento da religião original africana. Candomblé de Guarulhos, 2011.

39
sil – Artigo 5o, inciso VI, tem sido decisivo ANDRÉ
no processo de releitura da cidade.
Tratando da localização e dos no-
Exemplo disso é o evento Águas
mes dos pousos de tropeiros da Guaru-
de Oxum, que nos últimos anos tem
lhos colonial, mais especificamente sobre
aberto o período de comemorações do
o ribeirão hoje canalizado sob a Avenida
aniversário de Guarulhos, em dezembro.
Tiradentes, na região central da cidade,
“A cidade de Guarulhos”, dizem os di-
Noronha fala do escravo André: A pro-
rigentes da ARUAB, “nasceu das lavras
pósito, anotamos uma curiosa observação
de ouro [...], cujo regente é Oxum, assim
do sr. Nicolino Rinalde. Esse ribeirão pos-
tudo que for belo em nossa cidade terá
suía três nomes distintos, respectivamente
bons frutos. O Águas de Oxum reúne João Cândido: marinheiro
e líder da Revolta da a trechos também diferentes. Somente no
um grande número de pessoas na Praça Chibata, em 1910.
último é que se denominava “dos Cavalos”.
Getúlio Vagas, em torno da escultura Mãe Negra, de
Na parte inicial, chamava-se Córrego do André, porque
autoria do artista plástico paranaense Diógenes Fer-
assim o batizou um antigo membro da família Ortiz
nandes, radicado em Guarulhos há mais de 35 anos.
de Camargo, em homenagem a um seu velho estimado
O monumento, instalado ali pelo Departamento de
escravo que ali falecera. (p. 49).
Bibliotecas da Secretaria Municipal de Cultura, foi
inaugurado em 1990. Na ocasião, os participantes ‘la- PRETO ROSENDO
vam’ a escultura com água de cheiro, flores e ervas, Seu nome aparece na história do bairro da Vila
repetindo o gesto em outros marcos da presença negra Galvão sempre em meio a atividades culturais. Em dois
na cidade, como a marca da Igreja de Nossa Senhora livros do autor Lineu Roque Aceiro, Rosendo é mencio-
do Rosário dos Homens Pretos existente no chão do nado três vezes. No livro Ritos de passagem, o autor fala
Calçadão D. Pedro II. do empréstimo que Rosendo fizera do salão da casa para
Regendo em conjunto vem Xangô, promoven- uma seção de cinema. Pouco tempo depois, o salão se
do justiça e desenvolvimento; traz com ele Ogum, pois tornaria o primeiro cinema de Vila Galvão. Em Retalhos
nossa cidade é caminho, tem seus caminhos abertos guarulhenses, descreve Lineu: Esta história, contou-a, há
para o resto do País, e traz Exu como promotor de muitos anos, um ancião, belo tipo de velho, alto e desem-
embates políticos e sociais, fazendo cada vez mais cres- penado, de colete e olhos brilhantes [...] O preto Rosendo
cente a nossa periferia e ensinando a cobrar direitos. era um mineiro desbravador que fixou morada em Vila
São essas as forças que regem nossa cidade”. Galvão na década de trinta [...] Muito religioso, o velho
MEMÓRIAS DE NEGROS NA referia casos, viagens e aventuras fantásticas. (p. 37)
LITERATURA GUARULHENSE
É razoável a quantidade de registros publicados
em livros a respeito de alguns fatos relacionados à es-
cravidão na cidade, bem como à presença negra. Do
total aproximado de 20 livros, em oito há citações. Li-
vros: Guarulhos cidade símbolo (1960); A ficção veste a
história (1991); Ritos de passagem (2002); Retalhos gua-
rulhenses (2004); Guarulhos século XX (2007); Guaru-
lhos, espaço de muitos povos (2008); Casa da Candinha:
ruptura e metamorfose (2011); Revelando a história do
São João e região (2012). Artista plástica Cidinha, funcionária da Secretaria da
Educação de Guarulhos, 2013.

40
VELHO NEGRO Massami Kishi, em seu livro Guarulhos, século
XX, com título Filho de escravo, não escravo, trouxe à
Acerca da polêmica que envolve o possível per-
tona um personagem negro muito conhecido na his-
noite e passagem de d. Pedro I e de d. Pedro II por
tória de Guarulhos, Nhô Quim de Ferro. O texto com
Guarulhos, Noronha traz a seguinte narrativa: O sr.
foto conta sobre um homem negro e muito alto que
Heraldo Evans, atual diretor da Fazenda da Prefeitu-
teria sido o último escravo da Fazenda Bananal. Trata-
ra, criou-se numa propriedade à margem da Estrada da
-se de Joaquim do Espírito Santo ou Joaquim Antônio
Conceição, cujo primitivo leito conheceu. Aquele tempo
dos Santos, apelidado Nhô Quim de Ferro. Era filho
obteve de um velho negro, que fora escravo em Guaru-
da escrava Josepha, que foi vendida pelo dr. João Ál-
lhos, o testemunho das passagens de d. Pedro II e da prin-
vares de Siqueira Bueno para sua irmã, Ana Maria de
cesa Isabel por esta cidade. (p. 50).
Crasto (provavelmente, Castro). Era casada com José

Movimento MIMO
de Almeida Barbosa, que se tornou proprietário da Fa-
zenda Bananal como marido da herdeira. O local hoje
é conhecido como Fazenda da Candinha (Cândida
Maria Rodrigues Barbosa, segunda esposa de Olegário
Barbosa, filho de José de Almeida Barbosa). Ana Maria
registrou Josefa no livro de escravos [propriedades] no
5, folha 24, em 8 de abril de 1868. (p. 104)
No livro Guarulhos – espaço de muitos povos, p.
30, consta a foto de Nhô Quim de Ferro e uma descri-
ção do contexto do período da escravidão na cidade.
No livro Casa da Candinha – ruptura e metamorfose, de
casa grande a centro de história e memória das culturas
negras, o autor Elmi El Hage Omar, a partir das infor-
mações do livro de Massami Kishi, problematiza algu-
mas afirmações e traz novos dados sobre Nhô Quim
Clementina de Jesus, patronese de escola da Prefeitura de Ferro. (p. 34)
de Guarulhos.

NHÔ QUIM DE FERRO NEGRO BEIJO

Fragmento da parede da senzala da tapera velha dos


escravos, 2012.

No livro Revelando a história do São João e re-


gião, Antônio Bertozzi, no transcorrer de sua pesquisa,
Nhô Quim de Ferro em Aparecida (SP). conseguiu localizar parte de uma parede de adobe da

41
casa “Tapera Velha dos Escravos”, Serra do Itaberaba. com uma pessoa por questões de titularidade da posse
Segundo Bertozzi, nascido nas proximidades do antigo da terra. A família negra morava em uma propriedade
casarão que era propriedade de seu avô (também cha- e possuía um registro paroquial expedido pela Igreja
mado Antônio Bertozzi), a “Tapera Velha” era uma Católica em nome de Jacinto Fortes (certamente her-
senzala. Quanto aos ex-escravos, lembra-se do negro deiro do escravo Raimundo Fortes, pajem da antiga
Beijo, nascido no sítio de Gino, seu filho, hoje mora- proprietária da Fazenda Cabuçu, senhora Joaquina
dor de Nazaré Paulista, e de Donária Pantaleão, bisavó Fortes Rendon de Toledo). “Lembro-me que em 1970
materna de Antônio Bertozzi, depoente. (p. 59) houve uma desapropriação de 20 alqueires no bairro;
o pagamento estava sendo destinado para uma pessoa
JACINTO FLORES que apresentou um título de propriedade registrado
Segundo o advogado e ex-vereador Milton em cartório. Entrei com uma ação de usucapião, jun-
Mesquita, que se lembra de poucos detalhes do pro- tei nos autos do processo o título paroquial da família,
cesso, na década de 1970 foi procurado por uma fa- consegui provar que era legítimo e ganhei a causa. O
mília negra do bairro Cabuçu, que estava em conflito processo deve estar no arquivo judiciário em Jundiaí.”

:: PRETO DAMIÃO, VÍTIMA DAS SUTILEZAS DO RACISMO ::


Os paroquianos adoravam o preto Damião. O vigário, então, nem é bom falar.
A seguir é descrito como começa a narrativa de O velório, um dos contos do livro A ficção ves-
te a história: episódios evolutivos de uma cidade, escrito por João Ranali (1912-2007) – respeitado
escritor e cronista da história guarulhense – e publicado em 1991.
A estória se passa 300 anos antes (1691), no auge do regime escravista no Brasil, e trata da
existência de um morador conhecido como Preto Damião. O narrador o descreve como um negro
cioso de sua dignidade e valor, e informa ser ele o grande fujão da vila. Por não ter vocação para
andarilho nem alegrar-se com o viver escondido nas florestas, refugiava-se sempre na igreja de
Nossa Senhora da Conceição, onde encontrava os olhares amigos e sem reprimendas de Yansã,
que o protegia de todas as tempestades.
É o único caso em Guarulhos, registrado em livro, de um negro escravizado que se rebelou
contra seu dono. Além de recusar o trabalho forçado, professava publicamente o seu sincretismo
religioso, referindo-se a Nossa Senhora da Conceição ora como Yemanjá, ora como Yansã, deusas
da mitologia africana. O orgulho batia forte no coração daquele mulambo de gente, diz o narrador,
mulambo apenas na sua configuração externa, pois não havia força
capaz de alterar-lhe a fibra interior onde uma personalidade justicei-
ra e sofrida mantinha-se vigorosa, em toda a sua majestade.
Ao conferir dignidade à figura do Preto Damião, a narrativa se di-
ferencia das abordagens com que a literatura brasileira costuma vestir
a história, depreciando os personagens negros com um discurso quase
sempre eurocêntrico. No final do conto, porém, ao descrever o velório
de um Preto Damião consumido pela velhice, o narrador faz uso de um
adjetivo, grifado por nós, que acaba por denunciar as sutilezas da ideo-
logia do racismo, que justifica a escravidão, e que persiste, ainda hoje,
a assombrar os corações e a mentalidade dos brasileiros:
E a vila inteirinha foi chegando para desfilar o seu rosário de
saudade e de preces pela alma branca daquele preto velho que só
o bem semeara neste mundo que tanto o maltratara.

42
5 - GUARULHOS: DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO
À INDUSTRIALIZAÇÃO

N o início do século XIX, o cenário do tráfico transatlântico de escravos começou a


sofrer questionamentos e proibições. Foram os primeiros sinais da Revolução Industrial para além dos muros
ingleses. No primeiro momento da Revolução Industrial (1780-1830), o mundo rural e urbano começou a
sentir os impactos das máquinas introduzidas no processo de produção de mercadorias. Sinais de novos tempos
nas relações produtivas.
Enquanto isso, no Brasil, intensificou-se a formação de um mercado interno de venda de escravos. Ci-
dades iriam despovoar-se, enquanto outras ganhariam novos habitantes. Em Guarulhos, verificou-se redução
no número de habitantes na segunda metade do século XIX, possivelmente, relacionada à venda de escravos no
mercado interno.

Revolução Industrial, máquina de obras de Richard Hartmann, 1868. Autoria desconhecida.

43
Em 1807, a Inglaterra, pressionada internamen- sidade de plena abertura do mercado interno para os
te por forte movimento abolicionista e por grandes produtos da Revolução Industrial. Além dos ingleses,
interesses de grupos econômicos, suscitados pela Re- a pressão pela abolição do tráfico contou com o apoio
volução Industrial, decretou o fim do tráfico para suas de diversos setores da sociedade brasileira.
colônias americanas e, em 1833, declarou abolida a es- A pressão pelo fim do tráfico transatlântico for-
cravidão. Nesse ínterim, no Brasil de 1810, a Família taleceu o comércio de escravos no mercado interno
Real, na pessoa do príncipe português d. João VI, se viu brasileiro. Muitas cidades do Brasil sofreram esvazia-
forçado a assinar um tratado no qual se comprometia mento populacional. Enquanto isso, os que já eram
a cooperar com Sua Majestade britânica, na “gradual ricos enriqueceram ainda mais, transportando e ven-
abolição do comércio transatlântico de escravos”. dendo gente no mercado interno.
Em 1815, o governo inglês, no Congresso de
GUARULHOS E O MERCADO
Viena, aprovou uma resolução proibindo o tráfico ao
NACIONAL DE ESCRAVOS
norte da linha do Equador. Em 1817, d. João VI pos-
sibilitou à Marinha britânica a visita e busca aos navios Na segunda metade do século XIX, Guarulhos
suspeitos de comércio ilícito de escravos. Em 1826, em vivenciou duas situações que, para os dias de hoje, po-
troca do reconhecimento da Independência do Brasil, o dem ser consideradas, no mínimo, estranhas: a deca-
governo inglês exigiu o fim do tráfico em três anos. No dência econômica e a redução populacional. Encon-
dia 7 de novembro de 1831, o Parlamento brasileiro tramos duas afirmações sobre os temas no livro Cidade
aprovou uma lei proibindo a importação de africanos. símbolo e em um relatório de visitantes dos garimpos
O empenho da Inglaterra se explica pelo fato de ouro de Guarulhos do século XIX, citado pelo geó-
de o Brasil ter sido forte concorrente da exploração de logo da USP-SP, Caetano Juliani.
açúcar nas colônias inglesas do Caribe. Houve a neces-

Cerâmica Paulista (Vila Galvão): primeira fábrica de Guarulhos e primeira cerâmica mecanizada do Brasil, 1911.

44
ESGOTAMENTO DA MINERAÇÃO e não levam em consideração o contexto geral, no qual
DE OURO estava o Brasil e a cidade de Guarulhos na época. Mui-
tas outras localidades do território brasileiro, que não
Opiniões semelhantes expressam o geólogo da
tiveram esgotamento de atividades minerais, no mes-
USP Caetano Juliani e o ex-vereador Adolfo de Vas-
mo período, também sofreram redução populacional,
concelos Noronha. Segundo Juliani: O declínio da ati-
e certamente retração econômica, haja vista que toda a
vidade de extração de ouro em Guarulhos aconteceu no
riqueza vem do trabalho.
início do século XIX, como relatado por Mawe (1812) e
Eschwege (1833). O primeiro visitou as minas de ouro DECLÍNIO DEMOGRÁFICO
de São Paulo e Guarulhos, em atividade em 1808; e o EM GUARULHOS
segundo, em 1918, quando já paralisadas” continua Ju- O decréscimo demográfico verificado em Gua-
liane em seu relato que o decréscimo da mineração em rulhos, associado ao esgotamento da mineração de
São Paulo aconteceu em consequência da imigração ouro, pode também estar ligado a um fenômeno geral
dos bandeirantes paulistas para os distritos mais ricos das economias escravocratas, constatado na segunda
de Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. metade do século XIX. As tentativas de eliminação do
Segundo Noronha: Quando se paralisou a mine- tráfico transatlântico de escravos levaram à formação
ração do ouro, nos fins do século XVIII, muitos negros da- de um mercado nacional de venda de homens e mu-
qui se foram, acompanhando os seus senhores, na deban- lheres negras, denominado tráfico interprovincial, ou
dada que marcaria a decadência do povoado guarulhense. seja, entre Estados. Em 1845, o Parlamento britânico
(Cidade Símbolo, p. 45). aprovou uma lei que permitia o apresamento e confisco
Em 1804, de acordo de navios brasileiros suspeitos de transportar escravos.
com dados populacionais Em 4 de setembro de 1850, por pressão da Ma-
obtidos no Arquivo Pú- rinha inglesa, os deputados brasileiros aprovaram a Lei
blico do Estado de São Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico negreiro.
Paulo, na então fre- A abolição do tráfico transatlântico reconfigu-
guesia de Nossa Se- rou o mercado de escravos no Brasil. Por não ser possí-
nhora da Conceição vel renovar a população escravizada, seu preço se sobre-
dos Guarulhos havia valorizou. Logicamente, o número de africanos tendeu a
3.435 habitantes. De- diminuir, enquanto o número de crioulos (negros nascidos
clarados como escravos no Brasil) tendeu a crescer na população cativa. O preço
havia 705, sendo 349 dos cativos aumentou rapidamente depois de 1850, e isso
homens e 356 mulheres. teve como consequência a concentração dos escravos em
Em 1822, ocorreu a redução mãos de um número cada vez mais reduzido de proprie-
da população para 3.049 habitan- tários. Os menos afortunados vendiam seus escravos para
tes. Em 1874, a população da cidade reduziu ainda mais os mais ricos. (Uma História do Negro no Brasil, p. 60).
e caiu para 2.379 pessoas. Em 70 anos (1804–1874),
houve redução demográfica. A população, que era de População de Guarulhos
3.435, passou a 2.379, um despovoamento de 1.056 pes-
Ano População
soas. Desse total, não se sabe qual a quantidade de óbitos.
Nas duas citações dos pesquisadores Juliani e 1804 3.435
Noronha percebe-se um fator particular atribuído ao
1822 3.049
despovoamento. As afirmações dão conta de uma rea-
lidade particular da cidade (fim da exploração de ouro) 1874 2.379

45
Negros no tronco. Obra de Jean-Baptiste Debret.

MERCADO INTERPROVINCIAL DE vamos que foi o período em que a cidade teve o menor
ESCRAVOS número de habitantes, 2.379, redução de 1.056 pesso-
Entre 1871 e 1881, estima-se que mais de 300 as em relação aos dados populacionais de 1804. O fato
mil escravos foram vendidos no mercado interno bra- pode estar associado ao comércio interno de escravos.
sileiro, especialmente das regiões nordestinas para as Noronha, referindo-se aos fins do século XVIII,
plantações de café do Sudeste. Os homens e mulheres afirmou: “Muitos negros se foram, acompanhando os
vendidos no tráfico interprovincial foram submetidos seus senhores.” Talvez seja uma forma de abrandar o
a uma forma de desenraizamento, algo semelhante ao processo inicial de venda de pessoas negras no merca-
drama experimentado por seus pais e avós africanos do interno de escravos ou, também, é possível pen-
durante o tráfico transatlântico. sar que os donos de garimpos de ouro daqui tenham
De volta aos dados populacionais de Guarulhos partido em busca de outras localidades de mineração,
de 1874, auge do mercado nacional de escravos, obser- levando os negros escravizados.

Punição pública de escravos. Obra de Johann Moritz Rugendas.

46
CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO comunicado foi feito em 1882, quando a Câmara de
DE GUARULHOS Vereadores era presidida pelo capitão Joaquim Francis-
co de Paula Rebello – seção aos 8 de outubro de 1882.
Guarulhos tornou-se “vila” ao deixar de ser fre-
Ao meio dia acharão-se presentes no Paço da Câ-
guesia da Vila de São Paulo por meio da Lei Provincial
mara Municipal desta Villa da Conceição dos Guaru-
no 34, acontecimento que marcou sua emancipação e
lhos os senhores Rebello, Miranda, Ortiz de Camargo,
a criação dos três poderes do Estado moderno no local:
Silveira Ramos e Rodrigues. Aberta a seção e lida a Ata
Legislativo, Executivo e Judiciário.
da anterior aprovada. Expediente. Lerão-se os seguintes
Guarulhos, então, passou a ser chamada de Vila
ofícios: Do presidente da Província, comunicando que a
de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos, ou
quota para o fundo de emancipação [de escravos] deste
simplesmente Conceição dos Guarulhos, ou, ainda,
município era de 216$376 (duzentos e dezesseis mil e tre-
Conceição, em referência à santa padroeira. A posse
zentos e setenta e seis réis), e que havia marcado o dia 21
dos primeiros vereadores, no total de sete, e do inten-
de setembro findo para se reunir à junta de classificação
dente ocorreu no dia 24 de janeiro de 1881. A organi-
e acertar os seus trabalhos. 1o Livro de Atas, p. 29. (Em
zação da eleição levou 12 meses (24 de março de 1880
algumas palavras foi mantida a grafia da época).
a 24 de janeiro de 1881), o que levou à organização
Ata de 18 de fevereiro de 1883: Expediente: Leo-
do processo de eleição dos primeiros vereadores e do
-se uma circular do presidente da Província de 10 do mez
intendente (cargo atual de prefeito).
de fevereiro findo sobre as relações dos escravos classifica-
dos e libertados pelo fundo de emancipação. 1o Livro de
Atas, p. 37.
Ata de 22 de julho de 1883: Expediente: Huma
circular do presidente da província datada de 2 do corren-
te a junta classificadora de escravos que se cazou durante
os trabalhos da respectiva junta. 1o Livro de Atas, p. 42.

Paço Municipal, esquinas das Ruas Sete de Setembro


e Felício Marcondes.

JUNTA CLASSIFICADORA DE ESCRA-


VOS DE GUARULHOS – FUNDO DE
INDENIZAÇÃO AOS PROPRIETÁRIOS
A partir do ato de criação do município, Gua-
rulhos ganhou autonomia política e administrativa. Os
vereadores da Vila da Conceição dos Guarulhos passa-
ram a receber informações do presidente da Província
sobre as juntas classificadoras de escravos, bem como
do fundo de emancipação dos escravos. O primeiro Ata da Câmara de Vereadores do dia 8 de outubro de 1882.

47
A emancipação dos negros. Obra de Thomas Nast, 1863.

ALISTAMENTO DE ESCRAVOS “livre” todos os filhos de mulheres escravizadas nas-


cidos a partir de 1871. Como seus pais continuariam
Ata de 8 de junho de 1884: Expediente: Huma
escravizados, a lei estabelecia duas possibilidades para
circular do presidente da Província datado de 17 do mês
as crianças que nasciam livres: ficarem aos cuidados
de julho do corrente... tratando sobre alistamento de es-
dos senhores até os 21 anos de idade ou serem entre-
cravos. 1º Livro de Atas, p. 64.
gues ao Governo. O primeiro caso foi o mais comum
Ata de 27 de fevereiro de 1887: Expediente:
e beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão de
Hum ofício do presidente da Província de 21 de junho
obra desses “livres” até os 21 anos de idade.
[...] comunicando que designou o dia 30 do mesmo mês
Veja trechos das leis de 1871 e 1885:
para reunião da junta classificadora de escravos da capi-
Art. 1o – Os filhos de mulher escrava que
tal [...] 1º Livro de Atas, p. 113. Informações
nascerem no Império desde a data desta lei
sobre a junta e o fundo, do período de 1872
serão considerados de condição livre. § 1o
–1881 estão no Arquivo do Estado e no
– Os ditos filhos menores ficarão em po-
Arquivo Washington Luiz, ambos na
der ou sob a autoridade dos senhores de
cidade de São Paulo.
suas mães, os quais terão a obrigação
LEI DO VENTRE LIVRE de criá-los e tratá-los até a idade de
As juntas classificadoras de es- oito anos completos. Chegando o filho
cravos e os Fundos de Emancipação, da escrava a esta idade, o senhor da
espécie de “política pública”, foram mãe terá opção, ou de receber do Es-
implantados para indenizar os donos tado a indenização de 600$000, ou
de escravizados em 13 de novembro de utilizar-se dos serviços do menor até
de 1872, data da aprovação do regu- a idade de 21 anos completos. No pri-
lamento geral para execução da Lei do meiro caso, o governo receberá o menor e
Ventre Livre, votada no dia 28 de setem- lhe dará destino, em conformidade da pre-
bro de 1871, e da Lei dos Sexagenários, de Roda dos desvalidos sente lei. (Lei n 2.040, de 28 de setembro
o

1885. A Lei do Ventre Livre considerava das Santas Casas. de 1871.)  

48
LEI DOS SEXAGENÁRIOS Art. 3o:  Os escravos inscritos na matrícula serão
A  Lei no 3.270, também conhecida como  Lei libertados mediante indenização de seu valor pelo Fundo
dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe, foi promul- de Emancipação ou por qualquer outra forma legal.
gada a  28 de setembro  de  1885  e garantia liberdade Em linhas gerais, todo ano, no mês de julho, em
aos escravos com mais de 60 anos de idade. A lei foi cada município do Império, a junta classificadora de es-
sancionada pela princesa Isabel, em nome do impera- cravos deveria verificar quais escravos estariam em condi-
dor d. Pedro II, em 28 de setembro de 1885. ções de serem alforriados pela quota do Fundo destinada
àquela localidade. O Regulamento aponta que qualquer
TABELA DE PREÇOS POR PESSOA pessoa do povo poderia levar informações relevantes para
LIBERTA os trabalhos da classificação e que a junta, por sua vez,
Da matrícula: Art. 1o:  Proceder-se-á em todo o poderia exigir esclarecimentos aos senhores ou possuidores
Império a nova matrícula dos escravos, com declaração de escravos. Classificar, comprar e emancipar: a liber-
do nome, nacionalidade, sexo, filiação, se for conhecida, dade como política de Estado (São Paulo, sec. XIX).
ocupação ou serviço em que forem empregados, idade e Roberto Ravena Vicente.
valor calculado conforme a tabela do §3o o valor a que A lei de 28 de setembro de 1871, que instituiu
se refere o Art. 1o será declarado pelo senhor do escravo, as juntas classificadoras de escravos e os Fundos de
não excedendo o máximo regulado pela idade do matri- Emancipação, também serviu de base para a liberta-
culando conforme a seguinte tabela: escravos menores de ção dos “africanos livres”. O termo “africanos livres”
30 anos, 900$000; de 30 a 40, 800$000; de 40 a 50, surgiu no Brasil, na segunda metade do século XIX,
600$000; de 50 a 55, 400$000; de 55 a 60, 200$000. após a proibição do tráfico negreiro. Esse termo era
Das alforrias e dos libertos: Art. 2o: O Fundo de utilizado para caracterizar os negros capturados em
Emancipação será formado: I - Das taxas e rendas para navios clandestinos, após a edição da Lei Eusébio de
ele destinadas na legislação vigente (...) Trechos da Lei Queirós (1831).
no 3.270, de 28 de setembro de 1885.

Internato Anália Franco, no início do século XX (antigo internato do padre Regente Feijó), situado no atual Jardim Anália
Franco. Na foto, percebe-se muitas crianças negras.

49
Castigo de escravo em praça pública. Obra de Jean-Baptiste Debret, 1826.

TOTAL DE AFRICANOS ESCRAVIZADOS GUARULHOS: INDUSTRIALIZAÇÃO E


O Brasil foi a última nação da América a abolir EMBRANQUECIMENTO DO TRABALHO
a escravidão. Entre 1550 e 1850, data oficial do fim Entre o fim da extração de ouro e o ciclo in-
do tráfico de negros, cerca de 3,6 milhões de africanos dustrial, existiu uma atividade econômica na cidade de
chegaram ao Brasil. A escravidão é um capítulo longo muita visibilidade: a fabricação de tijolos cozidos e te-
e desumano da História do País. A História nos permi- lhas. Iniciada a partir da segunda metade do século XIX,
te conhecer o passado, compreender o presente e pode a produção oleira guarulhense se posiciona no mesmo
ajudar a planejar o futuro. A Lei Áurea declarou extin- período da eclosão da Revolução Industrial. Foi a par-
ta a escravidão no Brasil. Fonte: Instituto Brasileiro de tir da produção oleira artesanal (protoindústria) que se
Geografia e Estatística (IBGE). deu o estabelecimento da primeira indústria no muni-
cípio, a Cerâmica Paulista – edificada em Vila Galvão
LEI ÁUREA
A princesa imperial regente, em nome de Sua
Majestade, o imperador e senhor d. Pedro II, faz saber
a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral
decretou e ela sancionou a lei seguinte: Art. 1o: É decla-
rada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.
Art. 2o: Revogam-se as disposições em contrário. Manda,
portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e
execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam
cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888. Fonte: Família do imigrante italiano José Saraceni, um dos
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). primeiros industriais de Guarulhos, 1919.

50
em 1911. Foi também, a primeira cerâmica mecaniza- acordo com o jornal Folha Metropolitana, cerca de 600
da do Brasil. A protoindústria, bem como a formação mil são pessoas negras. No contexto deste trabalho,
da indústria no município, estão inseridas no contexto cabe uma pergunta: Como se deu a formação desse ex-
da mundialização das relações do Capitalismo. pressivo segmento do povoamento da cidade? Será que
A partir de 1870, por meio da migração incen- são remanescentes das sucessivas gerações dos povos
tivada, intensificou-se o desembarque nos portos bra- africanos transplantados e escravizados em Guarulhos?
sileiros dos imigrantes estrangeiros: italianos, alemães,
espanhóis, portugueses, libaneses e japoneses, além de
produtos e tecnologias necessários ao modelo de ex-
pansão capitalista-industrial.
O tecido social guarulhense, historicamente,
teve sua formação em quatro grandes fluxos de pes-
soas: colonizadores portugueses, transplantação for-
çada de indígenas e de negros africanos, imigrantes
estrangeiros e nacionais. Tradicionalmente, os termos
“imigrante” e “migrante” são usados, respectivamente,
para pessoas estrangeiras e para deslocamentos popu-
lacionais dentro do próprio país. Nessa oportunidade
os dois conceitos serão empregados como “imigrantes
estrangeiros” e “nacionais”.
Da edição do jornal Folha Metropolitana, do dia
22 de agosto de 2011, retiramos a seguinte afirmação
do jornalista Wellington Alves: Apesar de quase metade
da população guarulhense ser formada por negros, como
aponta o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística (IBGE), o índice de autoridades muni-
cipais que se enquadra entre pretos e pardos é de somente
17,1%. Um panorama que revela – segundo especialistas
– a necessidade de os negros continuarem buscando espa-
ços na sociedade.
Os dados do Censo 2010 não causam surpresa.
No Censo de 1872, o primeiro censo social do Brasil
Império, preto e pardos totalizavam 62% da popula-
ção brasileira. Movimento Hip Hop em Guarulhos, 1997.

RECENSEAMENTO DEMOGRÁFICO Recenseamentos demográficos (1872)


(1872) – SERVIÇO NACIONAL Serviço Nacional de Recenseamento
DE RECENSEAMENTO
Brancos, pretos, amarelos e pardos somam o Brancos 3.787.289
total de 9.930.478 pessoas, sendo 3.787.289 brancos; Pretos 1.954.452
1.954.452 pretos; amarelos inexistentes; e 4.188.737 Amarelos Inexistentes
pardos. Os dados populacionais do Censo IBGE 2010 Pardos 4.188.737
apontam 1.222.357 habitantes em Guarulhos. De Total 9.930.478

51
Nos primeiros 80 anos da história de Guaru- constatação, ou seja, quase 50% da população atual
lhos (século XIX), foi analisado o processo de declínio da cidade é composta por negros. Pelo visto, a consti-
populacional e econômico da cidade. Em 1804, de tuição de um mercado interno de escravos no Brasil,
acordo com os dados populacionais do Arquivo Pú- ao longo do século XIX, contribuiu para a redução do
blico do Estado, 3.435 pessoas habitavam Guarulhos. número de pessoas negras em Guarulhos. Mais do que
Declarados como escravos 705, sendo: 349 homens e nunca a indagação inicial continua nos desafiando.
356 mulheres (20,5% da população). Os dados do levantamento demográfico feito
Essa porcentagem é discrepante em relação aos pelo padre Celestino  Gomes D’Oliveira, em 1912,
dados populacionais do censo brasileiro de 1872 – no podem representa um caminho para ajudar na reflexão
qual pretos e pardos aparecem com 62% de presença. do processo ocorrido com a reconfiguração do povoa-
O tombamento das propriedades rurais de Guarulhos mento de Guarulhos, a partir de 1870, bem como na
de 1817 registrou 183 escravos, pertencentes a 28 pro- teoria do branqueamento brasileiro.
prietários de terras; portanto, o número de escravos
POPULAÇÃO DE GUARULHOS POR
tem redução de 522 pessoas em relação a 1804.
NACIONALIDADES
Em 1874, a população de Guarulhos reduziu-
De acordo com os dados populacionais de 1886 e
-se, chegando ao patamar de 2.379 habitantes. Um dos
do quadro ao lado (1912), em 26 anos houve crescimen-
principais fatores para o despovoamento e estagnação
to da população em 100%. O levantamento de 1812 não
econômica pode estar ligado à venda dos escravos pe-
explicita, entre os brasileiros, a quantidade de brancos,
los proprietários de Guarulhos no mercado nacional,
o mercado interprovincial de escravos. pretos e pardos. Observa-se que aumentou o percentual
da população originária dos processos de imigração: 29%
Em 1886, os dados populacionais de Guarulhos
de estrangeiros. O território recebeu mais pessoas brancas,
indicavam aumento da população local para 3.466,
sendo a maioria de italianos. O padre Celestino, ao usar
um crescimento de 45,5% em relação à população
o termo “brasileiros”, pode ter adotado uma estratégia de
de 1874. Onde pode estar a resposta para essas duas
esconder a presença negra “guarulhense”, corroborando
tendências demográficas de Guarulhos nos anos 1874
com a tese do branqueamento do Brasil, muito difundida
e 1886? É importante ressaltar que partimos de uma
no fim do século XIX e início do século XX.
Esta visão [branqueamento] não estava pre-
População por nacionalidades em 1912*
sente só na ciência, mas também nas artes, nos es-
Nacionalidade População critos dos pesquisadores, na imprensa, evidenciando
Brasileiros 4950 uma resposta ao medo gerado pelo crescimento da
Estrangeiros 2050 população negra e mestiça que, segundo o Censo de
Italianos 1800 1872, chegava a 55% do total de brasileiros. Bran-
Portugueses 100 queamento e Branquitude no Brasil, de Maria
Espanhóis 75 Aparecida Silva Bento.
O padre Celestino, ao “esconder” o número
Árabes 50
de pretos e pardos, pode ter agido de forma inten-
Japoneses -
cional. No início do século XX, ele conhecia a com-
Alemães -
posição étnica guarulhense, tanto que era contrário
Outros 25
às práticas do Catolicismo popular, festas e ativida-
Total 7000 des religiosas muito frequentadas por negros: Festa
do Bonsucesso, Dança de São Gonçalo, Reisado,
* Levantamento feito pelo padre Celestino Congada, Moçambique, Reza nas Roças etc.

52
O Catolicismo popular teve no padre Celestino em 1886 está associado à imigração incentivada de euro-
Gomes D’Oliveira Figueiredo forte opositor, pautado peus, prática iniciada desde 1824 pelo Estado Imperial.
nos preceitos da romanização, visão defendida pela Assim, a presença italiana em Guarulhos, bem como
Igreja Católica no final do século XIX e princípios do em São Paulo, relaciona-se ao dinamismo do mercado im-
século XX. A romanização impunha práticas litúrgicas pulsionado pelo café, mas não significou o desaparecimento
do Catolicismo social em oposição à religiosidade po- dos territórios e tradições de outras parcelas populacionais,
pular, bem como censura às práticas que “dispensam” a mas acrescentou novas sociabilidades na formação do mu-
presença de autoridades eclesiásticas em sua realização. nicípio... Desse modo, os bairros onde ficavam as primeiras
Sobre a Dança de Santa Cruz, assim se expressou o pa- olarias, cerâmicas, portos de extração de areia e as primei-
dre Celestino: Esta dança que fazem algumas capelas da ras indústrias têxteis [...] possuíam características sociocul-
roça, e que dura toda a noite de Santa Cruz, é também turais e territoriais diversas [...]. Santos, p.117.
um dos abusos deste povo habituado ainda aos costumes Muitos fatores contribuem para concluir que em
selvagens [...] Porque essas danças realizam-se em capelas 1940 abriu-se um novo ciclo de povoamento com base
um pouco afastadas [da igreja matriz], onde não tenho a na migração. Ao mesmo tempo, definhou-se o ciclo da
possibilidade de intervir direta e pessoalmente. Livro do imigração que teve por fundamento a vinda de estran-
Tombo nº 1. In Guia de Educação Patrimonial – Secre- geiros: italianos, portugueses, espanhóis, libaneses, japo-
taria Municipal de Educação. neses, alemães etc. Em 54 anos de história, 1886–1940,
De modo geral, consi-
dera-se que as pessoas que en-
traram no Brasil até 1822, ano
da independência, eram coloni-
zadores. Antes de 1870, dificil-
mente o número de imigrantes
excedia a duas ou três mil pes-
soas por ano. A imigração cres-
ceu primeiramente pressionada
pelo fim do tráfico internacio-
nal de escravos para o Brasil
(1850), depois pela expansão da
economia agrário-exportadora,
principalmente no período das
grandes plantações de café no
Estado de São Paulo.
A partir de registro do-
cumental, os primeiros italianos
chegaram a Guarulhos em 1870.
Foi nesse ano que na Rua Dom
Pedro II (nome atual) nasceu o
ítalo-brasileiro José Esperança da
Conceição, filho de Vicenzo Spe-
ranza e Felisbina Maria do Espí-
rito Santo. O crescimento demo- Redenção do Can (avó negra, mãe morena, esposo e filho brancos). Para o governo da
gráfico constatado em Guarulhos época, a cada geração o brasileiro ficaria mais branco. Obra de Modesto Brocos, 1895.

53
a população cresceu 400%: elevou-se de 3.466 para bitacional Haroldo Veloso e Parque Cecap (início da
13.940. No período de 1940-1980, o processo migrató- década 1970), Rodovia Ayrton Senna (1982), aero-
rio trouxe para Guarulhos 532.724 pessoas (3.800%). porto (1985). Entre tantas outras coisas, mais de dois
mil galpões industriais foram erguidos (1911–1980).
Em 1980, já habitavam Guarulhos 532.724
pessoas. No período 1940-1980, a população da cida-
de cresceu 38 vezes em relação à registrada em 1940.
Do total populacional de 1980, de acordo com o
Censo do IBGE, 71,3% eram de imigrantes nacionais
(379.832 moradores).
Não temos conhecimento de estudos que ver-
sem sobre a composição étnica do processo de migra-
Contam que se chamava Rua Nossa Senhora Mãe dos Ho- ção por que passou o Brasil nos últimos 70 anos. A
mens Pretos. Diante da investida de negar a escravidão e partir dos dados quantitativos e dos critérios adotados
o racismo, foi omitida a palavra “Pretos”, quando da
elaboração da placa. pelo IBGE (45% pretos e pardos), deduzimos que a
grande maioria da população negra de Guarulhos é
Guarulhos: industrialização e
originária do processo de migração nacional.
repovoamento negro da cidade
População constituída de negros, negras, filhos,
A raiz da configuração demográfica atual da ci- netos e bisnetos de raízes nordestinas, mineiras, para-
dade tem sua origem na migração de pessoas que saíram naenses, goianas etc.: são essas pessoas as responsáveis
do interior do Brasil para trabalhar nos grandes centros pelo repovoamento negro de Guarulhos. Obviamente
urbanos brasileiros em especial em Guarulhos. Inicial- que antes de 1940, por meio de registros documentais
mente empregaram-se nas grandes obras da construção e iconográficos, percebe-se a presença negra no terri-
civil e, depois, nas indústrias, nos setores de serviços e tório. Os antigos dados censitários não nos permitem
no comércio. Entre 1900 e 1985, Guarulhos passou quantificá-los, como é feito atualmente pelos institu-
por um processo intenso de transformação urbana que tos especializados no assunto.
contou com milhares de tra-
balhadores vindos para atu-
ar na construção civil.
No transcorrer de 85
anos, foram construídos: a
barragem e a rede adutora
do Cabuçu (1908), rede
elétrica (1914), sistema fer-
roviário – Trem da Canta-
reira (1915), Sanatório Pa-
dre Bento (1930), Represa
Ururuquara (1941), Base
Aérea de Cumbica (1945),
barragem e rede adutora
do Tanque Grande (1947),
Via Dutra (1951), Fernão
Fábrica-tecelagem Carbonell, 1935.
Dias (1961), Conjunto Ha-

54
6 - NEGRITUDE... EXPLOSÃO E AFIRMAÇÃO

A explosão e a afirmação da negritude brasileira possui raízes históricas. Hoje em dia é um


dos fenômenos mais importantes do processo de formação das modernas cidades a partir da Era Industrial. Do
nosso ponto de vista, é um erro analisar o fenômeno desvencilhado da matriz classe trabalhadora, bem como dos
seus processos sociológicos de fortalecimentos identitários em meio às grandes aglomerações urbanas do século
XXI. Na disputa pela hegemonia política, o movimento negro tem avançado no combate ao preconceito, à dis-
criminação e ao racismo no cenário político local e mundial. No entanto, paralelamente à luta do Movimento
Negro organizado – e, em grande medida, como resultado das suas proposições –, observa-se nos últimos anos a
intensificação de uma negritude mais difusa, que pode ser traduzida na expressão negros em movimento.

Jornal A Voz da Raça, órgão da Frente Negra Brasileira, edição de 18 de março de 1933.

55
Habitação de Negros. Obra de Johann Moritz Rugendas. Habitação em meio rural.

Não se trata, apenas, de uma constatação quan- reconstrução da subjetividade negra em Guarulhos, no
titativa, mas de uma análise da caminhada histórica, Brasil e no mundo, como se verá a seguir.
que extrapola o campo das leituras acadêmicas que re-
A Presença de LuíS Gama
vela a diversidade de expressões da presença negra no
cenário atual. É verdade que a “explosão” demográfica Nas palavras de Fábio
da segunda metade do século XX concentrou forças Konder Comparato, pro-
sociais nos locais de moradia, de trabalho e nos espa- fessor de Direito da USP,
ços informais de convivência. Gentes que se juntam e Luiz Gama herdou da
transformam suas realidades: movimento negro, hip mãe, Luiza Mahin, o ca-
hop, sambistas, capoeiristas e escritores negros, entre ráter indômito e apaixona-
outros segmentos. do; ela, africana, livre da
As formas iniciais de resistências dos negros es- nação Nagô, tomou parte
cravizados, bem como dos quilombos no Brasil, se de- ativa nas insurreições baia-
ram no meio rural. A partir da segunda metade do sécu- nas de 1835 e 1837, e, depor-
lo XIX, a luta por liberdade e justiça passou a ser trava- tada, não se sabe se para o Rio
da, também, nos cenários urbanos, brasileiros e estran- ou para a África. Quanto ao pai,
geiros, por novos atores (sociedade civil), que passaram de uma família ilustre da Bahia e descendente de portu-
a fortalecer os movimentos de resistência e levantaram a gueses, arruinou-se no jogo e acabou vendendo o próprio
bandeira da abolição da escravidão. Nesse sentido, des- filho de dez anos como escravo, em 1840, a uma família
taque especial cabe à figura de Luís Gama (1830-1882), paulista. Alfabetizado por um amigo aos 17 anos, Luiz
símbolo não só da luta abolicionista, mas também da Gama apaixonou-se pelos livros e aos 18 anos se alistou

56
na Marinha de Guerra. Seis anos depois, retornou a São A MEMÓRIA COMO OBJETO DE DISPUTA
Paulo, onde passou a trabalhar no escritório de um escri-
vão e depois na Secretaria de Governo da Província. Nes- No centro da cidade de Guarulhos, há uma
sa ocasião, veio-lhe a inspiração de estudar Direito para simpática rua em linha reta, por meio da qual os pretos
defender negros escravos... Fato único em nossa história, transportavam seus mortos entre a Igreja do Rosário e
conseguiu libertar nos tribunais mais de 500 escravos. a parte a eles reservada do Cemitério São João Batis-
Comparato, in Metrô News, 18/11/2010. ta, inaugurado em 1891. Lembremos que, em 1965,
É na década de 1860 que se iniciou, a partir da essa parte do cemitério desapareceu do mapa do cen-
Imperial Cidade de São Paulo, por iniciativa de Luiz tro histórico, cedendo lugar ao Serviço Funerário e à
Gama, o Movimento Abolicionista Brasileiro. A pres- Biblioteca Municipal hoje chamada Monteiro Lobato.
são britânica resultara na promulgação da Lei Feijó, A outra parte, onde estão enterradas várias autoridades
de 7 de novembro de 1831, cujo Artigo 1o determina: públicas, foi preservada, graças à mobilização das famí-
Todos os escravos, que entrarem no território ou portos lias tradicionais da cidade.
do Brasil, vindos de fora, Em 1932, ano que
ficam livres. Foi com base marcou o fim da Repúbli-
nessa lei que Luiz Gama ca Velha e o início da Era
promoveu nos foros judi- Vargas, a rua menciona-
ciais da Província de São da teve o nome alterado,
Paulo a liberdade de mais de Treze de Maio para
de 500 escravos ao longo Luiz Gama (erroneamente
da década de 1860, não só grafado com z), provavel-
dando início ao movimen- mente em homenagem
to abolicionista brasileiro, ao centenário de seu nas-
mas também inserindo a cimento, ocorrido no dia
Rua Luiz Gama: Situada na esquina da Praça Conselheiro 21 de junho de 1830. Ao
questão da escravidão na Crispiniano com a Rua Dom Pedro II
pauta do movimento re- realizar tal mudança, as
publicano, em torno do qual se articulava a maioria autoridades municipais da época não podiam imaginar
dos cafeicultores proprietários de escravos da Província. que, 56 anos depois (1988), diante das intenções oficiais
O surgimento de Luiz Gama no cenário pré- de comemorar o centenário da abolição da escravatura, o
-abolição e pré-República foi decisivo e emblemático. Movimento Negro Brasileiro divulgaria a data de 20 de
Esse foi o momento de gestação ideológica que iria novembro de 1695 – dia em que Zumbi, líder do Qui-
marcar de forma duradoura a vida brasileira: Foi o lombo de Palmares, foi emboscado e morto – como um
momento da “formação das almas”, no dizer do cien- poderoso contraponto simbólico ao 13 de maio tão cele-
tista político José Murilo de Carvalho. Luiz Gama é brado ao longo da história do Brasil até aquele momento.
autor de um único livro: Trovas burlescas de Getulino, Ocorre que a existência de Luis Gama associa-se
publicado em 1859. Trata-se de um marco dos mais muito mais ao 20 de novembro do que ao 13 de maio.
importantes, já que, pela primeira vez na história da Tendo lutado a vida inteira para transformar o Bra-
literatura, um escritor se disse negro. No mesmo ano, sil numa terra sem reis e sem escravos, Gama morreu
no Maranhão, veio à luz o romance Úrsula, escrito por pouco antes do fim da escravidão (1888) e da queda da
Maria Firmina dos Reis, acresentando à subjetividade Monarquia (1889). Se tivesse vivido para presenciar o
do homem negro inaugurada por Luis Gama a sub- período pós-abolição, sua atitude mais coerente seria a
jetividade da mulher negra. (para saber mais sobre o de apoiar os movimentos sociais negros, confrontando
assunto, acesse: http://www.letras.ufmg.br/literafro). a data de um ato oficial visto como concessão de uma

57
liberdade incompleta, já que não inseriu os libertos no Imperador D. Pedro II (1825/1891) e pelo conselheiro
mercado de trabalho. do Império João Crispiniano Soares (1809/1876), gua-
O contraponto representado pelo 20 de novem- rulhense que exerceu a Presidência da Província de São
bro, Dia Nacional da Consciência Negra, símbolo de Paulo entre 1864 e 1865, e que tinha a função de contro-
luta contra todas as formas de opressão, é uma estratégia lar e reprimir os homens e as mulheres escravizados. De
política em meio à constante disputa pela memória, que outro lado, a rua antes chamada 13 de Maio, renomeada
ocorre tanto nas narrativas historiográficas quanto na como Luiz Gama, e a lembrança da existência da Igreja
organização do espaço urbano. Exemplo disso, em Gua- que segregava esses mesmos homens e mulheres, repre-
rulhos, é o cruzamento das ruas Luiz Gama e D. Pedro sentam a resistência e o protesto dos excluídos.
II, hoje um calçadão onde coexistem a Praça Conselhei- Para além da realidade guarulhense, a diáspora
ro Crispiniano e a marca escura que reproduz no chão africana, condenada como crime contra a humanida-
as dimensões da Igreja do Rosário dos Pretos. de, pode ser vista além da forma violenta da captura,
A maior parte da multidão que diariamente tran- do tráfico e do trabalho escravo. A partir da presença
sita apressada pelo local não se dá conta de que o seu ima- negra na Europa e na América pós-abolição, a subje-
ginário e a sua memória são ali objeto de disputa. De um tividade negra massacrada durante séculos passa a in-
lado, os nomes do calçadão e da Praça simbolizam o po- fluenciar decisivamente a música, as artes plásticas, a
der monárquico do Segundo Império, incorporado pelo literatura, a política, o esporte e a ciência. Enfim, to-
dos os campos da subjetividade humana.
As principais tendências da Renascença, no século
XV, levaram os artistas a representar seus temas de forma
realista. Estudos da anatomia humana e a utilização da
perspectiva ajudaram os artistas a pintar figuras que “en-
ganavam” os observadores, fazendo-os pensar que o que
viam era uma extensão real do mundo, não uma super-
fície plana. É claro que se tratava de uma ilusão. Essas
convenções artísticas se mantiveram até o século XX. Um
quadro, mais do que qualquer outro, serviu para romper
com essa tradição: As senhoritas de Avinhão. Foi o prólo-
go do movimento chamado cubismo que viria a subverter a
tradição renascentista e preparar o caminho para a arte do
século XX. (Picasso: quebrando as regras. Coleção Grandes
Artistas. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1998, p. 17.)
Desde que o quadro foi pintado, em 1907, tem
corrido o mundo, como uma curiosidade acerca da obra, a
informação de que Pablo Picasso inspirou-se em máscaras
africanas para criá-la. Tal informação confere significado
especial ao episódio, uma vez que ativa a memória das rela-
ções sociais, econômicas, culturais e políticas estabelecidas
entre a Europa, a África e o chamado Novo Mundo, na
maior migração forçada da história da humanidade – a di-
áspora africana – em cinco séculos de escravidão e de colo-
nização, esta última se estendendo, ainda, por boa parte do
Cubismo: Homen no balcão. Obra de Albert Gleizes, 1912. século XX. As senhoritas de Avinhão, assim como o próprio

58
Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros. Obra de Johann Moritz Rugendas, 1835.

Picasso e o cubismo, foi um sinal dos tempos e represen- setores e músicos fundadores do jazz – tiveram grande
tou apenas um dos traços marcantes daquele momento. A repercussão, espraiando-se por todo o mundo, passando
máquina a vapor, inventada nas últimas décadas do século primeiro pelo Caribe, onde eclodiram o Indigenismo hai-
anterior, possibilitou o desenvolvimento da economia in- tiano e o Negrismo cubano, chegando à Europa.
dustrial e acelerou a velocidade das transformações. Emer- Na década de 1930, em Paris, na França, um gru-
giu o espírito republicano, a burguesia chegou ao poder e po de estudantes negros frequentadores do bairro uni-
os sistemas escravocratas seguiram desmoronando, sendo versitário do Quartier Latin foi arrebatado pela reverbe-
o Brasil o último país a assinar a lei da abolição. As cidades ração do que ocorrera nos EUA poucos anos antes. Sob a
começaram a inchar, interligadas pelo aperfeiçoamento liderança dos também estudantes e poetas Aimé Césaire,
dos sistemas elétricos de comunicação. O cinematógrafo, Leon Damas e Léopold Sedar Senghor – oriundos, res-
embrião do cinema, foi inventado em 1895. Em 1903, pectivamente, da Martinica, da Guiana Francesa e do
Henry Ford fundou a fábrica de automóveis que iniciaria Senegal, todos países colonizados pela França –, criaram
uma revolução na história da indústria. Dois anos depois, o Movimento da Negritude, palavra nova, inventada por
Albert Einstein daria início ao desenvolvimento da revo- meio do processo de derivação, que promove uma inver-
lucionária Teoria da Relatividade. são do valor semântico do termo “nègre”, ou “negro”,
Na década de 1920, dois movimentos político- com a qual a língua do colonizador associava os africanos
-culturais ganharam relevo nos Estados Unidos: o Pan- e seus descendentes à sua condição de escravizado.
-africanismo e o Harlem Renaissance, ou Renascimen- As ideias do Pan-africanismo exerceram pode-
to Negro, expressões que denotam, respectivamente, a rosa influência também sobre importantes lideranças
criação de uma comunidade planetária simbolicamente africanas que, nos anos 1960, participariam do processo
conectada por uma identidade de matriz africana e uma de descolonização do continente, como Asikiwe Nandi,
releitura, sob o ponto de vista afrobrasileiro, da ideia de futuro presidente da Nigéria; Kwame N’Krumah, pri-
renascimento inventada pela Europa do século XV. meiro presidente da República de Gana; Jomo Kenyat-
Tais movimentos – em torno dos quais gravita- ta, primeiro presidente da República do Quênia. O pró-
vam poetas, romancistas, artistas, intelectuais de diversos prio Léopold Senghor, um dos fundadores do Movi-

59
mento da Negritude, governaria o
Senegal entre 1960 e 1980. Nesse
sentido, vale destacar o depoimen-
to de Agostinho Neto, primeiro
presidente (1975 a 1979), da An-
gola independente:
Quando a música negra ame-
ricana invadiu os salões da Europa, os
negros de todo o mundo sentiram com
os seus irmãos americanos a alegria de
poderem ser ouvidos, mesmo através
do trompete. Os murros de Joe Louis
Os Oito Batutas (Donga, sentado, é o segundo da direita para a esquerda).
foram aplaudidos em todo o mundo
negro. Porém, mais importante do que estes fatos é o senti- como os maracatus e as festas das irmandades de Nos-
mento de solidariedade e de comunidade que existe entre os sa Senhora do Rosário.
negros de todo o mundo. Este mundo disperso pelas Américas, Em 1916, Ernesto dos Santos, o Donga, registrou
Europa e África, formado fora e dentro da África por indiví- a música Pelo telefone, uma paródia sobre o envolvimento
duos desenraizados dos seus povos e das suas culturas, mestiços da polícia com jogos proibidos. Pelo telefone foi o maior
culturais, portanto, vivendo marginalmente na civilização sucesso do Carnaval de 1917 e foi executada em diversas
europeia, descobriu-se a si próprio. (NETO, 2000, p. 53) rádios da cidade. Pela primeira vez a indústria cultural da
Era o início do primeiro século pós-abolição época se abriu à produção dos negros cariocas. Esse feito
da escravatura no Brasil. No século anterior, as cida- contribuiu para o fortalecimento das escolas de samba e
des brasileiras, sobretudo as das regiões Sul e Sudeste, de grupos teatrais negros na década de 1930.
haviam passado por um processo de aburguesamento. Foi também naquele momento que o Candomblé
No Rio de Janeiro e em São Paulo, começava a au- e a Capoeira ganharam reconhecimento social. Todos es-
mentar o número de jornais editados por negros, mas ses acontecimentos, no entanto, não diminuíram a discri-
em todo o Brasil amadurecia a organização da popu- minação contra a população negra, motivo pelo qual suas
lação negra em torno das festividades carnavalescas, lideranças criaram diversas associações de caráter político-
sem abandonar, contudo, costumes mais tradicionais -cultural como alternativa às restrições ao pleno exercício
da sua cidadania, como a Frente
Ministério da Cultura do Brasil

Negra Brasileira, exemplo de orga-


nização política dos negros paulistas
no período subsequente à abolição.
Percebe-se, enfim, uma curiosa sin-
tonia entre as populações negras do
planeta, a exemplo da necessidade
de fuga que conectou os negros es-
cravizados de todas as partes e que
resultou, no caso do Brasil, na for-
mação dos quilombos ao longo de
todo o Período Colonial.
Já na segunda metade do
Gilberto Gil. século XX, a democracia brasi-

60
leira passou por um importante processo de amadu-
recimento depois de duas décadas de ditadura militar
(1964–1985). Em 1969, o compositor negro baiano
Gilberto Gil compôs o samba Aquele abraço, cuja letra,
aparentemente, apenas exalta a cidade maravilhosa: “O
Rio de Janeiro continua lindo/O Rio de Janeiro conti-
nua sendo/O Rio de Janeiro, fevereiro e março/Alô, alô,
Realengo/Aquele Abraço!” E seria apenas isso se no ano
anterior o músico não tivesse ficado detido pelo regime
militar justamente em Realengo, bairro da zona oeste
carioca conhecido pela presença do Exército Brasileiro,
que desde 1898 mantém instalações no local.
A partir daí, fica mais fácil compreender o fato
de o calendário ser repentinamente interrompido na
imaginação do compositor, uma vez que foi no dia
31 de março que foi deflagrado o conjunto de eventos
denominado “golpe militar” ou “revolução” de 1964,
dando início a um período de 21 anos de ditadura. A
abrupta interrupção da sequência dos meses, na músi-
ca de Gil, pode significar o silêncio a que a sociedade
civil brasileira foi submetida a partir do primeiro dia
de abril, e com mais intensidade a partir do dia 13 Candomblé, Novembro Negro em Guarulhos, 2010.

:: PRESENÇA NEGRA E FEMININA NA POLÍTICA GUARULHENSE ::


A deputada federal Janete Rocha Pietá – eleita
em 2006 e reeleita em 2010 – teve participação impor-
tante no processo de transição política da cidade. É a
única mulher entre os 15 deputados federais eleitos pelo
Partido dos Trabalhadores (PT) e a sétima mais bem
votada dentro do partido. Com Elói Pietá, com quem é
casada há 38 anos, foi uma das fundadoras do PT em
fevereiro de 1980. Além de ter participado ativamente
do Movimento das “Diretas já” no ano de 1984, foi uma
das primeiras militantes a levantar a questão da mulher
como prioridade de discussão no partido.
Janete Rocha Pietá, durante a posse em 2007.
Entre outras ações, implantou a Coordenadoria
da Mulher e da Igualdade Racial no Município e des-
tinou recursos para a restauração da casa sede da Fazenda Bananal, conhecida na cidade como
Casa da Candinha. Considerada uma das únicas fazendas remanescentes do período escravista na
Região Metropolitana de São Paulo, a Casa da Candinha foi tombada pelo Decreto no 21.143/2000.
Na gestão do então prefeito Elói Pietá, mudou o nome da Estrada do Saboó, no trecho que passa
em frente à casa-sede da fazenda, para Martin Luther King (Prêmio Nobel da Paz, em 1964), um dos
líderes do movimento dos negros norte-americanos por direitos civis, nos anos 1960.

61
de dezembro de 1968, quando entrou em vigor o Ato

German Federal Archives


Institucional no 5, o AI 5, que, além de permitir a in-
tervenção do Poder Executivo Federal nos Estados e
nos municípios, impunha a censura prévia para jor-
nais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.
Em Guarulhos, foi nessas circunstâncias que, em
1971, o interventor federal nomeado pelo regime mi-
litar Jean Pierre Herman de Morais Barros – no dizer
de João Ranali, um elemento alheio às nossas coisas – ins-
tituiu a Bandeira municipal, oficializou o Hino do IV
Centenário como o terceiro símbolo oficial do municí-
pio e mandou modificar o Brasão de Armas, entregando
o trabalho a quem nada sabia de heráldica e muitíssimo
menos de nossa história. (RANALI, 2002, p. 91.) Ângela Davis.
Com o início da abertura política (1974), a exis-

Marion S. Trikosko
tência de várias agremiações partidárias passara a ser
permitida no Brasil. Partidos como o PCB (Partido Co-
munista do Brasil), fundado em 1922, e o PSB (Parti-
do Socialista Brasileiro), criado em 1947, haviam saído
da clandestinidade. Outros, como o PP (Partido Pro-
gressista) e o PPS (Partido Popular Socialista), haviam
adequado suas siglas e seus programas à nova realidade
política e social em processo, dando origem a outras le-
gendas. Outros partidos, ainda, surgiram da própria di-
nâmica político-social desenvolvida no País desde o fim
do bipartidarismo, por meio do qual o regime militar
reduziu a representatividade política brasileira a apenas
dois grandes partidos: a Aliança Renovadora Nacional
Malcolm X.
(Arena), que apoiava o regime, e o Movimento Demo-
crático Brasileiro (MDB), que lhe fazia oposição. Dick DeMarsico

Só na década de 1980, depois de aprovada, em


novembro do ano anterior, a reforma política que resta-
beleceu o pluripartidarismo, extinguindo MDB e Are-
na, foram criadas sete novas legendas, entre elas o Par-
tido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),
originário do MDB, o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), dissidência do PMDB, o Partido
dos Trabalhadores (PT) e o Partido Verde (PV).
Assim que assumiu o poder, em janeiro de
1974, como quarto presidente do regime militar, o
general Ernesto Geisel se deparou com uma econo-
mia deteriorada, numa sociedade perigosamente in-
quieta. Geisel passou a sinalizar em suas declarações Martin Luther King.

62
e discursos que promoveria no País a abertura política também era acompanhado com grande interesse no
de forma “lenta, gradual e segura”. Mas, foi sob o seu Brasil o movimento dos negros da África do Sul con-
governo, no dia 25 de outubro de 1975, que o jorna- tra o apartheid, uma das formas de racismo mais cruéis,
lista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da barbaramente instalado no próprio continente africano.
TV Cultura, foi encontrado morto, enforcado com o Nesse contexto, no dia 7 de julho de 1978, sur-
cinto da própria roupa, nas dependências do Desta- giu o Movimento Negro Unificado contra a Discri-
camento de Operações de Informações – Centro de minação Racial (MNU). Naquele dia, um ato público
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), depois de reuniu centenas de pessoas em frente ao Teatro Mu-
ter prestado depoimento a agentes do II Exército. A nicipal de São Paulo para denunciar a discriminação
morte de Herzog contribuiu para a intensificação do sofrida por quatro atletas negros nas dependências do
movimento pelo fim da Ditadura Militar. No início Clube Regatas Tietê, e a tortura e assassinato de outro
do ano seguinte (17 de janeiro), o metalúrgico Manuel jovem negro numa delegacia, Robson Silveira da Luz.
Fiel Filho também seria assassinado no DOI-CODI, Entidades negras vinham se formando desde o
fazendo aumentar a pressão contra o regime. início da década de 1970, em várias partes do Brasil. Em
Nesse mesmo período, chegavam aos bairros Porto Alegre, o grupo de escritores Palmares, criado em
populares informações sobre a movimentação política 1971, propunha a ideia de oferecer o dia 20 de novem-
dos negros em outras partes do mundo. Os brasileiros bro como contraponto ao dia 13 de maio. Em São Pau-
acompanharam os movimentos dos direitos civis e o lo, a partir de 1972, foi fundado o Centro de Estudos
Black Power nos Estados Unidos. Ainda que de forma e Arte Negra (Cecan). No Rio de Janeiro, em 1974, foi
fragmentada, as ideias de Ângela Davis, Malcolm X e criada a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba).
Martin Luther King em defesa de direitos e oportunida- Também em 1974, o Bloco Afro Ilê Aiyê iniciava as suas
des iguais para os negros norte-americanos repercutiram atividades em Salvador, na Bahia. Integrantes dessas e
entre militantes e intelectuais negros em todo Brasil. de outras entidades estavam reunidos nas escadarias do
Os brasileiros também se informavam pelo no- Teatro Municipal de São Paulo em julho de 1978. O
ticiário da televisão sobre os movimentos de libertação então já veterano militante Abdias do Nascimento tam-
nacional em países da África. As guerras contra o co- bém estava no ato público, que marcou a retomada da
lonialismo português que levaram à independência de luta negra contra a opressão desde o início da escravidão
Angola e Moçambique em meados dos anos 1970 ti- no Brasil, e que também pode ser visto como o início da
veram grande repercussão no Brasil. Os afrobrasileiros virada do milênio para os negros brasileiros.
perceberam que tanto nas Américas como na África os O movimento negro que se organizava naquele
negros enfrentavam a opressão racial. Nesse sentido, 7 de julho, em frente ao templo na elite do café, onde

Ilê Aiyê em festa no Pelourinho, comemoração à escolha de Salvador como cidade-sede da Copa do Mundo de 2014.

63
os intelectuais da Semana de Arte Moderna dizem ter
pretendido redescobrir o Brasil indígena e negro, ti-
nha como uma de suas principais tarefas a desconstru-
ção do mito da democracia racial brasileira, sistemati-
camente incutido no imaginário da população desde
o início do século. Curiosamente, a elaboração desse
mito é contemporânea do planetário Renascimento
Negro dos anos 1920 e 1930. Isso quer dizer que o
novo Brasil surgia, republicano e baseado no trabalho
livre, sem rei e sem escravos, não combinava com uma
sociedade racialmente desigual e em conflito, embora
fosse exatamente essa uma das principais característi-
cas dessa República. Guarulhão, situado na Rua Felício Marcondes, antiga sede
dos bailes blacks.
Assim, havia quem
se ocupasse da edificação da black power e a vestimenta colorida intensificaram o
identidade por meio da re- exercício de elevação da autoestima e do fortalecimen-
presentação, de modo que, to dos laços de identidade, paralelamente ao trabalho
também em 1978, começou desenvolvido escolas de samba.
a ser editada a série anual Tais manifestações estavam presentes também
“Cadernos negros”, respon- em Guarulhos, especialmente a partir do Jardim Tran-
sável pela publicação, até quilidade, reduto dos primeiros núcleos de sambistas
este ano de 2013, em 18 li- da cidade, e também por iniciativa de personagens li-
vros de poemas e 17 de con- gados à organização dos bailes blacks, como o ativista
tos, de mais de uma centena negro Milton Sales – o Carioca –, Georjão do Para-
de trabalhos de escritores venti, o cabeleireiro Gê e o salão Destaque Black.
negros de várias partes do Brasil. No mesmo ano de O primeiro desfile de uma escola de samba na
1978, começava a ser realizado o Festival Comunitário cidade ocorreu em 1974, quando a Império de Gua-
Negro Zumbi (Feconezu), que passou a reunir, em de- rulhos ocupou a Praça Getúlio Vargas e as ruas do en-
bates, performances, torneios esportivos e outras ativi- torno. Já os bailes blacks, que a princípio (final os anos
dades, uma grande variedade de linguagens, a cada ano 1970) eram realizados num barracão do bairro Para-
numa cidade diferente do Estado de São Paulo. venti, mais tarde foram transferidos para o Guarulhão
Naqueles últimos anos da década de 1970, pro- e para o elitizado Clube Recreativo.
liferou pelas grandes cidades, especialmente no Rio de Em 1982, com a realização das primeiras elei-
Janeiro e em São Paulo, o movimento Black Power, ções diretas estaduais no Brasil, surgiu a primeira par-
que, numa releitura do nome do grupo político radi- ticipação do Movimento Negro na Administração
cal norte-americano, apoiava-se no gênero musical da Pública: o Conselho Estadual de Participação e De-
soul music, e no corte de cabelo e no modo de vestir senvolvimento da Comunidade Negra de São Paulo,
dos negros da América do Norte para criar espaços criado em 1983.
de identidade da juventude negra urbana no Brasil. Entretanto, o questionamento público do mito
Os bailes de negros já eram uma tradição no espaço da democracia racial, na oportunidade do Centenário da
urbano desde as primeiras décadas do século, mas os Abolição, em 1988, talvez tenha sido a primeira grande
anos 1960 e 1970 ganharam novas contribuições. In- conquista do Movimento Negro de 1978. A tipificação
venções como a dança chamada samba-rock, o cabelo da prática do racismo como “crime inafiançável e im-

64
prescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da

Elza Fiúza-ABr
lei” (Art. 5o, XLII) e o reconhecimento da propriedade
definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das
comunidades quilombolas, “devendo o Estado emitir-
-lhes os títulos respectivos” (Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias – Art. 68), além do conteúdo do
Art. 215, que são dispositivos da Constituição Federal
promulgada em outubro de 1988, evidenciam que as
forças políticas reunidas na Assembleia Nacional Cons-
tituinte não puderam deixar de ouvir o ruído das ruas
produzido ao longo de toda aquela década.
Enquanto isso, alguns gestores da administração
municipal mantinham-se alheios aos acontecimentos.
Em 1991, em pleno mandato da 1a mulher nordestina
(Luiza Erundina, eleita em 1989) a exercer o cargo de
prefeita de São Paulo, uma comissão nomeada pelo pre-
feito de Guarulhos, Paschoal Thomeu (1988–1992),
composta de um historiador, um heraldista, um lati- Busto de Zumbi dos Palmares, patrono de escola da
Prefeitura de Guarulhos.
nista e outros interessados em repor os valores históri-
cos e heráldicos suprimidos da última versão (1971) do repercutiu as transformações em curso. O jornal Folha
Brasão de Armas, realizou um trabalho exaustivo que de São Paulo, em sua edição de 25 de junho, publicou
passou pelo crivo do Legislativo, melhorando o aspecto um caderno especial intitulado “Racismo cordial”, –
visual da última versão, mas preservando os mesmos resultado de um investimento significativo de recursos
elementos do símbolo original, de 59 anos antes. (dinheiro, tempo e pessoal) iniciado mais de seis meses
Em 1995, por ocasião dos 300 anos da morte de antes – que trazia uma pesquisa de abrangência nacio-
Zumbi dos Palmares, um veículo da grande imprensa nal, na qual 5.081 pessoas de todos os níveis e classes
sociais foram entrevistadas. Foi o maior esforço jamais
feito por qualquer instituição, pública ou privada, vi-
sando quantificar e qualificar o preconceito de cor no
País da propagandeada democracia racial.
Os 300 anos de Zumbi coincidiram com o pri-
meiro ano de mandato do presidente Fernando Hen-
rique Cardoso que, a partir da realização, em Brasília,
de uma marcha em homenagem a data, tão importan-
te para marcar a posição do Movimento Negro diante
da abolição, criou um Grupo de Trabalho Intermi-
nisterial para a Valorização da População Negra, uma
das primeiras iniciativas de ação afirmativa do Poder
Público brasileiro.
Em 2001, foi realizada na cidade de Durban, na
África do Sul, a III Conferência Mundial de Combate
ao Racismo, da qual participaram governo e entidades
Mãe Negra, Praça Getúlio Vargas, 2012. negras brasileiras, o que resultou nas conquistas hoje

65
Edna Roland, coordenadora da Igualdade Racial na Prefeitura de Guarulhos, durante a Conferência de Durban, na África do
Sul, em 2001, na qual atuou como relatora geral. Do seu lado direito está o então presidente da República (1999-2008),
Thabo Mvuyelwa Mbeki, sucessor de Nelson Mandela.

em destaque no debate nacional. Só no ano de 2003, Referência da Cultura Negra e Igualdade Racial Xike-
já sob o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Sil- lela – negro, em quimbundo, a língua mais falada em
va, houve três ações fundamentais para a consolidação Angola – e do desmembramento, em 2009, das duas
dessas conquistas: a criação da Secretaria de Políticas de coordenadorias, a da Mulher e a da Igualdade Racial, o
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a promul- “Dia da Consciência Negra” ampliou-se para “Semana
gação da Lei no 10.639 – que estabelece as diretrizes e da Consciência Negra” e, em seguida, para “Novem-
bases da educação nacional, para incluir no currículo bro Negro”, mês em que uma série de ações realizadas
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática em várias regiões da cidade reúne, por assim dizer, o
história e cultura afrobrasileira, entre outras providên- resultado de seminários, workshops, encontros, oficinas
cias – e a proposição do Estatuto da Igualdade Racial, e cursos desenvolvidos ao longo de todo o ano.
considerado constitucional
por votação unânime dos
ministros do Supremo Tri-
bunal Federal (STF), em
votação ocorrida no dia 26
de abril de 2012.
A realização da Con-
ferência de Durban coinci-
de com o início das ações
institucionais voltadas para
o “20 de novembro – Dia
da Consciência Negra”, em
Guarulhos. Em 2006, foi
instituída a Coordenadoria
da Mulher e da Igualdade
Racial. Dois anos depois,
com a criação do Centro de No começo da década de 1970, a capoeira em Guarulhos teve início, respectivamente, com os
mestres Leopoldina, Mirão e Lobo.

66
Um dos pontos altos do “Novembro Negro” é negociações entre sujeitos e incorporações de signifi-
a “Marcha da Consciência Negra”, organizada no dia cados de um segmento social pelo outro, um fenôme-
20 de novembro, percorrendo um itinerário represen- no bem exemplificado pelos manifestos que todo os
tativo da relação dinâmica que vem se estabelecendo anos são distribuído à população durante a “Marcha
no espaço urbano guarulhense, através de constantes da Consciência Negra”.

:: MANIFESTO – NOVEMBRO NEGRO 2011 ::


Marchamos, mais uma vez, pelas ruas de Guarulhos, neste 20 de novembro. Há 318 anos,
Zumbi, comandante da República de Palmares (a maior experiência de enfrentamento ao sistema
escravista nas Américas), foi emboscado, morto e projetado para a eternidade.
Ao marcharmos, assumimos o nosso papel como sujeito da história, reescrevendo-a nos li-
vros abertos das ruas de Guarulhos. Diante da Escola Estadual Conselheiro Crispiniano, que home-
nageia um símbolo dos homens livres e letrados do Brasil Império, e da Rua Dom Pedro II, armamos
a existência de mulheres e homens pretos, escravizados e analfabetos, segregados na igreja hoje
reduzida a uma marca gravada no chão do Calçadão.
Abolida a escravidão, demolido o nosso patrimônio, restou-nos a tarefa de reconstruir a nossa
identidade. Por isso marchamos, todos os anos, sob o olhar misterioso da mãe negra, cuja cabeça
repousa num pedestal da Praça Getúlio Vargas. Quem sabe ela guarda em segredo o nome dos
seus filhos, enterrados no mesmo Cemitério São João Batista de tantos munícipes ilustres?
Por isso marchamos. Seguimos pela antiga Rua 13 de Maio, hoje chamada Luiz Gama. É, tam-
bém, em sua homenagem que marchamos, este ano lembrando outros herdeiros, como nós, de sua
trajetória: Abdias do Nascimento, Ruth de Souza, Mãe Menininha, Milton Santos, Kabenguele Munanga,
André Rebouças, aos quais se reuniram aos guarulhenses Babá Tereza, Mestre Mirão e Pedro Moisés.
Seu exemplo ilumina nossos corações e mentes, enriquecendo a marca de nossa memória
gravada no chão do Calçadão. Revigorados por essas presenças, alcançamos o trecho final da
nossa marcha de 2011, o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes. É nessa condição que
avançamos pela Avenida Monteiro Lobato, cobrando dignidade para a Tia Nastácia e Tio Barnabé.
Derrotado o gigante Adamastor em águas africanas, fomos transplantados para as Américas,
temperando com o nosso sangue as águas do “mar português” e ampliando as trocas culturais en-
tre os povos do Planeta. Por isso, em 20 de novembro de 2011, afrodescendentes de todo o Brasil
marcharam pelas ruas, reivindicando as políticas previstas pelo Estatuto da Igualdade Racial, para
o devido reconhecimento da nossa contribuição e superação das profundas desigualdades raciais.

o brasão ganha as figuras de UM NEGRO E de UMA MULHER


Por conta de todas essas discussões em
andamento na cidade e no País, o então prefeito
Elói Pietá efetuou, em 2008, último ano de seu
segundo mandato, a mais recente modificação do
Brasão de Armas do Município, acrescentando às
figuras do indígena, do bandeirante e do coloniza-
dor português o rosto de uma mulher e o de um
negro. No mesmo ano, a Secretaria Municipal da
Educação promoveu, entre os seus educadores e
educadoras, o curso de formação “Metodologias
de enfrentamento do racismo”, na perspectiva da
implementação da Lei no 10.639, de 2003.

67
7 - GUARULHOS, CIDADE SÍMBOLO: RELEITURA

E sta obra é mais do que a simples história de


uma cidade, explica Adolfo de Vasconcelos Noronha,
na introdução de seu livro Guarulhos – Cidade símbolo.
É, antes de tudo, o retrato de um símbolo!
Isso porque, continua o autor, a história quadris-
secular de Guarulhos se presta a exempli­ficar, de modo
­fidelíssimo, o que foram os aldeamentos jesuíticos ins-
talados ao redor de São Paulo de Piratininga; como se
formaram os povoados, ao tempo da Capitania de São
Vicente; qual a vida das paróquias e distritos, ao tempo
da Capitania de São Paulo. Como funcionavam as vilas,
no tempo do Império.
Os historiadores quase sempre se inspiram nos fa-
tos mais importantes, que adornam a cúpula da vida
político-social de um povo. Mas, para se fazer a análise
microscópica de uma sociedade, põe-se em foco uma cé-
lula. Requer-se uma unidade bem típica, que se preste a
modelo, por trazer, no curso de sua vida, a estampa fi­el
de todas as fases evolutivas do corpo social.
Por preencher tais condições, Guarulhos merece o
quali­ficativo de Cidade Símbolo.
Eis aqui, portanto, uma das iniciativas pioneiras
Livro Cidade Símbolo (História de Guarulhos) 1560-1960.
no sentido de estabelecer uma identidade para o muni-
cípio. A atitude de Noronha tem signi­ficado especial, pelo fato de não ser isolada, mas ocorrer no interior de um
conjunto de ações o­ficiais, narradas no último capítulo do mesmo livro, em comemoração ao aniversário de 400
anos da cidade, completados em 1960. Foi naquela ocasião que, ao Brasão de Armas, primeiro símbolo ofi­cial
do município, instituído em 1932, juntaram-se o Hino e o símbolo do IV Centenário da cidade.
No que diz respeito ao Hino, note-se que a mensagem contida nas entrelinhas de sua letra apresenta
noção de símbolo bem diferente da de Noronha. Sua autora, a professora e poeta Nicolina Bispo, associa as

68
:: HINO A GUARULHOS ::
Sob o céu desta Pátria querida
Mais cem anos de luta e labor
Cingem hoje teu nome, Guarulhos
Que se ergueu por seu próprio valor.
Chaminés, como lanças erguidas,
Nos apontam o caminho a seguir.
Trabalhando, vencendo empecilhos,
Desfraldando o pendão do porvir.
Primeiro Brasão de Armas de Guarulhos, instituído em 1932. Tuas praças são livros abertos,
Onde lemos futuro e glória.
“chaminés”, símbolo da fase intermediária da indus- Crispiniano e Bueno fulguram
trialização, a “lanças erguidas”, instrumentos de caça e Como vultos eternos na História.
de guerra, usados em certa fase da história. Além disso, Que teu nome em mais um centenário,
ao comparar as praças da cidade a “livros abertos”, Ni- E na língua Tupi proclamado,
colina explicita a sua noção de símbolo, determinada Seja um hino de paz, de esperança,
Por teu povo feliz entoado.
pelas possibilidades de interpretação, de abstração, de
Pequenina nasceste, João Álvares,
leitura, en­fim, que ele encerra, oferecendo entre essas
Jesuíta, benzeu-te com fé
possibilidades uma perspectiva de “futuro e glória”. Tu és hoje cidade progresso,
Tal noção destoa por completo da ideia de que a ci- Uma terra que vence de pé,
dade é símbolo, porque “se presta a exempli­ficar, de Eia, pois, guarulhenses, avante,
modo fi­delíssimo”, uma realidade, servindo de “célu- Com bravura na luta febril,
Por São Paulo e por tudo o que é nosso,
E, acima de tudo, o Brasil!

la” para “a análise microscópica de uma sociedade”,


“unidade bem típica”, “modelo”, “estampa ­fiel”.
Já o símbolo do IV Centenário, escolhido por
meio de um concurso em que concorreram mais de
300 desenhos apresentados por 107 pessoas, explora
ao máximo os recursos expressivos da linguagem. A
despeito da descrição verbal e escrita oferecida pelos
vencedores – uma equipe de três estudantes da Facul-
dade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo –, o
símbolo do IV Centenário de Guarulhos é um texto
não verbal em aberto, colocado à disposição da imagi-
nação dos seus leitores.
Instalado em frente ao prédio onde funcionou
a Prefeitura entre os anos de 1958 e 1976, na Praça
Getúlio Vargas – região central o símbolo é um íco-
ne formado por tetraedros, cada face representando
um século. Formam-no quatro triângulos iguais, dois
Centro Municipal de Educação Adamastor. unidos por suas bases menores e dois justapostos por

69
seus vértices, sendo estes dispostos segundo um eixo

Arquivo do historiador indígena Mestre Robson Miguel


vertical. Assim, cada triângulo representa um século.
O conjunto é um sigma estilizado, representando uma
integral de valores, traduzindo os dias atuais. O tri-
ângulo recorda as três raças que povoaram a região: a
dominante é a vertical, representando o progresso; o
vértice comum é a união em busca do progresso.
Progresso. Parece ser esse o caminho que as
“chaminés, como lanças erguidas”, apontam. O lema,
herdado do positivismo de August Comte, tem for-
te presença no imaginário brasileiro desde o fi­nal do
século XIX – veja-se a divisa “Ordem e Progresso”
presente na bandeira nacional – e passa pelo desen-
volvimentismo dos “50 anos em cinco” de Juscelino
Kubitschek – presidente da República entre 1956 e
1961 –, alcançando a Guarulhos dos anos 1960, cujo
território era então marcado por um vertiginoso cres-
cimento da atividade industrial.
Certidão de criação da Vila de Santo André da Borda do
Campo, 1556, depois transferida para São Paulo de Piratinga.

Nesse sentido, tais manifestações – a cidade sím-


bolo de Noronha, a letra do Hino e o símbolo do IV
Centenário – têm pelo menos um traço em comum, qual
seja, a consciência de que a história local está inevitavel-
mente entrelaçada à história de São Paulo e do País. En-
quanto Noronha vê a cidade como exemplo do que foram
os aldeamentos jesuíticos instalados ao redor de São Paulo de
Piratininga, da formação dos povoados, ao tempo da Ca-
pitania de São Vicente, da vida das paróquias e distritos,
ao tempo da Capitania de São Paulo e do funcionamento
das vilas, no tempo do Império, Nicolina Bispo conclama
os guarulhenses a lutarem com bravura na luta febril / Por
São Paulo e por tudo o que é nosso, e, acima de tudo, o Brasil!
Já os estudantes de Arquitetura e Urbanismo
Nival Lima Prado, William Munfard e Maurício Frie-
dmam, ao elaborar um símbolo que recorda as três ra-
ças que povoaram a região e que hoje estão unidas em
busca do progresso, reproduzem no cenário micro uma
preocupação da elite intelectual e política brasileira das
primeiras décadas do século XX, isto é, o entendimen-
to do que poderia ser uma identidade brasileira. Esse é
o estado de coisas que, a nosso ver, justifica melhor o
Símbolo do IV Centenário na Praça Getúlio Vargas. título de cidade símbolo dado a Guarulhos em 1960.

70
A EPOPEIA LUSO-AFRICANA nossos contemporâneos: a divisão entre Pré-história e
EM GUARULHOS História, simbolizada pelo momento em que se desen-
Originalmente, a etimologia do termo “epopeia” volveu a escrita por volta do ano de 4.000 a.C., é uma
remete à narrativa de um feito: epos/narração e peia/ato elaboração discursiva construída entre os séculos XV e
de fazer alguma coisa. Segundo esse conceito, no entan- XVI para justificar a dominação da Europa expansio-
to, a notoriedade dos quatro mais conhecidos poemas nista – que, afinal, por meio dos poemas épicos, poten-
épicos produzidos ao longo dos últimos 28 séculos – cializou o discurso escrito – sobre os povos indígenas
Ilíada, Odisseia, Eneida e Os lusíadas –, o primeiro deles e africanos, que valorizam muito mais o discurso oral.
considerado o marco de fundação da literatura ociden- A divisão em questão não é apenas periódica, mas
tal, acabou por consagrar o significado hoje cristaliza- também hierárquica: o período histórico representaria
do no senso comum, algo como um poema de longo um estágio mais avançado do desenvolvimento da hu-
fôlego acerca de assunto grandioso ou heroico. Distor- manidade, superior, portanto, ao período pré-histórico,
ções como essa apenas reforçam um questionamento assim como, ainda hoje, a expressão escrita gozaria de
que vem sendo feito por certa corrente de historiadores, maior credibilidade, em detrimento da expressão oral.

:: GREGOS E ROMANOS ::
Os gregos fixaram para a eternidade os
fatos relacionados à guerra de Troia, por meio
da Ilíada e da Odisseia, textos épicos de auto-
ria atribuída ao poeta Homero, escritos no século
VIII a.C. Eneias, herói sobrevivente da guerra de
Troia, incumbido de encontrar uma terra para o
povo romano, seria lembrado sete séculos depois
como protagonista de outro poema épico, Enei-
da, escrito por Públio Virgílio Maro a pedido do
imperador Cesar Augusto, seu amigo de infância.
O governo de Augusto (31 a.C. a 14 d.C.)
foi caracterizado pela prosperidade, coroando um
período de 200 anos de conquistas territoriais do
Império Romano, o que provocou uma formidável
canalização de riquezas e ao mesmo tempo uma
intensa migração do Oriente para a capital do Im-
pério. Já no fim da vida, com mais de 80 anos de
idade, o imperador assistia à progressiva diluição
dos valores tradicionais dos romanos em meio ao
caldeirão cultural em que se transformara a cidade.
Decidiu, então, que Roma precisava de
uma obra que representasse para ela o mesmo
Ainda pouco estudada pela historiografia, a
que a Ilíada e a Odisseia eram para a Grécia, que presença negra na Grécia Antiga era bastante
codificasse todos os valores morais essenciais e significativa, a ponto de ser representada em
despertasse no povo o desejo de viver de forma afrescos, vasos, braceletes e máscaras. Um
exemplo é essa ânfora “atribuída a Execkias,
que honrasse suas origens gloriosas. Para isso,
do século V a.C., que está no Museu da Uni-
ninguém melhor que Virgílio, já então um reno- versidade de Filadélfia” – EUA (CAMARGO:
mado poeta, além de seu amigo de toda a vida. 1987, ps. 17 e 18).

71
Não por acaso, foram os indígenas e os africa-
nos os povos que tiveram suas terras saqueadas e que
foram escravizados no processo de expansão europeia
ocorrido a partir do século XV. Em favor de um equi-
líbrio maior entre as modalidades verbal e não verbal
da linguagem que, aliás, favorece também um maior
equilíbrio na convivência entre os diferentes povos no
Planeta, cabe notar que a cidade pode ser vista tam-
bém como um texto. É evidente o paralelismo que
existe entre a possibilidade de empilhar tijolos, defi-
nindo formas geométricas, e agrupar letras, forman-
do palavras para representar sons e ideias. Essa noção
pode ser claramente percebida, como já dissemos, na
letra do Hino a Guarulhos (vencedor de um concurso
realizado em 1960 como parte das comemorações ao
aniversário de 400 anos de fundação da Aldeia de Nos-
sa Senhora da Conceição dos Maromomi em 1560; o
hino, cuja letra é de autoria de Nicolina Bispo, profes-
sora e poeta sergipana que viveu até o fim da vida em
Guarulhos, foi oficializado, em 1971, como um dos
símbolos oficiais do município, ao lado do Brasão de
Armas e da Bandeira), em especial nos versos que se
referem às praças da cidade.
Vemos, portanto, que as possibilidades da lin-
guagem não se limitam à escolha entre as modalida-
des escrita e oral, verbal e não verbal. Ao contrário,
potencializam a construção de sentido se houver uma
combinação entre os diferentes sistemas de símbolos à
nossa disposição: a arquitetura, o urbanismo e as di-
versas formas de expressão artística, sem contar as con-
quistas tecnológicas da comunicação de massa, como
a fotografia, que reafirma no nosso cotidiano a velha
máxima de que mais vale uma imagem que mil pala-
vras, frase atribuída a Confúcio, filósofo chinês que
viveu no século V a.C..
Além disso, é fundamental observar que os dois
fenômenos – escrita e cidade – ocorrem quase simul-
taneamente (há cerca de seis mil anos), impulsionados
pela necessidade de memorização, medida e gestão do
trabalho coletivo. Daí se depreende que os grupos hu-
manos que convivem num mesmo território chamado
cidade competem entre si pelo domínio desse território,
por meio não só da sua apropriação material, mas tam-
Encontro dos povos indígenas em Guarulhos em 2012.
bém da sua apropriação ritual, vale dizer, simbólica.

72
O MITO DO GIGANTE ADAMASTOR dades que lhes teria possibilitado, inclusive, explorar
Mais recentemente, durante a Renascença euro- outros continentes em nome de Deus. Interessa-nos
peia, foi a vez de o povo português construir a sua ver- especialmente o Canto V, uma das passagens mais fa-
são da história. Em Os lusíadas, publicado em 1572, mosas do poema, momento em que a embarcação de
Luís de Camões narra as aventuras marítimas dos na- Vasco da Gama alcança o encontro entre o Atlântico e
vegadores portugueses, com destaque para a viagem de o Índico, na ponta sul do continente africano. Ali vive
Vasco da Gama às Índias, ocorrida em 1498. Nação a figura mitológica do gigante Adamastor, guardião
mais ocidental da Europa, líder do progresso das técni- daquela área marítima, representação do promontório
cas de navegação, Portugal começou a explorar as ilhas cercado por águas revoltosas e apelidado pelos portu-
próximas no início do século XV. Progressivamente, gueses de Cabo das Tormentas.
foi conquistando a extensa costa africana, obtendo ali Segundo nos conta Camões no poema, Ada-
ouro, pimenta, marfim e pessoas para escravizar, mas mastor é uma figura “robusta e válida, de disforme e
tendo como principal objetivo contornar o continente grandíssima estatura”. Tem “o rosto carregado, a bar-
e atingir a Ásia pelo Oceano Índico. ba esquálida, os olhos encovados e a postura medonha
Fiel às principais características da epopeia e má”. Os cabelos “crespos” estão cheios de terra, “a
como gênero literário, Camões estruturou a sua narra- boca, negra, os dentes, amarelos”. Adamastor é, enfim,
tiva em dez cantos (partes), com estrofes de oito versos uma criatura-ameaça, símbolo dos obstáculos que só
decassílabos, seis rimas cruzadas e duas em paralelo, e valorizam as conquistas lusitanas.
tratou de associar os feitos dos heróis lusitanos a atri- O que os navegadores de 1498 ou o poeta de
butos quase sobrenaturais, próprios dos deuses, quali- 1572 não podiam prever é que naquele mesmo cabo,

Centro Municipal de Educação Adamastor em 2011.

73
no continente, haveria no futuro que o gigante mitológico, já que são

Benny Gool
um país de nome África do Sul, pessoas reais que impõem, como a
lembrado mundialmente como íco- história tem demonstrado, obstá-
ne do apartheid, responsável pelo culos reais, mais poderosos que as
episódio inspirador do Dia Inter- águas revoltas do oceano.
nacional de Luta pela Eliminação da As possibilidades interpreta-
Discriminação Racial. No dia 21 de tivas dessa passagem de Os lusíadas
março de 1960, no bairro de Sha- estão devidamente representadas no
perville, em Joanesburgo, capital da cenário urbano de Guarulhos, par-
África do Sul, 20 mil jovens e crian- ticularmente na releitura, feita em
ças negras protestavam contra a lei 2003, do antigo prédio da Fábrica
do passe, que os obrigava a portar de Casimiras Adamastor, localizado
uma identificação especificando os na Avenida Monteiro Lobato, no
locais por onde eles podiam circu- Desmond Tutu. centro expandido. Inaugurada em
lar. Mesmo sendo uma manifesta- 1946, no local onde até 1941 ha-

South Africa The Good News


ção pacífica, o Exército atirou sobre via uma chácara e olaria, a fábrica
a multidão, matando 69 pessoas e ocupou o prédio da Cerâmica Bra-
ferindo outras 186. Essa ocorrência sil, que funcionara ali entre 1941 e
ficou conhecida como o “Massacre 1946. O prédio, tombado por meio
de Shaperville”, e o dia 21 de março, do Decreto Municipal no 21.143,
como o Dia Internacional de Luta de 26 de dezembro de 2000, foi
pela Eliminação da Discriminação adaptado para receber o Centro
Racial, instituído pela Organiza- Municipal de Educação, que man-
ção das Nações Unidas (ONU). A teve o nome da fábrica de casimiras.
África do Sul revelou para o mundo A adaptação, pelo arquiteto
personagens como Desmond Tutu, Ruy Ohtake, estabelece um interes-
arcebispo negro sulafricano notabi- sante contraste entre a arquitetura
lizado por sua luta contra o regime moderna do início do século XXI
Nelson Mandela.
do apartheid, motivo pelo qual foi e as técnicas construtivas do prédio
Ricardo Stuckert/PR

agraciado com o Prêmio Nobel da original, cuja base é o tijolo cozido,


Paz em 1984) e Nelson Mandela. ciclo econômico que fez proliferar
A libertação de Nelson Mandela, em Guarulhos, principalmente nas
preso na África do Sul desde 1964, várzeas do Rio Tietê, as olarias ex-
foi uma das principais bandeiras do ploradas sobretudo por imigrantes
Movimento Negro Brasileiro no fi- italianos, incentivados a se estabe-
nal dos anos 1970. Mandela foi sol- lecer no Brasil exatamente no mo-
to em 1989, venceu a luta contra o mento em que o trabalho escravo era
regime e se transformou no primei- substituído pelo assalariado. Ohtake
ro presidente negro (1994 a 1999) instalou, ao lado do antigo prédio,
pós-apartheid. Considerado o mais uma estrutura em vidro verde sobre
importante líder da África negra, concreto armado e em forma de nau,
Mandela também é Nobel da Paz, que atualmente abriga a Secretaria
em 1993), tão ou mais ameaçadores Abdias do Nascimento. Municipal de Cultura.

74
O nome do gigante mítico da epopeia de Ca- da Borda do Campo, com os seus moradores, era trans-
mões representa, assim, o elo entre as tradições escrita ferida para a povoação que se formava em torno do
e oral e a modernidade urbana, que afinal são, como Colégio dos jesuítas e que a partir de então foi transfor-
vimos, elementos fundamentais para se compreender a mada em núcleo político-administrativo da Vila de São
cidade símbolo. Adamastor é também o fio que costura Paulo dos Campos de Piratininga.
o século XV, narrado em Os lusíadas, ao período da in- Estudos recentes evidenciam a possibilidade de
dustrialização guarulhense e à chegada do terceiro milê- os Maromomi estarem etnicamente mais próximos
nio. No saguão do Centro Municipal, há uma placa de do chamado “homem de Lagoa Santa”, povo negroi-
inauguração, onde se lê: Remodela-se a antiga tecelagem de que chegou ao território brasileiro por volta de 14
para abrigar os sonhos e os meios, permitindo ao professor mil anos atrás, constituindo-se nos nossos primeiros
tecer as tramas do saber, unindo os fios do passado ao povoadores. Seu processo migratório os teria levado
presente para a construção do futuro.
É evidente, nesse texto de autoria não identifi-
cada, a consciência em relação à importância também
metafórica do equipamento público então entregue à
população. Ao se falar em abrigar os sonhos e os meios,
considera-se não apenas o aspecto prático ou literal
do ato, mas também o simbólico. Expressões como
tecer as tramas do saber e unir os fios do passado ao
presente, que exploram o duplo sentido da construção
linguística, parecem convidar os futuros usuários do
equipamento para que façam dele uma interpretação
ativa e integral, que lance mão das diversas linguagens
em jogo, exatamente como fazem as sociedades de
tradição oral, como nesta frase: A palavra vem acom-
panhada de outras linguagens além da linguagem verbal
– a gestualidade, a microgestualidade, a entonação, a
linguagem plástica e outras.

SANGUE PAULISTA
Ainda no ano 1400 da Era Cristã, o território
que hoje conhecemos como cidade de Guarulhos já era
frequentado pelos Maromomi, povo coletor e nômade
pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, que por sua
vez era um conjunto de línguas então faladas pelos ha-
bitantes da imensa região situada entre a Serra do Mar,
o Vale do Rio Paraíba do Sul e a Serra da Mantiqueira.
O primeiro nome da atual cidade de Guarulhos,
portanto, foi “Aldeia de Nossa Senhora da Conceição
dos Maromomi”, fundada pelo padre jesuíta Manoel
de Paiva em 1560, ao mesmo tempo em que, por or-
dem de Mem de Sá, terceiro governador-geral do Bra- Indígenas Purí aparentando Maromomi. Obra de Johann
sil, a estrutura administrativa da Vila de Santo André Moritz Rugendas, 1835.

75
a ocupar, bem antes da chegada dos povos de língua vere pavlistarvm sangvis mevs (meu sangue é verdadei-
Tupi-Guarani, determinadas regiões do litoral, como ramente paulista).
a atual cidade de Caraguatatuba, onde existe inclusive Como se vê, o Brasão de Armas de Guarulhos
uma localidade chamada “Enseada dos Maromomi”. tem o mito bandeirante – o sangue paulista – como
Sua semelhança física com os Guarulhos, indígenas base de sua representação simbólica, reproduzindo
da região do Rio de Janeiro, fez os portugueses, entre uma criação discursiva implantada no Brasil a partir da
1630 e 1640, lhes trocarem a identidade, assim como proclamação da República e vigente até a atualidade,
o nome da aldeia. ainda que venha sofrendo questionamentos por parte
A formação do aldeamento de Nossa Senho- da historiografi­a mais recente.
ra da Conceição, em 1560, e o desenvolvimento da A ideia romântica, triunfalista, do bandeirante
atividade da mineração de ouro na atual Serra do Ita- herói e benfeitor, responsável pela expansão da civili-
beraba, a partir de 1597, são processos fundadores de zação contra o atraso primitivo, serviu como uma luva
um ideal identitário para a cidade de Guarulhos, nos aos interesses dos cafeicultores paulistas que, com o su-
quais é possível encontrar os principais elementos re- cesso do movimento republicano por eles engendrado,
produzidos no Brasão de Armas do Município, insti- acrescentavam, assim, ao seu poder econômico, tam-
tuído em fevereiro de 1932 como seu primeiro sím- bém o poder político. Como recurso simbólico para a
bolo o­ficial. Ali estão o escudo português, a Lua cres- consolidação e manutenção desse poder, havia o papel
cente representativa de Nossa Senhora da Conceição, dos bandeirantes, indivíduos independentes que desa­
a cruz que simboliza a presença da Igreja Católica, as fiaram tanto a Igreja Católica como a Coroa portu-
três cabeças que homenageiam os indígenas, os ban- guesa no processo de colonização do Brasil. Isso serviu
deirantes e os colonizadores portugueses, as anhumas como sugestão histórica de que o poder deveria emanar
que viviam às margens do Rio Tietê e a frase latina de São Paulo, já que seu povo seria descendente de co-

Combate contra botocudos. Obra de Jean Baptiste Debret, 1827.

76
Pereira de Barros, do seu tre-
cho São Paulo–Campinas,
passa a se chamar Anhangue-
ra – como ficou conhecido
o bandeirante Bartolomeu
Bueno da Silva – a antiga
rodovia que era denominada
Estrada Velha de Campinas.
• 1953 – No dia 25
de janeiro, quando se come-
morava o 399o aniversário
da cidade de São Paulo, foi
inaugurado, na Praça Ar-
mando Salles de Oliveira, no
Ibirapuera, o “Monumento
às Bandeiras”, escultura de
Monumento às Bandeiras. Obra de Victor Brecheret. Inaugurado em 1954. 12 metros de altura, 50 de
mandantes natos, a­firma a historiadora Luíza Volpato, extensão e 15 de largura que o artista Victor Brecheret
especialista no tema. iniciara quase trinta anos antes, com o apoio dos mo-
Esse sistema encontrou adeptos entre a elite in- dernistas Oswald de Andrade e Di Cavalcanti.
telectual, que se dispuseram, na condição de formado- • 1954 – A Rodovia SP-270, que liga o bair-
res de opinião, a reproduzi-la por meio da exploração ro do Butantã, na zona oeste da cidade de São Paulo,
dos potenciais expressivos da linguagem, levados a ao município de Presidente Epitácio, na divisa com
efeito por ações frequentemente o­ficiais – conforme o estado do Mato Grosso do Sul, recebe o nome de
abaixo –, num processo cumulativo de mensagens Raposo Tavares, em homenagem ao bandeirante.
que, ao longo de quase todo o século XX, acabaram • 1961 – O trecho entre o município de Guaru-
por transformar em verdade absoluta o que é apenas o lhos (SP) e a Região Metropolitana de Belo Horizonte
ponto de vista de um grupo social. (MG) da BR-381 recebe o nome de Fernão Dias, ban-
• 1903 – Benedito Calixto cria a ­figura altiva de deirante famoso pela procura obstinada de esmeraldas,
Domingos Jorge Velho. responsável pela abertura do caminho cujo traçado foi
• 1917 – Ao assumir a direção do Museu Pau- quase totalmente acompanhado pela atual rodovia.
lista, o engenheiro e historiador Affonso D’Escragnolle • 1963 – É inaugurada, na confluência entre as
Taunay, descendente de importante família de políticos e avenidas Santo Amaro e Adolfo Pinheiro, na zona sul
intelectuais franceses, reconfigura a decoração da institui- da cidade de São Paulo, uma estátua de 10 metros de
ção e, em nome de um projeto ideológico voltado para a altura, de autoria do artista santamarense Júlio Guer-
relação entre memória e poder, encomenda a elaboração ra, em homenagem ao bandeirante Manuel de Borba
de várias obras de arte que enaltecem o bandeirantismo. Gato (1649–1718).
• 1930 – Afonso Taunay encomenda obras so- • 1967 – O poema Hino dos Bandeirantes, de
bre os bandeirantes. Guilherme de Almeida, é adotado como letra do Hino
• 1932 – É instituído o Brasão de Armas de do Estado de São Paulo.
Guarulhos, de autoria do mesmo Affonso Taunay. • 1976 – É inaugurado o atual Paço Munici-
• 1940 – Com o início das obras de construção, pal de Guarulhos, onde funciona a Prefeitura. Nos
sob a gestão do interventor do Estado Novo Adhemar jardins do Paço, foi instalado um monumento de

77
pedra com uma placa onde se lê: “Este é o marco de batalha, e mataria o seu líder Zumbi numa embos-
do novo centro administrativo de Guarulhos que cada (20 de novembro de 1695). Jorge Velho e Zumbi
erigimos em homenagem à grandeza deste povo que tiveram seus nomes eternizados na História. Foram
trabalha para glória da Nação, honrando a memória transformados em heróis, por motivos diferentes, sob
dos ancestrais bandeirantes.” pontos de vista opostos.
• 1978 – É inaugurada a Rodovia dos Bandei- Foram assim estruturados os elementos fun-
rantes, pelo então presidente Ernesto Geisel e pelo go- damentais sobre os quais se baseia a construção do
vernador Paulo Egídio Martins. espaço de disputa da memória coletiva em Guarulhos,
Em relação a todos essas homenagens, cabe num processo de produção, apropriação e semantização
destacar uma “coincidência” – se é que em história do espaço urbano globalizado. De um lado os bandei-
isso é possível – ocorrida ainda nos momentos iniciais rantes, representando a conquista de terras, o domí-
do Período Colonial brasileiro. Em 1597, ao mesmo nio sobre os outros povos, a busca por riquezas, o
tempo em que os bandeirantes Afonso Sardinha, pai e progresso e a civilização; de outro, os quilombos, que
fi­lho, encontravam ouro na Serra do Jaguamimbaba – proliferaram por todo o Brasil onde quer que tenha
atual Serra do Itaberaba, em Guarulhos –, um grupo havido escravidão, funcionando como abrigo para os
de 40 africanos escravizados se rebelava num engenho fugitivos da opressão – no caso de Palmares, não só
de cana-de-açúcar em Pernambuco, refugiando-se na negros escravizados, mas também indígenas e brancos
Serra da Barriga, lugar de difícil acesso, distante do marginalizados –, além de ameaça aos interesses do
litoral e protegido por precipícios e matas intocadas, colonizador na exploração dos recursos da terra, vale
para dar início ao Quilombo de Palmares. Quase um dizer, no Nordeste do século XVI, da cana-de-açúcar
século depois, Domingos Jorge Velho, o bandeirante e, na Guarulhos dessa mesma época, do ouro, ciclos
reinventado por Benedito Calixto em tela de 1903, econômicos a que se seguiram o ouro mineiro e o café
destruiria Palmares (1694), depois de quase sete anos paulista como culturas principais.

Carregadores de sacas de café no cais do porto de Santos.

78
:: A APARÊNCIA INVENTADA DE DOMINGOS JORGE VELHO ::
O pintor santista Benedito Calixto, ten-
do recebido do Governo do Estado de São
Paulo a encomenda de duas telas para orna-
mentar o Museu Paulista, teria pedido a orien-
tação de alguns pesquisadores, entre eles o
engenheiro e historiador negro Teodoro Sam-
paio, que teria respondido, em carta de 27 de
novembro de 1892: Num quadro histórico,
porém, não há só a considerar a verdade ou
realidade do fato; há também a parte pro-
priamente artística ou de efeito estético, há
a lição de coisas. Caracterizando o vulto de
Domingos Jorge Velho como trajava qualquer
sertanejo mais abastado ou “o bandeirante”,
não se conseguirá do quadro a demonstra-
ção ou a ideia que se tem em vista alcançar.
É mister, portanto, sacrificar um tanto a re-
alidade à ficção, no intuito de se conseguir
maior força de expressão. Acho, pois, acerta-
da a sua resolução de caracterizar o famoso
vencedor dos Palmares pelo modo pelo qual
m’o descreveu. Benedito Calixto, Retrato de
Domingos Jorge Velho, 1903, óleo sobre tela,
140 x 100 cm. Coleção Museu Paulista da
Domingos Jorge Velho. Obra de Benedito Calixto, 1903. Universidade de São Paulo.

Praça Conselheiro Crispiniano em 2013. Demarcação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos (nome atual), demolida em 1930. Marca inaugurada no dia 8 de dezembro de 2008.

79
:: LEIS abolicionistas ::
Lei Diogo Feijó – Lei Imperial de 7 de no- Declarava livres os filhos de mulheres escravas
vembro de 1831; declarava livre todos os escra- nascidos a partir da data da sua promulgação.
vos vindos de fora do Império e impunha penas Lei dos Sexagenários (também chama-
aos seus importadores. da de Lei Saraiva Cotegipe)
Lei Euzébio de Queirós – Lei Imperial no Lei Imperial no 3.270, de 28 de setembro
581, de 4 de setembro de 1850. Proibia o tráfico de 1885 – Mandava fazer a matrícula de todos
de negros africanos para o Brasil. O tráfico inter- os escravos existentes no Império do Brasil, ex-
no de escravos permaneceu legal até a promul- cluídos os maiores de 60 anos.
gação da Lei do Ventre Livre. Lei Áurea – Lei imperial no 3.353, de 13
Lei do Ventre Livre (também chamada de maio de 1888, composta de um único artigo,
de Lei Rio Branco). que declarava extinta a escravidão no Brasil.
Lei Imperial, de 28 de setembro de 1871 –

:: LEIS de combate aO RACISMO E AO PRECONCEITO ::


Lei Afonso Arinos – Lei Federal no 1.390, Ato das disposições constitucionais
de 3 de julho de 1951. Incluía entre as contra- transitórias. Art. 68 – Aos remanescentes das
venções penais “os atos resultantes de precon- comunidades dos quilombolas que estejam
ceito de raça ou de cor”. Foi revogada pela Lei no ocupando suas terras, é reconhecida a proprie-
7.716, de 5 de janeiro de 1989, também conheci- dade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os
da como Carlos Alberto (Caó). títulos respectivos.
Constituição da República Federativa Lei Caó
do Brasil promulgada em 5 de outubro de Lei federal no 7.716, de 5 de janeiro de
1988. Art. 216 (...) inciso 5o – Ficam tombados 1989 – Define como crimes os preconceitos re-
todos os documentos e os sítios detentores de sultantes de raça ou de cor.
reminiscências históricas dos antigos quilombos.

:: LEIS de PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL ::


Lei Federal no 10.639, de 2003 – Altera a rede de ensino a obrigatoriedade da história e
LDBN 9.394/1996, para incluir a obrigatoriedade cultura afro-brasileira e indígena.
de inclusão no currículo oficial da rede de ensino Lei Municipal no 6.494, de 2009 – Torna
da história e cultura da áfrica e dos afro-brasileiros. obrigatório o tema história e cultura afro-brasi-
Lei do feriado do dia 20 de novembro leira e indígena no programa de ensino dos es-
(Art. 79-B da Lei no 10.639) – Inclui o dia 20 de no- tabelecimentos de educação infantil, públicos e
vembro como Dia Nacional da Consciência Negra. privados do município de Guarulhos.
Lei Municipal no 5.950, de 2003 (Câmara Lei no 12.288 – Estatuto da Igualdade
de Vereadores de Guarulhos) – Institui no municí- Racial de 2010 – Tem por objetivo “combater a
pio de Guarulhos o dia 20 de novembro como fe- discriminação racial e as desigualdades raciais
riado civil municipal – Dia da Consciência Negra. que atingem os afro-brasileiros, incluindo a di-
Lei Federal no 11.645, de 2008 – Altera mensão racial nas políticas públicas desenvolvi-
a LDBN, 9.394/1996, para incluir no currículo da das pelo Estado”.

80
:: AÇÕES DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PARA PROMOÇÃO
DA IGUALDADE RACIAL ::
As ações da Secretaria da Educação para Promoção da Igualdade Racial teve início em
2002, a partir da Semana de Consciência Negra, considerada um importante marco inicial. Com o
desafio de avançar nas políticas educacionais sobre a temática, em 2008 constituiu-se o Grupo de
Trabalho da Promoção da Igualdade Racial (GTPIR).
Ao longo dos anos, o GTPIR vem desenvolvendo diversas ações com vistas a implementação
das Leis Federais: no 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e
afro-brasileira no currículo escolar e a no 11.645/2008 que amplia a obrigatoriedade para a temática
indígena; além destas, destacamos a Lei Municipal no 6.494/2009, que estabelece esse ensino tam-
bém para a educação infantil, nas escolas públicas e privadas do município de Guarulhos.
Na perspectiva de ampliar as políticas educacionais em consonância com essa legislação, no
dia 27 de outubro de 2009 foi criada na estrutura organizacional da Secretaria da Educação a Divi-
são Técnica de Políticas para Diversidade e Inclusão Educacional, composta por quatro sessões,
das quais destacamos a Seção Técnica de Ações Educativas para Igualdade Racial e de Gênero,
que, dentre as várias atribuições, tem como maior meta realizar ações formativas que favoreçam o
desenvolvimento de uma cultura de respeito à diversidade e de garantia de direitos a todos e todas.
Cabe ressaltar que o GTPIR teve continuidade, então como um braço das ações dessa Se-
ção, visto que se caracteriza como uma importante estratégia para favorecer a articulação entre os
diferentes segmentos e modalidades da Secretaria da Educação.
Neste cenário várias ações formativas foram desenvolvidas, como: Projeto Babassá – Danças
e Cultura Afro-brasileira, Semanas da Consciência Negra, Cursos – Educação Africanidades – Brasil/
MEC, Metodologia de Enfrentamento do Racismo e Promoção da Igualdade Racial, oficinas temáti-
cas desenvolvidas tanto com educadore(as), como com educandos(as), Seminário Internacional de
Diálogos Políticos sobre o Ensino de História e Cultura da África, Curso de História e Culturas Africa-
nas e Afro-brasileiras, Prêmio Akoni de Promoção da Igualdade Racial, Curso Diversidade e Direitos
Humanos, Oficinas nas Escolas – Articulação de Saberes e Práticas de Enfrentamento das Discri-
minações e de Promoção da Igualdade Racial/Étnica e de Gênero, Curso de Relações Raciais na
Educação: 10 anos da Lei no 10.639/2003, Curso de Literatura Negra ou Afro-brasileira? Uma ques-
tão e muitas vozes, Seminário 10 anos da Lei no 10.639/2003 “O quanto caminhamos pela igualdade
racial na educação?”. Publi-

Revista Ashanti/2010
cações: Revista Ashanti de
Promoção da Igualdade Ra-
cial e Afro-brasileiros(as) e
Currículo – Olhar para trás
para seguir em frente...(Sín-
tese do Relatório da pes-
quisa: Compreensão e efe-
tivação das Leis Federais
no 10639/03 e no 11645/08
e da Lei Municipal 6494/09
na Rede Municipal de Gua-
rulhos), além das análises
e indicação para aquisição
e compra de livros recursos
didáticos sobre o tema.

81
:: PERSONALIDADES NEGRAS DA NOSSA HISTÓRIA ::

João do Pulo (in memoriam), atleta de Guarulhos,


recordista mundial de salto triplo em 1973. Babá Tereza (in memoriam), sambista guarulhense.

Conceição Geremias, ex-atleta da seleção de Guarulhos,


participante de três olimpíadas. Mestre Mirão (in memoriam), capoeirista guarulhense.
Sérgio Savaman Savarese

Jaú (in memoriam), jogador de futebol guarulhense que


atuou no Corinthians, no Vasco e na Seleção Brasileira. Adriana Lessa, atriz guarulhense.

82
SOU NEGRO
Meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.

Contaram-me que meus avós


vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro maracatu.

Depois meu avô brigou como um danado


nas terras de Zumbi.
Era valente como quê.
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu.
Não foi um pai João
humilde e manso.

Mesmo vovó
não foi de brincadeira.
Na guerra dos Malês
ela se destacou.

Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...

Francisco Solano Trindade (1908-1974). Cantares a meu povo. Autoria de Solano Trindade.
São Paulo: Fulgor, 1961.

83
GALERIA DE PREFEITOS DE GUARULHOS

Capitão Gabriel Felício Antônio Alves Zeferino Pires José Maurício de João Eduardo
José Antônio 1915 a 1916 de Freitas Oliveira Sobrinho da Silva
1908 a 1915 1917 a 1919 1919 a 1930 1930
1940 a 1945

Delezino de Almeida Dr. Alberto Cardoso Major Ariovaldo Dr. Alfredo Ferreira Carlos Panadés
Franco de Melo Panadés Paulino Filho 1933
1930 a 1931 1931 1931 a 1933 1932

Guilhermino Rodrigues Gentil Bicudo José Saraceni Major José Moreira Dr. Heitor Maurício
de Lima 1936, 1938 e 1945 1936 Matos de Oliveira
1933 a 1938 1938 a 1940 1945 a 1947

Vasco Elídio Egidio Dulce Insuelo João Mendonça Dr. Olivier Ramos Fioravante Iervolino
Brancaleoni Macedo Falcão Nogueira 1948 a 1952
1945 1947 1947 1947 a 1948 1957 a 1961
84
Antônio Prátici Rinaldo Poli Dr. Mário Antonelli Francisco Antunes Waldomiro Pompêo
1952 a 1953 1953 a 1957 1961 a 1966 Filho 1966 a 1970
1962 1973 a 1977

Alfredo Antônio Jean Pierre Hermann Prof. Néfi Tales Dr. Rafael Rodrigues Dr. Oswaldo
Nader de Morais Barros 1977 a 1982 Filho de Carlos
1970 1970 a 1973 1997 a 1998 1982 a 1983 1983 a 1988

Paschoal Thomeu Vicentino Papotto Jovino Cândido Elói Pietá Sebastião Almeida
1988 a 1992 1993 a 1996 da Silva 2001 a 2004 2009 a 2012
1998 a 2000 2005 a 2008 2013 a 2016

Obs.: Não constam nesta galeria as fotos do intendentes (cargo correspondente ao de prefeito) – Capitão Joaquim
Francisco de Paula Rebello; Antônio José Siqueira Bueno; Junta de Intendentes (Vicente Ferreira de Siqueira Bueno, Felício
Marcondes Munhoz, Antônio Dias Tavares e Luiz Dini); Jesuíno José de Souza; Lúcio Francisco Pereira Paiva; Lúcio Francis-
co Pereira; João Francisco da Silva Portilho; Dr. Leonardo Valardi; Capitão João Teófilo de Assis Ferreira. Fonte: Noronha,
1960, p. 65, 66 e 67.

Ata de instalação da Vila de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos (Município):

“Aos vinte e quatro dias do mês de janeiro de 1881, nesta Vila de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos, co-
marca da imperial cidade de São Paulo, na casa destinada para sessões da Câmara Municipal da mesma, ao meio-dia,
comparecerão os Srs. Presidente e Vereadores da Câmara Municipal da Capital, D. João Mendes de Almeida Junior,
Américo Brasiliense, Almada Melho, Antônio Francisco Aguiar Castro, Augusto de Souza Queiróz, TTE Cel. Antônio José
Fernandes Braga, para a instalação da Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos, e dar
juramento e posse aos vereadores eleitos (...)”

85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DICAS DE LEITURA

ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. São Paulo: Editora da Universi-
dade de São Paulo, 1988.
Ab’Saber, Aziz N et al. História geral da civilização brasileira. Tomo I: A época colonial – Adminis-
tração, economia, sociedade. 1. vol. 4. edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.
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sa “Compreensão e efetivação das Leis Federais no 10.639/2003 e no 11.645/2008, e da Lei Municipal no
6.494/2009 na Rede Municipal de Educação de Guarulhos.

Grupo de capoeiristas: alunos do Mestre Lobo, no Bosque Maia, em Guarulhos, s/d.

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AUTORES

Elton Soares de Oliveira


Eu sou daqui, mas vim de longe¹. Nasci no distrito de Irundiara, município
de Jacaraci, Bahia. Sou filho de José de Oliveira Neto e Juvencília Soares de Oli-
veira; chegamos a Guarulhos em 1973. Meu pai era carpinteiro e logo ingressou
na obra de construção do parque CECAP. Minha mãe sempre foi costureira.
Estudei em escola pública e me tornei historiador formado pelas Faculda-
des Integradas de Ciências Humanas, Saúde e Educação de Guarulhos (Figui-
nha). Como pesquisador de história local desde 1980, dedico meus dias e partes
das noites para conhecer os lugares e o modo de vida das pessoas, especialmente
em Guarulhos.
Sou professor de história local, de oratória e apresentador do programa
Destaque Repórter, TV Destaque de Guarulhos. Além de militante das áreas de
história, cultura e meio ambiente, sou autor e coautor de vários livros, pesquisas
e artigos sobre a história de Guarulhos–SP e de Jacaraci–BA.
Contato: elton.elton@outlook.com.
¹Música Cravo Vermelho, it. de Geraldo Azevedo.

José Abilio Ferreira


Iniciei as minhas atividades literárias em 1984, quando ingressei no Qui-

Inácio Teixeira
lombhoje-Literatura, grupo de escritores responsável pela edição da série Cadernos
Negros, que por sua vez é uma antologia anual publicada ininterruptamente desde
1978, e que reúne poetas e contistas de todo o Brasil. Deixei o grupo em 1990.
Jornalista graduado em 1986, combino literatura e jornalismo em minha
produção, que inclui um livro de poemas e contos (Fogo do olhar – 1989), uma
novela (Antes do carnaval – 1995), participações em antologias de ensaios (Refle-
xões sobre a literatura afro-brasileira – 1986; e Criação crioula, nu elefante branco
– 1987), além de publicações de pesquisa historiográfica sobre cidades brasileiras.
Como ativista do processo de formação da Literatura Negra Brasileira,
autor de poemas e contos publicados em Cadernos Negros, participei também dos
três Encontros Nacionais de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros ocorridos
entre 1985 e 1988.
Sou um dos 100 escritores estudados na antologia crítica Literatura e
afrodescendência no Brasil, publicada em quatro volumes pela editora da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2011. Estudos críticos sobre o meu trabalho literário também podem ser
conferidos em http://www.letras.ufmg.br/literafro.

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