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Em O que os animais nos ensinam sobre política, o filósofo

canadense Brian Massumi discute a questão do animal Brian Massumi


sob um a ótica inusitada. N oções tais com o jogo, simpatia
e criatividade, m enosprezadas pela biologia evolucionista,
pelas ciências do com portam ento animal ou pela filosofia,
aqui são diretam ente incorporadas ao c<
Com isso, a investigação se expande, a
O que os animais
não apenas o com portam ento animal mas
pensam ento animal e sua distância ou prc
nos ensinam
relação àquilo cujo m onopólio é reivindic
humanos: a linguagem e a consciência ref sobre política
Para Massumi, humanos e animais exis
continuum. C om preender tal continuum,
conta as diferenças, requer uma nova lóg
inclusão”. O autor encontra recursos co
lógica no trabalho de vários pensadores,
Bergson, Simondon, Ruyer e W hitehead
Ao tratar o hum ano como animal, Mas
o conceito de uma política animal. Níiú .*
política do animal, mas de um a polítiir,:
animal, liberada das conotações de “ est
prim itivo” e dos pressupostos correlatu
que perm eiam o pensam ento moderno.
Esse livro, que dialoga com os estU''
humanismo, etologia, cognição encarnai
dá subsídios relevantes para repensar ui
não-antroDocêntrica.

ililU •< •1
O que os animais nos
ensinam sobre política
Brian M assum i
Brian Massumi
© Brian Massumi, 2014
© n-i edições, 20x7
i s b n 978-85-66943-47-4

Embora adote a m aioria dos usos editoriais do âm bito


brasileiro, a n -i edições não segue necessariamente as
convenções das instituições normativas, pois considera
O que os animais
a edição um trabalho de criação que deve interagir com
a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada
obra publicada.
nos ensinam
c o o r d e n a ç ã o e d it o r ia l

e Ricardo M uniz Fernandes


Peter Pál Pelbart sobre política
t r a d u ç ã o Francisco Trento e Fernanda Mello

pre pa r a çã o Fernanda Mello


r e v is ã o Isabela Sanches
de n o ta s

pr o je to g r á f ic o Érico Peretta

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos,


para uso privado ou coletivo, em qualquer m eio
im presso ou eletrônico, está autorizada, desde que
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Ia edição | Novembro, 2017


n- ledicoes.org

A n-1 edições agradece 0 apoio à publicação fornecido pelo


Conseil de Recherche en Sciences Humaines áu Canada (c r s h )

Social Sciences and Conseil de recherches TRADUÇÃO


M Humanities Research
Council of Canada
en sciences humaines
du Canada F ra n c is c o T re n to
Canada e F e rn a n d a M e llo
Este livro é dedicado a minha amizade
de infância com Bruce Boehrer, com
quem me tornei um tanto animal e travei
batalhas diárias — não menos sérias
por serem de brincadeira — contra as
devastações do antropocentrism o.
09 O que os anim ais nos
ensinam sobre p olítica

79 PR O P O S IÇ Õ E S

109 SU P L E M E N T O 1
E screver co m o um rato
to rce o rabo

125 SU P L E M E N T O 2

A zoo-logia da brincadeira

167 SU P L E M E N T O 3

Seis teses sobre o anim al


que devem ser evitadas

181 R eferências bibliográficas


O que os animais nos ensinam sobre política

0 que os animais nos ensinam sobre política... não é a mais


prom issora das proposições à prim eira vista. O que os ani­
mais teriam a nos ensinar? Isto é, além da resignação às duras
necessidades da natureza distinta; da desesperada luta pela
sobrevivência; da guerra selvagem de todos contra todos, em
que o mais próxim o que se pode chegar de uma vitória é a paz
provisória de uma adaptação viável, garantindo uma frágil ilha
de normalidade nos mares turbulentos de uma vida “ sórdida,
brutal e curta”, com o Hobbes enunciou de form a mem orável
na aurora da Idade Moderna da humanidade.
M as para nós, que, re tro sp ectiva m en te, nu nca fom os
m odernos, o estado da natureza já não é o que era. A lei da
com petição teve de se curvar perante um a saudável dose de
cooperação, cujas contribuições cruciais para a evolução são
agora amplamente conhecidas, com a simbiose sendo aceita
com o a origem da vida m ulticelular.1 Em vista desses desen­
volvim entos, colocar a sim patia em igualdade de condições
com a agressão com o um fator na natureza não é mais algo
im pensável. A o m esm o tem po, a im agem rígida do animal
com o um m ecanism o dom inado pelo autom atism o do ins­
tinto dá sinais de enfraquecim ento, conferindo uma margem
m aior às variações individuais, com o o surgim ento de uma
nova área de pesquisa na etologia, dedicada à “personalidade”

1 Ver Lynn Margulis, Symbiotic Planet. Nova York: Basic Books, 1999; Martin A.
Nowak com Roger Highfield. Super Cooperators: Altruism, Evolution, and Why We
Need Each Other to Succeed. Nova York: Free Press, 2011.

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anim al, evidencia.2 C o m o verem os, o próprio instin to dá na natureza, fora dos corredores da ciência, nos meandros da
sinais de elasticidade, e m esm o de um a criatividade que se filosofia, a fim de divisar uma política diferente, que não seja
poderia rotular de “artística” . uma política humana do animal, mas uma inteiramente animal,
“ Sim patia” e “criatividade” : sempre que essas palavras apa­ livre dos paradigmas tradicionais do sórdido estado da natu­
recem perto demais do term o “ animal”, para m uitos soam o reza e das pressuposições acerca dos instintos que permeiam
alarme. Em seguida, ecoa a acusação de antropomorfismo. Há tantas facetas do pensamento moderno.
pouca esperança de conseguir driblá-la quando se empreende Investigações recentes com ênfase similar na criatividade
a tarefa de integrar ao conceito de “natureza” noções com o na natureza tom aram com o ponto de partida a artisticidade
essas, há tem pos m arginalizadas pelas correntes dom inan­ dos rituais de cortejo animal. Esse ponto inicial coloca o foco
tes na biologia evolucionista, no com portam ento animal e na da discussão na seleção sexual. Por razões que se tornarão
filosofia. O problema reside no caráter qualitativo dos termos. claras, este não é o caminho que seguirem os aqui. C om o ana­
“ Qualitativo” sugere “subjetivo” , e a simples pronúncia dessas lisada por Elizabeth G rosz, a seleção sexual põe em questão,
palavras traz o que David Chalm ers cham ou de “o problem a de form a bem -sucedida, a teoria neodarwiniana que defende
difícil” da consciência na soleira da porta, um a visita inespe­ que a m utação aleatória é a única fonte de variação da vida,
rada espreitando nos corredores da ciência.3A questão deixa desatrelando a m orfogênese — a gênese das form as de vida
de ser apenas sobre o com portam en to anim al e alcança o — da sua aderên cia ao m ero acaso.s Isso tam bém p õe em
pensam ento animal e sua distância — ou proximidade — das dúvida a teoria associada de que o único princípio de seleção
capacidades sobre as quais nós, animais humanos, julgam os operando na evolução é a adaptação a circunstâncias exter­
ter um m onopólio, e nas quais hasteam os nosso excessivo nas.6 N a arena do cortejo animal, a seleção incide direto nas
orgulho quanto à existência em nossa espécie: linguagem e
consciência reflexiva. 5 Elizabeth Grosz, Chaos, Territory, Art: Deleuze and the Framing ofthe Earth. Nova
York, Columbia University Press, 2008.
A d iante, arrisco-m e volun tariam en te a ser acusado de
6 E. Grosz, Becoming Undone: Darwinian Refiections on Life, Politics, and Art. Durham:
antropom orfism o4 em prol de seguir o rastro do que é qua­ Duke University Press, 2011, parte 3, cap. 8. Sobre aos desafios clássicos ao fun-
litativo e do que é subjetivo na vida animal, e da criatividade damentalismo neodarwiniano quanto às questões da seleção natural e da adapta­
ção, cf. Stephen Jay Gould, The Panda’s Thumb: More Refiections in Natural History.
Nova York: Norton, 1980; R. C. Lewontin, Steven Rose, e Leon J. Kamin. Not in
Our Genes: Biology, Ideology, and Human Nature. Nova York: Pantheon, 1984; Robert
2 Ver Cláudio Carere e Dario Maestripieri (orgs.), Animal Personalities: Behavior,
Wesson, Beyond Natural Selection. Cambridge: m i t Press, 1991; Brian Goodwin. How
Physiology, Evolution. Chicago: University o f Chicago Press, 2013.
the Leopard Changed Its Spots. Londres: Phoenix, 1995; e, obviamente, Bergson, A
3 David Chalmers, “Facing Up to the Problem o f Consciousness” . Journal ofCon- evolução criadora (trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes,
sciousness Studies n2 2,1995, pp. 200-219. 2005). A recente confirmação de mecanismos biológicos de herança de traços
4 Como argumenta Jane Bennett, “antropomorfizar tem suas virtudes” . J. Bennett, adquiridos (herança epigenética) enfraqueceu ainda mais o reduzido chamado à
Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke University Press, 2010, completude do modelo neodarwiniano. Para uma análise da pesquisa no campo,
p. 25; cf. também pp. 98-100. Proveitosamente, Bennet dissocia antropomorfismo que se desenvolve a passos largos, da herança epigenética, cf. Eve Jablonska e Gal
de antropocentrismo. Raz, “Transgenerational Epigenetic Inheritance: Prevalence, Mechanisms, and

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qualidades da experiên cia vivida. O esco p o está na cria ti­ Em vez disso, 0 foco será na brincadeira animal, trabalhando
vidade, e não na conform idade adaptativa às restrições de em particular com o fam oso ensaio de Gregory Bateson sobre
determ inada circunstância. A seleção sexual expressa um a o tem a.9 É verdade que a brincadeira se consum a com o uma
inventiva exuberância animal associada a qualidades de vida, arena independente de atividades entre animais “superiores”
sem valo r direto de uso ou de sobrevivência. C om o ap o n ­ com certo nível de com plexidade, em particular entre mamí­
tad o pelo próprio D arwin, os excesso s da seleção sexual feros.10 Porém, com o verem os, entender o florescim ento da
só podem ser d escritos com o expressão de um “ senso de
e a ideia correlata do “ instinto” como ação de reflexo mecânico. Sugere que
b e leza ” (basta perguntar à pavoa).7 A presente explanação
somente um salto da natureza para a cultura, articulado em termos reminiscen-
concord a com todos esses pontos. A razão básica para não tes do conceito freudiano de “ sublimação”, pode salvar o animal do mecanismo
tom arm os a seleção sexual com o ponto de partida é que, ao da matéria burra (“a arte seqüestra os impulsos de sobrevivência e os transforma
pelos caprichos e intensificações promovidos pela sexualidade” [Ibid., p. 11]).
fazê-lo, deixaríamos de lado a maioria das formas de vida que Finalmente, a definição de “ sexualidade” mobilizada (“o alinhamento de corpos
povoam a Terra. Seria pular as criaturas m ais “prim itivas” , com outros corpos e partes de um mesmo corpo” [Ibid, pp. 64-65]) parece pres­
supor um corpo pré-constituído, assim como a ideia de “competição” assume um
m enos ostentativas no m odo de copular, sem m encionar os
sujeito pré-constituído. Além disso, parece pressupor que as relações dos corpos
animais “ mais in feriores”, que persistem em se m ultiplicar uns com os outros e deles com eles próprios só podem ser entendidas nos mes­
de form a assexuada.8 mos termos que as relações entre objetos (parte-com-parte, relações externas
expressáveis em termos espaciais como “alinhamento”). É preciso enfatizar que
a própria Grosz não corrobora essas implicações e as contesta em muitos pontos.
Implications for the Study of Heredity and Evolution”. Qmrterly Review ofBiologyv. A presente descrição procura desenvolver uma explanação que os repasse exaus­
84, na 2,2009, pp. 131-176. Cf. também Nessa Carey, The Epigenetics Revolutíon: How tivamente desde o primeiríssimo momento. Ela enfatiza o processo transindivi-
Modem Biology Is Rewriting Our Understanding ofGenetics, Disease, and Inkeritance. dual através do qual os indivíduos devêm. Tenta desenvolver um vocabulário que
Chicago: University of Chicago Press, 2012. nunca abra mão da ideia de que ambos, corpo e sujeito, são sempre emergentes e
jamais figuram como pré-constituídos. Procura repensar o instinto incluindo um
7 Darwin, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John
elemento de criatividade de uma ponta à outra do continuum da vida. Seu projeto
Murray, 1871, pp. 63-64.
requer pensar a “relação interna” ou imanente, segundo uma lógica de “mútua
8 Há outras razões para não privilegiar a seleção sexual aqui. Considerar a seleção inclusão” que será desenvolvida ao longo do ensaio — lógica essa que mobiliza
sexual como ponto de partida é focar na competição e na rivalidade entre indiví­ primariamente as tendências (entendidas como “subjetividades-sem-sujeito”), e
duos (E. Grosz, Becoming Undone op. cit.). Isso direciona a pulsão para o excesso não objetos e sujeitos. Por fim, mostra-se necessário colocar radicalmente em
qualitativo na experiência perceptiva do sujeito individual do desejo e lastreia o questão a separação categorial entre as operações da matéria e os aspectos qua­
conceito de desejo com fundamentais conotações de interesse próprio. Também litativos e subjetivos da dimensão “estética” do excesso, da expressividade, e da
tende a construir a afirmação estética do qualitativo na vida animal como con­ artisticidade da vida (essa divisão está implícita na primeira citação de Grosz
trária ao instinto (“O artístico é um salto para fora da materialidade, o embalo ■ trazida acima, em que a matéria aparece como morta e burra). Aqui, a seleção
da virtualidade agora engrenado e extraído da matéria para fazê-la funcionar sexual será tomada como uma instância particular da “ autocondução” criativa
de maneira imprevisível [...] A arte é o processo de fazer com que as sensações da natureza, um caso especial de brincadeira.
fiquem vivas, de dar vida autônoma à qualidade expressiva e às formas materiais”
9 Gregory Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy”. Steps to an Ecology ofMind.
[E. Grosz, Chaos, Territory, Art op. cit., pp. 75,103]). Isso implica que abaixo do
Chicago: University o f Chicago Press, 1972, pp. 177-193.
limiar evolutivo em que a seleção sexual opera não haja espaço para as sensações,
e os animais sejam inexpressivos e prisioneiros de suas formas materiais. Isso 10 Gordon M. Burghart em seu compendioso estudo da ciência da brincadeira ani­
pode ser interpretado como uma aceitação implícita da abordagem tradicional mal (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Gambridge: m i t Press, 2005),
mecanicista da matéria “burra”, respeitadora das leis e desprovida de surpresas, argumenta que comportamentos específicos das brincadeiras são muito mais

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brincadeira nesse nível exige a teorização das origens da sim­ isso pode fazer, com simpatia e criatividade, com eçando e ter­
patia e da criatividade, o qualitativo e até m esm o o subjetivo minando na brincadeira — do m esm o m odo que W hitehead
em todos os pontos do continuum da vida animal. A própria afirma que a filosofia com eça no assom bro, e, depois de tudo
natureza do instinto, e, assim, da própria animalidade, deve dito e feito, no assom bro perm anece.11
ser repensada com o uma conseqüência. A discussão de Bateson acerca da brincadeira animal gira
Esse projeto requer que o humano seja realocado no conti­ em torno da diferença. Esse é o m elhor ponto de partida para
nuum. animal, o que tem de ser feito de uma maneira que não pensar o continuum animal, que é um espectro de variação
apague o que é diferente no humano, mas sim respeite essa contínua — um cam po m utante de diferenciações recipro­
diferença ao lhe fornecer um a nova expressão no continuum: cam ente pressupostas, com plexam ente imbricadas umas às
imanente à animalidade. Expressar o pertencim ento singular outras ao longo de toda a linha. N o decorrer da discussão
do hum ano ao continuum animal tem im plicações políticas, seguinte, um conceito será aos poucos construído para essa
assim com o toda questão de pertencim ento. A derradeira imbricação recíproca de diferenças: mútua inclusão. Mas, por
aposta deste projeto é política: investigar que lições podem ora, a questão é com o entra em jogo a diferença.
ser aprendidas ao jo g ar com a anim alidade dessa form a, Dois animais que se entregam à brincadeira, por exem plo,
acerca dos nossos m odos usuais e dem asiado hum anos de uma brincadeira de luta, desem penham atos que “são simila­
lidar com o político. A esperança é que no decorrer da inves­ res, porém não os m esm os do com bate” .12 Cada gesto lúdico
tigação possam os ir além de nosso antropom orfism o quanto envolve um a diferença com um a fachada de sim ilaridade -
a nós mesmos: nossa im agem de nós m esm os com o estando o que poderia ser considerado um a definição de “analogia” .
hum anam ente apartados dos outros animais; nossa invete­ Brincar não envolve produzir uma perfeita semelhança entre
rada vaidade no que se refere à nossa assum ida identidade dois atos que pertencem a ordens distintas. Não se trata de
de espécie, baseada em razões especulativas de nossa exclu­ fazer “com o se” um fosse o outro, no sentido de fazer com
siva propriedade sobre linguagem, pensam ento e criatividade. que um se passe pelo outro. O gesto de brincar é análogo
Verem os o que os pássaros e as feras têm a dizer instintiva­ porque aquilo que está em jo g o não é o M esmo. O gesto de
mente sobre isso. brincar mantém afastadas as atividades análogas, assinalando
Este ensaio é um prolongado experim ento de pensam ento um a diferença m ínim a, no m esm o ato p elo qual as reúne.
sobre o que pode ser uma política animal. Busca construir o Ele reúne atos pertencentes a diferentes arenas em sua dife­
conceito de um a p olítica animal e levá-lo ao lim ite do que rença. É com a não coincidência que se brinca. O gesto lúdico
envolve essa disparidade em sua própria execução. Isso é
difundidos do que tradicionalmente se pensa. São observáveis não apenas em ani­
precisam ente o que faz dele um a brincadeira. Se um gesto
mais placentários, mas também marsupiais, em um grande número de espécies de
aves e em alguns répteis e peixes. Dentre os invertebrados, considera presentes
u A. N. Whitehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 168.
comportamentos limítrofes às brincadeiras em crustáceos, cefalópodes e alguns
insetos, como baratas, formigas e abelhas. 12 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179.

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num a brincadeira de luta fosse idêntico ao seu análogo no movidos em conjunto para um registro de existência em que
com bate, a brincadeira logo se tom aria uma luta. Um gesto o que im porta já não é o que se faz, mas o que se representa.
lúdico tem de assinalar seu pertencim ento à arena da brinca­ A força do gesto lúdico é uma força de passagem que induz
deira para não acabar resvalando para fora dela. Por exemplo, uma mudança qualitativa na natureza da situação. Dois indiví­
se dois filhotes de lobo ao brincar de luta desem penham os duos são arrebatados de uma só vez, mas sem mudar de local,
m ovim entos com m uita similaridade com o com bate, e não por uma força instantânea de transformação. São absorvidos
em analogia a ele, os parceiros logo se tornarão adversários, por um a transformação-in-loco que não afeta um sem afetar
com o risco de lesão potencialm ente grave. U m gesto lúdico o outro. O gesto lúdico libera um a força de transform ação
deve demonstrar, em sua forma de execução, o seguinte: “isto transindividual. A im ediatez da transform ação que a execu­
é um jo g o ” . ção do gesto induz qualifica o gesto lúdico com o um ato per-
A declaração da brincadeira, “isto é um jo g o ”, explica Bate­ formativo. A brincadeira é feita de gestos perform ativos que
son, está longe de ser um simples ato de designação. É a ence­ exercem uma força transindividual.
nação de um paradoxo. Um filhote de lobo que morde o colega Bateson parafraseia o sentido que os gestos lúdicos desem ­
de ninhada ao brincar “ d iz” , pela form a com que morde: penham na seguinte fórmula: “ Estas ações nas quais agora
“isto não é uma m ordida” . Bateson afirma que a mordida de nos engajam os não denotam aquilo que iriam denotar as
brincadeira “ representa” ativam ente outra ação, ao mesm o ações que elas representam”.14Vale a pena observar duas coisas
tem po em que coloca em suspenso o contexto no qual a ação acerca de com o essa fórm ula se desenrola.
encontra sua força prática e sua função norm al.13A mordida Prim eiro, Bateson sublinha o fato de que o gesto lúdico é
de brincadeira que diz que não é uma mordida tem o valor da um a form a de abstração. A lém de ser um ato perform ativo
ação análoga sem sua força ou função. Através dos dentes, o que efetua uma transform ação-in-loco, carrega um elem ento
filhote de lobo diz: “ isto não é uma mordida; isto não é uma de m etacom unicação, isto é, de reflexividade. Ele com enta
luta; isto é um jogo; por meio dele estou me colocando num sobre o que e stá fa zen d o en qu an to está fazend o: “ essas
registro diferente de existência, que, no entanto, representa ações nas quais agora nos engajam os...” . Esse “ com entário”
seu análogo suspenso” . ocorre na form a de um a diferença estilística. Na brincadeira
A suspensão exerce a própria força: uma força de indução. vo cê não m orde, vo cê m ordisca. A diferença entre m order
Quando faço um tipo de gesto que m e coloca no registro da e m ordiscar é o que abre a lacuna analógica entre com bate
brincadeira, você tam bém é im ediatam ente levado para ela. e brincadeira. É o estilo do gesto que desfralda a diferença
Meu gesto o transporta com igo para uma arena de atividade mínima entre o gesto de brincadeira e seu análogo na arena
diferente daquela em que estávamos. Você é induzido a brin­ de com bate. O gesto desem penha um m ovim ento, com toda
car comigo. Num só gesto, dois indivíduos são arrebatados e a im ediatez de um a transform ação-in-loco instantânea, ao

13 Ibid., p. 180. 14 Ibid., grifo do autor.

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passo que, no m esm íssim o m ovim ento, desem penha um a Sobrepõem -se na unicidade do desem penho sem que a dis­
abstração da sua ação, refletindo sobre ela no m etanível do tinção entre elas seja perdida. São perform ativam ente fundi­
com entário e nela inserindo a lacuna de um a distância ana­ das sem se confundir. Convergem sem se unir, ocorrendo em
lógica de diferença recíproca. conjunto sem coalescência. A zona de indiscem ibilidade não
Em segundo lugar, a diferença que a abstração do gesto é uma indiferenciação; em v e z disso, é onde as diferenças se
co loca em jo go está num m odo particular: o condicional. unem ativam ente.
“ Estas ações [...] não denotam aquilo que iriam denotar as O m odo de abstração produzido na brincadeira não res­
ações que elas representam” . O gesto lúdico impregna a situa­ peita a lei do terceiro excluído. Sua lógica é a da mútua inclu­
ção de realidade condicional. As ações análogas da arena de são. Há duas lógicas diferentes na m esm a situação, e ambas
atividade na qual se brinca — a do com bate — estão p re­ continuam presentes em suas diferenças e têm participação
sentes no m odo da possibilidade. A ação que então ocorre é cruzada em suas zonas perform ativas de indiscem ibilidade.
habitada p or ações que pertencem a um a arena existencial C om bate e brincadeira convergem — e essa convergência
diferente, cujas ações são de fato sentidas no presente, mas, resulta em três. Há um, há outro, e há o terceiro incluído de sua
em potencial, em suspenso. E, m uito em bora em suspenso, m útua influência. A zona de indiscem ibilidade que é o ter­
exercem um poder. Por analogia, orientam as ações do des­ ceiro incluído não adere à santidade da separação de catego­
dobram ento da brincadeira, dotando-as de um a lógica nor- rias nem respeita a rígida segregação das arenas de atividade.16
teadora. Elas dão ao jogo aquilo que Susanne Langer chama Bateson discute extensivam ente a natureza paradoxal da
de “form a dominante” [commanâingform] ou “m atriz” forma- abstração efetuada na brincadeira.17 Ele a vê com o um a ins­
tiva.15 Os gestos do com bate in-formam o jogo, modulam-no tância do paradoxo de Epimênides, que ficou famoso por meio
por dentro. Ao mesm o tem po, eles m esm os são ligeiramente de Bertrand Russell, e consiste em “uma declaração negativa
deformados pelo estilismo da brincadeira e sua própria lógica contendo um a m etadeclaração negativa im plícita” . A decla­
lúdica. É sob efeito dessa deform ação que os golpes do com ­ ração gestual “ isto não é uma m ordida” contém a seguinte
bate transmutam-se em m ovim entos num jogo. m etadeclaração im plícita: “ estas ações não denotam aquilo
Onde a m odulação im anente e a deform ação estilística se que iriam denotar” . Porém , ao m esm o tem po, se fosse tão
sobrepõem — isto é, no próprio gesto — , a arena do co m ­ simples que as ações não denotassem aquilo que denotariam,
bate e a da brincadeira entram num a zona de indiscemíbili-
daãe, sem que suas diferenças sejam apagadas. As lógicas da 16 Sobre a zona de indiscemibilidade (também chamada de zona de proximi­
dade ou vizinhança, zona de intensidade ou zona de indeterminação objetiva), cf.
luta e da brincadeira abarcam -se em sua diferença; sobre­ Deleuze e Guattari Mil platôs, v. 3, trad. bras. de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia
p õem -se em seu gesto com p artilhado, cuja sim plicidade, de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1996, p. 106;
Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 64-66,68,73-75; e o capítulo “ O que é um conceito?”, em
com o um único ato, constitui sua zona de indiscem ibilidade.
Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e Alberto
Alonso Munoz. São Paulo: Editora 34,1992.
15 Susanne Langer. Feelingand Form. Nova York: Scribner, 1953, pp. 122-123. 17 G. Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 180.

18 19
não teriam de negar sua denotação. A declaração da brinca­ de m útua inclusão com o um colapso de sua capacidade de
deira diz o que nega e nega o que diz. É logicam ente indecidí- pensar, e ficarem perturbados com isso (Russell certam ente
vel. Claro que um filhote de lobo não diz nada, estritam ente ficou, jam ais superando por com p leto). N o entanto, o ani­
falando. Ele diz fazendo; atua. Sua “ declaração” e sua “meta- m al é m enos perturbado do que ativado por eles. O animal
declaração” são um paradoxo enativado, com a simplicidade brincando afirma o paradoxo ativam ente, efetivamente. Isso
de um único gesto. Na unicidade do gesto, as duas lógicas aumenta suas capacidades de pelo menos dois modos. Por um
são reunidas numa m etacom unicação, revestindo a situação lado, os animais aprendem através da brincadeira (na medida
de possibilidades que a superam. O gesto lúdico corporaliza em que uma luta de brincadeira é a preparação para o envol­
essa complexidade. Sua abstração é pensamento incorporado. vim ento no combate real que pode ser necessário no futuro).
A brincadeira animal aciona o paradoxo. Ela o m obiliza e o Por outro, o alcance de seus poderes m entais se expande.
dramatiza. A dramatização pega aquilo que, do ponto de vista N a brincadeira, o anim al se eleva ao nível m etacom unica-
da lógica tradicional, não passaria de sua própria implosão e, cional, em que ganha a capacidade de m obilizar o possível.
de fato, o implode. Constitui-se assim um paradoxo efetivo. A Seu poder de abstração se eleva em um grau. Seus poderes
m etacom unicação animal é eficaz. Ela se nivela, e induz ao de pensam ento são aumentados. Suas capacidades vitais são
nivelam ento, com o seu desem penho, diretam ente na im e­ im plementadas de maneira mais completa, ainda que abstra­
diatez da execução de seus gestos. Na brincadeira animal, a tamente. Suas forças de vitalidade são correspondentem ente
indecidibilidade lógica assume um a eficácia que é tão direta intensificadas. O gesto lúdico é um gesto vital.
quanto paradoxal. O s hum anos tam bém podem praticar um paradoxo e fe ­
Bateson tira daí uma lição: “ seria um péssim o exercício de tivo quando se perm item a entrega à brincadeira. Nela, o
história natural esperar que os processos mentais e os hábitos hum ano adentra um a zona de indiscem ibilidade com o ani­
com unicativos dos mamíferos estivessem em conform idade mal. Quando nós, humanos, dizemos “isto é uma brincadeira” ,
com o ideal do lógico. De fato, se pensam ento e comunicação assum im os nossa anim alidade. A brincadeira dram atiza a
hum anos sempre estivessem em conform idade com o ideal, participação recíproca do hum ano e do animal, de am bos
Russell não teria — não poderia ter, na realidade — form u­ os lados. Quando os animais brincam , estão enativando, em
lado o ideal” .18Aqui Bateson salienta outra m útua inclusão: term os preparatórios, habilidades humanas. Bateson diz que,
a do animal e o humano. São a animalidade e a humanidade, em nossas suposições usuais, entendem os equivocadamente
com o um todo e em suas diferenças, que adentraram parado­ a ordem evolutiva, pensando que a m etacom unicação tem de
xalm ente uma zona de indiscem ibilidade. vir após a com unicação denotativa que ela enreda. De fato,
A diferença entre o humano e o animal nessa conexão ta l­ “ a com unicação denotativa, com o ocorre no nível hum ano,
vez resida no fato de os humanos experimentarem paradoxos só é possível após a evolução de um com plexo conjunto de
regras m etalinguísticas (mas não verbalizadas) que ditam
18 Ibid. com o palavras e sentenças devem se relacionar a objetos e

20 21
acontecimentos. Logo, é apropriado buscar a evolução dessas A atualidade da situação se am plia com a possibilidade. A
regras m etalinguísticas e/ou m etacom unicativas num nível com unicação se com plexifica com a metacom unicação. Cada
pré-humano e pré-verbal”.19 gesto lúdico é carregado dessas diferenças de nível, situação
A brincadeira animal cria as condições para a linguagem. e m odo de existência ativa. Essa intensificação é provocada
Sua ação m etacom unicativa constrói a base evolutiva para pela suspensão da lógica tradicional regida pelo princípio do
as funções m etalinguísticas que serão a m arca registrada da terceiro excluído; mas faz com que a brincadeira seja muito
linguagem humana, e o que a distingue de um mero código. mais que o m ero colapso dessa lógica, efetua uma passagem
A lógica corporificada da brincadeira animal, pré-hum ana e para um a pragm ática na qual um a lógica diferente é direta­
pré-verbal, já é essencialm ente análoga à linguagem . É efe­ m ente corporalizada na ação, nivelada ao gesto. Essa outra
tiva e enativam ente lingüística avant la lettre, com o dizem os lógica não é nada se não for desem penhada, não é nada se
hum anos em francês. Por que então o op osto tam bém não não for vivida. A forma da abstração encenada na brincadeira
seria verdadeiro: a linguagem hum ana ser essencialm ente é uma abstração vivida.2-1
anim al, do ponto de vista das capacidades lúdicas que car­ Em que consiste essa pragmática enativa da abstração vivida?
rega, tão intim am ente vinculada aos poderes m etalinguísti- Tudo depende da diferença mínima entre o gesto lúdico e
cos? Pensem os no hum or. Por que não considerar a lingua­ o gesto análogo que ele invoca, e que, por sua vez, o habita.
gem hum ana um a reprise da brincadeira animal, elevada a Tudo reside na lacuna entre m order e m ordiscar, m over e
um a potên cia mais alta? O u d izer que, na realidade, é na saltitar, executar um a ação e dramatizá-la. O que escancara
linguagem que o hum ano atinge o mais alto grau de animali­ a diferença m ínim a, possibilitan d o a m útua inclusão que
dade? Deleuze e Guattari não insistiram que é na escrita que caracteriza a lógica da brincadeira, é mais um a v e z o estilo.
o hum ano “ devém -anim al” mais intensam ente; isto é, que A diferença entre um a m ordida de lu ta e um a m ordida de
entra mais intensam ente num a zona de indiscem ibilidade brincadeira não está apenas na intensidade do ato no sentido
com a própria animalidade?20 quantitativo: com quanta força os dentes cravam. A diferença
Na brincadeira trata-se precisam ente de um a questão de é qualitativa. O gesto lúdico é desem penhado com um ar tra­
intensificação. O revestimento num campo não bélico daquilo vesso, um exagero ou uma desorientação brincalhões; ou, no
que é próprio da arena de com bate embala a situação. Cada extremo mais matizado do espectro, um floreio, ou até mesmo
ato carrega uma dupla carga de realidade, com o se o que esti­ certa graciosidade subestim ada cham ando m odestam ente a
vesse sendo feito fosse infundido pelo que se estaria fazendo. atenção para o espírito em que o gesto é apresentado.22 Um

19 Ibid. 21 Massumi, Semblance and Event: Activist Philosophy and the Occurrent Arts. Cam-
20 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor, trad. bras. de Cíntia Vieira bridge: m i t Press, 2011, p p . 15-19; 42-43; 146-158 epassim.
da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, pp. 32-34,67-73; Müplatôs, v. 4, trad. bras. 22 Sobre a graça como “uma simpatia virtual, ou mesmo nascente” assinalando um
de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34,1997, pp. 17-33, 42-46; cf. também o Suple­ “ progresso qualitativo”, cf. Bergson, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência,
mento 1 abaixo. trad. port. de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 18.

22 23
gesto lúdico numa luta de brincadeira não se contenta em ser O que está em excesso na situação, sua sobrecarga de inten­
o m esm o que seu análogo no com bate. Não é tanto “co m o” sidade, é canalizado pelo valor de brincadeira do jogo. É um
um m ovim ento de com bate, mas combatesco: com o no com ­ valor de excesso, no excesso: uma mais-valia. É uma mais-valia
bate, mas com um detalhe diferente, um detalhe a mais. Com de animação, vivacidade — uma mais-valia de vida, irredutivel-
um superávit: um excesso de energia ou espírito. mente qualitativa, nivelada de forma ativa com o viver.
Esse excesso é sentido com o um entusiasmo palpável que A m ais-valia de vida, que é um a das -esquidades dos ges­
carrega uma força de indução, um envolvim ento contagiante. tos vitais da brincadeira, corresponde ao qué Raymond Ruyer
Étienne Souriau observa o “entusiasmo do corpo” com o qual chama de rendimento estético da atividade. O rendim ento esté­
um animal se entrega à abstração vivida da brincadeira.23Ao tico é o excesso qualitativo de um ato vivido puram ente por
brincar, o animal fica intensamente animado. Seus gestos vitais si só, com o um valor em si, acim a e contra qualquer função
corporificam uma vivacidade aumentada. Expressam o que que tam bém p ossa ocupar. O rendim ento é um excedente
Daniel Stern chamaria de afeto de vitalidade.24 O entusiasmo do de vivacidade, trazid o paradoxalm ente à tona por força de
corpo é o afeto de vitalidade da brincadeira tornado palpável. abstração. A proposição de Ruyer é ainda mais radical: ele
O afeto de vitalidade da brincadeira e o entusiasmo do corpo afirm a que todo ato instintivo produz um rendim ento esté­
que ele expressa coincidem com o -esco em “com batesco”. tico. Isso situa a brincadeira num continuum de instin to e,
Há uma “-esquidade” no gesto lúdico que marca sua dife­ inversam ente, o instinto no espectro artístico. Portanto, é
rença qualitativa em relação aos gestos análogos da arena de um a questão de ênfase considerar a brincadeira um a varie­
atividade com a qual se brinca. A “ -esquidade” dos gestos dade do instinto ou o instinto um portador da brincadeira.
é a assinatura perform ativa do m odo de abstração na brin­ Am bos estão corretos: inclusão d iferencial m útua, com a
cadeira. Ela corporaliza a “ representância” , na fórm ula de m estria com o operadora da inclusão.
Bateson. Em outras palavras, é o signo enativo do valor da A brincadeira pertence instintivam ente à dim ensão esté­
ação. Em si, é pura representância, puro valor expressivo — o tica. A fim de con sid erar inteiram ente o que há de singu­
próprio elem ento do lúdico na expressão, com o uma form a lar na brincadeira, é necessário ressituá-la num continuum
de abstração vivida. A “ -esquidade” do ato instancia o valor que se estende ao longo de toda a vida, em tod o s os seus
de brincadeira do jogo. níveis, desde o instinto mais básico até as capacidades mais
elaboradas de expressão lúdica e abstração vivida — as da
23 Étienne Souriau. Le sens artistique des animaux. Paris: Hachette, 1965, p. 35. Cf. linguagem humana. Linguagem humana: pura representância,
Erin Manning (Always More Than One: lndividuation’s Dance. Durham: Duke Uni­
versity Press, 2013, pp. 84-203) para uma análise do que - em outro contexto, o
com poderes inigualáveis de paradoxo, capaz de produzir os
da neurodiversidade e da experiência autística - a autora chama de "forma do mais puros e mais intensam ente abstratos valores expressi­
entusiasmo". vos. Linguagem humana: cujas condições de possibilidade
24 Daniel Stem, The Interpersonal World ofthe lnfant. Nova York: Basic Books, 1985,
evolutiva são estabelecidas pela brincadeira no continuum do
pp. 53-61 [Ed. bras.: 0 mundo interpessoal do bebê, trad. Maria Adriana. V. Veronese.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992]. instinto. Ao longo de todo o continuum, de toda a vida, das

24 25
expressões instintivas mais silenciosas às mais loquazes, ela A representância do gesto de brincar faz da brincadeira
carrega um a dim ensão estética irredutível. A própria vida é um a atividade expressiva, essen cialm en te em excesso em
inseparável do rendimento estético do qual usufrui continua­ relação à função. A qualidade de animação da brincadeira, a
mente. Ruyer assume o term o self-enjoyment [contentam ento mais-valia de vida que ela desem penha com o entusiasmo do
de si], de W hitehead, com o um sinônim o para a mais-valia corpo, supera a instrumentalidade. Seu rendimento por natu­
da abstração vivida.23 reza excede o valor de uso funcional de seus atos análogos. O
O rendim ento estético da brincadeira é a m edida qualita­ ato lúdico abre um a lacuna entre a própria força situacional
tiva de sua inutilidade. A -esquidade do com batesco corres­ e a funcionalidade dos análogos com que ele joga, e investe
ponde à diferença estilística entre executar um ato e dramati­ a lacuna com o valor puram ente expressivo da representân­
zá-lo, entre cumprir uma função e encenar sua representância. cia. Essa é um a manobra instável que pode sair dos trilhos a
Um gesto exerce uma função lúdica na exata m edida em que qualquer m om ento.
não cumpre sua função análoga, a qual o gesto lúdico coloca Pode-se objetar que a brincadeira tem , sem dúvida, um a
em suspenso em prol da própria representância que dela faz. função. De fato, isso já foi mencionado: brincar desem penha
Se o valor expressivo da representância não é pronunciado o um papel de aprendizado. De acordo com as opiniões dom i­
bastante; se a diferença correspondente à -esquidade do ato nantes, quando um animal entra num a luta de brincadeira,
é mínima demais; se a lacuna entre a arena da brincadeira e está treinando para um futuro com bate real. Segundo essa
sua arena análoga é demasiado estreita; se, em suma, o rendi­ opinião, a brincadeira é form alm ente m odelada conform e
m ento estético é insignificante, então a atividade lúdica tam ­ sua arena de atividade análoga: para ser útil com o treino,
bém pode facilm ente se transform ar em seu análogo. M uito a form a dos m o vim en tos da luta de brincad eira deve ser
rapidamente a m ordida denota aquilo que ela denota, e não bastan te sem elhante à do com bate. O serviço in stru m en ­
mais o que iria denotar. É guerra. Pode haver sangue. A mais- tal prestado pela brincadeira à função futura dita que o seu
-valia de vida da brincadeira vira um déficit, um a transforma- p rincíp io nortead or seja que sua form a se conform e. N ão
ção-in-loco tão imediata quanto a inaugurada pela brincadeira. carrega um a força expressiva, posto que dedicada à função
A dimensão estética do gesto se retrai até se tornar um ato de adaptativa. Está fundam entalm ente a serviço da guerra de
designação (“ isto é um a m ordida”) e um a ação instrum en­ todos contra todos. Ele deve ser entendido em term os de
tal (“querendo ou não, agora efetivam ente faço o que estou m ero valo r de sobrevivência, não de produção estética de
fazendo, e não mais o que estaria”). m ais-valia de vida.
É inegável que a brincadeira tem um papel no aprendizado,
25 Raymond Ruyer, Le néo-finalisme. Paris: p b f , 1952, p. 103. Como veremos no e que o aprendizado serve a fins adaptativos. M enos claro
segundo suplemento, o próprio ato de percepção é um gesto vital que carrega um é o fato de que isso significa que a relação da brincadeira
elemento de transformação-in-loco e de brincadeira; e, portanto, um grau de refle-
xividade imediata, que Ruyer chama de “inspeção absoluta”. Ecoando Whitehead,
com suas arenas análogas é essencialm ente de subordinação
Ruyer menciona que a “autofruição” está conectada com a inspeção absoluta.

26 27
co n form ativa.26 O excesso e stilístico da brincadeira, sua gesto previsível. Se o aprendizado ficasse restrito à m ode­
-esquidade, não corresponde apenas a um detalhe a mais que lagem da form a de um ato instintivo antes de sua execução
floreia o gesto, mas a um poder de variação. A form a do gesto instrumental, seria perigosamente desadaptativo, moldaria os
é deformada, de modo mais ou menos sutil, sob a pressão do alunos para a morte. Ruyer sustenta que o poder de improvi­
entusiasm o do corpo que o realiza. Na deform ação, a forma sar é uma dimensão necessária em qualquer instinto.
análoga assume outra forma. A lacuna entre o gesto lúdico e Não é a brincadeira que é moldada na forma do combate, é a
seu análogo cria uma margem de manobra: abre espaço para forma do combate que é modulada pela brincadeira. Longe de
a improvisação. A brincadeira é a arena de atividade dedicada a brincadeira estar servilmente subordinada às funções de suas
à im provisação das form as gestuais, um verdadeiro labora­ arenas de atividade análogas, são essas funções que dependem,
tório de form as de ação ao vivo. Aquilo de que se brinca é para sua funcionalidade contínua, dos poderes de variação
invenção. O rendim ento estético da brincadeira vem com natos da brincadeira. O sucesso na luta contra um inimigo ou
um a m obilização ativa dos poderes de variação im provisa­ na fuga de um predador é reforçado por um poder animal de
dos. A mais-valia de vida é igual à mais-valia de inventividade. im provisar im ediatam ente. Quando isso acontece, a função
Não fosse esse o caso, a luta estaria perdida. E efetivamente vital capturou o valor expressivo dos gestos e os canalizou para
o poder de variação aprendido na brincadeira, a proeza impro- seus próprios fins instrumentais. De fato, é a ação instrumen­
visacional que ela aprimora, que dá ao animal a vantagem no tal que é parasitária em relação à brincadeira. A vida lucra com
com bate; ou, para citar outro exem plo, na fuga de um p re­ a mais-valia de vida produzida pela brincadeira, convertida em
dador. Um gesto cuja form a é moldada com o uma função de valor de sobrevivência. Captura: apenas uma atividade autô­
fim reconhecidamente instrumental é um gesto normatizado noma pode ser capturada. A brincadeira, e a expressividade à
antes mesmo de sua execução, e um gesto norm atizado é um qual ela mesma se dedica, constitui um domínio autônomo da
atividade vital, um domínio fundamentalmente insubordinado
2.6 Burghardt argumenta contra a visão neodarwiniana dominante de que a brinca­ à lógica da adaptação, ainda que seja capturado de modo útil
deira animal pode ser adequadamente explicada em termos de seu valor adapta- por ela em determinadas circunstâncias. Isso inverte a relação
tivo: “ [é] provável que as vantagens iniciais do incipiente comportamento análogo
à brincadeira não envolvam nenhuma função particular, como o aperfeiçoamento entre a brincadeira e suas arenas análogas. Em vez de brincar
de comportamentos posteriores, aumento de resistência ou facilitação da flexibi­ de forma servil em conform idade com elas, na realidade são
lidade comportamental” (The Genesis of Animal Play: Testing the Limits. Cambridge:
variações nas formas que são inventadas pela brincadeira, daí
mit Press, 2005, p. 172). Uma vez que a brincadeira excede qualquer funcionalidade
particular, só pode ser inteiramente explicada, segundo ele, como uma função de secundariamente assumindo funções adaptativas.
“ superávit". Como observa Brian Sutton-Smith, em seu prefácio ao estudo de Bur­ Ruyer insiste que os-poderes autônomos de variação estão
ghardt, “a brincadeira tanto se origina da quanto cria recursos superavitários” (Ibid.,
p. x). A “teoria dos recursos superavitários” de Burghardt é cuidadosa ao estabele­
presentes nas atividades instintivas de qualquer natureza.27
cer que os recursos superavitários em questão não são adequadamente entendidos Se o ato instintivo fosse aquilo que é considerado — uma
em termos de “energia” superavitária. Em outras palavras, não são quantificáveis
(fisiologicamente), mas possuem um componente irredutivelmente qualitativo,
atinente a fatores “ mentais” e “emocionais” (Ibid., pp. 172-179). 27 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes. Paris: Flammarion, 1958, pp. 17-18; pp. 27-28.

28 29
seqüência estereotipada de ações pré-m oldadas executadas contingenciais da situação. Em outras palavras, o instinto é
por reflexo à maneira de um automatismo — , então o instinto sensível às relações entre os elementos particulares que com­
seria incapaz de responder a m udanças contingenciais no põem a situação vivida. Sua ação varia conform e a singulari­
am biente.28 Variações contingenciais no ambiente precisam dade da situação. Todas as minhocas tapam a abertura de suas
ser com patibilizadas através de variação, o que requer certa tocas, mas o m odo de assegurar essa função instintiva inva­
plasticidade criativa, uma margem improvisacional de mano­ riável se diferencia de acordo com os materiais disponíveis, a
bra. Todo ato instintivo, independentemente de quão estereo­ forma como se apresentam, sua localização e sua configuração.
tipado em geral pareça ser, carrega uma margem de manobra. “ Se os verm es agissem somente por instinto [no sentido de]
Todo instinto carrega em si um poder de variação, em um grau um impulso herdado invariável, eles iriam todos [tapar suas
ou outro. Todo ato instintivo comporta um poder de variação tocas] da m esm a maneira” .30 Ao contrário, “vem os um indi­
que acreditam os ter o direito de chamar de “lúdico”, no sen­ víduo lucrar com a sua experiência individual” ao improvisar
tido mais amplo da palavra. O u “estético”, dada a natureza do uma solução que é adaptada não à generalidade da situação,
rendimento produzido. A margem de manobra da brincadeira mas à sua singularidade.31 Essa capacidade, observa Darwin, evi­
é o “estilo”: a -esquidade que perfaz a possibilidade. Tudo isso dencia um “poder mental” : um poder de abstração.32
nos obriga a reconhecer a expressão como uma operação vital Não há razão para considerar esse poder de abstração um
tão primordial quanto o próprio instinto. N ão há vida sem tipo de reflexividade. A situação geral (tapar o buraco) é refle­
mais-valia de vida. Não há instrumentalidade sem expressivi­ tida na singularidade vivida (tapar este buraco assim, aqui e
dade. Adaptação nunca surge sem inventividade. Expressivi­ agora). Essa é uma reflexividade vivida, uma reflexividade com
dade e inventividade são a ponta de lança da gênese das formas os gestos inventivos que a expressam. Ruyer, com o Bergson,
de vida. E através de suas margens de manobra que os parâ­ estende esse poder m ental não cerebral até chegar às ame­
metros operacionais dos modos de existência são expandidos. bas, ou m esm o às células individuais que com põem corpos
O próprio Darwin disse isso quando exaltou as proezas animais multicelulares.33“ Seria tão absurdo”, escreve Bergson,
im provisacionais de suas adoradas m inhocas, às quais dedi­
cou um longo tratado. A operação do instinto, escreve ele, não 30 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould through theAction ofWorms op. cit., pp.
pode ser equiparada a uma “simples ação reflexiva” , como se o 64-65.

animal “fosse um autômato” .29 Prova disso é que o mesmo estí­ 31 Ibid., p. 95.
32 Ibid., pp. 25,34-35.
mulo não conduz ao mesmo efeito, dependendo das variações
33 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 103-106. Whitehead também
deveria ser adicionado à lista: “a vida espreita nos interstícios de cada célula viva”
28 Ibid., p. 147. (Process and Reality. Nova York: Free Press, 1978, p. 105). E, em sua filosofia, toda
29 Darwin, TheFormation ofVegetable Mould tkrough tkeAction o/Worms, with Obser- ocasião da vida é considerada como tendo um “polo mental” (falaremos mais
vations on their Habits. Nova York: Appleton, 1890, p. 24. Ainda sobre as minhocas sobre isso adiante). O biólogo Brian J. Ford argumenta que as células dos animais
de Darwin, cf. Bennett (Vibrant Matter: A Political Ecology ofThings. Durham: Duke multicelulares são dotadas de inteligência (“On Intelligence in Cells: The Case for
University Press, 2010, pp, 94-109). Whole Cell Biology” . Interdisciplinary Science Reviews ne 34 v. 4, 2009, pp. 350-365).

30 31
“ recusar a consciência a um animal, pelo fato dele não ter cére­ Ruyer, Bergson e Bateson consideram esse poder de m en­
bro, quanto declará-lo incapaz de se alim entar pelo fato de talidade expressiva com o a vanguarda da evolução.3S Ele é o
não ter estômago.”34Portanto, mesmo num estágio evolutivo próprio m otor da evolução, responsável por inventar as for­
de antes de a brincadeira reclamar as próprias arenas de ativi­ mas que vêm a ser selecionadas com o adaptativas. Bergson
dade independentes — e de registrar essa diferença, como sua argum enta que essa força inventiva de variação opera até
própria, na -esquidade — , já havia um elemento de brincadeira mesm o quando as forças de mutações contingentes estão em
em todos os atos instintivos. Todos eles são capazes de afir­ ação. Uma m utação em um elem ento requer que os elem en­
mar uma força expressiva de variação, bem com o um poder tos adjacentes se reconfigurem ao seu redor. Os elem entos
de singularização que gera mais-valias de vida. Todo ato, até reminiscentes improvisam-se numa nova integração ao redor
o mais instrum ental, é margeado por expressividade impro- da mudança, de um m odo que não pode ser consagrado ao
visacional. O instinto não é limitado à repetição automática acaso ou explicado por princípios puram ente m ecanicistas,
do arco reflexo disparado por um traço de memória herdado. que operam em term os locais, parte a parte. Mas uma in te­
Este é um aspecto do instinto. Mas é necessário lembrar que gração é justam ente isto: integral. Isto é, diz respeito à coor­
cada repetição “ estereotipada” de um ato instintivo é capaz de denação e à correlação de todas as partes ao m esm o tem po,
formar potencialmente um arco na futura direção improvisada em sua maneira de convergir.36
da gênese das formas de vida, da expressão de novas variações
sobre os modos de atividade constitutivos da vida.
35 Burghardt (The Genesis of Animal Play op. cit.) também reconhece a brincadeira
como o motor da evolução: “reconhecemos agora que a brincadeira pode ser vista
34 Bergson, A evolução criadora, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins tanto como um produto como uma causa da mudança evolutiva; isto é, que as ati­
Fontes, 2005, p. 120. Que os poderes mentais podem residir fora do cérebro já foi vidades lúdicas podem ser uma fonte de funcionamento comportamental e mental
verificado através de experimentos. Mostrou-se que amebas — as quais, enquanto aperfeiçoado, assim como um subproduto de acontecimentos evolutivos prece­
criaturas unicelulares, são perfeitamente desprovidas de cérebro — têm memória dentes” (p. 121). Seu caráter superavitário faz da brincadeira “tanto um detrito
e podem antecipar o futuro (Saigusa et ali., “Amoebae Anticipate Periodic Events”. evolutivo quanto um propulsor evolutivo” (p. 180) — sempre em excesso.
Physical Review Lettersv. 100, na 1, 2008, pp. 1-4). Poderes mentais extracerebrais 36 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 66-76. Ford (“On Intelligence in Cells”
também foram demonstrados em animais multicelulares. Platelmintos, que têm op. cit.) usa argumentos similares em seu estudo de caso sobre inteligência celular,
o invejável poder de regenerar seus cérebros, foram treinados para realizar uma e eles são um traço comum de teorias que buscam contrabalancear a hegemonia
tarefa. Foram, então, decapitados. E quando seus cérebros cresceram de volta, do fundamentalismo mecanicista neodarwiniano (cf. nota 2 para mais referên­
lembraram-se da tarefa que lhes foi ensinada antes de terem perdido as cabeças cias). Sobre a importância evolutiva dos “todos integrados” , cf. o clássico texto
(Shomrat e Levin, “An Automated Training Paradigm Reveals Long-term Memory de Stephen Jay Gould e Robert Lewontin, “The Spandrels of San Marco and the
in Planaria and Its Persistence through Head Regeneration” . Journal of Experi­ Panglossian Paradigm: A Critique o f the Adaptationist Programme” . Proceedings
mental Biology, 2013). O instinto, claro, envolve um modo de memória, que Ruyer ofthe Royal Society ofLondon. Série Biological Sciences, v. 205, n2 1161, 1979, pp.
chama de “traço mnêmico” e que é reativado por um estímulo (Ruyer, Lagenèse des 581, 591, 594. A abordagem da evolução via sistemas complexos feita por Susan
formes vivantes op. cit., pp. 113-115). É a diferença entre o traço mnêmico e a singula­ Oyama também enfatiza a composição relacionai conjunta: “no que doravante
ridade da situação presentemente vivida o que inaugura uma diferença mínima que referiremos como seletividade recíproca de influências, ou mútua dependência
coloca uma margem de brincadeira até na mais básica ação instintiva, conferindo de causas, não somente todo um conjunto de influências contribui com todo e
a toda percepção um elemento da brincadeira (cf. suplemento 2). A brincadeira qualquer fenômeno dado, mas o efeito de todo e qualquer interagente também
alavanca ainda mais essa abertura por meio da esquidade. depende tanto de suas próprias qualidades quanto das de outros, geralmente em

32 33
A expressividade im p ro visacio n al do in stin to que lh e gatilhos. Por exemplo, entre as gaivotas-prateadas, um ponto
confere o poder integral para gerar m ais-valia de vida deve verm elho no bico da fêm ea serve, em circunstâncias normais,
ser recon h ecid a com o um m odo de atividade nato e au tô­ com o o gatilho para alim entação.38 O ponto atrai as bicadas
nom o, irredutível aos m odos funcionais que o capturam. A do filhote, o que estim ula o adulto a regurgitar o cardápio. A
diferença, mínima que seja, entre funcionalidade e expressi­ fim de pesquisar exatam ente qual qualidade perceptual cons­
vidade, entre instrum entalidade e atividade estética, vigora tituía o gatilho, Tinbergen se pôs a construir um a série de
sem pre e por toda parte. Por natureza, a atividade em sua engodos em form a de bicos apresentando um espectro de
dim ensão expressiva está em excesso co m relação às fu n ­ características variáveis. Seu objetivo era isolar as proprieda­
ções norm alizadas das form as gerais de atividade já adapta­ des precisas essenciais ao com portam ento instintivo. A fim
das à sobrevivência. O instinto, em seu aspecto de atividade de entender os parâm etros do com portam ento, estendeu o
expressiva, tem uma tendência inata a superar o normal, por espectro de variação apresentado m uito “além dos lim ites
força do entusiasmo do corpo. Ele é animado por um ím peto do objeto norm al” .39 Para sua enorm e surpresa, não conse­
im anente rumo ao supemormal. guiu isolar quaisquer propriedades particulares que pudesse
Os pioneiros estudos de Niko Tinbergen sobre o instinto,- apontar com o essenciais. Até m esm o um ponto cinza, em
que auxiliaram na criação das bases para disciplina da etolo- determ inadas configurações, era capaz de enganar. Para sua
gia, não saíram incólum es disso tudo. Desde o início, Tinber­ consternação, Tinbergen descobriu de m odo ainda mais sur­
gen notou um a pronunciada tendência da atividade instin­ preendente que, entre os engodos que produziam a resposta
tiva a favorecer o que chamou de "estím ulos supernormais” .37 mais entusiasmada por parte do filhote, estavam aqueles que
Tomando como ponto de partida o modelo padrão do instinto menos lem bravam a form a norm al do b ico da gaivota-pra-
com o estím ulo-resposta operando estritam ente por reflexo, teada fêmea. O entusiasmo do corpo da jovem gaivota premia
Tinbergen decidiu investigar quais propriedades particulares ardentem ente para além do normal.
de determ inados estím ulos instintivos funcionavam com o Tinbergen concluiu que a seqüência instintiva de ações
não dependia, de fato, de nenhuma propriedade isolável que
complexas combinações” (Oyama, The Ontogeny of Information: Developmental Sys­ p ertencesse quer à form a do estím ulo presum ido, quer ao
tems and Evolution. Durham: Duke University Press, 2000, p. 18). Há um elemento
emergentemente performativo e improvisacional na origem dessas “combinações
terreno no qual ele se perfilava. “Não há uma distinção abso­
complexas” integrais porque os “padrões não existem como tais antes de serem luta entre signos-estím ulos efetivos e propriedades não efeti­
realizados” (p. 35). Abiologia molecular corroborou recentemente o ponto de vista vas do objeto” .40 O que provocou resposta não era inteligível
de Bergson, movendo seu foco de atenção para variações imanentemente conecta­
das na rubrica de “ mutações secundárias”. Isso remete a uma mutação randômica
que causa "efeitos secundários em algum lugar do genoma” de modo a “ impelir a 38 N. Tinbergen e A. Perdeck, “On the Stimulus Situation Releasing the Begging
seleção a novas mutações, mesmo na ausência de pressões de seleção ambientais Response in the Novaly Hatched Herring Gull Chick” in Behavior v. 3, na 1,1950,
deliberadas” (Vence, “One Gene, Two Mutations.” The Scientist Magazine, 2013.). PP-1-39-

37 Niko Tinbergen, The Study oflnstinct. Oxford: Oxford University Press, 1951, pp. 39 N. Tinbergen, Animal Behavior. Nova York: Time-Life Books, 1965, p. 68.

44-47- . 40 Tinbergen, The Study oflnstinct op. cit., p. 42.

34 35
em term os de propriedades isoláveis, mas irredutivelm ente Para T in b ergen , isso fico u apenas co m o u m ep isó d io
relacionai. “Tais estím ulos ‘relacionais’ ou 'configuracionais” ’, cu rioso que não o induziu a alterar seu m odelo. O animal,
ele refletiu, “parecem ser a regra e não a exceção” .41 Aquilo a para ele, co n tin u o u sen d o um a m áquina, ainda que “ de
que o filhote de gaivota-prateada respondia, conclui ele, era grande com p lexid ade” e bastante incerta, com o um “caça-
um efeito de intensificação produzido por deform ações que -níqueis” .43 Sua conclusão sobre os estím ulos supernormais?
afetavam integralm ente tod o s os elem en tos presentes em C o m m ais do que um indício de irritação com os anim ais
suas relações uns com os outros. Deform ações integralmente não cooperativos, ele observou: “ N inguém nunca foi m uito
conectadas são com petência da topologia. O que Tinbergen capaz de analisar tais questões, ainda que, de algum m odo,
havia descoberto era um a topologia da experiência na qual os ten h a m sid o co n su m a d a s” .44 É p re c isa m e n te o “ algum
diversos elem entos em jogo são juntam ente varridos na dire­ m o d o ” dessa consum ação dos bebês pássaros em frustrar
ção das próprias variações integrais, num estado dinâmico de as ex p e cta tiv a s assim ilad as do cie n tista que p recisa ser
m útua inclusão.42 retid o e in tegrad o às nossas n o ções de “ an im alidade” . O
fracasso das suposições m ecanicistas da teoria tradicional
41 Ibid., p. 68.
em explicar a com plexidade produtora de incerteza do com ­
42 Para uma análise extensa dos estímulos supernormais e das variáveis experien-
ciais integralmente conectadas, cf. Massumi “Ceei n’est pas une morsure. Animal- p ortam ento instintivo não pode ser com pensado com uma
ité et abstraction chez Deleuze et Guattari” . Philosophie, n2 112, 2011, pp. 67-91; viagem para Las Vegas.
e, embora menos aprofundado, “ The Supernormal Animal” in Richard Grusin
(org.), The Nonhuman Tum. Minneapolis: University o f Minnesota Press, 2015. O
um resultado direto do fato de nossa tendência supernormal ter sido retirada
Supernormal Stimuli, de Deirdre Barret (Nova York: Norton, 2010), um recente
de seu ambiente natural. Então é guerra. É o estímulo supernormal da batida no
best-seller de divulgação científica, é um ensinamento concreto sobre todos os
peito do macho agora artificialmente bombado que, similarmente desenraizado
sentidos nos quais não utilizaremos esse conceito — além de se apresentar como
de seu valor tribal de sobrevivência, está nos matando coletivamente, em massa.
um argumento nos moldes de uma reduetio ad absurdum contra a sociobiologia em
Nossa tendência supernormal nos fez desviar das “coisas reais” da vida. Temos de
que está baseado, no qual ele conduz as tendências inerentes à disciplina em dire­
voltar à real. Temos que lutar contra as nossas tendências supernormais. Temos
ção à sua embaraçosa conclusão lógica. Respondemos a estímulos supernormais,
de reinar sobre elas. Temos de mobilizar contra elas a mesma cultura que as dei­
segundo o argumento, porque certa vez eles tiveram uma função útil, e a predi­
xou seguirem em frente. Temos de usar a cultura para retirar a cultura de baixo
leção por eles ainda perdura em nossos genes. Mas no nosso ambiente moderno
das mortalhas das tendências supernormais que ela transmite, fazendo com que
eles se tornaram perigosamente desadaptativos. Considere o hambúrguer super­
voltemos à conformidade funcional com nossa “verdadeira natureza humana” . A
normal. Nosso gosto excessivo pelas calorias vazias oriundas da gordura e dos
cultura deveria ser a serva natural da normatividade. A normatividade deveria ser
carboidratos fazia sentido adaptativo na Era Paleolítica, quando a energia prove­
culturalmente maquinada para reinar suprema naturalmente. Precisamos instalar
niente da comida era escassa. Agora, a última coisa de que precisamos são calorias
uma atualização instintual em nós mesmos: Homem das Cavernas 2.0. Esse uso
vazias. Mas nos tornamos culturalmente viciados nelas e em outras tendências
de um estilo de vidapaleolítico imaginado (repleto dos mais arcaicos estereótipos
supernormais, estendidas de forma artificial para além de suas utilidades evolu­
de gênero) como parâmetro para o que é “naturalmente humano”, e equiparando
tivas em épocas anteriores. Com a função adaptativa natural perdida, eles foram
“cultural” e “ antinatural” e desviante, é o esteio da literatura sociobiológica. Para
cooptados pela cultura. A resposta aos estímulos supernormais é agora “artifi­
uma crítica clássica da sociobiologia, cf. Lewontin, Rose e Kamin, Not in Our Genes
cial”; seu encanto, puramente “ilusório” . Antes um gigante bife de mamute era
op. cit., pp. 233-264.
um reforço de energia emergencial. Hoje o Big Mac gigante é uma ponte de safena.
O rendimento estético que derivamos dessas atrações não é um valor de vida. E 43 N. Tinbergen, Animal Behavior op. cit., p. 68.
a morte coberta de picles, matando-nos pão a pão. A epidemia de obesidade é 44 Ibid.

36 37
A fim de fazer um balanço total do que os estím ulos super- continua ele, deve ser considerada uma dimensão necessária
normais nos dizem acerca do instinto, a com plexa incerteza de todo instinto. Outra palavra para esse poder alucinógeno
que eles revelam no cerne do instinto precisa ser construída nato é a utilizada por Hume: imaginação. Seja qual for o nome,
em termos positivos. A capacidade de produzir resultados ines­ não estamos lidando com um caça-níqueis, mas sim com um
perados que não se relacionam de modo linear a inputs discre­ primeiro grau de mentalidade no continuum da natureza.47
tos e isoláveis é um aspecto essencial do instinto. Deve-se reco­
nhecer que os movimentos instintivos são animados por uma
47 Sobre a mentalidade definida em termos da capacidade de ultrapassar o que está
tendência a superar as formas dadas, movidos por um ímpeto dado, cf. a análise feita por Deleuze da teoria do conhecimento de Hume em Empirismo
à criatividade; esse ímpeto imanente à criatividade tem de ser e subjetividade, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34,2001, pp. 14-30).
Deleuze enfatiza que 0 que é transcendido é apropria mente: o movimento de menta­
reconhecido com o um poder mental, com mentalidade defi­ lidade, que começa na atividade infraindividual da imaginação e avança em direção a
nida nos moldes neo-humeanos — em termos de capacidade de uma invenção supraindividual de instituições, não pode ser contido na interioridade de
uma mente entendida como uma faculdade individual. Para o Hume de Deleuze, isso
superar o que está dado. O m otor dessa superação não é o reco­
constitui o devir da natureza humana. Aqui o qualificativo "humano" é abandonado.
nhecim ento de um a forma dada, mas sim a deformação inte­ A capacidade de ultrapassar o que está dado é construída como um poder mental da
gral das qualidades da experiência indissociavelmente conec­ natureza que passa pelas vidas individuais. Nisso, ela ultrapassa Hume e desemboca no
"polo mental" de Whitehead. Para Whitehead, a mentalidade é um fator derradeiro da
tadas: a produção espontânea daquilo que Deleuze e Guattari natureza, conjuntamente constitutivo de toda ocasião. Ele também fala da atividade
chamam de ‘‘blocos de sensação” .45 Nenhuma causa eficiente do polo mental como algo que ultrapassa o que está dado, definindo-a em termos de
origem de inovação ("uma centelha de inovação em meio às apetições") e de "aumento
pode ser isolada como sendo a que empurra por trás esse movi­
de intensidade" (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 184). Ele utiliza "apetição"
mento de autossuperação da experiência. A comparação com como um sinônimo para a atividade do polo mental, ao qual ele também confere o
a jogatina não é totalm ente descabida. Há um elemento, não termo técnico "preensão conceituai" (p. 33): "as operações básicas da mentalidade são
'preensões conceituais' (p. 33). Ele oferece, como outras palavras para essa capacidade
tanto de acaso mecanicista, mas — para tomá-lo positivamente
de transcender 0 que está dado em direção à produção do novo, "intuição" - no senti­
— de espontaneidade. Ruyer dá m uita im portância ao fato de do bergsoniano (com algumas reservas) - e "vislumbre" (pp. 33-34). Bergson também
que um instinto pode disparar a si mesmo, mesmo na ausên­ define a mentalidade nos termos de uma força capaz de superar o que está dado. 'Vi­
sivelmente, diante de nós trabalha uma o força que procura [...] superar a si mesma,
cia de qualquer estímulo. Ele caracteriza essa habilidade com o dar primeiro tudo 0 que tem e em seguida mais do que tem: como definir de outro
“ alucinatória”, no sentido em que é “ diretamente improvisada” modo o espírito? e em que a força espiritual [...] se distinguiria das outras, senão pela
faculdade de tirar de si mais do que contém?" (Bergson, A energia espiritual, trad. bras.
no percepto.46 Essa capacidade de im provisação espontânea,
de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: w m f Martins Fontes, 2009, pp. 20-21). Por
fim, em seu clássico estudo sobre a brincadeira como um reino de atividade distinto
45 Sobre blocos de devir, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4, op. cit., capítulo na cultura humana, Huizinga faz uma pontuação similar a respeito da mentalidade,
“ Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível” ; e Kafka: por uma literatura especificamente no que se refere à brincadeira: o jogo "só se toma possível, pensável e
menor op. cit., item 3, “Montagem”. Sobre o conceito associado, blocos de sensa­ compreensível quando a presença da mente destrói o determinismo absoluto do cos­
ção, cf. Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Júnior e mos" (Johan Huizinga, Homo Ludens: ojogo como elemento da cultura, trad. bras. de João
Alberto Alonso Munoz. São Paulo: Editora 3 4 ,199a, item “ Percepto, afecto e con­ Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2000 p. 6). Huizinga também se distancia tan­
ceito”. Gould e Lewontin (“The Spandrels of San Marco” op. cit., p. 597) utilizam to das conotações substantivistas da palavra "mente" quanto das noções redutoras de
a expressão “blocos de desenvolvimento integrados”. "instinto: "Não se explica nada chamando de 'instinto' ao princípio ativo que constitui
46 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 146-147. a essência do jogo; chamar-lhe 'mente ou 'vontade' seria dizer demasiado" (Ibid., p. 4).

38 39
No seu fracasso em fixar instinto a uma dadidade objetiva autocondução do m ovim ento criativo da vida: a autonom ia
de uma causa eficiente, o etologista nos conduziu, a despeito autoexpressiva da criatividade vital.51
de si mesmo, ao afloram ento natural do qualitativo e do sub­ Eis a lição spinozista do cuco e da gaivota-prateada: o entu­
je tiv o com o um fator na natureza: aos blocos im provisacio- siasmo do corpo animal tem seu poder mental de apetição,52
nais de sensação indicativos de um poder m ental de superar cuja propulsividade aventa uma autonom ia expressiva avan­
espontaneam ente o que está dado. N ão há nada “por trás” çada pelos gestos vitais da brincadeira do instinto.
dessa tendência direcionada ao supernorm al que seja um a É fácil ver as vantagens evolutivas de uma tendência super­
dimensão inescapável do instinto. O supernormal exerce uma normal: é algo que dá ao instinto uma m argem criativa de
força positiva que, em v e z de im pulsionar por trás, nos m ol­ manobra. O em puxo do supernormal em direção à variação
des de uma força mecanicista que encontra resistência (ainda relacionai das atividades de form as de vida predispõe o ani­
que m inim izada por engrenagens bem lubrificadas), puxa m al a uma aceitação entusiástica das variações em ergentes.
positivam ente pela frente. A tendência supernorm al é um a A paixão da apetição move adiante, rumo a variações das for­
força atrativa que puxa a experiência para a frente, em dire­ mas de vida, na contracorrente das pressões adaptativas que
ção ao próprio limite — o da paixão espontânea pela mútua fazem com que a seleção final e irrevogável esteja de acordo
inclusão do diverso, em transformação integral. com as necessidades de sobrevivência. Não há dúvida de que
O próprio Tinbergen diz isso. Um filhote de cuco, explica o meio ambiente exerce uma pressão seletiva. A adaptação é,
ele, p ossu i traço s supernorm ais que encorajam a fêm ea de fato, a lei dos meios externos. A lição da tendência super­
de outras espécies, cujo ninho o cu co p arasita, a co lo c á ­ norm al é a de que há mais nos m odos da natureza do que
-lo debaixo da asa e nutri-lo. A fêm ea hospedeira, ressalta com portam ento cum pridor da lei. O instinto opõe à lei de
Tinbergen, não “ quer” alim entar o invasor. Não, ela “ adora” adaptação seletiva um poder de improvisação mais que ávido
positivam ente fazê-lo.48 E não o faz com m á vontade, mas para responder ao cham ado de conform idade a dem andas
positivam ente, com paixão. A força do supernorm al é uma
força positiva. Longe de ser uma zrapulsão mecanicista, é uma 51 Darwin nota a “veleidade” e o “amor pelo novo” até nos animais inferiores: “os
propulsão apaixonada. Propulsão espontânea/ poder mental animais inferiores são [...] caprichosos em suas afecções, aversões e senso de
beleza. Há também uma boa razão para suspeitar que eles amam o novo por si
de superar o que está dado: apetição.49 Ruyer usa o term o
só” (Darwin, The Descent ofMan, and Selection in Relation to Sex, v. 1. Londres: John
autocondução para essa autopropulsão da vida animal ima- Murray, 1871, p. 65).
nente ao m ovim ento do instinto.50 O instinto testem unha a 52 “Sem dúvida, tudo isso mostra com clarreza que tanto o decreto da Mente
quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou
melhor, são uma só e mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pen­
samento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob
48 Tinbergen, Animal Behavior, op. cit., p. 67.
o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos
49 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 33.
determinação” — Espinosa, Ética, Parte m, Proposição 11 (Espinosa, Ética, trad.
50 Ruyer, La genèse des formes vivantes op. cit., pp. 17, 214; Le néo-finalisme op. cit., bras. Grupo de Estudos Espinosanos, coord. Marilena Chauí. São Paulo: Edusp,
pp. 127-192. 2015, pp. 245-247).

40 41
externas num a virada supernormal. O instinto tom a a liber­ novas formas. Paralelamente à m utação, há outro fator para
dade de inventar as soluções propostas. Não se contenta em a origem da variação: um poder de artifício experiencial não
encontrar suas soluções já traçadas no esboço negativo das m enos im anente à natureza do instinto do que o instinto é
restrições ambientais. Dada a escolha entre a conform idade imanente à natureza. Diante do acidente, o instinto está apto
às demandas limitativas da adaptação e a morte, ele inventa a se replicar sobre a própria autocondução, a própria propulsi-
um a terceira via: a invenção do excesso de um mais-viver. vidade de autovariação.54Ao enfrentar uma mudança no meio
Uma inventividade imanente à topologia da experiência, com am biente que exerce um a pressão seletiva, ele retorna à sua
suas qualidades vividas, em sua vanguarda mais subjetiva, própria margem de manobra, levado adiante em seus gestos
responde espontaneam ente às pressões adaptativas. A essa perform ativos. O instinto opõe à conform idade demandada
inventividade imanente alguns dão o nome de “ desejo”.53 pelas pressões seletivas de adaptação um poder im anente
Obviam ente, a evolução nunca escapa da seleção adapta- de invenção supernorm al. A ação instintiva jo g a a própria
tiva. Não é assim tão preto no branco. Mas não é exatamente criatividade natural contra as condições lim itantes do meio
essa a questão. O problem a é a fundam entação do princípio externo. Se um a ação instintiva é induzida por um estím ulo
neodarwiniano segundo o qual a única força natural de varia­ externo ou uma situação de necessidade externa, ou acontece
ção que contribui para a gênese das form as de vida é a de na ausência de ambos, há um grau de liberdade “ alucinatória”
m utação. A m utação é puram ente acidental, assim com o as nas variações deform ativas que ela desempenha. O instinto,
mudanças ambientais que passam a exercer pressão seletiva enfatiza Bergson, não é apenas acionado, ele é atuado.55 Atua
sobre as variações que as m utações produzem . C om o um a si mesm o ao brincar. É sempre a atuação de ato verdadeiro,
conceito, o acidental se refere a relações extrínsecas entre nunca apenas um estereótipo de ação. O elem ento supernor­
elem entos discretos que operam de acordo com leis pura­ m al e inerente do dinam ism o instintivo faz com que a dife­
m ente m ecanicistas que sofrem um a pane: causalidade efi­ rença entre atuar e encenar seja mínima.
ciente tem porariam ente fora de serviço. Acidentes ocorrem Ao se replicar na própria intensidade de variação autocon-
pontualm ente, ao acaso. A espontaneidade, ao contrário, diz dutora, o lúdico do instin to deixa um a m argem de brinca­
respeito às variações qualitativas que ocorrem integralmente deira nas lacunas, nas interações entre indivíduos ou entre o
com o um bloco. indivíduo e o ambiente. As duras necessidades da vida e a lei
A espontaneidade tem uma lógica, m esm o em sua recusa de seleção adaptativa associada não contam toda a história.
em cumprir a lei. Ela segue a lógica constitutivam ente aberta
da intensificação relacionai, na direção da em ergência de 54 Essa replicação num poder imanente de invenção é a “involução criativa” com a
qual Deleuze e Guattari suplementam a “evolução criativa” de Bergson (Deleuze e
Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 27-28; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 18-20).
53 Sobre o desejo como um princípio imanente e autocondutor produtor do real,
cf. Deleuze e Guattari, O anti-Édipo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 55 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 158,195. Em francês, joué— que, assim
Editora 34, 2010. “Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele como a palavra inglesa play, também se refere à dramatização, como em playing
só pode sê-lo na realidade, e de realidade” (p. 43). a role [encenar um papel]. Na edição inglesa está traduzido como acteã [atuado].

42 43
Sempre há brincadeira em qualquer mecanism o, e o instinto do lado do elem ento criativo no instinto, com o o m otor m en­
não é um a exceção. N as palavras de Ruyer, há sem pre uma tal do m ovim ento do devir das form as da vida. Isso porque
“borda fortuita” de espontaneidade im pelindo a autonom ia a tendência supernorm al corporaliza um desejo de variação
criativa da expressão.56 positivo. É através dessa ten dência que o apetite pela vida
V oltem os à fam inta gaivota-prateada. Se a tendência do afirma a variação. Na natureza, “ o fato inicial é a apetição
filhote à improvisação tem um efeito insignificante na eficácia prim ordial” .37 A adaptação dá passagem à tendência super­
do comportamento de alimentação, seus gestos supernormais normal, de modo que ela siga no caminho — ou não. A adap­
serão destinados a recuar na imanência da natureza de onde tação seletiva exerce um controle de fiscalização cujo poder
vieram . Fim da história: serão indiferentes ao sucesso repro­ vem da im posição de restrições extrínsecas e que assume a
dutivo da espécie, e não serão passados para a frente na linha form a de uma sentença de vida ou morte. Impõe a lei daquilo
evolutiva. Mas não é inconcebível que a im provisação entu­ que está dado com o um a necessidade de sobrevivência. O
siástica do filhote acerte em cheio a paixão do adulto, resul­ controle final que exerce sobre o que passa ou não passa em
tando no aum ento da avidez com que ele alim enta sua cria. term os de novas variações eqüivale a um julgam ento norm a­
Esse aum ento na eficiência do com portam ento de alim enta­ tivo. Eqüivale a um teste de conform idade, um teste de apti­
ção aumenta o sucesso reprodutivo dos pássaros. A im provi­ dão no que se refere às leis de necessidade construídas em
sação e tudo o que se prestou à sua invenção na constituição condições já dadas. Ainda assim, a longo prazo, o que ganha
instintiva do filhote, na sua relação apetitiva com o que seu é o poder improvisacional da variação supernormal que ultra­
entorno oferece ao longo do caminho das disposições inten- passa 0 que está dado, rumo a um excesso de qualidade vivida.
sificadoras de experiência, podem então ser passados adiante Sua propulsividade tom a a prim azia com o originadora das
pelas forças de pressão seletiva. A exceção imaginativamente formas de vida submetidas ao julgam ento norm ativo da sele­
subjetiva acaba se tornando a regra biológica. O supernormal ção adaptativa. Para corroborar a excessividade desse ímpeto
normaliza. A tendência à supernormalidade terá efetivamente inventivo, basta dar um a olhada na exuberância sem limites
contribuído para a gênese evolutiva de um a variação dura­ da natureza em qualquer lugar onde possa ser observada, da
doura de uma form a de vida. qual o entusiasmo do corpo do gesto instintivo é a expressão
Adaptabilidade e criatividade convergem , sem que a dife­ exemplar. A história da evolução é uma louca proliferação de
rença entre elas se apague. No processo de evolução, suas formas, tão fértil que desafia a imaginação humana.
operações tendenciais se interlaçam sem perder sua distinção. Um a filosofia da natureza deve levar em conta essa prima­
Fundem-se, efetivamente, sem coalescer. Ontogeneticamente zia da expressividade autovariante, bem com o sua autonomia
falando — isto é, do ponto de vista da gênese das formas, da processual enquanto ten dência autocondutora. Sua prim a­
origem de suas variações — cumpre dizer que a primazia está zia deve ser reconhecida m esm o onde a vida animal é mais

56 Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., p. 142. 57 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 48.

44 45
firm em ente enraizada no enquadram ento de seu am biente, para a em ergência da linguagem . A linguagem se distingue
com todos os acidentes e imperativos que vêm com isso. M ui­ pela capacidade reflexiva de se dobrar — de replicar suas ope­
tos animais se enraízam num território. A ocupação proprietá­ rações sobre si mesmas, de comentar a respeito daquilo que se
ria de um território fornece aos instintos um meio exclusivo faz ao fazê-lo. O redobram ento m etacom unicacional permite
para o seu desdobram ento, mas sob condições m uito particu­ que a linguagem mapeie as próprias operações, imanentes ao
lares. Agressão interespecífica, gregaridade interespecífica e seu exercício. O s m esm os atos verbais que produzem a dis­
com portam ento de cortejo são, todos, funções territoriais — tinção entre o nível comunicacional e o m etacom unicacional
assim como, aliás, o com portam ento de alimentação do cuco fazem com que esses níveis colapsem entre si: você não pode
e da gaivota, que pressupõe um ninho. A partir da perspectiva falar sobre a linguagem sem utilizá-la. É num só e m esm o
aventada aqui, nosso entendim ento de funções territoriais gesto que a distinção entre os níveis de linguagem é esta­
deve levar em conta os m odos nos quais o desdobram ento belecida, e que esse distanciam ento reflexivo da linguagem
dos comportam entos instintivos enraizados podem, não obs­ em relação consigo mesm a recai na imanência, na im ediatez
tante, superar sua ancoragem funcional. O cortejo, a função do próprio ato de enunciação que produz a distinção. Isso é
territorial em torno da qual orbita a m aior parte das discus­ verdade não só em relação a declarações que com entam expli­
sões sobre a exuberância evolutiva, seria apenas um caso par­ citam ente sobre a função da linguagem. O humor é um bom
ticular. A brincadeira, uma vez mais, proporciona o ângulo de exem plo da operação da linguagem piscando para si mesma.
ataque privilegiado. Entretanto, todo ato de linguagem inclui esse elem ento refle­
A brincadeira, com o um a atividade independente em seu xivo em algum nível. T oda declaração tem um papel fático,
próprio direito, pressupõe o território. O território está entre definido com o o esforço em estabelecer ou continuar a com u­
suas condições necessárias. Os filhotes de lobo só podem se nicação. T odo ato de linguagem perform ativam ente m eta-
perm itir se entregar à brincadeira quando estão próxim os do gesticula para a própria vocação com unicativa. A diferença
covil que lhes confere proteção contra os predadores, até que entre os níveis de linguagem é duplicada por uma zona de
estejam grandes o bastante para se tornarem , eles próprios, indiscernibilidade entre eles. Essa zona é sua mútua inclusão
predadores. Mas a brincadeira não é apenas condicionada no mesm o ato de linguagem. Os níveis denotativo e reflexivo,
pelo território, é uma operação no território. É um a opera­ com unicação e m etacom unicação, o mapa e o território, são
ção de abstração vivida na qual as funções territoriais são, ao ativamente coim plicados em qualquer gesto, incluindo, para­
m esm o tem po, ativam ente convocadas para um novo efeito doxalm ente, aqueles que os isolam. Os níveis se entrelaçam
e paradoxalm ente colocadas em suspenso. em pressuposição recíproca, no próprio ato que produz sua
Em sua discussão acerca da dimensão metacom unicacional distinção, numa espécie de vaivém instantâneo através de sua
da brincadeira, Bateson ressalta que é a reflexividade da brin­ diferença. A brincadeira, entendida num sentido mais amplo,
cadeira que inventa a fam osa distinção entre o mapa e o ter­ é o que inventa essa dinâm ica. Num sentido mais estrito,
ritório. É essa diferenciação, afirma ele, que cria as condições com o uma arena de atividade em seu direito próprio, é o que

46 47
mais desenvolve a invenção, brincando intensam ente com a É evidente que esses prolongam entos para a fren te das
diferença entre o mapa e o território para extrair disso uma form as dinâmicas de vida podem varrer a form a do próprio
nova mais-valia de vida. território em m ovim entos de devir. Vim os que os estím ulos
A linguagem humana conduz a reflexividade do ato com u­ supernorm ais que são a paixão das gaivotas-prateadas com ­
nicativo e de seus poderes cartográficos ao seu poder animal preendem blocos relacionais de qualidades experienciais cujo
iríáis elevado. Ao mesmo tem po, as possibilidades lúdicas da acoplam ento integral não respeita a distinção entre figura
vida são conduzidas a um poder maior, potencializadas pelo e fundo e que não são atribuíveis a nenhum a propriedade
vaivém instantâneo entre os níveis lógicos, entre os domínios isolável de nenhum deles. Não é difícil imaginar a tendência
díspares de experiência e entre os dom ínios da experiência supernorm al do filhote atrelando-se ao elem ento estrutural
e os m ovim entos criativos através dos quais eles se superam. do ninho. N ão é inconcebível que essa pressão deform acio-
Dos trocadilh os mais infam es a mais exaltada poesia, pas­ nal possa, em longo prazo, levar a um a vantagem adapta-
sando por todo tipo e nível de hum or e de uso figurado — tiva associada a um a variação no planejam ento do ninho
para não m encionar os form alism os explicitam ente dedica­ que acabe passando pelo crivo da seleção, tudo com o efeito
dos ao mapeamento operacional — , a linguagem está sempre secundário da autocondução apetitiva dos anim ais. N esse
ocupada flexionando suas capacidades reflexivas, e ocupada caso, o poder mental da brincadeira terá m odificado o mapa
tam bém em brincar com elas. físico do território.
A brincadeira animal desliza essa reflexividade para den­ V oltando à brincadeira no sentido estrito, o vaivém ins­
tro do gesto não verbal. Uma seqüência de gestos combates- tantâneo que ela efetua entre presente e futuro trabalha as
cos projeta a form a do combate; repete a form a dinâmica do pernas de m odo a serem capazes de outro alcance — o de a
com bate sem o com bate. Ao fazê-lo, constitui um a cartogra­ inventividade da brincadeira de luta se prolongar na form a
fia enativa diretam ente vivida. Não é um a cartografia que se do próprio com bate, atravessando a zona de indiscernibili-
lim ita a se conform ar aos contornos dados da form a dinâ­ dade da sua m útua inclusão. As variações no com bate que
m ica que delineia, mas que vai além, im provisando sobre a são improvisadas na brincadeira podem muito bem conduzir
form a dada. Prolonga as linhas gestuais com as quais extrai o a um a evolução de sua form a dinâmica. Essa é a ideia, já dis­
mapa vivido da form a dada através de acréscim os estilísticos cutida, de que o jogo não se m olda no com bate tanto quanto
e excessos que introduzem o jamais visto. A novidade floresce o com bate se m odula na brincadeira, em nivelam ento com
no terreno da vida. Esse tipo de cartografia cria o território os gestos que com põem sua cartografia enativa. O s gestos
que mapeia, em novas variações que emergem numa arena de cartográficos têm o potencial de reconfigurar a arena de ati­
atividade já existente. Nesse m odo lúdico de reflexividade, é vidade do combate, assim como a bicada impetuosa do filhote
essencialmente o futuro que é encenado. O gesto lúdico inclui de gaivota podem levar, por fim, a uma reconfiguração de um
o combate e a brincadeira, um no outro, a fim de estabelecer território físico. No vaivém instantâneo entre o presente da
um vaivém instantâneo entre o presente e o futuro. brincadeira e o futuro do combate, é estabelecido um circuito

48 49
de troca, pelo qual a brincadeira vem a se expressar em com ­ com um terceiro incluído. A brincadeira e o com bate se sobre­
bate porque o com bate veio a se expressar em brincadeira. põem sem que a distinção entre eles seja perdida. Convergem
Esse intercâm bio ocorre através da sua diferença em nível sem se fundir, a qualquer distância no tem po e no espaço.
com unicativo, form a e tipo, bem com o através da distância O correm conjuntam ente visando a m udanças, sem coales-
que separa a brincadeira da luta, com o arenas de atividade cência — mas com um entrelaçam ento de tom . Na medida
díspares, cada qual com seus próprios parâm etros espaciais em que exitosam ente é com batesquidade, a brincadeira é
tem porais — ou, no vocabulário de Félix G uattari, com o potencial e m ortalm ente séria. Já o com bate, na m edida em
territórios existenciais diferentes.58 que é necessariamente improvisacionai, carrega um elemento
O con ceito de “território existencial” é m ais abrangente lúdico. O tom dominante difere de um lado para outro, mas o
do que o de “territó rio” no sentido estrito. R em ete ao ter­ -esco está num lado e no outro, estendido da maneira super­
ritó rio no sentid o físico , mas tam bém assim ila as form as normal entre eles.
dinâm icas, as form as de atividade, que utilizam o território Na linguagem, a zona de indiscernibilidade correspondente
físico com o tram polim para o devir. Inclui tam bém as rela­ é verbal. Enquanto verbal, presta-se a um a definição pura­
ções mentais entre os territórios em jo g o e en tre as form as mente lógica, nos term os do paradoxo de Russell, tratado em
dinâm icas que os territó rio s h ospedam . O territó rio e x is­ detalhes por Bateson. Esse paradoxo gira em to m o da im pos­
tencial é um bloco de espaço-tem po vivido no qual a vida se sibilidade de uma classe ser membro dela própria (o paradoxo
pensa enquanto brinca de variação. O conceito de território de Epim ênides ou o paradoxo do m entiroso creten se).60 O
existencial tam bém , e especificam ente, se refere à com posi­ mapa que coincide com o território é outra versão do mesmo
ção estilística das atividades vitais, inclusive o vaivém entre enigma. A zona de indiscernibilidade da brincadeira exem ­
as suas arenas díspares efetuando um a m odulação recíproca plifica ativamente esse tipo de paradoxo. Em sua cartografia
dessas arenas, de maneira a prolongá-las potencialm ente em enativa, a com posição do mapa e a do território coincidem
term os evolutivos.59 efetivam ente no gesto. A natureza integralm ente enativa e
Em resum o, há um a potencialização recíproca da brinca­ corporificada dessa cartografia entusiasticam ente supernor­
deira pelo combate e do combate pela brincadeira: uma mútua mal demanda um a definição em term os que não sejam pura­
inclusão de potencial distinto. Potenciais para variação que mente lógicos.
são enovelados na brincadeira desenovelam -se na luta. Esse
circuito de potencialização recíproca é possibilitado, de ambos 60 “ Todos os cretenses são mentirosos. Sou cretense; logo, estou mentindo” e,
os lados, pela criação de uma zona m utuam ente inclusiva de neste caso, digo a verdade. De acordo com Russell, o problema se coloca a partir da
mistura de níveis lógicos, o metanível pertencente às classes (todos os cretenses)
indiscernibilidade que replica a afirmação de suas diferenças e o nível particular pertencente aos membros das classes (o cretense que eu sou).
Russell não encontrou uma maneira lógica convincente de separar as classes de
modo efetivo, e disso decorre que não há um modo infalível de o mapa ficar preve­
58 Guattari, Caosmose op. cit., pp. 11-95 e passim.
nido de se replicar no território. Para a discussão de Bateson, cf. “A Theory of Play
59 Cf. Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., cap. 11. and Fantasy” op. cit., pp. 180,184-192.

50 51
Bateson sublinha que há um fator que n ão é tocado pela de p o ten cialização recíp roca expresso no afeto de v ita li­
suspensão efetuada pela colocação, realizada pelo gesto de dade da brincadeira é um a potência do falso no sentido em
brincadeira, da atividade subsequente no m odo condicional. que “postula a sim ultaneidade de presentes incom possíveis”
Esse fator é o afeto. Em bora um gesto lúdico apavorante não no seu vaivém instantâneo entre o agora e o futuro e entre
denote aquilo que iria denotar, ainda provoca “ o m esm o ter­ dom ínios díspares de atividade.63 O afeto que é a verdade da
ror” .6' Esse tam bém é o caso das im agens cinem áticas, res­ brincadeira adiciona um a dim ensão verídica à p otên cia do
salta Bateson. O assu stad oresco inspira o pavor. Segundo falso do afeto de vitalidade. Ele qualifica verdadeiram ente a
B ateson, os g esto s lú d ico s são “ puros signos de h u m o r” : interação em curso com o envolvendo um tipo conhecido de
puros signos de afeto.62 Q u an do dizem os “ p u ro” em rela­ experiência, e atesta a correspondência entre as duas arenas
ção a um signo, só p ode denotar um signo cujo sentid o é em jo g o , confirm ando e cim entando a analogia: o m esm o
in separável do seu desem p en h o e, p o rta n to , cuja e xp res­ terror (ainda que com um a diferença lúdica vital). Esse tipo
são é inseparável de seu conteúdo. Puros signos são signos de afeto, relacionado ao acréscim o de um a dim ensão de mes-
não d en o tativos que não rem etem a nada fo ra da própria midade, é 0 que os psicólogos cham am de afeto categórico. O
enação, que é a enação do seu significado. Puros signos são afeto categórico contribui com a verdade que será golpeada
puros acon tecim en tos, sim ultaneam ente reflexivos (m eta- pelo paradoxo do p oder do falso do afeto de vitalidade. O
com un icacion ais) e relacionais (ocasionando um a m útua golpe do paradoxo to m a o gesto inventivamente “indecidível”
inclusão de níveis, form as e arenas de atividade). Estando — além de ser verdadeiro.64
sem pre em jo go, a denotação, bastante artificiosa e em ter­ O afeto categórico é o “o que” da brincadeira que vem com
mos constitutivos atingida pelo paradoxo, é em inentem ente o “com o” , num registro afetivo diferente daquele do afeto de
suspeita. E ntretanto, isso não a im pede de ser verdadeira vitalidade do “ com o” . O afeto categórico é do que verdadei­
— afetivam ente verdadeira. A verdade da brincadeira é de ram ente trata o acontecim ento. É o conteúdo qualificado do
ordem afetiva. evento da brincadeira: “ sua sobredade” . Ocorre num registro
A n teriorm ente, o entusiasm o do corpo expressado pelo diferente da dinâm ica form a lúdica do desem penho que o
animal que se entrega à brincadeira foi caracterizado com o enativa, com o um aspecto estritam ente do m esm o gesto. O
um afeto de vitalidade (ou aquilo que acabam os de chamar afeto de vitalidade e o afeto categórico são aspectos co n co­
de “ tom ” ). O afeto de vitalidade é adverbial, diz respeito m itantes do ato da brincadeira. O afeto de vitalidade corres­
ao “ com o” da perform ance: sua m aneira de execução (seu ponde à -esquidade do ato: sua maneira. O afeto categórico
estilo). O com o foi relacionado ao artifício da -esquidade. E
o que D eleuze cham aria de “ potência do falso” . O circuito
63 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo, trad. bras. de Eloisa de Araújo Ribeiro. São
Paulo: Brasiliense, 2005, p. 161.
61 Ibid., p. 254. 64 Deleuze, Conversações, trad. bras. de Peter P& Pelbart. São Paulo: Editora 34,
62 Ibid., p. 253. 1992., p. 51-

52 53
é aquilo sobre o que o ato maneiristicam ente confirm a ser. É situação bem pode ser de medo em todos os lados, mas cada
o que com um ente é cham ado de “em oção”.65 participante carrega o medo de acordo com um ângulo parti­
O afeto categó rico m obilizado na b rin cad eira é o m ais cular de inserção diferencial na situação. Os papéis correspon­
saliente nas interações da arena de atividades análoga com dentes aos ângulos de inserção enativam diferenciais de poder.
a qual se está brincando. N ão há com bate sem m edo nem Vimos anteriormente com o 0 afeto de vitalidade marcado pela
p red ação sem terror. P ortan to, m edo e terro r realm ente -esquidade da dram atização lúdica trazia consigo potenciais
figurarão nos jo g o s corresp on den tes. O m esm o afeto figu­ transituacionais abarcando territórios existenciais distantes.
rará tam bém do lado da lacuna analógica aberta pela b rin ­ Tratava-se de um signo de potencial. O afeto categórico, por sua
cadeira. Sua figuração em am bos os lados co n stró i a ponte vez, é um signo de poder. O s dois são inseparáveis, com o dois
em seu en trem eio . A situ ação , em todas as suas fa ceta s, lados de uma mesma m oeda gestual.
será banhada p or essa qualidade experien cial sentida por O afeto de vitalidade que expressa o entusiasmo do corpo
toda parte. A m ordiscada de brincadeira diz “ isto não é uma estabelece uma conexão transindividual.66 A transformação-m-
m ordida” (este ato não denota aquilo que iria denotar). Ao -loco que acom panha o início da brincadeira não atinge um
m esm o tem po, diz categoricam en te: “ esta, no entanto, é sem atingir o outro. Ao atingir um, atinge dois (pelo menos
um a situação de m edo” . A verdade afetiva é a garantia do dois). A transindividualidade dessa transform ação é o que
entusiasm o do corpo do parceiro de brincadeira. Sem isso tom a a brincadeira um processo fundamentalmente relacionai,
o jo g o careceria de intensidade. O afeto categórico na brin­ a partir do m om ento em que é disparado o seu m ovim ento.
cadeira é o ferm ento que perm ite que o afeto de vitalidade Sua relacionalidade se prolonga potencialm ente numa cone­
ven h a à tona. N ão fo sse assim , a fo rça in dutiva do gesto xão transsituacional. No movimento da brincadeira, territórios
lúdico seria insignificante, a transform ação-in-loco que car­ existenciais se cruzam enativam ente e se m odulam m utua­
rega a força do jo go não daria em nada. mente, através de suas diferenças, arrastados na direção de
O mesmo afeto categórico transpassa o acontecimento, mas novas expressões de suas form as dinâm icas — cada novo
não de forma homogênea. É assim etricam ente distribuído, é m ovim ento de brincadeira tendo o valor de um m ovim ento
diferencialm ente distribuído na afetação dos papéis: assus­ de luta em potencial improvisacional. A brincadeira se torna
tador/assustado, caçador/caçado, perseguidor/perseguido. A combatesca, enquanto o combate se torna lúdico. É uma ques­
tão de desterritorialização recíproca, cada arena diferencial­
m ente prolongada na outra. Essa dupla desterritorialização é
65 Sobre a distinção entre o afeto de vitalidade e os afetos categóricos enquanto
o próprio m ovim ento da abstração vivida, m obilizando a si
equiparados à emoção, cf. Stern (The Interpersonal World ofthe Infant op. cit., pp.
53-57; Forms ofVitality: Exploring Dynamic Experience in Psychology, the Arts, Psycho-
tkerapy, and Development. Oxford: Oxford University Press, 2010, pp. 27-28). Sobre 66 Sobre a teoria da transindividualidade, cf. Simondon, Uinformation à la lumière
a necessidade de distinguir o afeto, em geral, da emoção, cf. “The Autonomy o f des noticms deforme et d’information. Grenoble: Millon, 2005, pp. 251-316; e Muriel
Affect” in Parablesfor the Virtual: Movement, Affect, Sensation. Durham: Duke Uni­ Combes, Gilhert Simondon and the Philosophy ofthe Transindividual, trad. ing. de
versity Press, 2002, pp. 23-45). Thomas Lamarre. Cambridge: m i t Press, 2013, p p . 25-50.

54 55
m esm a rum o à invenção. Ela reforça e estende a principal Em um a situ ação de não brincadeira, o afeto categórico
lacuna entre o que um gesto denota e o que iria denotar. E o registra o im p erativo de viver o a co n te cim e n to na chave
que torna significativa a mínima diferença que separa o que ex p e rie n cia l d o m in a n te, na qu al a situ ação co stu m e ira -
é daquilo que poderia ser — que o gesto lúdico inclui no seu m en te se d esd o b ra. Em um a situ ação de m edo que não
próprio fazer. É a form a da força criativa desencadeada pela seja de brin cad eira, sen tim o s d ireta m en te o im p erativo
brincadeira. É o que garante o circuito potencializante entre para lutar ou fugir. C ada fibra de nossa existên cia é inter­
o presente e o futuro. p elad a. In d u zid o s ao p ró x im o a co n te c im e n to , nós nos
O afeto categórico p reenche a lacuna que é aberta pelo p rep aram o s e m ergu lh am o s. T em os a o b rig a çã o de agir,
afeto de vitalidade e que se estende numa desterritorializa- co locan d o tod as as nossas forças e habilidades, em nom e
ção recíproca. É a qualidade as simetricamente compartilhada de o n o sso a p e tite p ela vid a ser ca p a z de co n tin u ar em
da experiência, envolvendo a situação evolutiva por todos os seu cam inho de autocondução para o futuro. N ossas ações
lados, de uma ponta a outra. Contribui com o “o que” que a in iciais ab so rvem o a fe to ca te g ó rico d ad o, fa ze n d o sua
abstração vivida desterritorializa e se encontra por todos os tra n sd u çã o im ed iata em v e to re s de ativid ade ancorad os
lados, dando conteúdo qualificado e situacional ao aconteci­ na situ ação e orien tad o s ao a co n te cim e n to recém -com e-
m ento estendido. O afeto categórico é a determ inação im e­ çado. Essa transd ução do conteú do qualificando a situação
diatamente sentida do que a vida é de fato na complexidade para um relançam en to da atividade expressiva ancorada e
acontecim ental do m om ento.67 orientada é a produção da corporalidade do acon tecim en to.
É co m essa corporalid ad e, lu d icam en te reinduzida, que a
67 A distinção sugerida aqui entre forma e conteúdo não deveria ser tomada brincadeira brinca. A brincadeira registra o im perativo de
como uma validação da visão “hilemórfica” tradicional de que a forma é abstrata viver o acon tecim en to no tom experien cial dom inante da
enquanto o conteúdo é concreto — com a forma entendida como um tipo de
molde que impõe um formato à matéria informe. Forma e conteúdo têm de ser situ ação com a qual se brinca, enquan to tom ada no m ovi­
pensados aqui do modo como Deleuze e Guattari os repensam, seguindo Hjel- m en to tran ssitu acion al ca ra cterístico da brincadeira. Ele
mslev, que desloca a distinção para forma e expressão. Tanto conteúdo quanto
refrata a absorção do afeto categórico.
expressão possuem formas, e elas estão em “pressuposição recíproca” . Ambos
também possuem substância, fazendo da sua pressuposição recíproca um ninho Vale a pena interrom per aqui para ressaltar dois pontos.
de complexos imbricados de forma-matéria. Assim, conteúdo e expressão per­ Prim eiro, com o o exem plo do m edo indica, o “ entusiasm o
manecem heterogêneos entre si, embora ocorrendo estritamente de modo con­
do corpo” , expressão do afeto de vitalidade da brincadeira,
junto. Aqui o afeto categórico, como um tipo reconhecível de emoção, como o
medo, seria a “forma do conteúdo”. Seu sentimento vivido de modo agitado seria não pode ser concebido em nenhuma relação um para um no
uma “substância do conteúdo” . O ponto é que esse afeto de vitalidade é a forma que se refere a um afeto categórico particular. A vitalidade
da expressão do afeto categórico, e ao mesmo tempo constitui o seu próprio
sentimento, irredutível ao afeto categórico que ele expressa no acontecimento.
Sobre forma/substância do conteúdo/expressão, cf. Deleuze e Guattari (Milplatôs,
v. 1, trad. bras. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. crítica ao modelo hilemórfico, cf. Simondon, Uinformation à la lumière des notions
São Paulo: Editora 34,1995, pp. 56-58; Mil platôs, v. 2, trad. bras. de Ana Lúcia de deforme et d’informatwn op. cit., pp. 39-51) e Combes, Gilbert Simondon and the
Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995, pp. 33-40). Sobre a Philosophy ofthe Transindividual, op. cit., pp. 1-6.

56 57
afetiva é intensa, mas não necessariam ente “feliz” . A brinca­ por outro lado, é produzida no, pelo e para o acontecimento. É
deira, com o aponta Huizinga, não é redutível à “diversão” em menos uma encarnação de algo de fora do que uma incorpora­
qualquer sentido categórico, e com certeza não no sentido ção no acontecimento, de uma vida adentrando um novo ritmo
do insípido deleite que a palavra assumiu em sua utilização de seu próprio devir, registrando os imperativos dessa situação.
contem porân ea.68 Segundo, tam bém é n ecessário se valer A corporalidade não é separável da ação ou da form a de
advertidamente da distinção entre situações de “brincadeira” expressão da dinâm ica da ação, que é o afeto de vitalidade.
e de “não brincadeira” . C om o dem onstrou a discussão sobre A corporalidade é a “ sobredade” im ediatam ente sentida da
o circuito reciprocam ente potencializante entre brincadeira expressão de vitalidade. Sua absorção de sobredade atrela
e com bate, brincadeira e não brincadeira não são categorias sua gênese ao afeto categórico. A corporalidade emerge com o
m utuam ente excludentes. Com o tudo nesta explanação, elas sentimento, do afeto categórico, de ancoragem obrigatória na
estão numa relação dinâm ica de m útua inclusão. São corre- situação; e com a tangibilidade dos imperativos que ocorrem
latos processuais coim plicados. Isso não é um a conclusão, com 0 território. O obrigatório, o imperativo: o importante. A
mas um ponto de partida: um a problem atização. O modo da corporalidade é importância vivida. O afeto de vitalidade, como
m útua inclusão deve ser repensado em cada caso. Dado um dito anteriormente, corresponde à abstração vivida e à dester-
gesto lúdico, o problem a que se deve atacar é qual variante ritorialização associada ao seu desempenho. A corporalidade
de mútua inclusão ele produziu. com o im portância vivida é um acom panhamento necessário
Voltando à corporalidade, ela absorve os im perativos da ao jogo vital de abstração que comunica à situação quais graus
situação em sua própria produção, detalhando progressiva­ de liberdade podem, a partir dela, ser -esquizados.70
mente o conteúdo singular desse acontecimento à medida que
o desdobra imperativamente em sua chave categórico-afetiva Cf. a crítica feita por Maxine Sheets-Johnstone das conotações de encarnação
dom inante. A palavra “ corporalidade” é preferível a “cor- nos estudos de cognição corporificada (Sheets-Johnstone, The Corporeal Tum: An
Interdisciplinary Reader. Exeter: Imprint Academic, 2009, p. 221; “Animation: the
poralização” . Corporalização tem conotações de encarnação,
Fundamental, Essential, and Properly Descriptive Concept”. Continental Pkilosophy
com o se o corpo fosse um receptáculo vazio no qual é vertido Review n2 42, 2009 , pp. 377,394-395). Aqui preferimos o adjetivo “ incorporado” a
algum conteúdo idealm ente preexistente.69 A corporalidade, “corporificado” . Este, quando utilizado, o foi com reservas.
70 O conceito de “importância” dialoga aqui com Whitehead: “o sentido de impor­
tância (ou interesse) está embutido no próprio ser da experiência animal” (Whi­
68 O divertimento do jogo “ resiste a toda análise e interpretação lógicas” (Huizinga, tehead, Modes ofThought. Nova York: Free Press, 1968, p. 9). Da mesma forma
Homo Ludens op. cit., p. 5). Como um conceito, não pode ser reduzido a nenhuma Whitehead fundamenta a importância nos imperativos da situação que estão dados.
outra categoria mental. Para os presentes propósitos, essa declaração precisa ser “A pura questão de fato”, “o caráter inescapável da questão de fato”, é a “base da
especificada: O divertimento do jogo resiste a toda análise categórica e interpretação importância” (p. 4). Ao mesmo tempo, Whitehead enfatiza a vetorização da impor­
lógica predicada na mútua exclusão. tância em uma direção distinta do “ determinismo compulsivo” (p. 7) da questão
69 Uma teoria não cognitiva não pode falar em “ a carne” ou “o corpo” como encar­ de fato, em direção à criatividade, aberta para o futuro (cf. Stengers, Thinkingwith
nando sentimentos ou ideias e sendo inspirados por eles. Qualquer conotação Whitehead: A Free and Wíld Creation ofConcepts, trad. ing. de Michael Chase. Cam-
de encarnação reintroduz sub-repticiamente o dualismo mente/ corpo. O uso do bridge: Harvard University Press, 2011, pp. 236-237). Assim, “temos de explicar os
termo “corporificado” cai geralmente nessa armadilha, a despeito de si mesmo. diversos sentidos em que liberdade e necessidade podem coexistir” (Whitehead,

58 59
A im portância vivida é um entendim ento não cognitivo ao afeto de vitalidade em sua relação com a -esquidade. A
do que se passa nessa situação, uma situação com uma ação corporalidade é um dos fatores refletidos no afeto de vitali­
corporal ocorrendo. E diretam ente incorporada no acon te­ dade. O afeto de vitalidade confere à corporalidade, por acaso,
cim ento em um registro afetivo, sem nenhum traço de refle­ uma virada supernorm al que eqüivale a um com entário per-
xão.71 O elem ento de reflexividade pertence, particularmente, form ativo sobre ela. A intensidade corpórea do lançam ento
obrigatório à ação, subscrito por um afeto categórico com o
Modes ofThought op. cit., p. 5). Whitehead utiliza a expressão “ a importância vivida o medo, o arrim o de um a vida nesse pulso de ação na chave
das coisas sentidas” na p. 11. A própria importância vivida carrega um grau de im perativa de afetividade, ressoa com a intensidade expres­
abstração, na medida em que equipara a situação com outras do seu tipo cate­
siva do entusiasm o do corpo do afeto de vitalidade. A inten­
goricamente afetivo. Trata-se do grau mais baixo de abstração que consiste na
postulação de uma generalidade: a identificabilidade do afeto categórico é o que sidade geral do acontecim ento é amplificada pela tensão que
um número de situações tem em comum. Ele registra sua mesmidade sentida, a resulta do feeáback entre os dois polos.72
despeito de suas diferenças. Particularmente, registra a mesmidade de situações
O que é com um ente chamado de “corpo” é a corporíficação
passadas, já vividas, para a vivência da situação presente. Já que cada situação é
concretamente dada com suas diferenças em relação a todas as outras, a experi­ do acontecim ento através dessa tensão. A vida é tensam ente
ência da mesmidade se qualifica como uma ultrapassagem do que está dado, que esticada entre sua ancoragem obrigatória nos imperativos de
era a definição de mentalidade. A importância vivida envolve a operação mental de
reconhecimento como o grau de abstração mais baixo na vida animal. Desse ponto
de vista, a importância vivida pode ser considerada como estando no mesmo con- 72 Para uma explanação completa sobre a relação entre afeto categórico e afeto
tinuum que a abstração vivida, a qual, não obstante, é qualitativamente distinta da de vitalidade é crucial evitar qualquer implicação de linearidade entre eles, como
importância vivida, na medida em que registra a singularidade da situação — não se o conteúdo categórico-afetivo viesse primeiro e o afeto de vitalidade, em
sua mesmidade sentida, mas sua diferenciação sentida. segundo, para fazer sua transdução. De fato, é apenas retrospectivamente que
71 A conhecida e difamada teoria da emoção de James-Lange é uma maneira de essas duas dimensões do acontecimento podem ser separadas. Na agitação de
pensar acerca da imediatez não reflexiva do entendimento vivido da importância um acontecimento, elas ocorrem em conjunto numa zona de indiscernibilidade.
mencionado há pouco. A teoria é encapsulada na seguinte fórmula: “não corre­ O afeto categórico coincide com um relançamento da atividade expressiva anco­
mos porque temos medo, temos medo porque corremos”. Isso é frequentemente rada e orientada, que é precisamente o que é registrado como afeto de vitalidade.
interpretado como uma declaração de reducionismo fisiológico. Não é. Para Afeto categórico e vitalidade são realmente distintos, mas não podem ser anali­
James, o ponto é que de fato esse sentimento de medo se nivela com a ação, que sados em separado. Por acaso, eles se juntam. Retrospectivamente é outra his­
registra em sua orientação imediata a importância vivida da situação (um urso na tória. Parafraseando Whitehead, “esse sentimento temeroso” (afeto categórico
trilha à nossa frente...). “Minha teoria [...] é que as mudanças corporais seguem e afeto de vitalidade ocorrendo conjuntamente como experiência), retrospecti­
diretamente a percepção do fato excitante, e que 0 nosso sentimento das mesmas vamente, torna-se “ aquele sentimento de medo” (um conteúdo especificado na
mudanças, enquanto elas ocorrem, s ã o a emoção” (James, The Principies ofPsy- experiência). Para uma análise dessa coimplicação processual em evolução do
chology,v. 2. Nova York: Dover, 1950, p. 449). Olhando por esse ângulo da descarga afeto de vitalidade e do afeto categórico (correspondendo à “emoção” no pre­
de emoção com a de ação, com uma consciência de mudança sendo sentida (que, sente vocabulário) analisada no nível político, cf. Massumi (“ Fear (The Spectrum
no presente vocabulário, chama-se mais de afeto que de “emoção”), a teoria de Said)”. Positions: EastAsia Cultures Critique, edição especial “Against Preemptive
James-Lange pode ser considerada não um reducionismo fisiológico, mas uma War”, v. 13, nE3, 2005, pp. 31-48.; para a referência de Whitehead, cf. ibid., nota
teoria da corporalidade, entendida aqui como um modo do pensar-sentir em toda 10, p. 48). A situação política em questão (a política do terror de Bush) poderia
a sua imediatez. Vale notar, de passagem, que James situa instinto e “ emoção” parecer qualquer coisa, menos lúdica, mas boa parte da análise da brincadeira
(afeto) em uma mútua inclusão através de uma zona de indistinção: “Reações aqui desenvolvida poderia ser aplicada a ela, mediante ajustes apropriados em
instintivas e expressões emocionais lançam sombra imperceptivelmente uma na vista de entender o “jogo” da política (seus poderes de falsidade, suas forças de
outra. Todo objeto que excita um instinto excita também uma emoção” (p. 442). abstração inventiva).

60 61
dada situação e a tendência supernormal, arrancando, de cada O fracasso de um gesto lúdico numa luta de brincadeira
volta e de cada reviravolta na ação, uma oferta de liberdade. pode ser pensado nesses term os. Quando o gesto lúdico fra­
Não há “ o corpo” . Há uma vida — esticada com o um elástico cassa e 0 jogo se torna o seu análogo, é porque o peso do afeto
entre os polos afetivos contrastantes entre os quais se dará categórico ficou muito grande. O im perativo a ele associado
a determ inação progressiva do acon tecim en to.73 Corporifi- foi sentido com muito pathos, tropeçando na tendência super­
car é estar nessa situação, sendo puxado em duas direções normal. A atração da verdade corpórea da situação era forte
de um a só vez: de um lado, ancorado no que está dado; de demais. O gesto incorporado, em dem asiada conform idade
outro, tendendo a arranjar um jeito de superá-lo; o recuo da com os imperativos sentidos da arena de atividade com a qual
necessidade estabelecida e o avanço para o novo. Em outras se brinca. Os imperativos da situação análoga de medo dizem
palavras: aquiescência ao que não é opcional, de um lado, e a “ morda, de verdade”. A brincadeira diz “mordisque, com estilo”.
espontaneidade da apetição, de outro; pathos (o sentim ento Quando a mordiscada de brincadeira é verdadeira demais, o
aferrante de aquiescência ao não opcional) e a fuga da fanta­ jo go é arrastado por um a m ordida que, agora, denota uma
sia da paixão; incorporação à dadidade do acontecim ento e mordida. A -esquidade do afeto de vitalidade é insuficiente
a artificiação de uma via através disso com um entusiasm o para manter a suspensão do combate. A forma dominante do
supernormal; a corporalidade da im portância vivida e a vita­ combate não só é modulada de dentro, ela toma conta, obriga
lidade da abstração vivida, em acidental tensão produtiva. O o acontecimento a ele mesmo. A tensão entre incorporar a um
que ocorre efetivam ente é com o essa tensão se resolve. Para­ acontecim ento e arranjar uma via supernormal para atraves­
doxalm ente, por essa definição, “ o” corpo não é redutível à sá-lo pende muito para a primeira. A lacuna da brincadeira se
corporalidade. Reestilizado com o corporalização, “ o corpo” fecha. O paradoxo colapsa na seriedade; o poder do falso, na
inclui o m ovim ento através do qual a corporalidade supera a veracidade. A diferença mínima entre o que o gesto denota e o
si mesma: inclui o polo mental do acontecim ento.74 que iria denotar é apagada. É um caso de demasiada corporali­
dade, sem exercício suficiente do poder mental para fazer uma
73 Sobre o conceito de “uma vida”, cf. Deleuze (Dois regimes de loucos, trad. bras. de virada supernormal rumo à corporalização. Muita importância
Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34,2016, pp. 407-413). vivida (porém, inapropriada) e pouca abstração vivida. Uma
74 Tal como utilizado aqui, corporalidade evoca em linhas gerais o que Whitehead corporalização muito pouco imaginativa.
chama de “polo físico” de um acontecimento. O “polo mental” contrastante é
incorpóreo. O corpo é o que se estende entre eles e é determinado pelo exercício Ainda que a im portância vivida seja um entendim ento não
dessa tensão. O corpo não se reduz ao corpóreo, que, por sua vez, não é redutível cognitivo, im ediata dem ais em seu conjunto não opcional
ao físico entendido no sentido usual, já que (tal como explicado no corpo do texto
e na nota 71, p. 60) o corpóreo como importância vivida envolve um modo de
entendimento e, portanto, pode ser pensado como um grau de mentalidade. Corre- sem desfazer a tensão entre eles. Pensar o corpo, nessa abordagem, requer um
lativamente, o incorpóreo é guiado pela tendência supernormal de reincorporação “ materialismo do incorporai”, afinado ao paradoxo processual produtivo (cf. Mas­
em acontecimentos futuros, produzindo, assim, variações na corporalidade. Reco­ sumi, Parablesfor the Virtual, op. cit., pp. 5-6,16). O termo tem sua origem em
nhecendo essas mútuas inclusões processuais do corpóreo e do incorpóreo, situa Foucault (A ordem do discurso, trad. bras. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
os dois polos num continuum, ao mesmo tempo em que respeita suas diferenças, Paulo: Loyola, 1999, p. 58).

62 63
com o acontecim ento para constituir uma reflexão, com o um medida em que pertence ao campo da consciência, “nem por
entendim ento ela ainda se qualifica com o um ato de pensa­ isso [...] está situado fora dos lim ites do espírito”.77 Há nele
mento. É pensamento em seu grau mais ínfimo de criatividade, um lam pejo de m entalidade. O instinto é um m odo do pen­
ancorado em um reconhecim ento do que está dado, ou seja, sar, um que envolve o fazer. Sendo diretam ente vivido, antes
afinado com a m esm idade do presente ao passado. A abstra­ gestualizado do que representado, sua mentalidade é de um
ção vivida, em contrapartida, é voltada para o futuro, num grau que por natureza resiste à definição cognitiva. Sempre
pensar enativo do novo. Tam bém é um entendim ento não há algo extra nele, na m edida em que ele entusiasticam ente
cognitivo, mas numa ação orientada para o futuro. elude a referenciação cognitiva. É sempre um pensar-sentir
E o que é a intuição, senão a cooperação de ambos? Um a excedendo a denotação.
liga feita de ambos? U m a dupla dosagem do acontecim ento Com o vim os na análise dos estím ulos supernormais, o ins­
com am bos — mas com um elem ento extra do lado da abs­ tin to pensa gestualm ente em blocos qualitativos. Seus ges­
tração vivida, enviesando o acontecimento mais na direção da tos se efetuam e envolvem um “arranjo novo de elem entos
desterritorialização criativa do que da ancoragem obrigatória. antigos” de maneira correlativa.78 Ele está associado a blocos
O que é a intuição, senão uma corporalização criativa? Uma de relação, conjuntos de qualidades experienciais integral­
corporalização que se faz numa realização do novo? m ente conectadas. A ssociando-se a essas qualidades, “ dis­
Para Bergson, o instinto só pode ser pensado em relação tin g u e ] propriedades” em vez de objetos de percepção.79 Ele
à intuição. Ele define o instinto com o a intuição que é mais singulariza as propriedades sob um a deform ação relacionai
“vivida do que representada”.75 Intuição vivida. U m a intuição que tende à variação, em vez de perceber objetos discretos
que é antes representada do que vivida seria um a cognição, no m odo do reconhecim ento. Isso confere ao instinto o seu
ocorrendo num nível reflexivo da vida m uito diferente, no poder mental, novam ente no sentido da capacidade de supe­
qual o pensar não está nivelado com o fazer, e as palavras ou rar o que está dado: confere a ele a inclinação constitutiva
imagens que o representam são capazes de sacudir o m odo para o supernormal. O instinto sempre tem um primeiro grau
condicional do p erform ativo a fim de efetivam ente e n tre­ de m entalidade apetitiva, um a fom e pelo supernorm al, por
gar com o denotação aquilo que eles denotam . E tam bém mais sobrecarregado e fixado que ele possa estar pela corpo­
um pensar que supera o que está dado, chegando a novas ralidade herdada e sua inclinação para a mesmidade. No caso
con clusões, mas que consegue p erm an ecer no m odo refe­ do instinto, a corporalidade assume a form a herdada de uma
rencial. Vividas e/ou representadas, as intuições pertencem m em ória genética dos im perativos adaptativos de situações
ao cam po ativo da consciência (a consciência é som ente isto,
um “cam po” de atividade, não um a coisa).76 O “ instinto”, na
77 Ibid., p. 190.

75 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 190. 78 Ibid., p. 33.

76 Ibid., p. 194. 79 Ibid., p. 206.

64 65
passadas, reativadas p or um a percepção do presente.80 É a A parte da formulação referente ao que “ainda não pode ser
tendência apetitiva do supernormal de adentrar o ato instin­ conhecido” concerne à “ extensão” , que ocorre precisam ente
tivo que salva o instinto de ser a ação estereotipada de reflexo no e através d o acontecim ento. Transportados ao coração
que é, em geral, reputado a ser. do acontecim ento, somos movidos por aquilo que sucede. O
Bergson propõe um conceito desenvolvido para substituir que está por vir já está fluindo. Mas o que está fluindo ainda
a noção de “cognição” , lamentavelmente tão mal posicionada está presente apenas nos primeiros indícios de potencial. O
no que se refere ao instinto com o intuição vivida. O instinto, potencial está sendo ativam en te expresso, mas com o um
afirma Bergson, não é cognitivo. Ele é simpático. E ele não m ovim ento do ainda-inexprimível, posto que ainda está por
poderia dizer mais claramente: “ o instinto é simpatia”.81 “Cha­ vir. C om o intuição vivida, o instinto é a expressão g esticu ­
mamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos lada do ainda-inexprim ível; envolve um vivido pensar-fazer
para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que do m ovim ento irrestrito da expressão, ancorado na situação,
ele tem de único e, por conseguinte, de inexprim ível.82 Para bem no seu núcleo, mas levando tendencialm ente para além
os propósitos de nosso projeto, é necessário acrescentar uma do que nele está então dado.
correção a essa definição, assim com o propor um a extensão. O que a intuição acrescenta ao instinto é a corporalidade
A correção diz respeito ao term o “objeto” . Se o pensam ento da situação presente. A corporalidade é um polo com ponente
distingue de modo instintivo qualidades experienciais integral­ da intuição, com o definido acima: a tensão corporal entre a
mente interconectadas, de olho em seus devires supemormais abstração vivida da tendência de superar o que está dado e a
potenciais, e não os objetos prontos, seria mais preciso dizer im portância vivida da corporalidade — com uma acentuação
que a simpatia “nos transporta ao coração do acontecimento” . na última. Se o instinto fosse vivido sem um impulso da intui­
Uma formulação mais completa seria: “ chamamos de instinto, ção, só seria capaz de im provisar supernorm alm ente sobre
em seu aspecto de intuição vivida, a simpatia que nos trans­ o já herdado do passado e, na ausência de um a ancoragem
porta, num gesto que efetua uma transform ação-in-loco, ao no presente, seria sempre alucinatório, mesmo com um estí­
coração de um acontecimento único, que é apenas o começo, mulo. A intuição fundam enta a herança corporal do instinto
com o qual a nossa vida irá agora coincidir, mas cujo desfecho do passado na corporalidade do presente, perm itindo que ela
ainda não é conhecido e, consequentemente, expresso — atado, apreenda efetivam ente o potencial supernormal da situação.
como o movimento adiante, à tendência supernormal” . Ela permite que o instinto fatore nos imperativos da situação;
que m anobre, mais efetivam ente, seu apetite supernorm al
80 Cf. nota 34 p. 32, acima, sobre o papel do “traço mnêmico”. além deles. A intuição acrescenta a própria dose de apetitivi-
81 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 191, grifo nosso. dade à m istura (se ela não tivesse o próprio apetite pela vida,
82 Id., O pensamento e 0 movente, trad. bras. de Bento Prado Neto. São Paulo: Mar­ por que se im portaria, antes de tudo, em ser m isturada aos
tins Fontes, 2006, p. 187. Para uma excelente análise da relação entre simpatia
e intuição em Bergson, cf. Lapoujade, Potências do tempo, trad. bras. Hortência
acontecim entos?). A dupla polaridade da intuição capacita
Santos Lencastre. São Paulo: n-i edições, 2017, pp. 61-87. o instinto a fatorar em sua operação o que é im portante no

66 67
presente, enquanto, ao m esm o tem po, mantém a tendência pragmaticamente pela intuição). Na lógica da mútua inclusão,
apetitiva do instinto de superar. Isso aumenta efetivamente a diferença de grau e diferença de tipo são ativamente insepa­
proeza improvisacional do instinto. Faz com que ele se torne ráveis, dois lados da mesm a m oeda processual. O continuum
mais pragmaticam ente apto a apreender o inexprimível, para em que o instinto e a intuição se diferem em graus é o da cor­
-esquizar de form a mais expressiva o seu m ovim ento. Cada poralização animal. A recom binação em que em ergem con ­
ato instintivo vivido carrega um grau de capacitação intuitiva. juntam ente, de novo, para além de suas diferenças de tipo, se
O grau depende de muitos fatores, incluindo o nível de com ­ repete pontualm ente em todo acontecim ento gesticulado da
plexidade evolutiva do animal, mas não se lim itando a isso. corporalização animal.
Pode não ter passado despercebido que as definições de Há um sinônim o de um a só palavra para a m útua inclusão
instin to e intuição se entrecruzam , assim com o, inevitavel­ diferencial: vida. A vida espreita na zo n a de ind iscernibili­
mente, todas as distinções dispostas neste ensaio. O instinto dade do entrecruzam ento das diferenças de todos os tipos
já carrega a ten dência supernorm al — em bora num m odo e graus. A cada pulsação de experiência, com cada recom bi­
alucinatório, se deixado por sua co n ta — cuja acentuação nação que ocorre, em erge um a nova variação no continuum
define a intuição. E a intuição já carrega um a polaridade da vida, estirada por um a m ultiplicidade de distinções de
entre a tendência supernormal e a corporalidade — embora coim plicação. A evolução da vida é um a variação contínua
em outro tem po, mais presente que passado. Com o sempre, atravessando iterações recorrentes, repetindo o estiram ento
não se trata de uma lógica sim ples de separação categorial sem pre co m um a diferença. Por causa desse en trecru za ­
e sua lei autofrustrante do terceiro excluído. É sempre uma m ento recorrente de diferenças conjuntam ente envolvidas,
questão gestualm ente recente de m útua inclusão diferencial a evolução nunca é linear.
de correlatos processuais que se implicam conjuntam ente. A mesma lógica se aplica a todos os term os contrastáveis. O
O paradoxo é sempre o seguinte: dois modos de atividade modo em que fará sentido construir seu contraste, com o uma
em m útua inclusão estão tão interligados a ponto de serem diferença de grau ou uma diferença de tipo, variará de acordo
graus um do outro. Ainda assim, suas diferenças perm ane­ com o problem a e a tarefa de construção de conceitos de que
cem. Quando eles emergem juntos, estão perform ativamente se dispõe. A única form a de evitar essa oscilação é substituir
fundidos sem se confundirem , o que significa que podem se am bos os term os pela noção de diferença moáal, na qual as
recom binar quando acontecer de, perform ativam ente, emer­ distinções a serem feitas são entre m odos de atividade (for­
girem juntos de novo. Portanto, na lógica da m útua inclusão, mas dinâmicas qualitativamente distintas). A diferença modal
pode-se dizer que instinto e intuição estão no m esm o conti- diz respeito aos diferenciais entre as tendências que são varia­
nuum, separados apenas por graus (assim com o foi dito que velm ente coativas em cada acontecim ento, sua coatividade
o instinto é intuição vivida no primeiro grau de mentalidade), expressando-se iterativam ente num a linha em ergente de
e pode-se dizer que se misturam, para além de uma diferença variação contínua. Toda distinção feita neste ensaio situa-se
de tip o (com o quando se diz que o instinto é possibilitado entre tendências contrastantes. A lógica modal é uma lógica

68 69
ativista radicalmente baseada nos acontecim entos que evita iniciativa dos indivíduos, ainda que os indivíduos colaborem
tan to a pressuposição im plícita da substância trazida pela nesse esforço, e não é puram ente acidental” .84 E fácil de ver
noção de “ diferença de tip o ” quanto a con otação de quan­ a transindividualidade do instinto. É evidente que uma cópia
tidade m oderada trazida pela noção de “ diferença de grau” . da coatividade do parceiro de brincadeira é incluída com o
As tendências não são nem substantivas nem quantificáveis. delineamento negativo na -esquidade do gesto lúdico. O gesto
A lógica da m útua inclusão é, em últim a análise, uma lógica lúdico é im potente, a não ser quando captura a atenção do
modal de variação contínua. Essa lógica com eça a germ inar outro. No m odo com o captura a atenção, o gesto rascunha o
em qualquer lugar em que as tendências são levadas a sério delineamento antecipatório dos contram ovim entos que virão
— e, com elas, os fatores qualitativos e subjetivos da natureza. do parceiro. O gesto lúdico é um signo do potencial afetivo
Em especial, a tendência supernormal da brincadeira.83 não somente no animal que o executa, mas tam bém no outro,
Mas tudo isso ainda não nos diz de que form a instinto é cuja própria apetição une forças com a do autor do gesto, com
sim patia. N este ponto da explanação, essa é a questão cru ­ toda a im ediatez da transformação-m-Zoco que o gesto efetua.
cial porque nos coloca bem na direção do objetivo declarado O gesto lúdico implica imediatamente ao menos dois, a certa
deste ensaio: com eçar a expressar o que os animais nos ensi­ distância e em suas diferenças individuais e papéis distintos,
nam sobre política. num vaivém instantâneo de ponto e contraponto dinâmicos.
G om o na presente explanação da anim alidade, Bergson M antendo a lógica da m útua inclusão, pode-se atribuir uma
enfatiza que as operações do instinto são transindividuais, e diferença de tipo à intuição e à simpatia, com o dois lados ou
que não são redutíveis a um a acum ulação de variações aci­ aspectos qualitativam ente diferentes dessa atividade co m ­
dentais: “ o esforço pelo qual uma espécie m odifica seus ins­ partilhada de m útua inclusão transindividual. A intuição é
tin tos e se m odifica tam bém a si m esm a deve ser algo bem tudo o que “desfaz as barreiras do espaço” para efetuar essa
mais profundo e que não depende unicam ente das circun s­ m útua inclusão dinâm ica.85 A simpatia é o devir transindivi­
tâncias nem dos indivíduos. N ão depende unicam ente da dual criado pela exteriorização da intuição. A sim patia é o
modo de existência do terceiro incluído.
83 Sustentar uma lógica modal demanda um nível altíssimo de abstração para ser O ato de intuição inclui dramática e mutuamente ao menos
integralmente praticável, já que requer traduzir substantivos em verbos continua­ duas perspectivas não coincidentes. Ele faz o entrem eio. Na
mente, na contracorrente da maioria das línguas. Essa dificuldade resulta numa
im ediatez de sua enação, já é transindividual, no sentido em
oscilação entre lógica modal e diferença de grau/diferença de tipo. A evolução cria­
dora, de Bergson, é um estudo clássico sobre a lógica modal da mútua inclusão que habita as lacunas entre as perspectivas individuais. Ele
— e a dificuldade de não retroceder para a vacilação lógica. O que muitos leitores consegue isso sem se dirigir a um a dim ensão suplem entar-
interpretam como “ dualidades” ou “ oposições binárias” no pensamento bergso-
niano — e também em Deleuze e Guattari — deve ser reavaliado em termos de m ente mais elevada, que lhe con ced eria um panoram a da
tendências contrastantes na mútua inclusão processual. Isso talvez se aplique mais
significativamente à distinção, em Bergson, entre “matéria” e “memória” ; em Mil
84 Bergson, A evolução criadora, p. 185.
platôs v. 4 op. cit., às distinções deleuzo-guattarianas entre nomadismo/Estado e
liso/estriado; e, em O que é afilosofia op. cit., entre filosofia/arte e conceito/percepto. 85 Ibid., p. 192, tradução modificada.

70 71
situação, com o se estivesse fora dela. Isso é o que a cognição inspeção absoluta é o cam po da consciência, na m edida em
faz. A intuição, na retidão de seu pensar-fazer, atua com o o que o campo da consciência é “ coextensivo à vida” sob a pro­
entremeio imanente abrindo uma brecha na situação. pulsão de sua tendência autocondutora de trazer a si mesmo a
No vocabulário de Ruyer, essa im ediata abrangência dinâ­ uma nova expressão ativa.87 O modo de existência da simpatia
m ica de perspectivas díspares sem o ponto de vista de uma é o ser do pensar-fazer da vida. Deve ser pensado mais como
dimensão suplem entar é chamada de inspeção absoluta (abso­ um verbo do que com o um substantivo, porque na lógica
luta no sentido em que é panoramesco, sem o ponto de vista da m útua inclusão não há nada “por trás” da atividade. Há
externo que faria dela algo m eram ente relativo à situação, apenas m odos de atividade entrelaçados que se diferenciam
numa supervisão externa a isso). “ Inspeção absoluta” é outro com o aspectos ou lados do mesmo acontecim ento.88
nome para o m odo de existência que é a simpatia, induzida a A c o n s c iê n c ia p rim á ria é n ão co g n itiv a e n ão re p re ­
ser, no ato da intuição. Ruyer tam bém a chama de consciência sentativa. L ogicam en te falan do, não é nem in d utiva nem
primária, correspondendo ao prim eiro grau da m entalidade
(para a junção-na-diferença de perspectivas díspares na ins­
87 Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 203. Sobre o ser de relação, cf. Simondon,
peção absoluta, superando a disjuntividade do que está dado,
I/information à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., p. 63. Deleuze
sem apagá-lo).85 Cinema 1 - a imagem-movimento op. cit., no capítulo “A imagem-movimento e suas
N ão é que um animal tenha uma consciência do entrem eio três variedades” , coloca isso nos seguintes termos: a consciência não é de algo
(como na fenomenologia), a consciência é algo (Bergson). O que ela “é”, como
im anente que é a inspeção absoluta da sim patia. Em v e z
veremos no suplemento 2, é “extrasser”.
disso, o entrem eio im anente é a consciência. A consciência 88 É sempre proveitoso recordar a declaração de Nietzsche, eloqüente e frequen­
prim ária é o ser de um prim eiro grau de m entalidade: um temente citada, quanto a esse princípio da autonomia do fazer: “Um quantum de
força eqüivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade — melhor,
ser enativo de relação para entrelaçam ento supernorm al. A
nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob
a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrifi­
caram), a qual entende ou mal entende que todo atuar é determinado por um
86 Cf. Ruyer, Lagenèse desformes vivantes op. cit., pp. 95-131. De sua parte, William atuante, um “sujeito” , é que pode aparecer diferente. Pois assim como o povo
James descreve a natureza da consciência primária como um campo transindivi- distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito
dual de transformação vital pensada-sentida nos seguintes termos: “Aquilo com de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as
o que nós nos identificamos conceitualmente e dizemos que estamos pensando expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente
num momento qualquer é o centro; mas o nosso si-mesmo completo é todo o que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe tal substrato; não
campo, com todas essas possibilidades subconscientes indefinidamente radiantes existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir, “ o agente” é uma ficção acres­
de expansão que apenas podemos sentir sem conceber, e que dificilmente pode­ centada à ação — a ação é tudo” (Nietzsche, Genealogia da moral, trad. bras. de
mos começar a analisar. Os modos coletivos e distributivos de ser coexistem aqui, pois Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 36). A filosofia
cada parte funciona distintamente, faz conexões com sua própria região peculiar ativista na qual o presente projeto de construir uma política animal se funda­
no ainda vasto resto da experiência e tende a nos colocar nessa linha, e ainda menta adere a essa crítica da substância e da lógica de sujeito-predicado a ela
assim o todo é de algum modo sentido como uma pulsação de nossa vida — não associada (que está totalmente a serviço da lógica da mútua exclusão e de suas
concebido como tal, mas sentido” (W. James, A Pluralistic Universe. Lincoln: Uni- separações categoriais). O (pensar-)fazer é tudo; fazer tudo é uma subjetividade-
versity o f Nebraska Press, 1966, p. 132; grifo nosso). Esse pensar-sentir está nive­ -sem-sujeito — um “ desejar, querer, efetuar” sem nada por trás, a não ser seu
lado com o fazer. próprio momentum para diante.

72 73
dedutiva, mas abdutiva.&9 Reproduz as lacunas do entrem eio — não m enos que a cam balhota de um filhote de lobo ou a
im anente com aquele m ínim o de diferença que é a lacuna bicada ávida do pássaro bebê.
condicional entre o que essa vida — à qual a sim patia é coe- Agora tem os todas as peças em seus lugares para levan ­
xten siva — “ é” e “poderia ser” . O ser da consciência inclui tar a questão de: o que os anim ais nos ensinam sobre polí­
essa duplicidade condicional, suspendendo a referência e a tica. Mas é im portante que deixem os claro. Não se trata, de
representação. Isso já a torna reflexiva, na m edida em que o maneira algum a, de repensar a política nos m oldes do jogo.
ato de intuição que o cria já carrega em sua incipiência um A bsolutam ente, não se trata de m odelagem . O que os ani­
m ovim ento vital que reflete a im ediatez do acontecim ento mais nos ensinam sobre política tem a m esm a relação com
em suas possibilidades. a m odelagem da brincadeira que os gestos lúdicos têm com
Instinto é simpatia, em todos os níveis, em todas as suas aquilo que iriam denotar. Trata-se, então, de um a questão de
formas. A bicada do filhote de gaivota-prateada já é um exer­ metamodelização, assim como na brincadeira é uma questão de
cício de simpatia. Ela traça, na própria form a dinâmica, o deli- m etacom unicação.910 que se faz necessário é abrir e manter
neam ento negativo da ação do adulto que a retransmitirá. A uma lacuna entre a teoria da brincadeira animal da qual essa
paixão da jovem gaivota inclui a do adulto, em contraponto reflexão se desdobrou e a política que pode derivar dela. Para
im anente. O m esm o pode ser dito da linguagem hum ana. essa tarefa, não há interesse em flertar com qualquer suposta
Deleuze e Guattari insistem em que até m esm o o mais solitá­ dialética entre brincadeira e combate. A desterritorialização
rio ato de linguagem hum ana carrega, em contraponto im a­ recíproca através da qual a brincadeira se estende pode abran­
nente, todo um “povo por vir” .9° Até m esm o a mais elevada ger diversos dom ínios de atividade e se estende a relações
e elaborada linguagem participa da consciência primária. A interespécies (com o na sim biose). O entrem eio é multiface-
ponta da língua e o dedo que tecla m ergulham nela a cada tado. O entre-dois, que a dialética considera prim ário, é de
meneio. Se instinto é simpatia, então a linguagem é instintiva fato um caso-limite.
Em v e z de m odelar a brincadeira, trata-se de extrair da
89 A abdução, como teorizada por C. S. Peirce, envolve um “julgamento perceptivo” brincadeira o que, na brincadeira, supera a sua dadidade. É
imediato que afeta a singularidade de uma relação ocorrente. Ele fala disso, em necessário extrair o lúdico da brincadeira, a fim de encená­
termos especulativo-pragmáticos, como uma “hipótese” imediatamente vivida: o
-lo de maneira ainda mais extensa e autônoma. É necessário
gesto de abarcar o “é” e o “poderia ser”. O conceito de “abdução” expressa o teor
lógico da consciência primária enquanto pensar-sentir nivelado com 0 fazer subje­
tivo sem sujeito. Cf. Peirce, Pragmatism as a Principie and Method ofRight Thinking:
The 1903 Lectures on Pragmatism. Albany: State University of Nova York Press, 1997, 91 Sobre metamodelização, cf. Guattari Caosmose op. cit., pp. 34-35,42-44,71-89; e
pp. 199-201; The Essential Peirce: Selected Philosopkical Writings, v. 2. Bloomington: Massumi (Semblance and Event op. cit., pp. 103-104). Guattari define a metamode­
University of Indiana Press, 1998, pp. 155,191-195,204-211,226-242 e especialmente lização como “atividade teórica [...] capaz de abarcar a diversidade dos sistemas
pp. 223-234, em que ele comenta o conceito de “abdução” utilizando o exemplo do de modelização” (Caosmose op. cit., p. 34). Ele enfatiza que a metamodelização é,
pensamento canino. por natureza, transindividual: ela “ reside no caráter coletivo das multiplicidades
90 Deleuze e Guattari, Milplatôs, v. 4 op. cit., pp. 162-164; 47-48; O anti-Édipo op. maquínicas” envolvendo uma “ aglomeração de fatores heterogêneos de subjeti-
cit., p. 32. vação” coimplicados num movimento de “desterritorialização” (p. 43).

74 75
co lo c a r o lú d ico num m ovim ento ainda m ais inten so de ideia de p olítica natural já foi totalm ente desbancada pelo
transformação, vibrando com um entusiasmo do corpo ainda pensam ento crítico ao longo do últim o século. Agora é hora
mais vivaz e abrangente. É preciso fazê-lo com gestos de pen­ de relançá-la, -escam ente — m obilizando todos os poderes
sam ento perform ativos. que a falsa natureza provê.
O elem ento lúdico na brincadeira, a -esquidade, traz con­
sigo uma transformação-in-loco transindividual que inicia um
m ovim ento de evolução potencial, que é fundam entalm ente
autoconduzid o, num a autonom ia de expressão inventiva.
Esse é o princípio da prim azia da tendência supernormal na
vida animal. Entretanto, vim os que essa transformação-in-loco
não se inicia sem assegurar que a autonom ia da expressão
seja lastreada p or um a dependência quanto ao que já está
expresso: uma assunção obrigatória dos im perativos da situa­
ção enquanto dada. O foco não deveria estar na noção redu-
tiva de uma dialética entre brincadeira e com bate, mas sim
nessa pressuposição recíproca entre a autonom ia da expres­
são, de um lado, e na dependência quanto ao já expresso, de
outro: entre abstração vivida e im portância vivida.
A abstração vivida através da autonomia da expressão cor­
responde à estética, que, por sua vez, corresponde à superação
do que está dado no m odo condicional de produção de possi­
bilidade. A im portância vivida, de sua parte, corresponde ao
ético: a ancoragem da experiência incorporada nos im perati­
vos expressados naquilo que já está dado.
O que aprendem os dos animais é a possibilidade de cons­
truir o que Guattari chama de paradigma ético-estético da polí­
tica natural (em oposição a um a p olítica da natureza).92 A

verdadeira e inclusivamente representativa (Políticas da natureza: como fazer


92 Sobre o paradigma ético-estético, cf. Guattari (Caosmose op. cit, p. 163). A pers­ ciência na democracia, trad. bras. de Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Edusc,
pectiva contrastante é desenvolvida por Bruno Latour em Políticas da natureza. 2004, p. 23 e passim). Por outro lado, a questão, para Deleuze e Guattari, é reas­
Para Latour, devemos deixar de lado o conceito de “natureza” a fim de poder sumir e reintensificar o continuum natureza-cultura/humano-animal de modo a
aprender como construir um “ mundo comum” , agregando humanos e não huma­ inventar movimentos de singularização irrepresentáveis constituindo uma demo­
nos numa nova instituição democrática que finalmente cumpriria o ideal de ser cracia revolucionária no ato.

76 77
PROPOSIÇÕES O que os animais nos ensinam sobre política
(Esboço preliminar a ser preenchido de acordo com o apetite)

1. Na esteira da obra de Bruno Latour, muitos encamparam o


projeto de integrar às nossas concepções de prática política
uma consideração quanto aos “agentes não humanos”. Alguns,
preocupados em evitar o antropomorfismo implícito de desig­
nar o outro apenas como o negativo do humano, começaram a
falar em “ entidades não convencionais” .1A lição que o filhote
de gaivota-prateada nos ensina é que, quando levam os em
consideração a tendência supernormal que arrebata a todos
nós, hum anos ou não, é necessário reconhecer que somos as
nossas próprias entidades não convencionais. Corolário: somos
capazes de superar o que está dado na exata m edida em que
assumimos a nossa animalidade instintiva.

2. Um a política que reestabeleça os laços com a nossa ani­


malidade, em seu m ovim ento im anente de autossuperação
naturalm ente supernorm al, não pode ser baseada numa ética
normativa, seja ela qual for. A política animal não reconhece
im perativo categórico, vive os im perativos da situação dada,
imanentes a essa situação, e vive em paradoxo. Uma política
como essa não reconhece a sabedoria da utilidade com o crité­
rio de boa conduta. Antes mesmo, afirma o excesso lúdico. Ela
não se atém à proporção áurea; vive excessivam ente fora do

i Cf. o colóquio no Collège International de Philosophie, em que o começo deste


ensaio foi apresentado: Intersections. 3o5 Anniversaire du Collège International
de Philosophie, jornada Écologie: Des entités non-conventionelles. Paris, 15 de junho
de 2013.

79
entrem eio. Seus engajamentos ético-estéticos ocorrem entre dinam icam ente esses dois polos da corporalização coletiva
o tem peram ento im perativo da im portância vivida e a auto­ da vida, é correto dizer que o m ovim ento supernormalizante
nomia do m ovim ento vitalm ente afetiva da abstração vivida, da inventividade vital está a serviço da produção da im portân­
com a última assum indo a primazia. Essa primazia, é crucial cia vivida nas variações em ergentes, assim com o a abstração
salientar, é processual, e não moral. A tendência supernormal vivida avança para longe dos im perativos que advêm com a
é a vanguarda do devir. Ela abre os cam inhos da vida, mas, importância vivida. É uma questão de perspectiva. E com o o
ao m esm o tem po, cada novo caminho aberto amadurece na debate, na teoria neodarwiniana, sobre se o gene está a ser­
form a de um a estrada batida. O que é superado se estab e­ viço da vida ímpar do organismo ou se o organismo está a ser­
lece, se passar no teste da seleção adaptativa. Quando passa viço da reprodução do gene. A resposta lógica m utuam ente
no teste, passa com o captura, a ser posteriorm ente im posta inclusiva é: tanto uma coisa quanto a outra (e não exatamente
com o algo que está dado. É do processo da natureza, e da ambas: uma coisa, a outra e o terceiro incluído da zona pro­
natureza do processo, o excesso lúdico passar à importância. cessual de indiscem ibilidade).
Isso não é nada menos que o processo da natureza, em seu
sentido mais amplo. Logo, não se trata simplesmente de esco­ 3. Da proposição 2 decorre que 0 animal político não reconhece
lher uma em detrim ento da outra, preferindo a autossupera- qualquer oposição rígida entre 0frívolo e 0 sério, ou seja, entre o
ção criativa à dependência em relação ao já-expresso, porque dispêndio entusiástico de energias criativas e a âncora da fun­
cada um a confere disposição à outra. A im portância vivida ção e da utilidade. Ele se alim enta do paradoxo produtivo de
confere à criatividade algo para se arranjar e a criatividade sua aliança processual. A ética-estética não normativa resiste,
devolve o favor com um rendimento de dados recém-cunha- com erupções de propulsão supernormal, às pesadas deman­
dos. O que está dado e o que o supera são articulados na junta das, tão frequentem ente ouvidas, de que as ações de alguém
gestual num ciclo de coprodução, cada um deles destinado ao sejam “relevantes” a todo custo e de que “contribuam com a
outro à sua própria maneira. Afirmar um eqüivale a afirmar sociedade” de uma maneira já reconhecida. A política animal
o ciclo da vida no qual ambos estão mutuam ente incluídos. de educação precisa seriamente brincar com essas demandas.
Superar a ética norm ativa requer refrear a divisão dessas
duas tendências, na tentativa de excluir um a delas (a super­ 4. O pensamento político floresce com a consciência primária
normal, claro), o que sugere procurar caminhos para habitar não cognitiva. É pensam ento em ato, nivelado com o gesto
coletivam ente o entrem eio dinâmico do seu entrelaçam ento vital. A co n sciên cia não cogn itiva é ativamente não repre­
processual, a fim de com por com a sua diferença, reconhe­ sentativa. No entanto, para todos os efeitos, já é reflexiva. E
cen d o a necessid ad e de so brevivên cia da ancoragem na reflexiva no sentido especial de que os gestos que corporaliza
im portância vivida, enquanto puxam as cordas gestuais que deflagram e conservam a lacuna entre o “é” e o “poderia ser” .
ativam a prim azia processual da abstração vivida nas gêne­ Ser e devir refletem -se um no outro na unicidade do gesto
ses das form as de vida. C onsiderando o ciclo que conecta ético-estético. A consciência prim ária é enativa. T udo isso

80 81
sugere uma política do gesto performativo, mesclando-se às processuais com a corporalidade. É crucial registrar essa
práticas de arte improvisacional e participativa no selvagem estranheza, particularm ente quando nos referim os ao que é
(para além do território da galeria). Ético-estético = estético- tradicionalmente considerado o complemento necessário do
-político.2 Essa orientação da política anim al desperta uma sujeito — 0 objeto. A subjetividade processual acontecimental
suspeita em relação a conceitos como o “parlam ento das coi­ aqui em questão não tem nenhum objeto como complemento
sas”, de Bruno Latour. Sobretudo porque o mundo, em ter­ estrutural. Só tem coisas porvir, e são menos “ coisas” do que
mos de fato processual, é mais povoado por acontecim entos suplementos processuais — mais-valia de vida. Sobretudo, não
do que por coisas. O mundo é feito mais primordialmente de deveria haver ilusões de que o poder mental da subjetividade
verbos e advérbios que de substantivos e adjetivos. Ao farejar processual resida numa “m ente” (individual ou coletiva). E
o parlamento das coisas, o acontecimento expressivo do ani­ uma subjetividade não apenas sem uma causa eficiente por trás,
mal já pode rosnar: cheiros de representação.3 Um esforço a mas tam bém sem um sujeito por trás dela. O poder mental
mais para deixar a política não representacional atuar até o dessa subjetividade-sem-sujeito processual pode ser considerado
talo supernormal! espiritual, desde que signifique simplesmente um avivamento
em termos relacionais e intensivos4. Ele comete atos espirituo­
5. A política animal também é obrigada a se distanciar do con­ sos, com os quais coincide totalmente.5
ceito de “agência”. A transindividualidade do processo de devir
vital complica a questão da agência. 0 problema foi assinalado
4 Sobre esse sentido de “ espiritual”, cf. “ No Title Yet” (Manning e Massumi,
anteriormente: nenhuma causa eficiente pode ser isolada por Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of
trás do movimento de autossuperação da experiência. Esse Minnesota Press, 2014, pp. 59-80).

movimento autocondutivo dispara a si mesmo de uma maneira 5 Como mencionado anteriormente, a referência aqui é ao conceito de “polo men­
tal”, tal como desenvolvido por Whitehead. Nunca é demais repetir que o polo
irredutivelmente relacionai. É mais uma questão de catálise mental não é substantivo (o mental, a mente). Ele é um modo de atividade que
do que de causalidade linear. A catálise é experiencial: direta­ sempre compõe conjuntamente, em cada ato, com seu complemento, o polo físico
(correspondente à “ corporalidade” em nosso vocabulário). Esses dois aspectos
mente vivida, num registro qualitativo, no meio transindivi-
de toda e qualquer ocasião estão em envolvimento direto e recíproco, sem um
dual da inspeção absoluta. Sua natureza qualitativa e vivida nos termo ou estrutura de mediação entre eles (seu envolvimento recíproco não é um
obriga a chamá-la de “subjetiva” , apesar de toda estranheza no acoplamento estrutural, mas sim coatividade numa zona de indiscernibilidade na
qual distintos modos de atividade entram em ressonância e interferência). Esses
que tange ao entendimento comum da palavra; e a chamar seu
polos contrastantes não são propriedades de um ser substancial. Em vez disso,
potencial inventivo de superar 0 que está dado de “poder men­ são modalidades constitutivas de acontecimentos no fazer. A falta de mediação
tal”, muito embora esteja no mais estrito dos envolvimentos nessa “fase primária” da ocorrência dos acontecimentos impede qualquer apelo
à representação e à sua companheira de viagem, a cognição, pertencentes àquilo
que Whitehead chamaria de “últimos fatores” a entrarem na constituição das oca­
siões da natureza. “ O conhecimento [usado aqui como sinônimo de ‘cognição’] é
2 Sobre isto, do ponto de vista de uma filosofia ontogenética acontecimental, cf.
relegado à fase intermediária do processo [...] no geral, o conhecimento parece ser
Massumi, Semblance andEventop. cit.
insignificante para além de uma complexidade peculiar na constituição de algumas
3 Cf. acima, nota 92, p. 76. ocasiões atuais” (Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 160-161).

82 83
6. A inda que não norm ativa, a p olítica ético -e sté tica não irritação ou a um estím ulo negativo, por evitação ou negação.6
a co n tece sem critério s de avaliação. A avaliação afeta a Quando a vida sucumbe demais ao jugo da necessidade pática,
intensidade dos potenciais mentais de variação depositados perde o seu em puxo e o pouco de m ais-valia que ele gera.
na brincadeira. Dada a natureza não cognitiva da atividade Quanto mais a atividade da vida está sob a influência da ten­
ético-estética, a avaliação pertence necessariam ente ao afeto. dência pática, mais sofre um déficit correspondente de paixão.
Pertence ao afeto em ambos os aspectos, afeto de vitalidade Não há fundação transcendente para a preferência estético-
e afeto categórico, fazendo o balanço de sua m útua inclusão -política por mais-valia de vida. É que, em geral, entregar a
em cada uma das situações da vida, com o signos de potencial vida de alguém para as labutas do pático dificilm ente vale a
ou signos de poder, respectivamente — estando esses últimos pena. Qualquer coisa que sirva de empuxo à vida percebe isso
correlacionados à autonom ia da expressividade, por um lado, imediatamente. É uma autoevidência sentida que opera como
e à dependência ao já-expresso, por outro. Brincando entre o um critério de avaliação vivido imanente à experiência vital.
ainda-por-vir-em -sua-total-expressão, de um lado, e a dadi-
dade do já-expresso, de outro, a política animal é uma política 7. O entusiasmo do corpo não arrebata um sem arrebatar ao
da expressão indissociável de uma política afetiva. O principal m enos dois. Ele m arca um a transform ação-in-loco instantâ­
critério disponível para as avaliações correspon den tes é o nea que é im ediatam ente transindividual por natureza. Logo,
grau a que o gesto político eleva o entusiasmo do corpo. o paradigm a ético-estético convoca um a política da relação.
A intensidade é o valor suprem o dessa form a de política, Um segundo critério de avaliação deriva disso, intimamente
pela simples razão de ser experienciada com o um valor em si, ligado ao critério da intensidade antipática: aquilo que eleva
um -corpo com os puros signos de tem peram ento do expres-
6 Como utilizado aqui, “pático” e “pathos” (cf. acima, na discussão sobre os afetos
sion esco lúdico. N ão se “fa z ” o en tusiasm o do corpo tal
categóricos; e abaixo, no suplemento 1) estão intimamente relacionados, mas não
com o, no sentido corrente, dizem os que “fazem os” política. são sinônimos (ambos derivam da palavra grega para “sentimento”, seus cognatos
O entusiasm o do corpo é vivido em si e para si, puram ente modernos carregando uma forte conotação de sofrimento passivo). O pático é defi­
nido aqui como atividade reduzida à reação negativa de evitação diante da dor ou
pela nova qualidade que ele confere ao desenrolar da expe­ da irritação, ou aos mecanismos de negação que emergem dessas reações. Pathos é
riência e, especialm ente, por sua intensidade, aquele detalhe o sentimento de submersão que advém com a predominância de uma reatividade
a mais. O elem ento em excesso da intensidade de um ato pática na vida de alguém. O pático é a forma dinâmica da reatividade (o exercício
exclusivamente negativo do poder mental quando a sua atividade é limitada à rea­
constitui, em si, uma mais-valia de vida imediata; e, em seu ção). O pathos é o afeto categórico associado a arenas dominadas pelo pático. A defi­
desdobram ento, um a m ais-valia de vida em ergente ainda- nição do pático, aqui, em termos de mentalidade, é outra advertência de que não há
uma reatividade puramente fisiológica, como está geralmente implícito no conceito
-por-vir — ele vale por dois.
de “ reflexo” . Tampouco há atividade puramente fisiológica, sendo a mentalidade e
A afirmação gesticulada junto com o entusiasmo do corpo é, a fisicalidade polos contrastantes mutuamente incluídos, de uma maneira ou outra,
de uma só vez, ética e política. Em sua ausência, a vida tende a por mais insignificante que o polo mental possa ser, em todo acontecimento de
corporalização. Guattari utiliza “pático” num sentido diferente, como sinônimo da
atolar na tendência pática de responder corporalmente a uma consciência afetiva primária da intuição; logo, num sentido mais próximo ao modo
como aqui é utilizado o termo “ simpatia” (Caosmose op. cit., pp. 42-43).

84 85
a m útua inclusão dos díspares e dos diferentes a um a potên­ fundam entalm ente situacional. Mas há uma diferença impor­
cia maior deve ser afirmado. Isso envolve gestos dotados de tante entre contexto e situação.8
-esquidade que produzem graus mais altos de copossibilidade, “C ontexto” é um conceito geral. Tem a ver com aquilo que
abrangendo mais panoramas imanentes de inspeção absoluta está em butido in loco de uma maneira geral particular àquele
desdobráveis em proliferações de variação. Implica intensi­ lugar — isto é, de um a maneira que se aplica geralm ente ao
ficar a vida envolvendo, em cada circuito de potencialização que ali ocorre. O que ocorre é então considerado adequa­
recíproca, um núm ero crescente de territórios existenciais, damente entendido com o uma instância particular da regra
tendendo ao m áxim o supernorm al, partilhando a m ais-va­ geral. Quando os im perativos in loco num dado contexto são
lia de vida o mais amplamente que os artifícios de abstração analisados, é tipicam ente em term os de códigos form ais e
vivida possam permitir. W hitehead define a direção apetitiva inform ais governando interações de fundo e os papéis que
do movimento da vida com o uma meta de intensificação, que, por convenção lhes são associados. Um código é uma abstra­
por sua vez, ele define em term os da capacidade de um devir ção cuja forma regente em geral preexiste aos particulares de
manter em si mesmo o máximo de termos contrastantes sem sua enação contextual (isso é verdadeiro até quando o código
im por a eles a lei do terceiro excluído. Ele equaliza essa meta é com binatório ou gerativo, no sentido estruturalista). Uma
de intensificação (aqui, a tendência supernorm al) com o o situação, por outro lado, tem a ver com singularidade, e não
processo estético da apetição, que, posteriorm ente, equipara com particularidade.
ao “progresso” ético.7 A política animal é um a ético-estética O singular se encontra em oposição tan to ao particular
da autocondução da apetição por excessos im anentes cada quanto ao geral (eles vêm num pacote). Tudo numa situação
vez mais inclusivos. é potencialm ente arrebatado no m ovim ento de enação, com
uma abertura para a form a final que ainda será determinada,
8. A exortação é geralm ente considerada, tanto na política num devir singular catalisado pelos gestos perform ativos que
quanto na teoria cultural, verdadeira ao contexto das ações ganham forma. Essa singularização afeta até m esm o p oten­
de alguém, levando conscientem ente em consideração a his­ cialm ente os códigos in loco, suscetíveis aos próprios devires,
tória e o habitus do lugar, admitindo as obrigações implícitas através de suspensões supernorm ais de sua form a já dada.
em butidas nisso. Essa exortação virou um a toada fam iliar e As situações não são de conform ação (aplicação que produz
é muito frequentem ente repetida com o um refrão, num tom conformidade de uma regra), mas de in-formação (um tomar-
de devoção. O animal político reconhece vivam ente os im pe­ -forma ou buscar-form a imanente à ação situada).
rativos do contexto em que se encontra (sob o aspecto ena- O m ovim ento em direção à determinação de novas formas,
tivo da “corporalidade”). A ético-estética da política animal é ou variações das form as existen tes, atravessa tendencial-
mente a situação rumo a uma situação nova e diferente que
7 Sobre todos esses pontos, cf. Whitehead (Adventures ofldeas. Nova York: Free
Press, 1967, pp. 252-264; Process and Reality op. cit., pp. 162-163,279-280). 8 Massumi, Parablesfor the Virtual op. cit., pp. 212-213.

86 87
irá sucedê-la. Isso envolve potencialm ente um a passagem de A m icropolítica é a dimensão dos acontecimentos na qual
uma de atividade para outra. O movimento de in-formação é as tendências supernormais de decodificação e desterritoria­
transsituacional por natureza. Se o processo in-formacional lização tornam -se excessivam ente sentidas. O micropolítico
repete formas dadas ou padrões formais herdados, é somente não é o oposto do m acropolítico, mas sim seu correlato pro­
porque o movimento transsituacional pôde regenerar a forma cessual. N ão faz sentido falar do m icropolítico fora de sua
prévia do que está dado através de meios im anentes, recor­ m útua inclusão com o m acropolítico — o nível dos códigos e
rendo aos próprios recursos processuais. O que é pensado das regras gerais e éticas normativas — , assim como não faz
com o aplicação conformativa de uma regra preexistente é, na sentido separar a abstração vivida da corporalidade ou o afeto
verdade, processualmente falando, um tornar-se limitado aos categórico do afeto de vitalidade. M as tam bém é crucial ter
estreitos parâm etros dispostos por um im perativo herdado em mente que a m útua inclusão do macro e do micropolítico,
de voltar a fazer brotarem as formas do passado. A codifica­ assim com o toda mútua inclusão, não é somente diferencial,
ção, desse ponto de vista, é o mais baixo grau lim itante da mas tam bém assimétrica. Há um excesso criativo de intensi­
ten dência supernorm al. W hitehead explica que o que fa ci­ dade do lado do m icropolítico. O m icropolítico é da ordem
lita essa conform ação portadora de código ao passado (o que do gesto vital, supernormalmente orientado. O macropolítico
neste ensaio foi analisado com o uma dependência ou aquies­ é da ordem da conform ação. Portanto, a distinção entre eles
cência ao que está dado) não é a perm anência no lugar das não é de escala, mas de modos de atividade qualitativamente
form as já determinadas, tam pouco suas transm issões com o diferentes ou de tendências contrastantes.
entidades prontas, mas sim germ es de in-form ação, busca- A dupla proposição que advém dessas considerações é a
dores-de-form a embrionários plantados no território, e que seguinte: a política animal resiste às devoções do contexto e, para
são repetidam ente replantados por m ecanism os de recapta- ter êxito nessa tarefa, deve praticar a vigilância micropolítica
ção im anentes a cada situação sucessiva, trazidos pelas ten ­ em relação aos germ es conform ativos infecciosos.11 Conser­
dências transituacionais que se alastram por elas com o uma vando a ética transsituacional, a p olítica animal m icroino-
infecção. Esses são os fatores genéticos que perm anecem na cula o elem en to de dependência do já-exp resso com uma
m istura catalítica, rebrotando infecciosam ente a form a con ­
form ativa de um apoio imanente ao m ovim ento processual.9 u Quando esses germes conformativos renovam sua aliança com a tendência
supernormal, assumindo o encargo da intensidade sem afirmar sua indeterminação,
Eles operam naquilo que Deleuze e Guattari caracterizariam a infecção toma-se virulenta e o contágio “microfascista” resulta disso (Deleuze e
com o nível m icropolítico.10 Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 17-18; Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 90-92,110). O
microfascismo é um modo de devir entravado, patinando no paradoxo estéril der­
radeiro de um devir conformativo intensamente apetitivo. Quando um movimento
microfascista domina o Estado e outros aparatos políticos molares (como aconte­
9 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., pp. 203-204. ceu no Nazismo e no Fascismo Italiano), o paradoxo da patinada processual a uma
10 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 68-70, 91, 94, 89; Massumi, “O f velocidade extremamente apetitiva explode numa violência mortífera e, em última
Microperception and Micropolitics” . Inflexions: A Journal for Research Creation, n2 análise, suicida (cf. Ibid., pp. 113-114). O fascismo é uma autonomia de expressão
3, Montreal, 2009. que se toma fundamentalmente destrutiva.

88 89
dose liberal de exageração im provisacional e de entusiasmo A lógica de m útua inclusão nada sabe das oposições exclu­
deform ativo-transform ativo — em resum o, autonomia cria­ sivas. Ela reconhece contrastes em abundância, mas os ter­
tiva de expressão. m os con trastan tes são sem pre entendidos com o estando
num a relação de p ressu p o sição recíp roca, com o m od ali­
9. O paradigma ético-estético da política animal é particular­ dades de ação que pertencem diferencialm ente ao m esm o
mente atento aos modos de pensam ento enativados nos ges­ p rocesso — em resum o: com o “dinam ism os” . C om o fa to ­
tos não verbais. Mas essa atenção especial à abstração vivida res contribuintes do processo, os dinamismos contrastantes
em níveis não verbais não implica, de maneira alguma, uma entrelaçam -se sem que suas diferenças sejam apagadas. Fun­
negligência da linguagem. Com o vimos, os atos instintivos dos dem -se perform ativam ente sem se confundirem . Em seus
animais já incluem a linguagem em potencial nos seus elemen­ dinamismos discrepantes, eles são fatores modais: m odos de
tos lúdicos. Os gestos vitais da brincadeira animal mostram atividade. Sendo fatores m odais de atividade, estão essen ­
uma reflexividade no-ato que realmente produz as condições cialm ente em m ovim ento. Embora às vezes seja necessário
da linguagem humana. A política animal e sua metamodeliza- interpretar seus contrastes em term os de diferenças de grau
ção fazem a linguagem brincar. Brincar com a linguagem signi­ num continuum de atividade qualitativo, ou até mesm o com o
fica fazer uso instintivo da mesma, e isso consiste no emprego diferenças de tip o que entram em várias m isturas, o m odo
gestual das palavras como catalisadores de atos de linguagem com o são derradeiram ente distinguidos é pela orientação
que efetuam transformações-m-Zoco diretas, as quais chacoa­ de seus m ovim entos. Em outras palavras, eles são mais bem
lham a corporalidade e recuperam a apetição, propulsionando com preendidos com o tendências.
a atividade vital na direção de uma variação transsituacional.12 As tendências são diferenciadas pelos polos entre os quais
se estendem os seus vetores: são definidas pelos seus limites.
10. As reservas que o paradigma ético-estético possui quanto A lógica da m útua inclusão não concerne, prioritariam ente,
aos modelos cognitivos do pensam ento envolvem pronuncia­ a form as ou objetos, ou até m esm os a sujeitos. A tendência
dos receios em relação a qualquer lógica construída em torno é o que a alim enta. É no entrelaçam ento dos m ovim entos
do princípio do terceiro excluído — mas, de maneira alguma, tendenciais que form as, objetos e sujeitos são constituídos,
em relação à lógica com o um todo. A política animal afirma em em ergência perpétua e variação contínua. Com o enfatiza
ativamente uma lógica áe mútua inclusão. Ela saúda o terceiro Bergson, as tendências não se distinguem um as das outras
incluído com entusiasm o, na form a de efetivos paradoxos da maneira m utuam ente exclusiva com que as formas, obje­
desempenhados. tos e sujeitos distinguem -se uns dos outros. As tendências
podem com binar forças sem se excluírem m utuam ente. De
12 Sobre as “transformações incorpóreas” que são efetuadas na e pela linguagem fato, é uma vocação misturarem-se. Muito embora sejam logi­
e atribuem-se às corporificações, cf. Deleuze e Guattari (Mil platôs, v. 2, pp. 19-27).
Sobre os poderes de variação da linguagem em sua relação com transformações camente distinguíveis por sua polaridade e orientação, nunca
incorpóreas (pp. 30-33). ocorrem naturalmente sozinhas. Toda situação sempre ativa

90 91
um m isto delas. Em toda situação, ocorrem conjuntam ente absolutam ente autoinspecionantes. Esses graus de consciên­
sem coalescer. Elas ressoam e interferem um as nas outras, cia são sempre enativos. São pensares-fazeres. São tam bém ,
inibem-se ou prolongam -se umas as outras, enfraquecem-se ao m enos germ inalm ente, reflexivos, da maneira antes evo­
ou potencializam -se umas as outras, capturam-se ou entram cada na discussão sobre a inspeção absoluta e a consciência
em simbiose m utuam ente benéfica. No vocabulário de Berg­ primária. Do ponto de vista do afeto com o qual emergem, são
son, elas “ interpenetram ” um a zona de indiscernibilidade pensares-sentires a-fazentes.
enquanto se mantêm logicam ente distintas quando conside­ A lógica tendencial de m útua inclusão atribui duas tarefas
radas com o vetores que por essa zona se movimentam. à m etam odelização da vida criativa do animal. Primeiro, sua
A habilidade de interpenetrar, de misturar-se efetivamente teoria do político deve sempre com eçar com o gesto de anali­
sem se confundir, é um a característica definidora da m enta­ sar as misturas, entendidas não com o combinações de termos
lidade, de acordo com Bergson.13As tendências não são nada em relações externas uns com os outros (combinatórias, mon­
mais que o movimento criativo do polo mental da natureza — tagem parte a parte, hibridização), mas em term os de mútua
“criativo” porque de suas interpenetrações dinâm icas em er­ inclusão, com os efetivos paradoxos que a acom panham . A
gem variações qualitativas. As tendências, em seu movimento avaliação dos acontecim entos vitais deve com eçar com uma
“mental” , constituem subjetividades-sem-sujeito: puros faze­ avaliação das tendências em jogo. Uma vez que seus polos-
res, sem fazed or por trás — sem nada por trás, exceto seu -limite e orientações estejam definidos, a questão se torna o
próprio momentum adian te.14 Estes se autopropelem , por grau e a natureza de suas participações nos gestos enativos
natureza, em direção à superação do que está objetivamente na brincadeira, os m ovim entos subsequentes que catalisam
dado. Sua form a dinâm ica é o em -andam ento da natureza. e os territórios existenciais que esses movimentos envolvem.
Em todo lugar na natureza trata-se de m isturas criativas de Os dois critérios de avaliação acima discutidos pertencentes
tendências de graus variantes de poder autocondutor, corres­ à intensidade são calcados nessa análise das misturas tenden-
pondendo a graus de mentalidade integral ou de consciência ciais e a ela devem suas capacidades discriminatórias.15

13 “A vida, na verdade, é de ordem psicológica, e é da essência do psíquico envolver 15 “O estudo do movimento evolutivo consistirá, portanto, em destrinçar um
uma pluralidade confusa de termos que se interpenetram [mútua inclusão numa certo numero de direções divergentes, em apreciar a importância do que ocor­
zona de indiscernibilidade]” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 279). “Com reu em cada uma delas, numa palavra, em determinar a natureza das tendências
efeito, os elementos de uma tendência não são comparáveis a objetos justapos­ dissociadas e em fazer sua dosagem. Combinando então essas tendências entre
tos no espaço e exclusivos uns dos outros, mas antes a estados psicológicos, cada si, obteremos uma aproximação ou antes uma imitação do indivisível princípio
um dos quais, ainda que seja primeiramente ele próprio, participa, no entanto, dos motor do qual procedia seu elã. O que significa que veremos na evolução algo bem
outros e contém assim virtualmente toda a personalidade a qual pertence” (p. 129). diferente de uma série de adaptações às circunstâncias, como o pretende o meca-
14 Sobre o conceito de subjetividades sem sujeito em Deleuze, Guattari e Ruyer, nicismo, algo bem diferente também da realização de um plano de conjunto, como
cf. Bains, “ Subjectless Subjectivities” in Brian Massumi (org.) A Shock to Thought: o pretende a doutrina da finalidade” (Bergson, A evolução criadora op. cit., p. 111).
Expression after Deleuze and Guattari. Londres: Routledge, 2002, pp. 101-116. 0 puro Sobre a necessidade de uma análise cuidadosa das misturas tendenciais a fim de
fazer, sem fazedor por trás, refere-se novamente à passagem de Nietzsche citada evitar “falsos problemas”, cf. Deleuze, Bergsonismo, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi.
na nota 88, p. 73. São Paulo: Editora 34, pp. 7-26.

92 93
A segunda tarefa é reflexiva. Consiste em desenvolver fer­ da relação, se suas construções m etaconceituais incidem no
ram entas para a m eta-descrição das m isturas tendenciais, pertencim ento, então as técnicas necessárias não podem ser
adicionando-as continuam ente à caixa de ferram entas tão outra coisa senão as técnicas vivas de relação abstrativa: téc­
logo novas situações singulares emerjam e im plorem por nicas relacionais de abstração vivida.17 A m etam odelização
um a análise verdadeiram ente capaz de levar em conta suas da política animal tem de abrir as próprias operações à ten ­
singularidades. A metamodelização da vida animal e da polí­ dência supernormal de superar aquilo que está dado, ao qual
tica natural consiste na produção de um cam po conceituai concerne prioritariam ente. Um poder m ental de superar o
no qual abrigar o crescente ménagerie de entendim entos sin­ que está dado é um a definição de especulação. A form a de
gulares. Isso requer uma atividade metaconceitual dedicada pragm atism o aqui em questão é o pragmatismo especulativo.
a construir vias de m utuam ente incluir no pensam ento um Um alerta: há muitas form as de pensam ento especulativo e
ménagerie sempre em expansão dos modos singulares de ten ­ de pragm atism o que não são tendenciais, criativas ou con ­
dências pertencendo, em termos processuais, umas às outras, cernentes ao desenvolvim ento da lógica singular da mútua
enquanto respeitam com cautela suas naturezas irredutivel- inclusão (comprador, tenha cuidado!).
m ente contrastantes (i.e., sem generalizar e sem confundir Nota: O propósito do alerta é assinalar um a divergência
sua singularidade com uma instância particular de uma regra entre o pragm atism o especulativo desenvolvido aqui e, de
geral). Esse pensamento dos pensares-fazeres participatórios um lado, as filosofias pragm áticas, para as quais função e a
não pode se dispor a ficar longe das situações e acontecim en­ utilidade são primárias; e, de outro, o realismo especulativo e
tos nos quais as tendências interpenetram. A m etam odeli­ a ontologia orientada ao objeto. Com o uma ontologia baseada
zação deve ser resolutam ente pragmática, mesmo enquanto na substância, a 000, tal como desenvolvida por Graham Har-
constrói abstrações vividas da mais alta ordem.16 man, está fundam entalm ente em desacordo com filosofias
A necessidade pragmática requer que cada projeto de m eta­ ontogenéticas orientadas ao processo, cujas noções supremas
m odelização imagine por si mesmo o que poderia ser um são mais a atividade e o acontecim ento do que a substância,
laboratório filosófico adequado aos seus fins. Toda m etam o­ e cuja tarefa filosófica é pensar m ais a subjetividades-sem -
delização precisa construir um laboratóriofilosófico. Para tanto, -sujeito do que o objeto sem o sujeito.18 A versão influente
precisa de técnicas. Se a política ético-estética é uma política de Q uentin M eillassoux para o realism o especulativo aplica

16 Guattari conecta explicitamente a metamodelização a uma lógica do devir


baseada na mútua inclusão: “A lógica tradicional dos conjuntos qualificados de 17 Sobre as técnicas relacionais de onde deriva o presente projeto, cf. Manning
maneira unívoca, de tal modo que se possa sempre saber sem ambigüidade se um e Massumi, “ Propositions for Thought in the A ct” in Thougkt in the Act op. cit.,
de seus elementos lhes pertence ou não, a metamodelização esquizoanalítica subs­ pp. 83-134, em que são discutidas as técnicas e a construção de conceitos do labo­
titui uma ontológica, uma maquínica da existência cujo objeto não é circunscrito ratório filosófico SenseLab (<senselab.ca>). Sobre pragmatismo especulativo, cf.
ao interior de coordenadas extrínsecas e fixas, que supera a si mesmo, que pode Massumi, Semblance and Event op. cit., pp. 12-15,29~3&>85).
proliferar ou se abolir com os Universos de alteridade que lhes são compossíveis” 18 Graham Harman, Guerilla Metaphysics: Phenomenology and the Carpentry of
(Guattari, Caosmose op. cit., p. 95). Things. Peru: Open Court, 2005.

94 95
severamente a lei do terceiro excluído, ou a lei da não contra­ com o ocorre no mundo, está nas lacunas constitutivas fato-
dição, e lida com as aporias a isso associadas apelando não à rando todas as emergências e, novamente, nas lacunas entre as
positividade da mútua inclusão, mas à contingência — enten­ estabilizações (capturas). A contingência, como pertencente
dida não criativamente, mas negativamente, como a suprema à emergência e à insubordinação à captura, deve ser pensada
impossibilidade de aplicar a lei do terceiro excluído de uma positivamente em term os de espontaneidade, não negativada
form a que de fato exclua a incerteza.19 O pragmatism o espe­ com o acidental (a simples ausência de uma causa suficiente)
culativo, por outro lado, abraça apaixonadamente a incerteza, ou assimilada ao meramente incerto em term os lógicos.21
com todos os poderes produtivos do paradoxo efetivo. Abraça
a incerteza, mas não dem onstra qualquer interesse pela con­ 11. A política animal é uma pragmática da mútua inclusão. Essa
tingência absoluta, nas bases processuais de que, onde quer m útua inclusão se aplica até m esm o, ou especialm ente, à
que possa penetrar o pensam ento, sem pre já vai ter havido diferença genérica entre o hum ano e o animal. D iferenças
um tom ar-determ inada forma, de m odo que o mundo está
cheio de resíduos de em ergências passadas. Por essa razão, 21 O mesmo argumento se aplica ao caos. O fato de que sempre houve um ganhar-
a contingência nunca é absoluta, porque tudo o que dela se -forma determinado, e de que o mundo está cheio de resíduos de emergências
passadas, significa que a situação é sempre, como diz James (Essays in Radical
desdobra tem de escolher um caminho em meio aos resíduos
Empiricism. Lincoln: University o f Nebraska Press, 1966, p. 63), de “quase-caos” .
que constrangem seu curso. Nos term os de W hitehead, o des­ Para Deleuze e Guattari, o caos é o limite imanente do pensamento e da existência
dobram ento da contingência é sempre relativo ao “mundo onde há “variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem" (Deleuze
e Guattari, O que é a filosofia? op. cit., p. 259). Esse é o limite de mútua inclusão,
estabelecido” . Até mesmo a contingência quântica na física é onde variabilidades infinitamente conectadas não se afastam mais depressa do
ou capturada por processos físicos de nível superior que não que se aproximam umas das outras no “plano de imanência” . Quando um modo
são puram ente contingentes (a estrutura e a periodicidade de atividade se aproxima desse limite, uma formação “semicaótica” ou “caóide”
emerge criativamente por um processo autocondutor de “caosmose” (Ibid., pp.
do átomo, antes de tudo), ou perece tão rapidamente quando 262-264, 266). O caos não pode ser pensado ou sentido como tal, e ele não tem
surge, não deixando qualquer efeito e, portanto, não tendo existência (mais que existir, o caos “subsiste” no virtual, no vazio, ineficaz), exceto
quando “reticulado” ou “filtrado” numa forma pelos caóides, dentre os quais figura,
qualquer existência efetiva (partículas virtuais no vazio quân-
de modo proeminente, a arte. O caos, nesse sentido, é “composto”. Outro nome
tico). Em qualquer lugar, exceto no ponto de fuga não efetivo para plano da imanência é “plano da composição” . O caos é o lado oposto da mor-
da existência, a contingência absoluta é um a criação pura­ fogênese, da emergência criativa da forma: uma vez mais, dois lados indissociá­
veis da mesma moeda processual. Ainda assim, há sempre um excesso ou resíduo
mente formal da lógica (como a contradição, pertencendo por do caos, algo que elude a captura, forçando o seu processo de composição a se
diferentes razões ao especioso do negativo).20A contingência, repetir serialmente. A espontaneidade é 0 movimento positivo em direção ao limite do
caos, reverberando em emergência criativa e re-reverberando iterativãmente. Assim
entendida, a espontaneidade concerne à solidariedade de caso-limite das variabi­
19 Quentin Meillassoux, After Finitude: An Essay on the Necessity ofContingency, trad. lidades infinitamente conectadas definidoras do caos. O próprio limite pode ser
ing. de Ray Brassier. Londres: Continuum, 2008. Para mais informações sobre a considerado como contingência absoluta, mas apenas se a contingência absoluta
000 e o realismo especulativo, cf. nota 2 p. 125. for sentida como coincidindo com o vazio imanente de uma solidariedade infini­
20 Para a clássica crítica do negativo de Bergson, cf. A evolução criadora op. cit., pp. tamente movente e dinâmica de elementos que aparecem e desaparecem uns nos
314- 352. outros, e não a infinita soltura entre elementos geralmente conotada pelo termo.

96 97
genéricas, com o a separação entre esp écies anim ais, per­ entre as espécies (um conceito cuja dependência em relação
tencem à lógica da m útua exclusão. Q uando algo excede ou à lógica do terceiro excluído está sob forte ataque de dentro
escapa à contenção de sua categoria genérica designada, sua da própria biologia, que, quanto mais se harm oniza com a
singularidade aparece, na lógica da mútua exclusão, com o um produção de variação contínua da natureza, menos é capaz de
negativo, com o uma falta ou deficiência. A única alternativa fixar diferenças genéricas, para não m encionar as genéticas,
possível fica entre ser subsum ido à categoria apropriada e a entre populações animais).23A lógica da mútua inclusão con­
indiferença: entre a identidade genérica e a indiferenciação, cebe essas zonas de indiscernibilidade positivam ente, como
distinção m uito rígida ou indistinção. A diferença genérica cruciais à emergência do novo. Longe de serem zonas de indi­
não diz respeito realmente à diferença: diz respeito a entida­ ferença que absorvem e invalidam a atividade, elas estão ape­
des m utuam ente exclusivas. ritivamente superlotadas de atividade no m ovim ento tenden-
O pensar-fazer animal da política recusa-se a reconhecer as cial. São verdadeiros ninhos de cuco de atividade incipiente,
diferenças genéricas com o fundacionais, precisam ente a fim a partir dos quais advém mais diferença. A lógica da m útua
de pensar o singular. Sua lógica natural de m útua inclusão — inclusão é a lógica da diferenciação: o processo da contínua
a lógica paradoxal daquele que interpenetra sem perder sua proliferação de diferenças emergentes.
distinção — é projetada para evitar a escolha infernal entre C om o já m encionado, para viver sua vocação pragmática,
identidade e indiferenciação. a política animal não apenas pensa sobre a m útua inclusão,
Para a lógica da m útua inclusão, a indiferença não é a única ela precisa praticá-la. Para m em bros da espécie hum ana,
altern ativa à m útua exclu são (em con trap osição a Agam ­
b en ).22 Ela recon hece que há zonas de indiscernibilidade desse estado-base da animalidade (p. 124), em vez de ser instintivamente “ cati­
vado” por ele como os não humanos são. Entretanto, ainda há um caminho a ser
encontrado — conforme observa Agamben em sua conclusão — para o animal e o
22 Para Giorgio Agamben, a única alternativa à mútua exclusão é precisamente humano sentarem juntos no “banquete messiânico dos justos” (p. 144).
cair numa zona de indiferença, uma “ zona de irredutível indistinção” (Homo Sacer 23 O problema com as espécies até virou notícia. Do The Guardian: “Testes gené­
op. cit., p. 12). Para a política animal, a zona de indiscernibilidade é 0 próprio ticos em bactérias, plantas e animais revelam, cada vez mais, que diferentes espé­
movimento de autossuperação. Na perspectiva deste ensaio, o livro de Agamben, cies cruzam mais do que o pensado originalmente, o que significa que, em vez de
O aberto: 0 homem e 0 animal, (trad. bras. de Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civi­ os genes serem simplesmente transmitidos para galhos individuais da árvore da
lização brasileira, 2017) sobre o animal carrega o vício da recusa em considerar a vida, eles também são transferidos entre espécies que estão em trajetórias evo­
possibilidade de inventar um caminho para fora da lógica do terceiro excluído que lutivas distintas. O resultado é uma ‘rede da vida’ mais confusa e emaranhada.
não seja a indiferenciação. O entendimento pós-heideggeriano do animal como Micróbios trocam material genético de maneira tão promíscua que pode ser difí­
“pobreza de mundo” , em torno do qual gira a análise de Agamben, é inteiramente cil distinguir um tipo do outro, mas os animais também cruzam regularmente —
dependente de uma noção tradicional de instinto como uma seqüência automá­ assim como as plantas — e as proles podem ser férteis [...] ‘A árvore da vida está
tica de ações liberadas por um “desinibidor” (pp. 83-87). Mesmo se a separação sendo educadamente enterrada’, disse Michael Rose, um biólogo evolucionista
homem-animal que isso instila fica “ suspensa” no final, ela jamais é superada. da Universidade da Califórnia, em Irvine. ‘O que é menos aceito é que toda nossa
Para Agamben, não há alternativa a ela, a não ser pela via negativa de aceitar seu visão fundamental da biologia precisa mudar’” . Ian Sample, “Evolution: Charles
caráter fundamental tomando-a “ inoperante” , e, com isso, o potencial e a ativi­ Darwin Was Wrong about the Tree o f Life” . The Guardian, 21 de janeiro de 2009.
dade do humano animal são reduzidos a uma “grande ignorância [...] fora do ser” Disponível em: <www.theguardian.c0m/science/2009/jan/21/charles-darwin-ev0-
(p. 144) — como o animal, do qual o humano agora se distingue ao “apropriar-se” lution-species-tree-life>.

98 99
sua prática envolve o “devir-animal” , com o conceituado por respeito às diferenças. Você está falando em pensam ento ani­
D eleuze e G uattari.24 O pensar-fazer anim al evita o gesto mal? Afetos e em oções animais? Desejo animal? Criatividade
dem asiado fácil de sim plesm ente borrar as diferenças gené­ animal? Subjetividade animal, até? Projeção! Pura projeção
ricas. Não se contenta com desconstruir ou proclam ar as vir­ negadora de diferenças. Não é outra coisa, senão uma falta de
tudes do híbrido (o con ceito de h ibridização baseia-se em respeito pelas diferenças radicais entre os modos de existên­
misturas, não entre tendências, mas entre form as já-dadas, e cia — mais um ato de dom inação antropocêntrica apagando
sua lógica é mais com binatória que criativa). O pensamento a diferença do “outro”. A política animal não dá muito espaço
animal afirma, de fato, diferenças genéricas — diferenças de a essas críticas. Elas ainda estão trabalhando dentro da lógica
tipo — , mas à sua maneira: em inspeção absoluta; sem lhes tradicional, segundo a qual a única alternativa à m útua exclu­
atribuir qualquer status fundacional. Ele as encena, e contra­ são é a indiferenciação — neste caso, sob a aparência de uma
cena, com continua de diferença em grau, arrebatando derra­ suposta confusão projetiva. Essa alternativa só é reforçada
deiram ente todas elas num m ovim ento interpenetrante de pela noção de diferença “radical” .
uma tendência produtora-de-ainda-mais-diferença. Ele inspe­ Críticas com o essa não levam em conta a possibilidade de
ciona im anentemente a inclusão das diferenças no campo da uma lógica de tendências que se interpenetram sem se borrar,
vida e da consciência, afirmando-as a partir do ângulo singular nem levam em conta o m ovim ento de transindividuação que
do devir mutuam ente inclusivo. cria ainda m ais diferenças, num a exibição animal das varia­
ções vitais. Eles não sabem nada a respeito da pressuposição
12. A política animal é um a política do devir, até m esm o — e recíproca dos modos de existência na corrente da vida inces­
especialm ente — do humano. santemente autodiferenciadora.
A lógica da m útua inclusão esquiva-se da alternativa infer­
13. Críticas enérgicas, com base no antropomorfismo, são por nal entre a solidão das diferenças genéricas e a gosma de indi-
vezes orientadas contra abordagens — com o a aqui proposta ferenciações em que essas acusações de antropom orfism o
— que afirmam a mútua inclusão das formas de vida humanas estão im plicitam ente baseadas. Ela coloca o hum ano num
e não humanas no mesm o continuum da vida animal. A acusa­ continuum com o animal precisamente a fim de respeitar mais
ção é a de que esse tipo de abordagem cai necessariamente na a proliferação de diferenças: o m ovim ento da natureza pelo
armadilha antropom órfica de projetar características hum a­ qual a vida sempre segue se a-diferindo. Ela vira facilm ente
nas em animais não hum anos, mais especialm ente quando a acusação de antropom orfism o contra os acusadores. Não é
0 continuum é tam bém entendido em term os de um a m útua o auge da arrogância humana supor que os animais não têm
inclusão de consciência e vida. pensam ento, em oção, desejo, criatividade ou subjetividade?
A acusação de antropom orfism o é lançada em nom e do Acaso isso não é delegar novam ente aos animais o status de
autômatos? Até mesm o a posição agnóstica, nessas questões,
24 Cf. suplementos 1 e 2. ainda confere credibilidade demais ao modelo mecanicista da

100 1 01
vida animal. A p osição agnóstica consiste apenas na recusa natureza; e m ovim entos rum o a um ponto de destino que
a se pronunciar acerca dessas questões, declaradam ente por nunca é alcançado porque tendências nunca term inam , de
um respeito pela diferença, mas que é sobrecarregado, b ei­ m odo que as m isturas nunca cessam . O utro m odo de dizer
rando a devoção. Mas perm anecer calado acerca da natureza isso é afirmar que as tendências são definidas por limites vir­
das diferenças não é perigosam ente próxim o de silenciar a tuais.7-5 Falar em animalidade é uma maneira de com eçar no
diferença? Que falta de respeito! E se pensam ento, em oção, meio, com o Deleuze e Guattari afirmam sempre ser melhor.26
desejo, criatividade e subjetividade animais são de fato afir­ Pragmaticamente, é sempre melhor com eçar bem no meio da
m ados, mas sem o duro trabalho filosófico de reexam inar gloriosa bagunça que é o mundo real, onde a abstração vivida
a própria lógica da diferença, isso resulta num pluralism o já está sem pre adulterada pela im portância vivida, co n ce­
m uito fácil baseado num a tolerância m uito humana. A acu­ dendo ao pensar-fazer uma participação efetiva. O continuum
sação m ordaz de antropom orfism o erra o alvo e vê a flecha da natureza poderia m uito facilm ente ser chamado de conti­
voltando em sua própria direção. nuum da criatividade, ou da consciência, ou do instinto, ou
A abordagem da política animal aqui aventada inverte a crí­ da vida, ou até m esm o da matéria (redefinida de m odo a não
tica. Não no sentido, é claro, de afirmar a projeção humana de ser m utuam ente exclusiva em relação a esses ou ao virtual,
suas próprias características no animal. E ju sto o contrário: produzindo um “materialismo incorpóreo”).27 Ou — por que
ela envolve o humano num animocentrismo integrado no qual não? — até m esm o do vegetal. A escolha por “ continuum ani­
ele perde sua dom inância a priori sem, entretanto, sua dife­ mal” como denominação dominante aqui tem uma motivação
rença ou a de seus pares animais serem borradas ou apagadas. simples, mas crucial: com um pouco de imaginação, permite
Ela intim a o hum ano a se tornar anim al, não os anim ais a que as questões em jogo girem em torno da brincadeira.
renunciarem aos seus poderes vitais há tem pos erroneamente “Até mesmo do vegetal”: Bergson, de acordo com sua lógica
assumidos com o sendo território exclusivo dos humanos. de m útua inclusão diferencial, descreve um entrelaçam ento
Nota: O ponto de corte do “continuum animal” é inatribuí- de tendências de maneira que as plantas participam da ani­
vel, assim com o o da vida. Anim alidade e vida não podem malidade e vice-versa:
ser estritam ente delimitadas em relação ao inorgânico. Essa
é um a inescapável conseqüência da afirm ação da lógica da Para começar [...], digamos que nenhuma característica
m útua inclusão. Cham ar de “ anim al” o continuum da natu­ precisa distingue o vegetal do animal. As tentativas fei­
reza de mútua inclusão é, desse ponto de vista, algo arbitrário. tas para definir rigorosamente os dois reinos sempre
Continua de m istura tendencial são com preendidos, o mais
convenientem ente, a partir de um lugar terceiro: o m eio.
25 O caos, tal como descrito na nota 21, p. 97, é o limite virtual imanente a todas as
Isso porque os polos de m ovim entos tendenciais são ideais: tendências vitais. Nesse sentido, é o limite absoluto da vida.
m ovim entos de um ponto de partida que nunca foi ocupado, 26 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 12-14.
porque na realidade nunca houve nada além de misturas na 27 Sobre o materialismo incorpóreo, cf. acima, nota 74, p. 62.

102 103
fracassaram. Não há nenhuma propriedade da vida vegetal Sim ondon faz um a pontuação similar, cham ando o animal
que não tenha sido reencontrada, em algum grau, em certos de “planta incipiente” e argum entando que não há “diferen­
animais; nenhum traço característico do animal que não ças substanciais” que perm itam distinções categóricas entre
se tenha observado em certas espécies, ou em determina­ reinos, gêneros e espécies.29 Desse ponto de vista, o “ conti-
dos momentos, no mundo vegetal. Compreende-se então nuum anim al” tam bém poderia ser chamado de “ continuum
que biólogos ávidos de rigor tenham tomado por artificial vegetal”, dependendo de qual meio se escolhe para começar,
a distinção entre os dois reinos. Teriam razão, se aqui a e por quais razões estratégicas conceitualm ente construtivas
definição precisasse ser feita, como nas ciências matemá­ — conduzindo a que definições e distinções, a que efeitos. A
ticas e físicas, por meio de certos atributos estáticos que o escolha não é nada arbitrária. É totalm ente pragm ática. A
objeto definido possui e que os outros não possuem. Muito escolha do meio terá conseqüências sobre com o se desenro­
diferente, a nosso ver, e o tipo de definição que convém às lam todos os conceitos filosóficos envolvidos. Antecipá-los
ciências da vida. Não há realmente manifestação da vida abdutivamente, modulá-los de antemão, constitui o elemento
que não contenha em estado rudimentar, ou latente, ou especulativo. A coerência do continuum conceituai precisa ser
virtual, as características essenciais [diferenças de tipo] da integralm ente reinventada a cada recom eço, de m odo que a
maior parte das outras manifestações. A diferença está nas própria filosofia está em contínua variação emergente.
proporções. Mas essa diferença de proporção [diferença de E isso nos leva a outro alerta: cuidado com filosofias que se
grau] bastará para definir o grupo no qual pode ser encon­ prom ovem , em term os apocalípticos ou m essiânicos exces­
trada, se pudermos estabelecer que essa diferença não é sivam ente sérios, com o a essência e finalidade da filosofia.
acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada Essas filosofias necessitam de um a pequena dose da m odés­
vez mais a enfatizar essas características particulares. Em tia vegetal e de um a grande dose da ludicidade animal para
resumo, o grupo não será mais definido pela posse de certas obterem uma distância reflexiva enativa quanto à sua própria
características [seguindo uma lógica de substância-predi- im portância (o o o , está ouvindo?). O suplem ento 3 vo lta à
cado], mas por sua tendência a acentuá-las [diferenciação questão das distinções categóricas e dos pontos de corte.
tendencial estabelecendo conjuntamente diferenças de
grau e de tipo num movimento de auto transformação]. Se 14. O instinto percorre tod o o continuum animal integrado,
nos colocamos desse ponto de vista, se levamos em conta pressupondo reciprocam ente linhas de variação sem pre-di-
menos os estados do que as tendências, descobrimos que versificantes. Essas linhas de variação estendem-se por todo
vegetais e animais se podem definir e distinguir de um
modo preciso e que correspondem realmente a dois desen­ 29 Combes, Gilbert Simondon and tke Philosophy ofthe Transindividual op. cit., pp.
volvimentos divergentes da vida.28 22-23. A ideia de Simondon é de que uma planta completa sua individuação biolo­
gicamente, ao passo que uma vida animal continua a se individuar psiquicamente,
preservando certa neotenia. Isso distingue vegetal e animal como graus de devir
28 Bergson, A evolução criadora op. cit., pp. 115-116, tradução modificada. no continuum da natureza.

104 105
o cam inho até a mais hum ana das realizações, inclusive de
natureza lingüística. O m ovim ento autocondutor do instinto,
sob a propulsão da ten dência supernorm al, é o que inclui
operacionalm ente o humano no animal. Pensar o humano é
pensar o animal, e pensar o animal é pensar o instinto. Acaso
seria possível co n ceber um anim al sem instinto? Por que,
então, o dissem inado em baraço sobre o term o? Por que ele
sempre precisa ser minorado, como um segredo bestialmente
vitoriano que seria melhor deixar escondido? A política animal
não tem medo do instinto.

106
SUPLEMENTO 1 Escrever como um rato torce o rabo

Na obra de Deleuze e Guattari há pelo m enos duas maneiras


pelas quais o devir-animal do humano se distingue da brinca­
deira animal não humana — que, ainda assim, pode ser vista
como provedora de suas condições de emergência, bem como
propulsora de uma linha tendencial na qual acrescentar uma
variação lúdica.
Primeiramente, o devir-animal do humano é iniciado pela
necessidade. O caso exem plar, para D eleuze e G uattari, é
Kafka. É diante do horror do lar e da fam ília hum anos que
Kafka se refugia nos territórios existenciais animais. A con­
densação do afeto nas figuras demasiado humanas da família
edípica é sentida com o inabitavelm ente lim itante. A escrita,
im pulsionada a serviço do supernorm al com o uma caixa de
ferramentas para o devir-animal, é utilizada para com por uma
linha de fuga da clausura familiar. O recurso à animalidade é
um a estratégia de sobrevivência. A necessidade do recurso
não contradiz sua criatividade. O fato de o devir-animal ser
iniciado sob pressão não o desqualifica com o um a operação
fundam entalm ente lúdica. No devir-animal do humano, cria­
tividade e sobrevivência são uma só coisa. Se a situação não
fosse imperativa, não haveria razão para não perm anecer res­
guardado nos confortos familiares do lar.
O problem a é que esses confortos têm um preço: norm a­
lidade; aquiescência ao já-expresso; o sufocam ento da te n ­
dência supernorm al que agita im anentem ente e desp erta
instintivam ente todos os animais, hum anos ou não, na dire­
ção de superar, nesse jo g o de cartas, a m ão distribuída pelo

109
que está dado. Só há um a escolha a fazer: renunciar aos ins­ Gomo na brincadeira não humana, as ações às quais o nar­
tin tos anim ais ou deixar o con forto do lar. Só há um a saída: rador se entrega “não denotam o que iriam denotar aquelas
desterritorializar-se, deixar a arena hum ana e recuperar o ações que elas representam”. Com o com cada operação lúdica,
territó rio existencial animal. A necessidade da operação só o devir-animal dram atiza a situação afetiva ao desempenhar
faz com que isso seja ainda m ais intenso. Ela apenas entre­ gestos que constituem mordidas sem morder. Paradoxalmente,
laça a corporalidade, a co locação em p rática dos im perati­ não é o horror edípico do incesto que Kafka dramatiza, ainda
vo s da situação dada, de m odo ainda mais próxim o de um a que esse horror só possa ser evocado. O que é dramatizado é
urgência criativa prospectiva. Ela apenas atrela, ainda m ais o desenquadramento do incesto e seu horror. O devir-animal
fortem ente, a corporalidade à apetição. O devir-anim al do do narrador suspende o desejo edípico, a seqüência de ações
h um ano in ten sifica a m útua inclusão da co rpo ralid ad e e a ele mais associada, bem com o as conhecidas conseqüências
da ten d ên cia supernorm al, enquanto reafirm a a p rim azia tanto de neles se engajar ou de reprimi-los. O devir-animal de
da últim a. N um ponto crítico da vida, ele despeja a depen­ Gregor desarma a família edípica ao lhe conceder expressão
dência pática ao lar com o algo dado, assim co m o o pathos pura e desterritorializante. “Aparece ao mesm o tem po a pos­
fam iliar da clausura dom éstica, num m ovim ento intenso de sibilidade de uma saída para escapar [...], uma linha de fuga” .1
autossuperação. 0 devir-barata de Gregor traça uma linha de fuga expressiva
Para fazer jus à intensidade desse gesto do devir-animal, para fora da clausura da família incestuosa. Desenha uma car­
é necessário focar, mais uma vez, na diferença entre o afeto tografia enativa, intensam ente excessiva em seu movim ento,
de vitalidade — em sua relação com a brincadeira, em que que rom pe com o habitat natural do indivíduo edípico para
se une ao entusiasm o do corpo expressando o dinam ism o recobrar a vasta natureza da transindividualidade: “tudo é
criativo da vida — e o afeto categórico. T odo gesto lúdico político [...] tudo tom a um valor co letivo” .2 É em nom e do
invoca o saliente afeto categórico norm alm ente atrelado à “ povo por vir” que alguém devém-animal.3
situação análoga. Para os filhotes de lobo brincando de luta, A outra diferença em relação à brincadeira animal é que
é o medo. Para Gregor, na Metamorfose de Kafka, é o horror. aqui a desterritorialização é “ absoluta” .4 Isto é, o desenqua­
O horror é o m edo entrelaçado ao pathos. A necessidade da dram ento abre uma saída de em ergência que leva para fora
operação vem do contexto horrível do desejo animal sendo de todas as arenas de atividade conhecidas que estão dadas
forçado ao lim itativo enquadramento do triângulo edípico. O . na natureza. O devir-animal é o nunca antes visto, o jam ais
gesto lúdico do devir-animal não tem escolha, a não ser dra­ feito ou previam ente sentido. U m cachorro am arrando os
m atizar o horror, que transpassa cada brecha da situação do
lar. O horror é a chave afetiva pela qual os imperativos situa- 1 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 26.
cionais demandam aquiescência. A saída é deixar-se arrebatar 2 Ibid., pp. 36-37.
de modo ainda mais horrorosamente intenso pelo entusiasmo 3 Ibid, p. 38.
do corpo do afeto de vitalidade. 4 Ibid., pp. 52,70-71.

110 111
sapatos. Um rato estrela de ópera. U m m acaco sabido que excessivo. D ependendo do contexto, poderia ser qualquer
aprendeu demais.s Nunca feito, nunca visto, nem no passado afeto e a maneira particular com que ele torna im possível
nem provavelm ente no futuro. É um caso transindividual do de ser vivida a vida da apetição. E o “excesso” estilístico, no
povo, mas “o povo falta” por natureza.6 caso de Kafka, pode ser uma sobriedade excessiva, transbor­
dando num superávit de simplicidade intensam ente sentido.
O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma Essa excessividade minimalista talvez seja o mais propício ao
falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. devir, porque o gesto autonomizante da pura expressão deixa
O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os o enquadramento dado da cena, retira-se dos imperativos do
termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que contexto, suspende os term os estruturados no local e vai para
se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-a­ outra parte, escapa e mergulha de cabeça numa desterritoria­
nimal sem ter um termo que seria o animal que se tornou.7 lização absoluta sem saber de antemão aonde ela pode levar
— é tudo uma questão de subtração estratégica.9
O devir passa entre o humano e o animal, na margem de mano­ A escrita, de acordo com Deleuze e G uattari, possui a capa­
bra produzida pela colocação de suas identidades genéricas cidade expressiva de desencadear um a “partícula de devir” :
em suspenso de modo a incluí-las mutuamente num estado de um a dramatização integral e indecom ponível do m ovim ento
elevada intensidade — animação suspensa. “ O devir-animal em direção ao supernormal.10 O gesto desterritorializante do
é uma viagem imóvel e no mesmo lugar, que só pode se viver devir-anim al do hum ano se efetua em blocos, exatam ente
e com preender em intensidade (transpor lim iares de inten­ com o o bico do filhote de gaivota-prateada. Os afetos envol­
sidade)”.8 As idiossincrasias estilísticas e os detalhes extras vidos na dramatização, tanto de vitalidade quanto categóricos,
bizarram ente subestim ados da escrita de Kafka contribuem dizem respeito a seqüências de ações potenciais que são ena-
para um m ovim ento in loco que ultrapassa discretam ente a si tivam ente envolvidas na consciência primária dos domínios
mesm o, transbordando num devir expressivo, atravessando do pensar-fazer na brincadeira. C on vém recordar a defini­
os lim iares da fam ília em direção a outras regiões de inten­ ção básica de afeto que D eleuze e G uattari adotam a partir
sidade. Decerto, o horror não é o único afeto categórico que de Spinoza: os “ poderes de afetar e ser afetado” .11 As ações
pode providenciar o tram polim para esse tipo de m ovim ento potenciais invocadas pela dram atização agrupam conjuntos
de capacidades de afetar e de se afetado. Esses agrupamentos
5 Sobre o devir-cachorro, tal como relatado por Vladimir Slepian, cf. Deleuze;
Guattari (1987, pp. 258-259). Sobre a Josephine de Kafka, a rata cantora, cf. 9 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1 op. cit., pp. 14-15; Mil platôs, v. 4 op. cit., pp.
Deleuze e Guattari (1986, pp. 10-12), e sobre o macaco de “ Um relatório para uma
72-74­
Academia”, de Kafka, cf. Ibid., pp. 25-26).
10 Sobre “partículas de devir” , cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp.
6 Deleuze, Cinema 2 - A imagem-tempo op. cit., p. 261.
63-64,67-69.
7 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 18. 11 Deleuze, Espinosa - filosofia prática, trad. bras. de Daniel Lins e Fabien Pascal
8 Deleuze e Guattari, Kafka: por uma literatura menor op. cit, p. 69. Lins. São Paulo: Escuta, 2002, p. 128.

112 113
desenvolvem -se com o tendências. As tendências interpene- animal estende a integralidade das relações internas das ten ­
tram -se numa im anência recíproca. Assim com o os blocos dências in-atuadas ao horizonte absoluto e integral do animal.
de sensação “alucinados” pela gaivota-prateada, esses agru­ Num devir-animal escrito, diferentem ente de uma brinca­
pam entos tendenciais afetivos são com postos de “ relações deira animal não humana com o a dos filhotes de lobo, aquilo
internas” . As tendências se ativam conjuntam ente em inten­ com o que se brinca não é uma função particular do animal,
sidade, mas clamam, em ressonância e interferência, em com ­ com o a predação. O “enredo” da história é um invólucro para
petição e simbiose, pelo desdobram ento extensivo, e não de o animal integral se expressar com toda a sua intensidade
uma maneira normal. im anente. As ações que são expressam ente dram atizadas
O que o gesto da desterritorialização absoluta faz é sus­ transduzem , sim, algo da form a dom inante do anim al aná­
pender o desdobram ento extensivo. Ele não encena as ações loga ao devir: seu algo-extra. O princípio com posicional está
potenciais. Ele as mantém juntas, puram ente em sua relação mais no nível do estilo de m ovimento do animal, uma vez que
um a com a outra, no envolvim ento m ais cerrado e íntim o, in-forma todos os seus com portam entos. O que é expresso é
num a zona escrita de indiscernibilidade. Ele as m-atua. Dá a assinatura do afeto de vitalidade do animal, a -esquidade de
pura expressão às suas im anências recíprocas. Nessa zona suas ações arqueando-se sobre todos os seus m ovim entos, a
de indiscernibilidade, as relações internas invocadas com o maneira com que o animal desem penha continuam ente algo
ações poten ciais tendenciais que vão de en con tro ao co n ­ extra às funções de seus com portam entos. Esse excesso per-
texto fam iliar fazem -se sentir em toda a sua integralidade form ativo em relação à função genérica é aquilo que define a
covariante, sem que suas diferenças sejam borradas, mas, singularidade do animal. É a maneira com o o animal supera
paradoxalm ente, na ausência real de um contexto alternado a si próprio, excedendo o ser de sua espécie de um m odo que
correspondente ao território existencial com o qual se brinca. o situa num continuum supernormal com outras espécies, em
Um devir-pássaro humano, por exem plo, não invade o ninho seu próprio modo singular. Há uma baratidade da barata, uma
com o um cuco. As ações potenciais são puram ente encena­ ratidade do rato, e são esses estilos de assinatura de formas-
das, desenquadradas e, portanto, sem lim ites atribuíveis. São -de-vida que se inserem no ato de escrever. O estilo da escrita
puram ente expressas, coim anentes ao gesto expressivo da com põe-se em torn o dessa -esquidade do anim al análogo,
escrita. São dram atizadas por esse gesto no papel de puras absorvendo seu excesso específico na linguagem criativa. A
e futuras possibilidades, desenquadradas — seu único limite , escrita de Gregor é a invenção do extrabarata, uma mais-valia
sendo o próprio h orizonte de animalidade. C om o qualquer de baratidade escrituralm ente produzida. U m puro extras-
horizonte, o horizonte do animal recua quando dele se apro­ ser de baratidade.12A captação especificam ente escrita desse
xima: é um limite absoluto; um lim ite real, virtual. Também extrasser estende criativam ente o continuum da animalidade
com o todos os horizontes, envolve liminarmente o campo de
possibilidade do m ovim ento em sua integralidade. Na sus­
12 Deleuze, Lógica do sentido, trad. bras. de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Per­
pensão do contexto animal de fato, a aproximação do limite spectiva, 2007.

114 115
integral sob enação para incluir o humano — o único animal de um a população indefinida (que fa lta ).14 M oby D ick é o
cujos agrupamentos de capacidades afetivas incluem a escrita h orizon te retrocedente do ser-baleia. Ele é o devir de balei-
literária. É o continuum animal que é integralm ente colocado dade transindividuante e extraespécie em pessoa. Mas ele
no jo go escrito, no registro da barata. G regor é o animal inte­ não é um a pessoa. Ele é um invólucro do potencial de devir-
gral escrito em barata. -anim al. E um in vó lu cro do devir poten cial anim al, e n v o l­
A -esquidade já era um elem ento de pura expressão em vendo o continuum da anim alidade integral no registro afe­
gesto anim al não hum ano. A escrita esten de a -esquidade tivo da baleidade — com o só um a baleia escrita pode fazer.
à anim alidade integral, levando a pura expressão ao lim ite. O A n om al é m arcado p or um a qualidade esp ecia l que
Quando a escrita concede pura expressão à animalidade inte­ serve com o ín d ice de sua supernorm alidade: um a -esqu i­
gral, ela não denota “ o” animal. Gregor não é “ a” barata. Não dade exem plar que resum e tod o o agrupam ento do -esco
se trata de denotar nada, em geral. Trata-se de produzir algo potencial que o animal exem plar envolve em seus m ovim en­
singular. N ão “ o” : um. Uma barata, um cachorro, um m acaco, tos. Em Moby Dick, é a branquitude da baleia: a branquitude
um rato, cada um deles evocando, na individualidade expres­ extranatural que atiça um a paixão igualm ente não natural
siva, o poder do continuum animal — animais singularmente na contraparte hum ana escrita da baleia que com bina com
exemplares envolvendo-se em seus m ovim entos e na movên- sua própria intensidade, em contraponto. Ahab é induzido
cia dos seus m ovim entos rum o ao lim ite afetivo da animali­ a um a brincadeira inten siva de devir pela branquitude da
dade, um a m ultiplicidade indefinida de m odos diferenciais baleia — e, com ele, o leitor, p or contágio transindividual.
de existência potencial.13 Q uais im perativos de escape condicionaram essa linha de
A baleia branca de Moby Dick é outro animal exem plar no fuga? Quando 0 devir cascateia — do escritor à figura escrita
ménagerie deleuzo-guattariano da pura expressão. M oby Dick ao leito r da escrita — , os im perativos e a paixão de dester-
não é a baleia com um . Ele não representa sua espécie. Não rito ria liza r p erm an ecem os m esm os ou tam bém sofrem
d enota o que é ser um a baleia ou quais são os co m p orta­ variação contínua? C ertam en te, a segunda opção. O devir
m entos normais e adaptativos das baleias. Ao contrário, ele cruza com as séries. Isso im possibilita entender os devires
expressa a ten d ên cia supernorm al que p reen ch e a balei- na escrita através da teoria da recepção. Nada em particular
dade de dentro para fora e a posiciona no continuum animal é transm itido. Algo singular é recatalisado. Não é um a com u­
integral. Ele não é o anim al norm al, é o Anomal, o anim al nicação, é um a série de acontecim entos.
anômalo: a expressão tendencial de um a força de supernor- D eleu ze e G u attari tam bém falam de um a -esquidade
m alidade deform adora capaz de en volver em sua m aneira escrita exem plar em relação aos ratos. Eles invocam o jeito
singular, afetiva e qualitativam ente, a integralidade lim inar bizarram ente com oven te que um ninho de ratos agoniza
numa história de Hofmannstahl, dizendo que aquilo que seus
13 Sobre o artigo indefinido e o devir-animal, cf. Deleuze e Guattari, Mil platôs, v.
4, op. cit., pp. 36,45-46. 14 Sobre o animal anômalo (o anomal), cf. Ibid., pp. 25-29.

116 117
gestos induzem não é pena, mas uma “participação antinatu­ desterritorialização. Dupla abstração. É isso que todos os ges­
ral”. Por “ antinatural” não querem dizer “fora do continuum tos lúdicos de devir têm em com um . O que é especial quanto
da n atu reza” . Q u erem , sim, dizer: em devir rum o a um a ao gesto escrito é que ele dá um livre acesso ao m ovim ento
“natureza desconhecida” .15 Um a v e z mais, a escrita concede instintivo da supernormalidade percorrendo toda a extensão
pura expressão supernormal ao animal integral, dessa vez no do continuum animal im anente à vida tan to dos hum anos
registro do rato. A escrita denota aquilo que essa supernor- quanto dos não humanos.
malidade iria denotar integralmente. A animalidade do roedor A expressão dram atizada da animalidade integral é vivida
devém -hum ana (suspende-se em gesto escrito) ao m esm o ainda mais intensam ente na escrita porque escapa a toda pos­
tem po em que o hum ano devém -anim al (renova passional- sibilidade de reterritorialização. O homem -cachorro com edor
mente seus laços constitutivos com o núcleo instintivo de sua de m etal incrivelm ente dotado de mandíbula é reterritoriali-
própria supernormalidade). zado com o um espetáculo secundário: capturado pela arena
É assim que funciona todo devir-animal, até mesmo os não já-dada de atividade circen se. M as v o c ê jam ais consegue
escritos, como é o caso que Deleuze e Guattari citam, no qual pegar uma baleia mais branca do que a página em que ela está
o ato efetivo de roer m etal com o se fosse um brinquedo de escrita. A expressão da animalidade é mais superlativamente
m astigar era o gesto supernorm al catalisando um devir-ca- natural, quanto mais integralmente sejam colocados em sus­
chorro, em contraste com o exemplo da amarração escrita de penso as funções e os contextos naturais. Em suspenso, eles
sapatos de cachorro com patas humanas.16 É o mesmo princí­ são sentidos com um entusiasm o do corpo tão longo que se
pio básico quando um humano engaja um devir-animal num estendem por todo o continuum animal, e tão ubiquam ente
gesto não verbal: um ato expressivo que dispara afetivamente envolventes que espreitam em cada entrem eio; tão peram-
um devir entre, sem um tornar-se que seja terminante. A dife­ bulantes que habitam todas as lacunas entre o que é e o que
rença é quão longe no horizonte da animalidade o ato pode poderia ser (mas, fora da expressão, nunca será).
tender; quão intensa a expressão pode ficar; quão integral­ N a m edida em que esse m ovim ento de expressão animal
m ente longe vai o seu m ovim ento de superação do que está frustra qualquer reterritorialização adaptativa com o sua des-
dado. O ato escrito vai o mais longe, o mais intensamente. Na tinação, ele ocorre no contrapelo da animalidade, cuja dire­
atuação gestual, com o na in-atuação verbal, tanto o humano ção natural inclui muito frequentemente a recaptura corporal
quanto o animal são extraídos de seus contextos norm ais, com o parte do ciclo vital natural de variação da vida. A reno­
abstraídos de seus enquadram entos costum eiros. Seus g es­ vação de laços do humano com seu núcleo animal instintivo
tos são subtraídos das funções já conhecidas e desenvolvi­ é uma “participação antinatural [participation contre naturé] ” .17
das adaptativam ente. Desenquadram ento recíproco. Dupla É um a contraparticipação da mais intensa natureza, levada
ao mais alto grau de abstração vivida, suspensa no artifício
15 Ibid., p. 21.
16 Ibid., p. 61. 17 Ibid., pp. 21,23,46, 65.

118 119
da escrita. Nesse modo de abstração vivida, o humano não é atuá-lo, ele in-atua o contágio dessa transformação-m-Zoco
cônscio “do” animal. A escrita não é discursar “ sobre” o ani­ sem o animal real em jogo. Ele subtrai o animal real em jogo
mal. O humano está fazendo o animal no gesto de pensar-es- na natureza a fim de colocar em jogo a própria natureza do
crever: in-atuando um a pura expressão animal, num mútuo animal. Ainda mais potencialm ente. Essa contraparticipação
envolvim ento entre um e outro, e o nem -um -nem -outro de m axim am ente abstrata no potencial da natureza, só alcan­
sua zona de indiscernibilidade em devir. çada com o extrem o do artifício, é a expressão mais intensa
do valor da natureza. C om o valor, ela representa um a coisa:
Escreve-se sempre para os animais [...] “participação anti- a simpatia animal universal.21
natural”, simbiose, involução. Só se dirige ao animal no
homem. O que não quer dizer escrever sobre seu cachorro, Aqui chamamos de “intuição” a simpatia pela qual alguém
seu gato [...] Não quer dizer fazer os animais falarem. Quer é transportado para dentro de um objeto de maneira a
dizer escrever como um rato traça uma linha, ou como ele coincidir com o que nele há de único e, consequentemente,
torce o rabo, como um pássaro lança um som, como um inexpressível.22
felino se move ou dorme pesadamente.18
O devir-animal escrito é o acontecim ento integral da animali­
“ C o m o ” um rato torce o rabo. “ C o m o ” u m pássaro canta. dade instintiva, in-atuada numa passagem para o limite abso­
“ C o m o ” um gato dorm e. “ C o m o ” , aqui, não denota o que luto do que está dado. É a abstração vivida da vida animal,
iria “ d e n o ta r” m e ta fo rica m en te .19 N ão d en o ta, n a m ais singularmente ilimitada. Uma pura e necessária expressão do
pura expressão não m etafórica. O devir, segundo Deleuze e que há de inexpressível no devir.
Guattari, requer a abolição da m etáfora.20 Longe de ser um a Seria uma saída uma expressão resultar tão pura a ponto de
m etáfora, o devir-anim al é um a participação real contra a estar efetivam ente em suspenso? Nunca diretamente. Nunca
natureza, seguindo a própria tendência supernormal da natu­ de um a m aneira que p ossa ser diretam ente aplicada para
reza, sobrecarregada num m ovim ento rum o ao lim ite abso­
luto. O gesto do devir escrito é tão real quanto o paradoxo
21 “ Um único e mesmo animal abstrato, uma única e mesma máquina abstrata”
gesticulado não verbalm ente que catapulta o animal para a (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 1, op. cit., p. 60, cf. também p. 13; e Mil platôs, v.
arena da brincadeira na natureza, num a transform ação-in- 4, op. cit., p. 40). Nessa passagem, Deleuze e Guattari referem-se à “unidade de
composição” do estrato orgânico. No presente ensaio, o “único e mesmo animal
-loco que não afeta um sem afetar os dois. M as mais do que
abstrato” está integralmente estendido ao longo do continuum da natureza, tanto
orgânica quanto inorgânica, sob os auspícios da tendência supernormal, trazendo­
-a mais para a órbita daquilo que Deleuze e Guattari posteriormente, em Mil platôs,
18 Deleuze e Parnet, Diálogos, trad. bras. de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: chamam de “pura animalidade” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5, trad. bras. de
Escuta, 1998., p. 89, tradução modificada. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34,1997, p. 212). Cf. também a
19 Mil platôs, v. 4, op. cit., p. 162. nota 6, p.85, bem como o suplemento 3, ponto 4, abaixo.
20 Ibid., pp. 65-66,162. 22 Bergson, O pensamento e 0 movente op. cit., p. 135.

120 121
resolver problemas colocados por uma necessidade não viví-
vel. Mas talvez, apenas possivelm ente, a pura expressão terá
inventado uma form a dominante do mais intenso escape que
possa advir espontaneam ente, de nenhum lugar exprim ível,
para in-formar uma terrível situação que intuitivamente brota
da im anência do animal no ponto crítico, ressonando inte­
riormente em direção a uma atuação recém-emergente. Então
a tarefa muda: escolher um a arma no m ovim ento de escape poder reterritorializante da família edípica. Eles escrevem a respeito de “alguma
para lutar contra a recaptura.23 Ou, mais relacionai e pragma­ coisa diferente agindo subterraneamente” nos devires-animais de Kafka que leva
a desterritorialização absoluta ainda mais longe, rumo a saídas mais efetivas. São
ticam ente, encontrar um a ferramenta.24Não um a ferramenta
os “devires-moleculares” e os “devires-imperceptíveis” que pertencem à “vida
que funcione. Uma ferram enta que invente. Um a ferramenta anorgânica” (Mil platôs, v. 4, op. cit., pp. 32, 72-74). O anorgânico não deve ser
para construir as condições que perm item que o movimento confundido com o inorgânico (embora o uso de Deleuze e Guattari vacile entre
utilizar “anorgânico” e “inorgânico” em sentido estendido). A vida anorgânica é
de escape continue a evitar as capturas pela constituição de a vida ilimitada à “organização dos órgãos” da forma animal funcional/adaptativa.
uma prática de sua própria abdução, devindo autoabduzente, Ela percorre todo o continuum do que normalmente é classificado como inorgâ­
nico e orgânico, sem respeitar esse binarismo. A estratégia da presente explanação
autoinduzindo serialm ente seu próprio puxar-para-diante,
tem sido a de abordar esse continuum “ anorgânico” da natureza enfatizando a
gesticular pelo gesto de pensar-fazer, perseguindo a si mesmo imanência ao animal da “ coisa diferente que age subterraneamente” referida por
com o uma tendência intuitivam ente autocondutora, abrindo Deleuze e Guattari. Aqui, essa coisa outra é construída em termos de tendên­
cia supernormal de exceder a função e a adaptação, entendida como movimento
um caminho, com medidas iguais de proeza improvisacional
criativo da natureza. O problema a partir do qual deriva o presente projeto —
e técnica, em direção a territórios existenciais ainda-não-co- o de constituir um conceito de política animal a partir do movimento criativo
nhecidos, nunca antes vistos, conservando o potencial ani­ da criatividade — implica escolhas terminológicas diferentes das de Deleuze e
Guattari (como chamar de continuum apenas o da “vida” e tornar a tendência
mal supernormal que aloja o proclam ado povo por vir numa supernormal o movimento de “animalidade” ao longo de todo o continuum) e
natureza aberta, autossuperadora dentro de um horizonte de prescinde do gesto de estabelecimento de uma ordem de prioridade dos devires.
No suplemento 3, abaixo, a tendência supernormal será vista como o irrefreável
possibilidade sempre em expansão. A autonom ia de expres­
na vida orgânica. Isso abre alas para nos reconectarmos aos conceitos de “anor­
são especulativo-pragmática, elevada à mais alta e politizada gânico” e “devir-imperceptível” de Deleuze e Guattari, bem como entre este pro­
potência transindividual, não mais apenas devir-animal, mas jeto e construções conceituais — derivando de problemas distintos — para os
quais esses conceitos são emprestados. Em Mil platôs, diferentemente de Kafka,
revolucionária: mais-valia de vida, vivida o mais amplamente
Deleuze e Guattari não apresentam os devires-animais como impasses. Eles são
em sua intensidade integral.25 apresentados mais positivamente, com muito mais poder de desterritorialização,
mas ainda considerados portas de entrada para devires-imperceptíveis ainda mais
23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 3 op. cit., pp. 78-79. poderosos (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., pp. 72-73; e todo capítulo
“Devir-intenso, Devir-animal, Devir-imperceptível” , pp. 11-115, que vài da anima­
24 Ibid., p. 37.
lidade ao devir-imperceptível). O vocabulário próprio de Deleuze e Guattari já
25 Um apontamento sobre desviar de/com Deleuze e Guattari. Em Kafka: por se intersecciona com o deste projeto nos pontos-chave em que a animalidade é
uma literatura menor, pp. 70-71, Deleuze e Guattari ressaltam que os devires- estendida por todo o continuum: “a pura animalidade é vivida como inorgânica, ou
-animais de Kafka “mostram uma saída que são incapazes de seguir” devido ao supraorgânica” (Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 212).

122 123
SUPLEMENTO 2 Azoo-logia da brincadeira

Gregory Bateson relata que suas reflexões sobre a brincadeira


foram inspiradas por um a visita ao zo ológico de São Fran­
cisco. Dois m acacos brincando um com o outro lhe chama­
ram a atenção. Ficou “ evidente, m esm o para um observador
hum ano” , que suas ações lúdicas eram “ similares, mas não
as m esm as do com bate” .1 As análises de Bateson resultam
dessa observação da brincadeira, incluindo uma observação
da inclusão do observador hum ano na cena. Entretanto, no
restante de seu texto, Bateson nunca retorna à questão da
inclusão do observador humano e da “evidência” daquilo que
ele vê. É com o se — contra tudo o que ele diz a respeito da
brincadeira, da reflexividade e da linguagem — ele retornasse,
nesse ponto, à suposição não reflexiva de que o animal e sua
relação evolutiva com o humano possam ser sim plesm ente
denotados; de que a presença do observador hum ano seja
distraidam ente apagada. O que a anim alidade denotaria se
uma das coisas que ela não denotou fosse esse esquecimento?
Onde fica a brincadeira na própria análise, baseada na obser­
vação, feita por Bateson? A política animal da brincadeira pre­
cisa se confrontar com essas questões que giram em torno da
espectatorialidade.2

1 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 179.


2 Não é uma opção para a presente explanação proceder como se fosse possível
falar diretamente de objetos, na ausência do humano, esquecendo conveniente­
mente que é um animal humano que está falando. O esforço em fazê-lo, que é o
gesto fundador do realismo especulativo, é feito numa tentativa de escapar do
“correlacionismo” . Entretanto, colocar o ato do pensamento entre parênteses torna

125
Se no continuum animal é sempre um a questão de mútua
ainda mais difícil a tarefa de construir uma explanação efetivamente não correla-
inclusão, é necessário articular o modo de inclusão do humano
cionista da mútua inclusão diferencial do humano na natureza não humana (o que no animal e do animal no hum ano. No caso do zoológico,
será discutido no suplemento 3, ponto 3, como 0 “mais-que-humano” ). Meillas- assim com o em outros contextos em que os humanos traba­
soux (After Finitude, op. cit.) simplesmente coloca de lado a tarefa com a noção de
que o pensamento tem acesso especulativo direto ao real, um feito que só pode ser lham para se manter a certa distância, no papel do observador
atingido reafirmando a primazia e a autossuficiência do raciocínio lógico-mate- não implicado — seja no campo, no laboratório ou na frente de
mático, num retomo a uma ideia altamente tradicional da filosofia, atribuindo a
uma tela — , é visivelmente uma questão de uma operação rigi­
ela uma vocação universalista. Quem ou o que pensa, e quais as implicações no
mundo, tal como ele se dá, da participação do ato de pensar nunca são questões damente excludente. A m útua inclusão pareceria ser o últim o
levantadas (i.e., o fato de que um pensar é sempre um pensar com uma corpo- con ceito ao qual vo cê recorreria para entender o que está
rificação). Harman (Guerilla Metaphysics op. cit.) segue uma estratégia diferente.
Diz-se do real que ele é composto de objetos em si, apartados da relação. A fim de
em jo go nessas circunstâncias. Mas são precisam ente essas
explicar a relação, outro conceito filosófico hipertradicional tem de ser ressusci­ circunstâncias que predom inam nos encontros animal-hu-
tado do cemitério da história do pensamento ao qual Whitehead, entre outros, há
manos de nossa era, tardiamente batizada de “Antropoceno” .
muito tempo 0 relegou: a distinção entre qualidades primárias e secundárias, ou
o objeto em si e o objeto sensual — para a crítica de Whitehead acerca da “bifur­
cação da natureza”, cf. Whitehead, O conceito de natureza, trad. bras. de Julio B. correlacionismo? Todas as questões do pensamento correlacionista não foram sim­
Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 33-59. Essa velha distinção é revivida plesmente desviadas para o lado do objeto? Faz-se necessário ainda mais casuística
com uma torção. Historicamente, as qualidades primárias eram propriedades dos para suturar os problemas criados pela própria explanação. Há falsos problemas
objetos e as qualidades secundárias pertenciam ao sujeito que as percebe. Harman, implicados pelas pressuposições fundadoras dessa empreitada: a necessidade de
conservando sua abordagem orientada ao objeto, migra as qualidades secundárias uma ontologia baseada na substância e a ideia de que o objeto está essencialmente
para o lado do objeto. Tudo no pensamento correlacionista que era atribuído ao apartado — Whitehead (O conceito de natureza op. cit., pp. 169-170), ao contrário,
sujeito agora é arrogado ao objeto. Em outras palavras, uma filosofia do objeto define o objeto como aquilo que retoma. Na perspectiva aventada neste ensaio, a
sem o sujeito é alcançada simplesmente ao decretar tudo o que era considerado 000 é pouco mais que uma produção em massa de falsos problemas filosóficos ves­
subjetivo no pensamento correlacionista como sendo objetivo. Isso possibilita tindo velhos conceitos e enigmas em roupas novas e chamativas. A falsidade dos
que o objeto-em-si apartado se mantenha em sua unidade absoluta, à custa de problemas é traída pelo uso conspícuo do “nós” quando chega a hora de explicar
entrar num “duelo” (Harman, Guerilla Metaphysics op. cit., pp. 148-149) com suas a percepção e a relação. Que “nós” é esse? O “nós” permanece genérico. O “nós”
próprias qualidades múltiplas, que aparecem na relação. O que, então, mantém genérico é sempre um sinal garantido de um sujeito implicado-, uma colocação entre
juntos os aspectos em duelo (“ substância versus relação” , p. 183)? Há, como apren­ parênteses do ato de pensamento tal como ele ocorre. “Nós” realmente devemos
demos, uma “ cola” mágica (pp. 153-154) que mantém unido todo o universo: seu acreditar que voltar, por intricadas veredas, ao genérico sujeito humano implicado
nome é “metáfora”. A metáfora magicamente “converte as qualidades de objetos — corroborando agora a retórica de uma metafísica orientada ao objeto — seja um
em objetos por direito próprio” (“ elementos”) (p. 162). Porém, se as qualidades avanço filosófico? Devemos “nós”, sujeitos implicados, hipotecar à metáfora nossa
secundárias são agora objetos elementares, elas também não se apartam? Entra­ atividade de pensar-fazer? Eterizar nossos devires relacionais? Que política é essa?
mos então numa complicada casuística que apela a um “éter” misterioso, um tipo- Há muitas rotas alternativas ao pensamento não correlacionista — elas são todas
de emanação das “notas” do objeto, nas quais “ nós” , preceptores humanos, nos antes relacionalistas que substancialistas. Bergson, Whitehead, Deleuze, Ruyer
“banhamos”. Nesse banho, entramos vicariamente na órbita do “buraco negro” do e Simondon (sem mencionar Peirce): todos desenvolvem exaustivamente uma
objeto — que, em si, permanece “escondido da vista” (p. 20), enquanto “vaza” qua­ metafísica relacionai não correlacionista capaz de explicar a presença do humano
lidades e relação. Acaso essa cola metafórica não seria uma hipóstase daquilo que e respeitando, ao mesmo tempo, a anatomia ontogenética do não humano; reco­
anteriormente era chamado de subjetivo, tendo se reorientado ao objeto, tal como nhecendo plenamente a realidade do que jaz para além do humano. O problema
um casaco vestido do avesso como um novo estilo ousado? Acaso “ nós”, precep­ não é como pensar o objeto sem o humano. E pensar a implicação do humano em
tores desse vazamento, não estaríamos gerando qualidades secundárias enquanto uma realidade que, por natureza, o supera. O problema é o mais-que-humano —
nos “banhamos” nas emanações do éter, como fizemos o tempo todo, segundo o especialmente do próprio ato de pensar.

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Exemplares devires-animais, sem objetivo funcional ou destino No zoológico, os animais colocados em primeiro plano são
final, podem parecer irrelevantes no contexto dessa predomi­ realçados do fundo de m odo a serem exibidos com o figuras
nância de situações em que o animal é reduzido ao estatuto essencialm ente visuais. O enquadram ento zoológico instrui
de um objeto a serviço de um observador humano proposital- o espectador quanto ao fato de que as prem issas que suce­
mente não envolvido, m uitas vezes em detrim ento da vitali­ dem para o animal não devem ser estendidas às vizinhanças
dade do animal, quando não à sua pura e simples sobrevivência. hum anas, nas quais o animal está exclusivam ente incluído.
À primeira vista, a visita ao zoológico, que é a cena prim i­ As premissas que operam dentro da m oldura são mostradas
tiva do desenvolvim ento da teoria de Bateson, pareceria ser com o sucedendo na “natureza”. Por contraste, as premissas
a antítese da brincadeira. Verdade, o conteúdo da observa­ opostas da “ cultura” aplicam-se às vizinhanças imediatas das
ção é um a cena de brincadeira. Mas é este precisam ente o quais a figura do animal é destacada: o território humano da
problema: a cena é contida, no sentido literal de enclausura- instituição do zo ológico. Esse enquadram ento zo o-lógico
m ento numa jaula. Com o desenvolvido neste ensaio, a noção repete o gesto que Giorgio Agamben identifica com o o gesto
de “mútua inclusão” é a de um gesto enativo de dupla dester- fundador da política humana. O animal é reduzido ao status
ritorialização. No texto de Bateson, isso acontece em term os da “zoé” — m era vida biológica sob a regra categórica das
mais lógicos e, ao m esm o tem po, mais visuais. Bateson fala leis da natureza — e, consequentem ente, excluído da pólis
extensivam ente sobre enquadramento, referindo-se, concre- (ou, m ais p recisam ente, incluído apenas com o excluído).
tam ente, à m oldura de um a pintura e, mais abstratam ente, Os espectadores hum anos gozam do estatuto da “ bios” : “ a
ao gesto de m anter um a separação bem organizada entre form a ou m aneira de viver própria de um indivíduo ou de
categorias de seres e entre os níveis lógicos e m etalógicos um grupo” ; uma “vida qualificada”, reconhecida com o uma
envolvidos nessa tarefa.3 Em ambos os casos — o visual e o pessoa, e dotada do estatuto ju ríd ico que acom panha esse
lógico — é uma questão de exclusão por inclusão. A moldura do reconhecim ento (personalidade moral) .s
quadro inclui certo número de elementos visuais organizados A exclusão inclusiva do animal zoé-lógico é tudo, m enos
com o uma gestalt perceptual. A inclusão na m oldura coloca paradoxal. A m oldura se m antém firm e no lugar. M esm o
em primeiro plano as figuras pintadas que ali aparecem, real­ quando a jaula do animal no zoológico inclui elem entos que
çando-as contra o fundo form ado por aquilo que a m oldura evocam seu habitat natural — de m odo que algo próprio do
exclui. Um enquadram ento visual é tam bém um enquadra­ fundo natural da figura animal, que é estrangeiro aos entor-
m ento lógico. É “uma instrução para o espectador de que ele nos hum anos, seja incluído na jau la — , isso só eqüivale a
não deveria estender as premissas que obtém entre as figuras “um a m oldura dentro de outra m oldura” que nada faz para
no quadro ao papel de parede atrás dele” .4 minar a separação entre categorias lógicas e sua aplicação do
princípio do terceiro excluído. A lógica dem asiado humana
3 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 187-189.
4 Ibid., p. 189. SAgamben, Homo Sacer op. cit., p. 9.

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do um ou outro “precisa” do “ duplo enquadram ento” a fim co n cern e à estrutura, cujo traço co n stitu tivo é o desenho
de “delim itar o fundo contra o qual as figuras serão percebi­ de uma fronteira entre o dentro e o fora dem arcando o que
das” .6 Se o fundo incluído não é tão bem delim itado quanto a estrutura inclui em sua figura deslocada e aquilo que ela
a própria figura, a separação entre as prem issas que operam deixa na sombra de fundo do seu ambiente. A zona de “indis­
dentro da moldura e aquelas que operam fora dela pode ficar tin ção” ou indiferença que resulta de um borram ento dessa
borrada (um “perigo” com o qual boa parte da arte moderna dem arcação é o m ero oposto da estrutura.9 É o fundo indi-
brinca conscientem ente). É necessário duplicar o fundo para feren ciado co n tra o qual se d estaca a d iferença figurai da
enquadrar efetivam ente a figura. estrutura em relação ao seu ambiente.
N a verdade, é im preciso dizer que a exclusão inclusiva do Seguindo o princípio do duplo enquadram ento, essa zona
animal zoé-lógico não é paradoxal. De certa maneira, ela se de indiferença, que é o m ero oposto da estrutura, deve ser
presta m uito bem ao paradoxo. Mas não o tip o de paradoxo recon hecida com o um elem en to constitutivo da estrutura­
que figurou proem in en tem en te neste estudo. N ão o para­ ção. E o disform e do qual se sobressai essa form a de enqua­
doxo produtivo da colocação perform ativa em m ovim ento dram ento (o acop lam en to co rrelativo da estru tu ra e seu
de um a zona criativa de indiscernibilidade na qual as dife­ am biente). A diferença estrutural (no caso zoé-lógico, ani­
renças ocorrem conjuntam ente sem coalescer, fundem -se mal versus h um ano), figurada com o o conteú do do enqua­
enativam en te sem se confundir, num a proxim idade dinâ­ dram ento, fica realçada em relação ao fundo duplicado da
m ica que catapulta a vida a um m ovim ento transindividual indiferença. Mas faz isso à custa de ter se com prom eter com
de superação do que está dado em direção ao novo. Ao co n ­ ele, com o sua própria cond ição lógica de possibilidade. A
trário, é um paradoxo estéril que consiste m eram ente num zo n a de indiferença é a prem issa negativa em oposição à
borram ento de categorias. O que é suspenso nesse caso não qual a diferença estrutural se ergue. Enquanto logicam ente
são as funções norm ativas, com o na brincadeira, mas a pró­ condicionado, o duplo enquadram ento é uma dupla op osi­
pria diferença. A lém disso, a suspensão não é enativa, mas ção: hum ano versus anim al e humano-verszís-animal versus
m eram ente lógica.7 A diferença fundam ental que borra é a indiferenciação. Por outro lado, nos paradoxos animais pro­
distinção “ entre o que está dentro e o que está fo ra ” .8 Em dutivos, as diferenças em jogo não são redutíveis a oposições.
outras palavras, o estéril paradoxo em questão não concerne Em vez de um a zona de indiferença, elas possuem a zona de
ao dinamismo da vida em sua processualidade; antes mesm o, indiscernibilidade áa diferença (o terceiro incluído). Eles não
apelam para condições de possibilidade apenas lógicas, mas
6 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 188, grifo do autor. inserem-se enativamente em condições reais de emergência.10
7 O conceito de Agamben de “ suspensão” como aquilo que produz apenas indis­
tinção irredutível tem de ser precisamente contrastado com a suspensão lúdica
aqui teorizada, a qual suspende a fim de abranger diferenças e as reúne para a 9 Ibid.
produção de ainda mais diferença. 10 Sobre a distinção entre as reais condições de emergência (potencialização
8Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26. catalítica) e as condições lógicas de possibilidade (causa formal), cf. Deleuze,

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Sua constituição não é de uma natureza predominantem ente intim am ente relacionada com os problem as im postos pela
lógica, m ediada pela oposição, mas naturalm ente vital, em operação de enquadram ento. Em últim a análise, afirma ele,
toda a sua imediatez. a operação de enquadram ento não é tan to visual (a analo­
Agam ben dem onstra de m odo convincente que todo gesto gia com a pintura), tam pouco form alm ente lógica (concer­
político humano inclui logicam ente essa base indiferente em nindo às regras de form ação e classificação de categorias).
suas exclusões estruturais, de um m odo esterilm ente parado­ É “psicológica” .14 Isto é, no vocabulário do presente ensaio,
xal ou, de outro, em geral ocultado. Mas quando essa exclusão é apetitiva: concerne ao m ovim ento “m ental” da abstração
incluída confere a si mesma uma figura, é na form a paradoxal vivida, na m edida em que tende a superar o que está dado
da exceção que funda sua regra, recon stituindo a regra no na direção da criatividade, e pertence às subjetividades-sem -
ato de suspendê-la. Essa é a própria definição agambeniana -sujeito. A necessidade de duplicar o enquadram ento, com o
de soberania. O ato paradoxal de soberania ainda m erece ser um m ecanism o de segurança para m anter a separação entre
cham ado de “ estéril” , m uito em bora seja constitutivo. Pois categorias, “ relaciona-se à preferência por evitar os parado­
ele não inventa, refunda. Ele não supera o que está dado, dá xos da abstração” : os paradoxos, diríamos aqui, da abstração
novamente. Ele reproduz em essência a mesm a estrutura. “A vivida.15 Proteger a fronteira estrutural contra a m útua inclu­
exceção que define a estrutura da soberania... cri [a] e defin[e] são criativa é um modo de evitar a todo custo a superação do
o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter que está dado, ao qual a abstração vivida, animada pela ten ­
valor” .11 Trata-se de colocar de volta no lugar, em term os for­ dência supernormal, nos impele. Porém , o oposto estrutural
mais, as prem issas da p olítica humana: enquadrando-a de dessa proteção da fronteira estrutural é apenas outro m odo
m odo redobrado para outra rodada. de expressar a m esm a “preferência” — entenda-se: “desejo”
O zoológico é um exercício da soberania hum ana sobre­ — por evitar o m ovim ento criativo da vida, d esta v e z sus­
posta ao animal. A zoo-logia participa da estruturação dapólis, pendendo-a numa zona de indiferença, em vez de extirpá-la
que enxota o animal para o lado da vida não qualificada; em com o terceiro excluído.
outras palavras, vida que é “ m atável”, p or natureza — em O estado de exceção soberano é a dialética constitutiva-
oposição a ser “ sacrificável” , por cultura.12 m ente estéril entre essas duas estratégias opostas de evitar
Bateson u tiliza sua teoria da brincadeira para construir a afirm ação da abstração vivida. Bateson ressalta que, na
a definição do patológico.13Ele vê a patologia com o estando ausência de paradoxos de abstração (vivida), a evolução da
com unicação, que ele afirma ser inseparável da evolução da
Bergsonimo op. cit., p. 78; e o item “ Diferença conceituai: a maior e a melhor”, em
vida, “estaria num beco sem saída” .16 A estrutura soberana
Diferença e repetição, trad. bras. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006.
11 Agamben, Homo Sacer op. cit., p. 26. 14 Ibid., p. 186.
12 Ibid., p. 17. 15 Ibid., p. 189.
13 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., pp. 190-193. 16 Ibid., p. 193.

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da política humana é antidevir. Na medida em que cada vida Que se entenda por político-patológica qualquer tendên­
possui sua evolução criativa, a política hum ana é antivital. cia que se enquadra num desejo de evitar a abstração vivida.
Todos os três com ponentes da política hum ana — a figura Reforçar a linha divisória entre as diferenças estruturadas
do humano, a base do animal da qual ela se sobressai e a zona a fim de com inar o enquadram ento ao deslizam ento e ao
de indiferença explorada pelo estado de exceção através do apagam ento que em ergem com o paradoxo corresponde à
qual essa diferença estrutural é suspensa visando a um reen- norm atividade neurótica, que se investe de corpo e alma na
quadramento refundacional — podem ser considerados pato­ com pulsão de repetir o mesmo, na medida do humanamente
lógicos de acordo com os critérios de Bateson. A preocupação possível. É a normopatia de Jean Oury.18A norm opatia amplia
com o enquadramento, o duplo-enquadramento e o paradoxo a mínima diferença, deflagrada pelo paradoxo da brincadeira,
com partilhada por Bateson e Agam ben nos autoriza a p en ­ numa diferença m onum ental que é levada a sério demais. A
sar conjuntam ente o político e o “psicológico” — lembrando, lacuna é erigida num divisor estrutural, o qual é defendido
mais um a vez, que estam os falando não sobre “ o ” sujeito, a todo custo em nom e “ de com o as coisas são” . Nenhum a
mas sobre subjetividades-sem -sujeito. Ou, para sermos exa­ m istura é perm itida: brincadeira ou luta — por am or à sua
tos, estam os falando sobre m ovim entos qualitativos de uma sanidade, não ouse fazer as duas de uma vez.
natureza tendencial na qual o sujeito não possui ser, mas ape­ Se, contra essa defesa, apesar dos maiores esforços da sani­
nas extrasser, coincidindo com o elemento de pura expressão dade norm opática, as diferenças se fundem num a zona de
em devir. Isso significa, no fim, que existe apenas um sujeito, indiferença em que as categorias do ser não podem mais ser
e ele é múltiplo: o sujeito transindividual do animal integral tendencialm ente discernidas, a lacuna entre os níveis lógicos
superando a si m esm o (com o discutido no suplem ento 1).17 e 0 divisor entre os term os mutuamente exclusivos implodem.
Continuando: O signo é levado a sério com o o que denota o que iria denotar.
Isso im plica um a confusão entre o que “é ” e o que “poderia
ser”, na ausência efetiva de qualquer linha potencial de um
17 O conceito deleuziano de “extrasser”, tal como aqui mobilizado, converge com gesto enativam ente desem penhável que forneça um a linha
a teoria de Whitehead do sujeito como supeijecto: “Essa é a doutrina da unidade
emergente do supeijecto. Deve-se conceber uma entidade atual tanto como um de fuga transform ativa. A supressão norm opática da zona
sujeito que preside sua própria imediatez de devir [como uma forma dinâmica se de indiferença em erge. O fundo de toda estrutura em erge
transindividuando] e um superjecto, que é uma criatura atômica exercendo sua
à superfície. A apetição, é claro, nunca cessa. É da natureza
função de imortalidade objetiva [o ato de deixar para trás do potencial em formà
de rastro para devires subsequentes assumirem suas próprias constituições]. Ele da apetição nunca cessar. Sob essas co n d ições, seu m ovi­
se tornou um ‘ser’, e pertence à natureza de qualquer ‘ser’, que é um potencial m ento incessante só pode agora andar em círculos. Ele pode
para qualquer ‘devir’ (Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 45). O “ ser” do
superjecto é um devir atingindo sua culminação (“ satisfação”) e, nesse momento
discernir a diferença e a distinção entre categorias lógicas
preciso, “perecendo” no potencial que lega ao mundo, contribuindo para as con­
dições reais de emergência do que poderia vir em seguida. O superjecto corres­
ponde intimamente à “ síntese disjuntiva de consumo” de Deleuze e Guattari em 18 Caosmose, trad. bras. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo:
O anti-Édipo (“então era isso!”, pp. 116-118). Editora 34,2006, p. 99.

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som ente até o ponto de cair novam ente em um a confusão fazendo-a voltar para a indiferença antes que ela se desdobre
entre o “ é” e o “poderia ser’7. Isso resulta num a hiperprodu- transform ativam ente. O fascism o é um regime m isto no qual
ção de conexões associativas indiferentes à distinção entre o há uma oscilação louca entre a norm opatia coletiva e a para­
fato corporal e a possibilidade, um muito facilmente seguindo nóia da psicose coletiva.
para o outro. Estranham ente, a im plosão do signo na deno- O próprio Bateson não toca no terceiro com ponente polí-
tação daquilo que ele iria denotar resulta num deslizam ento tico-patológico: a pedra angular da exceção soberana. Mas
com pulsivam ente associativo. O que desliza é o potencial não é difícil dar um nome que se alinhe aos dois diagnósticos
para um a transform ação enativam ente desem penhável. Na que acabam os de apresentar: sociopatia. A soberania agam-
ausência processual do potencial gestual para a transform a- beniana é a sociopatia constitutiva da política humana. Que
çã o -in-loco, instala-se um sentim ento de im potência. Esse se entenda por sociopata qualquer m ecanism o que funcione
sentim ento segue a própria ladeira escorregadia, tendendo a para reproduzir mais norm opatia e psicose, em seus antidevi-
evoluir para um presságio e, então, uma ameaça — até mesmo res com plem entarm ente infernais. A sociopatia da soberania
uma perseguição. A tendência, em resum o, vai em direção a está intim am ente relacionada ao fascism o, ainda que a ele
um a paranóia. Essa é a pira psicótica da norm opatia (usando não se reduza.
a palavra psicótico num sentido não técnico e amplo). A sociopatia, com o a esquizofrenia nos term os de Deleuze
E crucial ter em m ente que essa figura desestru tu rada e Guattari, é um a tendência im pessoal. É transindividual e
da p sicose não tem nada a ver com a figura processual da transsituacional ao seu próprio modo; logo, jam ais afeta um
esqu izofren ia, tal com o teorizad a p or D eleu ze e G uattari. sem afetar, pelo m enos, dois. É transsituacional, na m edida
O esq u izo frên ico de D eleu ze e G uattari é a figura da afir­ em que seu estado de exceção é sempre um limiar entre duas
m ação absoluta da tendência supernorm al e tem a ver com reordenações. Diferentemente da tendência esquizofrênica, a
a in ten sificação do m ovim en to anim al da variação super­ tendência sociopática é político-patológica por natureza, em
norm al — logo, com a produção de diferenciações cada vez todos os casos: tanto no sentido trans(individual/situacional)
m ais efetivas. O p sicótico, no sentido desestru tu rado, é o quanto no personalizado, para se adequar aos contornos da
“trapo” hum ano produzido pelo bloqueio da tendência dese- corporalização individual. A individualização dessa patologia
jan te pela im posição da indiferenciação com o única alter­ soberana ocorre quando a tendência sociopática im pessoal
nativa à norm opatia.19 O p sicótico, no sentido p atológico, perde ou renuncia ao seu poder transindividual fundacional
tra z a indiferenciação que bloqueia o desejo supernorm al e vira monossituacional. Isso ocorre por força da privatização,
num a expressão frenética, pressurizada pela colisão do ape­ na retirada do campo relacionai da animalidade (e até mesmo
tite contra um im passe. Em v e z de m onum entalizar a dife­ do seu representan te hum ano atrofiado, a esfera pública).
rença mínima, o psicótico a declina na velocidade de dobra, A so cio p atia, ta n to no nível individual qu an to no ju ríd i-
co-político, é a tendência antivital que estrutura a política
19 Deleuze e Guattari, O anti-Edipo op. cit., pp. 15,34-35,121-123. humana. Ela abarca as tendências norm opáticas e psicóticas,

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absorvendo ambas em seu m ovim ento soberano. Todos os com o um a cam ada de papel de parede. N esse caso, som os
regimes de soberania, não só o fascismo, são regimes sociopa- ativam ente encorajados a confundir a figura pintada com o
ticamente mistos que abarcam esses níveis e tendências. Cada papel de parede. E poderia ser diferente disso, quando o papel
um inventa a própria resolução dinâmica para sua respectiva de parede da identificação se sobrepõe à pesada moldura da
tensão constitutiva entre os polos norm opático e psicótico. distinção zoé/bios?
Uma simples visita ao zoológico é uma instanciação menor A operação de sobreposição id entificatória é alcançada
dessa estrutura demasiado humana: um conto de moralidade através de projeção. Som ente em oções projetadas são sufi­
peludo, plumado ou escam oso que repete um a variação zoo- cientem ente flexíveis para driblar as grades, passando por
-lógica da história da política humana. A rigidez neurótica da cima da segregação que sua própria operação pressupõe. Se
separação zoé-animal/&zos-humano não é suficiente para pre­ psicose significa cair num a zona de indiferenciação, então
venir que se forme uma zona de indiferença. O zoológico, na projeção identificatória se qualifica com o um grau variante
verdade, favorece ativam ente a sua form ação, por meio de dela. Com o uma confusão categorial, situa-se no espectro psi­
suas atividades interpretativas e de relações públicas. Uma cótico, mas numa de suas pontas, bem próxima do normopata,
constante dessas atividades é a hum anização dos animais. compartilhando alegremente de sua generização normativa e
Eles são conhecidos p elo nom e, escolh idos com a devida de seus gêneros narrativos. A operação de projeção identifica­
atenção ao quesito fofura. Seus rom ances e os nascimentos tória injeta um a dose controlada de histrionism os parapsicó-
deles resultantes, não m enos que suas lastim adas m ortes, ticos na instituição do zoológico. Abrangendo o normopático
geram sempre notícia. Todo o possível é feito para incitar o e o psicótico ao seu m odo, aplica um toque final sentim ental
público hum ano a se identificar com os anim ais do zo o ló ­ à estratificação sociopática específica do zoológico.
gico a fim de arrecadar fundos. Uma confusão identificatória A figura exclusivam ente incluída do animal com o definido
é sobreposta à separação categórica inerente à instituição pela zoé some de vista, ficando atrás do papel de parede zoo-
do zoológico. Sabemos de que lado das grades nós estamos. -lógico. Os animais agora têm rostos e pensam os ver nos seus
Ainda assim, não sentim os alegrias e aflições pelos animais? olhos a imagem refletida de nossa própria humanidade. Isso
N ão com partilham os vicariam ente de suas vitórias e derro­ facilita o desconhecim ento dos visitantes acerca da natureza
tas? O zoológico não é apenas um local de confinam ento, é da política e da política da natureza que testemunham.
tam bém a porta de entrada para um melodrama que dota d e , A chave da operação é uma conversão do afeto dominante
bios os seres que são consignados à definição categórica de zoé. da situação. O horror ao visível sufocamento da vitalidade dos
Os contornos felpudos dessa mútua inclusão em ocional não animais é convertido em diversão — a diversão, em grande
substituem a dura exclusão constitutiva da política humana. m edida, é reconhecer-se no outro. É claro que a operação
Eles se acrescentam a ela, paralelam ente e em outro nível, nem sem pre funciona. As crianças, que são seus principais
ou com o um palimpsesto; ou, ainda, com o um a sobreposição alvos, são frequentemente as menos capazes de negligenciar o
decorativa aplicada às duras paredes da soberania hum ana horror e fazer vista grossa para a singularidade do animal, ao

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passo que os adultos que as acompanham, sedentos por uma do zoológico com o um território de encontro interespecífico
pausa divertida no trabalho duro de criar a próxim a geração que produz, dele, um a distorção anam órfica (ana-antropo-
de normopatas, adicionam histrionicamente seus esforços em m órfica)? M anter um olho na anam orfose é crucial porque
doses identificatórias. Q uando isso funciona, o que vem os a superfície de identificação não é, de maneira alguma, um
é uma encenação do cinism o estrutural da p olítica humana. mapa não distorcido da estrutura da política hum ana à qual
O cinism o consiste no revestim ento da barbárie estrutural forn ece suporte m oral. O borram ento da estrutura é um a
de sua exclusão inclusiva com uma superfície humanizadora parte funcional dessa instanciação particular da estrutura.
aplicada. Esse é um exem plo do tipo de antropom orfização Em outras palavras, enqu an to um gesto de m apeam ento,
que m erece ser veem entem ente denunciada. isso não cobre propriam ente o território ao qual aplica sua
C o m o um a p o lític a anim al deve lid ar com a p o lítica m etacam ada, no sentido de ligar cada ponto de sua superfí­
humana da estrutura zoo-lógica, dado que sua estratégia pre­ cie a um ponto correspondente no território. Enativam ente,
ferida não é a denúncia? Às vezes a denúncia é necessária, o mapa é, na verdade, um a peça adicionada à estruturação
mas nunca é o suficiente. A política animal sempre busca uma m ultinível do território. Ele é um a parte disso, com uma fun­
m aneira de alavancar a criatividade, m esm o nas situações ção seletiva em relação ao território do zoológico: editá-lo
mais fortem ente fechadas e passíveis de denúncia, abrindo distorcidam ente.
um a fresta pela qual a ten dên cia supernorm al consiga se O que é editado anamorficamente é o fato de que há uma
safar, alçando voo em direção à superação do que está dado. atividade de outra natureza que segue em frente, a despeito
Onde é que um a abertura com o essa pode ser encontrada da estruturação. Essa atividade segue esburacando m inim a­
na face hum anizada do confinam ento estrutural do animal? mente a estrutura, impulsionada pela pressão de um apetite,
No confinam ento do animal à dependência total ao que lhe não totalm ente sufocado, de transbordá-la. Por mais rígida
é zoo-logicam ente dado? Na escravidão corporal do animal à que seja a separação categorial subjacente, e por mais senti­
mão (ou ao polegar opositor) daquele que o trata, m atizado m entalm ente efetivo que seja o seu revestim ento, resta um
som ente com um a cam ada de cinism o sentim ental? Todas resíduo animal incontido. Também acontece outra coisa que
essas perguntas resum em -se a uma: com o é que, apesar de não pode ser reduzida nem à separação m utuam ente exclu­
tudo, o zoo-lógico ainda é lúdico? siva entre zoé e bios, nem à zona com pensatória de indiferen-
Bateson inclui, de form a interessante, o “histrionism o” no., ciação da identificação projetiva, nem sequer à sociopatia de
“com plexo de fenôm enos” que com põem o cam po da brinca­ seu funcionam ento zoo-lógico conjunto.21 Algo ainda se move
deira, tudo isso envolvendo algum tipo de jo go na distinção
entre o m apa e o território.20 A superfície da identificação 21 No vocabulário de O anti-Edipo, a estrutura da política humana é a “ represen­
zoo-lógica não poderia ser considerada um mapa projetivo tação recalcante” do excepcionalismo humano que serve como uma isca para o
desejo animal. Deleuze e Guattari (O anti-Édipo op. cit., pp. 157,218-220) argumen­
tam que o discurso psicanalítico é parte integrante da representação recalcante
20 Bateson, “A Theory of Play and Fantasy” op. cit., p. 181. da família edípica. O pensamento de Agamben, por todo o seu interesse, tem de

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de m odo im perceptível por baixo da superfície do teatro sen­ estrutura.23 É sempre esse o caso. Sempre há m ovim entos de
tim ental das em oções humanas, percolando distorcidam ente fuga incipientes até m esm o na estrutura mais humanamente
a estrutura da qual constitui o fundo. im perm eável, esburacando-a com minifissuras, am eaçando
A estrutura da política humana não é tudo que há em vigor. m iná-la com o um dique com vazam entos. Há sem pre uma
Há um a sobra de política animal, um excesso residual disso tendência supernorm al a escapar, até m esm o dos prazeres
que se m ove no fundo do fundo, na tendência autotransbor- m acios da sentim entalidade que com pensa o horror da bar­
dante que preenche o cam po do continuum da natureza. O bárie da qual o humano mais se orgulha, talvez mais arrogan­
duo zoo-lógico figura/fundo — o mapa distorcido e o terri­ tem ente onde o orgulho passa despercebido com o questão
tório institucional, respectivam ente — destacam -se contra política: a excepcionalidade do seu ser específico.
esse fundo movente. O fundo da tendência supernormal ain- “ É provável” , escreve Bateson, “que não som ente o histrio-
da-movente enquadra duplamente a estrutura zoo-lógica em nism o, mas tam bém a espectatorialidade, devam ser incluí­
seu próprio subterraneam ento potencial. Representa a des­ dos nesse cam po” da brincadeira.24 Se a espectatorialidade
territorialização potencial da estrutura. Esse fundo de sub­ faz parte do cam po da brincadeira, então não podem os con­
terraneamento nada mais é que a autoafirmação da vitalidade siderá-la um a via de m ão única. C om o Bateson sublinha, no
animal, o entusiasmo do corpo autocondutor que nunca pode cam po da brincadeira sem pre se trata de diferentes papéis
ser inteiram ente acalmado.22 Comoções vitais microagitam a m utuam ente incluídos no m esm o “ com plexo” . O com plexo
inclui m u tu am en te disparando ações e suas “recíp ro cas” :
as ações do o u tro ou dos o u tro s tra zid a s para a b rin ca ­
ser considerado como parte integrante da representação-recalcante da estrutura deira pela fo rça transind ividu al da tran sfo rm a ção-in-loco
zoé-bios, na medida em que impõe a alternativa infernal entre essa ordem de dife­
que o gesto lúdico enativa.25 Q uando aplicado à espectato-
renciação e indiferenciação humano-política. Isso leva ao impasse do potencial
negativizante. Para Agamben, o mais alto potencial, a “pura potência” , só pode ralidade, esse p rincíp io tem im p licações im portantes. Em
ser construído como o “poder de não”: a potência suspensa e sem saída, numa v e z de um a via de m ão única, a espectatorialidade tem de
zona irredutível de indistinção que mantém o agir e o não agir e o pensar e o
não pensar numa contradição insolúvel — ou, para sermos mais precisos, a única
ser entendida com o um a relação. A relação deve ser co m ­
saída não é a afirmação ou a apetição, mas a indiferença elevada à última potên­ preendida com o recíproca, com o um a atividade bidirecional
cia, onde a contradição se dobra sobre si mesma em uma negação da negação que abarca o diferencial entre os papéis que se reúnem em
(Agamben, Potentialities: Collected Essays in Philosophy, trad. ing. de Daniel Hell-
er-Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1999, pp. 141,143). O pensamento ■ contraponto. Isso significa que todos os envolvidos são, de
de contradição e negação só consegue captar “condições lógicas de possibilidade” algum a m aneira, participantes ativos, apesar do ostensivo
(causa formal), o que ele encontra não nas lacunas dinâmicas do mundo, mas
na aporia (causa formal elaborada numa teologia negativa, na qual àquilo que é
considerado paradoxo estéril, na perspectiva aqui desenvolvida, atribui-se a um
23 Isso é o que chamo de “atividade nua” (Massumi, Semblance and Event op. cit., pp.
poder messiânico).
1-3,10-11; 2010), discutida abaixo no suplemento 3, ponto 4.
zz Sobre o chão sem fundo da experiência vital que o ultrapassa, cf. Deleuze, em
24 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., p. 182.
Diferença e repetição op. cit., p. 138) e o item “Segunda característica: afirmar a
diferença” do mesmo livro. 25 Ibid., pp. 181-182.

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m onopólio de atividade de um lado ou de ou tro (no teatro, imperceptível, deixado para trás na operação humano-política
do lado dos atores; no zoológico, do lado dos espectadores da conversão afetiva? Esse algo extra poderia ser um resíduo
que peram bulam e identificam -se projetivam ente). N ão há inconversível da simpatia animal? Pertencente a outra política?
jogador passivo. A brincadeira é um com plexo dinâmico, um D ebaixo dos pegajosos paralelepípedos da estru tu ra da
cam po integral de ação diferencial, aglutinando-se diversa­ sentim entalidade identificatória e do horror de sua política
m ente em m útua inclusão. hum ana ja z a praia da sim patia animal. Ou: às m argens do
“O ” espetáculo não é monolítico. Para utilizar uma frase de mar indiferenciado do sentim ento humano submergindo os
Ruyer, é um “com plexo espetáculo-espectador”.26 A relação destroços da separação zoé-bios jazem os turbilhões da maré
espectatorial é um campo de atividade distribuído. É saturado da animalidade transindividual, traçando de um a só v e z as
pela reciprocidade da relação. Quando os m acacos estavam linhas diferenciais de seus movimentos tendenciais nas areias
brincando diante do antropólogo que os observava, o antropó­ de todos os continentes, independentem ente das distâncias
logo estava ativamente implicado com eles no complexo lúdico estruturais que os separam. Ou ainda: ladeando e fissurando
que seus gestos ocasionavam , numa transform ação-in-loco a em oção humana ja z o afeto vitalm ente animal.
que arrebatava ambos os lados, de um modo não inteiramente A sim patia, com o previam ente argum entado, não opera
alheio ao tipo de puro devir duplamente desterritorializante a partir do ponto de vista de um dado participante. N ão é
discutido no suplem ento 1. Quando a feliz m ultidão de pro­ uma ancoragem individual na situação a partir de um ângulo
jeções aguarda em fila pela oportunidade de ceder a alguma particular. É um a perspectiva de reciprocidade situacional
projeção sentimental com as celebridades que são os pandas de todos os ângulos. É m enos um a perspectiva situada do
recém-nascidos, os animais observados entram imediatamente que uma perspectiva situacional: uma inspeção imanente da
num complexo campo de relação com a multidão humana atra­ mútua inclusão diferencial das ações potenciais de tudo o que
vés das grades. Há devires em curso, a pé e a pata; e se não foi gesticulado no acontecim ento que acaba de se deflagrar.
passam de agitações, elas são tudo, menos imperceptíveis. Vim os que a reação de um participante já foi incluída poten­
O anim al dentro da jaula não está tão con tido quanto cialmente na ação do outro, presente em germe na -esquidade
parece num primeiro momento. Talvez a maior arma da polí­ do gesto lúdico. A simpatia é essa im ediatez transindividual.
tica humana seja fazer parecer que ele esteja. Acaso não são as Com o discutido anteriormente, a perspectiva situacional ena-
crianças que sentem o horror, sentindo algo vital através d e . tivada no ato simpático é chamada, na term inologia de Ruyer,
horror? Algo que é radicalmente alheio à estrutura da política de “ inspeção absoluta” . Isso é um englobam ento integral
humana e à sentim entalidade indiferenciante e tão humana da situação no pensar-fazer, na im ediatez da situação, sem
segundo a qual o horror deve ser anam orficam ente conver­ o ponto de vista de um a dim ensão suplem entar a partir do
tido? O que elas sentem , intuitivam ente, não é algo extra qual, com o que de fora, olhar para ou olhar de cima a situação.
A simpatia é o entrem eio imanente da situação, diretam ente
26 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 203-221. sentido no pensar-fazer da ação por vir.

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O que é sentido na simpatia é aforma dinâmica da situação. tendencial da situação. É o “o que” que está acontecendo, na
Isto é sentido não a partir do ponto de vista de um ou outro medida em que orientado por um m ovim ento tendencial que
participante, mas a partir da perspectiva situacional daquilo arrebata a situação. Há uma genericidade no desdobramento
que, potencialm ente, passa entre eles. A simpatia não é iden- tem ático, no qual os parâm etros gerais do resultado estão
tificatória e não envolve, de maneira alguma, um a indiferen- dados de antem ão. N a brincadeira, o resultado genérico é:
ciação. Ela m ovim enta a experiência com um entendim ento expressar inventivam ente o entusiasm o do corpo. N o com ­
enativo do diferencial entre os respectivos papéis a serem bate, é: lutar ou fugir, ganhar ou perder. Na predação: com er
interpretados reciprocam ente entre os participantes: o que ou ser com ido. Apesar de os parâm etros estarem geralmente
Ruyer chama de “tem a form ativo” da situação.27 O tem a for- dados e serem entendidos intuitivam ente desde o prim ei­
m ativo é o que foi cham ado anteriorm ente de “form a dom i­ ríssim o gesto, o fim nunca corresponde inteiram ente a uma
nante” . Para retom ar ao principal exemplo utilizado no corpo conclusão prévia, e isso tam bém é imediatamente entendido
deste ensaio, o com bate é o tem a form ativo tan to da luta a partir da primeira descarga gestual de atividade que dispara
quanto da luta de brincadeira, a diferença está na ponderação o acontecim ento. A abertura vai além da incerteza sobre a
relativa do fator criativo da mais-valia de vida que advém com qual incidirá o fim alternativo genérico. Há sempre tam bém
o entusiasmo do corpo, relativa ao valor de sobrevivência que a possibilidade criativa de que uma improvisação espontânea
advém com o esforço corporal diante dos imperativos dados — um a invenção estética enativa — inflexione o desdobra­
da situação (ou entre a intensidade da abstração vivida e a m ento tendencial, conferindo à genericidade do tem a uma
com pulsoriedade da im portância vivida). virada singular, um algo extra que supera o conhecido “ o que”
O tem a está de um lado e do outro. Está em todos os luga­ do que está acon tecen d o com um im previsto “ co m o ” isso
res da situação, d iferencialm ente distribu ído pela diversi­ terá acontecido. O “ entendim ento” sim pático da orientação
dade de papéis definidos na brincadeira. Aqui e acolá, e por tendencial do tema, incluindo um entendim ento intuitivo da
toda parte distribuído, o tem a é “não localizável” .28 É o sabor m aneira pela qual sua dadidade genérica poderia ser supe­
rada no acon tecim en to por vir, advém com a im ediatez da
27 Ibid., pp. 17-18. Bergson também fala de “instinto” em termos de temas. Com ­
“ consciência prim ária” .
parando o comportamento instintivo em insetos sociais, ele diz que os comporta­
mentos não são reunidos parte a parte, mas ocorrem em blocos temáticos cujos A consciência prim ária que advém com a simpatia é uma
elementos sofrem, todos, variação integral. “ Com toda probabilidade, a maior consciência relacionai e situacional. Isso significa, uma vez
ou menor complicação dessas diversas sociedades não se prende a um maior ou
menor número de elementos adicionados. Encontramo-nos, antes mesmo, diante
mais, que é não localizável. Não é redutível à consciência de
de um tema musical que se teria primeiro transposto, como um todo, em um certo um indivíduo. É o com partilham ento recíproco de indivíduos
número de tons e sobre o qual, ainda como um todo, teriam sido depois executa­ envolvidos na consciência da situação. É a consciência dife­
das variações diversas, umas muito simples, as outras infinitamente engenhosas.
Quanto ao tema original, ele está por toda parte e em parte alguma” (Bergson, A rencial da integralidade da situação: a unidade dinâm ica de
evolução criadora op. cit., p. 186, tradução modificada). sua ação enquanto aquilo que inclui m utuam ente o diverso.
28 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., 1952, p. 12. E o entendim ento intuitivo do que não afeta um sem afetar o

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outro. Em outras palavras, é a consciência afetiva do dinamismo sentir em erge com o que de um a dim ensão suplem entar, a
da situação, registrando o “ o que” que está tem aticamente em uma distância mediada. Isso modifica a compleição afetiva da
jo g o nisso com o “co m o” do desdobram ento tendencial do situação. A ponderação muda a favor do afeto categórico em
tema, incluindo tanto a genericidade da situação quanto sua jogo e de seu tem atism o genérico, convertendo efetivamente
inflexão potencial direcionada à evolução supernormal. a absorção primária pelo indivíduo no afeto transindividual
Sim-: ju n to / patia: ser afetado. A quilo com o que a cons­ da situação numa em oção privadamente possuída e conven­
ciência dinâmica “ sim patiza” é aforma dinâmica do que está cionada. Essa conversão interiorizante do com plexo afetivo
por vir, afetando a um e a tod os, diferentem ente ju n tos e transindividual na m oeda da em oção humana convencional
orientados tem aticam ente. Em resumo, a consciência afetiva é o que traz a situação para a seara da política humana.29 Ela
é a experiência im ediata do afeto transindividual do acon te­ traduz simpatia animal em emoção humana.
cim ento que se desenrola. “A feto ” é utilizado aqui sem um Algo se perde nessa tradução hum ano-política. A interio-
qualificador para englobar tanto o afeto de vitalidade quanto rização do afeto categórico, m inim izando o entusiasm o do
o afeto categórico, um a v e z que eles se reúnem tem atica­ corpo do afeto de vitalidade, confina a experiência em sua
m ente num com plexo. A sim patia é a consciência primária própria generalidade. É a genericidade do tema que agora tem
do complexo afetivo na brincadeira. Ela inclui uma percepção, o maior peso. O potencial inventivo singular da situação é dei­
im ediatam ente sentida, da compleição afetiva da situação (a xado de lado, bem com o sua dimensão transindividual. Essa
textura do afeto de vitalidade e do afeto categórico; o modo produção da em oção hum ana individualizada é altam ente
com o se misturam e sua proporção tendencial). política, onde quer que ocorra. É um m odo de m inim izar o
A sentimentalidade humana edita a compleição. Ela salienta p oten cial inventivo ten dencialm ente em jo go. Ela ajuda a
o afeto categórico, devidam ente convertido, e enfatiza de , assegurar que o que transpira no final seja uma refundação
m odo seletivo seu “o que” tem ático. Isso m inim iza o “com o” de um a antiga ordem baseada em distinções categóricas já
singular do elem ento do afeto de vitalidade. Enfatiza a generi­ genericam ente in loco. Ela cria um a situação na qual o tem a
cidade da situação em detrimento da sua singularidade e silen­ pouco provavelm ente excederá seus parâm etros e as alter­
cia o seu dinamismo. Com o resultado desse silenciamento da nativas já dadas neles inscritas. Considere uma discussão de
form a dinâm ica do acontecim ento, o “o que” fica parecendo casal genérica. Seu desdobram ento está, em larga medida,
menos uma dimensão de um acontecimento e mais uma coisa, traçado de antem ão. V ocê não sabe com o vai term inar só
Ele é sentido com o o conteúdo qualificado do acontecim ento. porque ainda não é certo qual dos dois finais m utuam ente
Através de projeção identificatória, a sentimentalidade reflete exclusivos vai acontecer (ruptura ou reconciliação). Em todas
o conteúdo relacionai de volta no indivíduo. O “o que” de que as situações nas quais a experiência do afeto de vitalidade foi
se trata é sentido com o algo que cada indivíduo tem dentro
de si, com o um a função de seu ponto de vista particular na
29 Sobre a conversão do afeto envolvente em conteúdo emocional, cf. Massumi,
situação. Ponto de vista: um panorama sobre o conteúdo. O “Fear (The Spectrum Said)” op. cit., pp. 37-38.

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desenfatizada em relação ao afeto categórico, de modo que o ao m elodram a, o qual dedilha as cordas do já reconhecível
lado em ocional da m oeda afetiva sempre caia com a face para no violin o da sensação. O m elodram a, e mais am plam ente
cima, há duas alternativas hedônicas: prazer ou dor; feliz ou o histrionism o, não é só um a variação da em oção hum ana
triste. Hollywood, aí vam os nós. entre outras. É seu epítom e.
A intensidade do entusiasm o do corpo anim al é, por co n ­ A em oção hum ana é a sensação lim itada a repetir-se, na
traste, não hedônica; e com porta uma carga de sensações com medida do possível, dentro de parâmetros conhecidos: a velha
qualquer núm ero de resultados m utuam ente inclusivos a ladainha. A intensidade do afeto de vitalidade, por outro lado,
cada passo do cam inho, não som ente dos dois convenciona­ sempre enfatua vitalm ente a si mesma. Seu confinam ento é
dos. A intensidade é, por natureza, qualitativam ente extra: contravital. É a antivida animal clam ando contra o excesso
um a mais-valia de vida. Ela responde apenas a critérios ima­ inventivo. A excessividade que resta na emoção é uma expres­
nentes pertencentes à sua própria carga de potencial, não a são do afeto de vitalidade e do entusiasm o do corpo pressio­
critérios genéricos de ju ízo aplicados de fora. Em si, é sin­ nando para se fazer sentir. O restante do excesso na emoção é
gularm ente inqualificável. “F e liz” ou “triste ” , até m esm o vestigialmente lembrado na raiz etim ológica da palavra. E-mo-
“prazer” ou “dor”, nem sequer com eçam a expressá-lo. Feliz vere: m over(-se) para fora; superar-se dinamicamente.
e triste, dor e p razer são experim entad os em graus quan­ Quando o entusiasmo do corpo vem a ser emocionalmente
titativo s, com o um term ôm etro de sensação vital, ou um contido, fica pressurizado p elo confinam ento. Só pode ser
p lu v iô m e tro cap tan d o lágrim as. A in ten sid a d e da v ita li­ expresso de m aneira distorcida. Ele se expressa não com o
dade m arcada pelo entusiasm o do corpo é im ensurável. É um m ovim ento de autossuperação-em -devir, m as apenas
p uram ente qualitativa. N ão há com o m edi-la. É som ente com o um (de form a freqüente e em baraçosa transform ado
p en sável-realizável, sen tid a com um e x ce sso e m o cio n a l­ em clichê) estar em ocionalm ente fora de controle (tom ado
m ente inexpressível de sua própria qualidade de vida. Em erroneamente com o paixão animal). A sentim entalidade iso­
outras palavras, só pode ser intuitivam en te entendida ao la-se até m esm o dessa saída de em ergência histriônica, cons­
vivo. N unca pode ser com pletam ente analisada, aposteriori, trangida aos m oderados graus medianos do term ôm etro do
co m o em oção (que sem pre convida a um a superinterpre- histrionism o humano-emocional. Na escala humana de em o­
tação, quando não dada com o certa). É algo sobre o que de ção, a simpatia animal é traduzida em seu análogo humano
fato podem os pensar; mas cada vez que pensam os nela, esta­ esmaecido: empatia. O epítom e dessa tradução é encontrado
m os efetuando-a de novo, de m odo diferente, num p o ten ­ no m elodram a (a mágoa e a pena).
cial realmente sentido. O conteúdo em ocional, isolado com o A sentim entalidade faz com o se não houvesse nenhum a
tal da força perform ativa do afeto de vitalidade, está sob o saída além das alternativas já conhecidas. M as sem pre há
dom ínio daquilo que já está dado. É um a das expressões algo que escapa ao confinam ento, ainda que isso não co n ­
m ais hum anas da dependência genérica em relação ao que siga achar por onde se expressar. Há um a contrapressão ten-
já foi tem aticam ente expressado. É por isso que ele se presta dencial ao confinam ento. Há sem pre algo revolvendo nas

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m icrofissuras da estru tu ra da personalidade hum ano-polí- entendida no sentido imitativo, nunca faz “ com o se” .30A im i­
tica, preparando-se para vazar. É tão anim alm ente certo ser tação é a identificação quando projetada de volta à sua fonte,
esse o caso que se torna possível utilizar a sentim entalidade sobrepondo a form a do outro no espectador. É uma sobrepo­
com o um índice contraintuitivo de um devir-em-espera. Há sição de volta à fonte a partir da qual em ana a identificação
um a positividade paradoxal ao sentim ento com o um signo projetiva discutida acima. Em ambos os casos, a zona de indi­
do devir. É dem asiado fácil denunciar a sentim entalidade ferença identificatória serve com o meio de transporte para a
(com o acabamos de fazer). Mas talvez a denúncia não venha mesmidade da forma. Na visita ao zoológico, a antroforma se
ao caso. Talvez o que esteja em questão seja outra coisa. E tão anamorfiza no animal. Na imitação, o m ovim ento vai na dire­
fácil denunciar a sentim entalidade que a própria denúncia ção oposta. É a forma do animal observado que se anamorfiza
se torna uma m elodia embotada. É m uito fácil investir em o­ no espectador humano, revestindo-o com um m otivo animal.
cionalm ente na denúncia. O problem a é que a denúncia, ela É um a reprojeção secundária — um a retrojeção distorcida
própria, é m uito humana. — condicionada por um a projeção ana-antropom orfizante
Denunciar é uma coisa. Traçar uma cartografia do gesto vital prévia. Som ente hum anos im itam animais. Até m esm o nas
é outra. Todas as ações e sensações são gestos vitais de uma situações mais íntimas e humanamente ordenadas nas quais
maneira ou de outra. Até mesmo o mais antivital dos gestos os animais convivem com os hum anos, no papel do animal
borbulha de vida em algum nível. Uma cartografia dos gestos de com panhia ou na criação de animais, eles jam ais imitam
vitais registra essas borbulhas. Ela desce ao nível das micro- os hum anos. Eles se relacionam com eles. N esse sentido, a
fissuras para intuir qual o potencial de singularização que elas identificação só vai num sentido.31
anunciam . Isso só pode ser uma cartografia vivida fazendo
com que o tema seja de novo formativo — infectável de uma jo Como parte de uma constelação conceituai distinta, o “ como se” pode ser
maneira inventiva, vitalmente improvisável. Em vez de reprisar tomado num sentido de potencialização estética. Cf. “Just Like That” (Manning
e Massumi, Thought in the Act op. cit., pp. 31-58), no qual a questão conceituai é a
a m esm a e velha trilha sonora, a cartografia vivida do senti­
relação entre linguagem e movimento.
mento reencena a situação, ajustando-a para que ultrapasse a
31A atenção crítica à dinâmica humana de identificação possibilita estratégias para
si mesma. Isso requer que o indivíduo assuma completamente uma reivindicação de treinamento e de domesticação, a despeito das assimetrias
sua implicação transindividual na situação. O confinam ento de poder autoevidentes, como nos trabalhos de Donna Haraway (When Species Meet.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007) e Vinciane Despret (Despret e
na emoção é traduzido de volta em lampejos de potencial de Porcher, Être bête. Paris: Actes Sud, 2007). Parenteticamente, há uma interpreta­
escape transsituacional. A reterritorialização da paixão animal ção errônea, em Haraway, da infame asserção de Deleuze e Guattari de que “todos
aqueles que amam os gatos, os cachorros, são idiotas” (Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 21).
em emoção humana é atraída de volta para uma desterritoria-
A citação é tomada fora de contexto. Deleuze e Guattari estão falando especifica­
lização potencial. O humor emocional basicamente estático é mente acerca da familiarização edípica dos animais domésticos (gatos e cachorros
traduzido de volta ao modo condicional da possibilidade ativa. tratados sentimentalmente como crianças humanas). A crítica é contra esse gesto
humano de identificação projetiva. Ela não se dirige, de modo algum, a cães e gatos,
A sentimentalidade “faz como se” ... (como se não houvesse ou pets em geral — ou tampouco a humanos que têm animais de estimação, em
saída além da alternativa já conhecida). A cartografia vivida, geral. Qualquer animal, continua a passagem, até mesmo cães e gatos, até mesmo

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A cartografia vivida jam ais im ita. Seu elem en to não é o dim ensão de desterritorialização potencial na brincadeira.
im itativo “ com o se” . E o “ assim” inventivo. O “assim ” é o Algo borbulha, e a catálise incipiente que isso representa per­
“ com o se” com um detalhe extra que excede todas as expecta­ tence não à form a animal entendida num sentido estático e
tivas. Fazer “ como se” é reproduzir uma forma. “Fazer “assim” substancial, mas sim à forma dinâmica da consciência primá­
confere à form a um a virada singular. Traz autossuperação à ria simpática, inspecionando a situação a partir da perspectiva
form a, não por m eio de projeção, mas de um gestual -esco animal integral de sua capacidade de superar o que está dado.
criativamente catalítico. Quando uma criança humana brinca N ão subestime os poderes vitais de “ im itação” animal.
de animal, é fácil confundir o que ela está pensando-fazendo Pense num a criança brincando de animal. D ecerto é fácil
com um jo g o hum ano de im itação, com o se a criança esti­ sentim entalizar a cena. Mas e se a levarm os a sério, isto é, se
vesse tentando fazer com que a própria forma se conformasse observarmos os seus aspectos que são verdadeiram ente lúdi­
com a do animal. É tudo tão fo fo e facilm ente sentim entali- cos no sentido mais criativo? Sim ondon escreve que a cons­
zado. Mas, de acordo com Ruyer e Simondon, a imitação é um ciência do animal de que a criança dispõe envolve muito mais
conceito mal construído. N a realidade, nunca simplesmente que um simples reconhecimento de sua form a substancial.33E
se imita uma forma, no sentido de se conformar à forma dada só olhar para um tigre, ainda que de maneira fugaz e incom ­
de outro ser. Pode-se certam ente fazer com o se estivesse efe­ pleta, seja num zoológico, livro, filme ou vídeo, e pronto! A
tivam ente imitando. Entretanto, o que acontece é outra coisa, criança é entigrezada. Transform ação-in-loco. A própria per­
na verdade, tácita e inexpressivamente. Com o diz Ruyer, “só cepção é um gesto vital. A criança im ediatam ente com eça não
se pode imitar aquilo que se é quase capaz de inventar”.32 Aquilo a imitar a form a substancial do tigre que acabou de ver, mas
que é sentim entalm ente considerado imitação é, na verdade, a dar vida a ela — dando a ela mais vida. A criança brinca de
a catalisação de um germ e de invenção. Ele pode cair no solo tigre em situações nas quais nunca viu nenhum tigre. Mais que
infértil da fam ília hum anam ente-política, com sua inclina­ isso, ela brinca de tigre em situações em que nenhum tigre
ção à edipianização. Ainda assim: sem pre há aquela outra jam ais foi visto, nas quais nenhum tigre terreno jam ais colo­
cou a pata. A criança imediatamente se lança num movimento
animais de zoológico, pode participar de devires com os humanos (p. 22). “ Haveria de superação do que está dado, perm anecendo de m odo notá­
animais edipianos, com quem se pode ‘brincar de Édipo’, fazer família, meu cachor-
rinho, meu gatinho e, depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário, vel fiel ao tema do tigre — não convencionalm ente, mas a
para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o mesmo animal poderia partir do ângulo de sua potencialidade processual.34
estar tomado em duas funções, dois movimentos opostos, dependendo do caso?
(p. 12, tradução modificada). Deleuze e Guattari claramente pendem para o lado da
segunda hipótese: não é uma questão de uma característica essencial qualquer dos 33 Simondon (Uinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit.,
humanos ou dos animais, mas sim de “funções e movimentos opostos” . p. 236). Cf. também o comentário de Muriel Combes (Gilbert Simondon and the
32 Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., p. 138. Cf. “É sempre o imitador quem cria seu Philosophy ofthe Transindividual op. cit., p. 27).
modelo e o atrai” (Deleuze e Guattari, Müplatôs, v. 1 op. cit., p. 23). Sobre a crítica 34 Para uma análise complementar de um encontro humano-animal lúdico, num
de Deleuze e Guattari acerca da imitação em relação com o devir-animal, cf. ibid., zoológico, entre um bonobo adulto e um adulto humano, cf. Manning, Always More
pp. 19-20; Müplatôs, v. 4 op. cit., pp. 17-20). Than One op. cit., pp. 210-214).

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Perm anecer processualm ente fiel a um tem a vital não tem N ão há sem elhança entre a form a da criança autoperfor-
nada a ver com reproduzi-lo. Pelo contrário, envolve dar a mando tigrescam ente e a form a visível, corpórea de um tigre.
ele um a nova interpretação, no sentido m usical de d esem ­ A criança não recebe e reproduz um a imagem visível do tigre.
penhar, dele, uma nova variação. A criança não imita a form a Em v e z disso, a tigretude anima visionariam ente a corpora­
corporal visível do tigre. Ela prolonga o estilo de atividade lização da criança, na direção de um a diferenciação. É pre­
do tigre, tran sp osto nos m ovim en tos da própria co rp o ra ­ cisam ente esse processo que é definidor da imagem. N ão há
lidade da criança. O que a criança captou fo i um vislum bre algo da ordem de uma imagem passiva. N ão há algo da ordem
do dinam ism o do tigre com o um a form a de vida. A criança de um a im agem privadam ente recebida na interioridade do
viu o afeto de vitalidade do tigre: os poderes de vida p oten­ sujeito. Todas as im agens são ativas e suas atividades ocor­
cialm en te criativos en vo ltos na form a co rp o ral visível. O rem situacionalm ente, ou seja, relacionalm ente. O tigresco
afeto de vitalidade do tigre perpassa o que um a análise fo r­ ruge enquanto form a dom inante dessa situação de brinca­
mal pode isolar com o sua form a corporal, mas nunca co in ­ deira. Ele carrega um potencial análogo enquanto oposto ao
cide com a form a visível. O s poderes de vida que chegam à poder conform ativo. O potencial análogo é o poder da varia­
expressão através das deform ações da form a arrebatam a ção integralm ente conectada, da m útua inclusão diferencial.
form a para dentro de seu próprio dinam ism o supernorm al, A criança não p roduz um a corresp on d ên cia conform ativa
o qual se m ove através da situação dada em direção a outras entre sua própria form a corporal e a do seu análogo de tigre.
m ais abaixo da fila. Esse m ovim ento transsituacion al está Ela em presta entusiasticam ente sua própria corporalidade à
em excesso em relação à form a. É o próprio m ovim ento de in-form ação lúdica por m eio da form a dom inante da tigre­
autossuperação processual da form a visualm ente dada. Isso tude sob deform ação visionária e variação.
é o que a criança viu — tu d o num instan te, num lam pejo. Os g esto s lú d ico s da criança en vo lvem um a elaborada
N ão só um a form a animal genérica: um m ovim ento vital sin­ análise enativa daquilo que está dado nas situações em que
gular arrebatadoram ente im anente à form a visível. O que um tigre possa se encontrar, extrapolando as posturas típi­
as crianças veem : a im anência de um a vida. N ão “ o ” tigre: cas da form a corporal visível e lançando-as ao m ovim ento
tigretude. As crianças não divisam a form a do tigre. Elas têm im provisacional de um a cartografia vivid a que possui sua
um a visão in tu itivam en te e stética do tig re sco com o um a p rópria atividade. Em que circu n stân cias um tigre ataca?
form a dinâm ica da vida. É isso que elas transpõem quando O que esse felin o tem que o p erm ite nadar, devorar um a
brincam de anim al. N ão sobre suas próprias form as, mas criança, escalar um a árvore? Espere: a -esquidade de um
dentro de seus próprios m ovim entos vitais. Isso é o que W hi­ tigre é suficientem ente felina para inspirá-lo a escalar, a ser
tehead quer dizer quando afirma que um sinônim o de intuir determ inado, a ser inventado? Q uando é que um tigre viaja
é “visionar” .35 para ou tros planetas? O que faz um tigre voar? A análise
enativa da tigretude feita pela criança não parte das form as
35 Whitehead, Process and Reality op. cit., pp. 33-34. visuais captadas estaticam ente com o posturas. Ela parte de

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situ ações dinâm icas que esten dem a -esquidade hum ana identificatório do humano para si m esm o). A criança se situa
para além de todo território conhecido. no cam po de tensão transindividual da situação, polarizado
As situações de partida são abordadas de uma perspectiva em co m p o siçã o co n tra p o n tu a l.37 N a brin cad eira in tu iti­
que não é a do tigre, mas também não exatamente a da criança. vam ente visionária da criança, o ponto do tigre in-form a o
De acordo com Simondon, o gesto lúdico de brincar de animal contraponto do devir-tigre da criança. A relação é imanente.
expressa a “orientação” da situação de partida “ integralmente”, N ão é uma relação de ação-reação, no sentido corrente, que
como um complexo. Ele explica que, com isso, quer dizer que a co n ota um a relação extrínseca. O que está em jo g o é uma
situação é captada a partir do ponto de vista de suas “polarida­ relação imanente de modulação. A criança não imita o tigre a
des” e “ tensões”.*6 Esse é um modo de dizer que a análise é afe­ certa distância. A criança é en-tigrada, numa vivida e infinita
tiva, não (con)formal. As polaridades têm a ver com os papéis proximidade da tigretude.
diferenciais dramatizados na brincadeira, bem como com seus Que criança brinca de animal só uma vez? Brincar de ani­
potenciais. Cada movimento de uma criança-tigre inclui o deli- mal é um a vo cação séria. O entusiasm o do corpo na brin­
neam ento negativo da ação ou da reação dos outros partici­ cadeira move-se de situação em situação, de brincadeira em
pantes na situação, ainda que lá estejam apenas virtualmente. brincadeira repetidam ente variada. As variações seriais sobre
Esses entalhes de outros papéis traçam a composição afetiva da a tigretude compõem uma cartografia vivida da corporalidade
experiência: modos recíprocos de afetar e ser afetado na situa­ tigresca. Toda form a de dependência em relação ao que está
ção representando a si mesmo na ação-reação. Ação-reação: o dado, toda form a de dependência vivida a que uma corporali­
ponto-contraponto gestual. A “compleição afetiva” da situação dade tigresca é suscetível é dramaticamente superada. Todas
discutida anteriormente tem a ver com a ponderação relativa as composições afetivas experimentadas derivam, por extrapolação
do afeto categórico e do afeto de vitalidade. A “composição afe­ vital, da polaridade espetáculo-espectador da cena primitiva da
tiva” tem a mesma complexidade a partir do ângulo de como percepção animal que catalisou a atividade contínua. Todas
os gestos compõem-se em contraponto. Com pleição afetiva e as variações sobre o com plexo afetivo que se experim enta já
composição afetiva são dois modos complementares de anali­ estavam m utuam ente incluídas na form a dinâm ica em brio­
sar o mesmo complexo. A simpatia engloba ambos. nária da unicidade do gesto perceptual que desencadeou as
O ponto principal é que a criança não se coloca na form a séries de brincadeiras.38
do tigre, tam pouco coloca a form a do tigre em si mesm a (o
que, em term os identificatórios, redunda na m esm a coisa, 37 Cf. a “teoria composicional da natureza” de Jacob von Uexküll (A Foray into
the Worlds of Animais and Humans, trad. ing. de Joseph D. 0 ’Neill. Minneapolis:
a depender se olham os do ângulo da p rojeção hum ana no University o f Minnesota Press, 2010, pp. 171-194) e a variação sobre ela realizada
animal ou da contraprojeção do animal retornando o gesto por Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 4 op. cit., p. 120. Cf. também Deleuze, Espinosa
-filosofia prática, op. cit., pp. 127-135).
38 Ronald Rose-Antoinette (Vimage est une expérience, tese de doutorado. Paris:
36 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et d’information op. cit., Universidade de Paris 8, 2013), trabalhando especificamente com a imagem cine-
p. 236; grifo nosso. mática, desenvolve uma ontologia da imagem como “transaparição” consonante

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A tigretude começa a vazar pelas variações seriais. Com eça a brincadeira animal do hum ano à m ais alta potência, a uma
superar as situações dadas, nas quais razoavelmente podemos pureza de expressão supremamente tensorial: o puro extras-
esperar que um tigre se encontre, e os m odos de importância ser em devir.
que essas situações apresentam. As tensões da corporalidade Qual a utilidade do devir-animal da criança? Para que serve
tigresca in-formam a corporalidade infantil na brincadeira. A o extrasser? Estritam ente falando: nada.
prim eira anima im anentem ente a segunda — e, em contra­ M as e stilo s in ven ta d o s de alça m en to de vo o , m odos
partida, é animada por ela. As séries de repetições estendem im provisados de ultrapassar o que está dado na abstração
as tensões tigrescas, prolongando-as a um tensor individual. As vivida exploratória e órbitas experim entais de fuga das situa­
tensões situacionais colocadas em jogo subm etem -se a uma ções conhecidas e de seus tem as gen éricos podem sugerir,
pressão inventivam ente deform ante que as vetoriza na dire­ p or analogia, linhas de fuga criativas para fora das outras
ção do supernormal. A tigretude alça voo. O que está dado da situ ações em que um a fo rte d ep en d ên cia ao já -ex p resso
situação tigresca, tal com o convencionalm ente conhecida, é im põe-se com o peso esm agador do im perativo de co n fo r­
superado, seguindo os tensores exploratórios extrapolados mação. No suplem ento anterior vim os que a m etam orfose
do entusiasmo do corpo da criança. anim al de Kafka abriu cam inhos poten ciais para além dos
É isso que é a simpatia. N ão há nada mais dinâmico. Não im passes da estrutura confinadora da fam ília edípica. Bate­
há nada menos atolado no conform ism o. Nada menos senti­ son aponta na m esm a direção: não há cura, ele diz, a não ser
mental. Nada menos projetivo e identificatório. A decolagem que o p ro cesso lú dico seja capaz de iniciar a si m esm o de
da brincadeira eleva a tigretude a altitudes em que nenhum dentro da situação patológica.39
tigre ou nenhum a criança jam ais colocou seus pés ou patas: Cura: um a palavra ainda m uito com prom etida pelo para­
transportou-os, ju ntos, à pura expressão. A pura expressão, digma patológico. Palavras melhores: reanim ação, revigora-
sendo abstração puramente vivida, é um território existencial ção. T udo diz respeito a reanim ar a vida. Cada revigoração
onde ninguém jam ais coloca os pés. C om o pura expressão segue o itinerário de uma cartografia vivida de natureza tran­
animal, a brincadeira de criança participa do m esm o m ovi­ sindividual, ludicam ente tensorada em direção ao supernor­
m ento extraexistencializante que o jo g o literário de devir- mal. A revigoração lúdica é expressiva. É inventiva. Em sua
-animal descrito no suplem ento 1. O devir-anim al escrito é transindividualidade, é ética. Em sua -esquidade, é estética.
um a extensão da brincadeira de criança, que, ela mesm a, é Em todos os seus aspectos, é afetiva. Analítica é o que ela não
um a extensão da corporalidade animal enquanto anim ada é, nem no sentido psicanalítico nem no formal. Tam pouco é
pela ten dência supernorm al do instinto. E screver eleva a crítica, no sentido denunciatório.
O que a brincadeira animal do humano aporta à zoé-logia ou
ao pensam ento da política humana? Ela contribui com a ideia
a essa abordagem da percepção. A imagem é analisada em termos de força expres­
siva imanente de intensidade transindividual, com especial atenção para sua
dimensão mais-que-humana. 39 Bateson, “A Theory o f Play and Fantasy” op. cit., pp. 192-193.

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de que até m esm o os com plexos espetáculo-esp ectador — e sentim entalm ente selado. Irá term inar seu curso. Porém:
cuja própria percepção é o caso-limite — são germinalmente seu fim será o que está dado na próxima pulsação do processo,
in-form ados por, pelo menos, turbilhões de devires incipien­ que irá disparar em si mesmo uma atividade numa dependên­
tes. E com a ideia de que essas agitações podem ser afirmadas; cia herdada com relação a este já expresso recém -cunhado:
e de que, ao afirmá-las, o hum ano assum e sua animalidade. um a im portância vivida recém-cunhada. Material para outra
Isso é verdade mesmo para os com plexos espetáculo-especta- rodada de tendência supernormal, graças à abstração vivida.
dor da mídia popular e das indústrias de entretenimento, bem E assim segue o ciclo afetivo da vida, espiralando-se sempre
com o, mais abjetamente, para o zoológico. Quantas crianças -escamente em tom o do centro de gravidade da corporalidade
não voltaram do zoológico para casa em plena tigretude? Ou e do conteúdo tem ático.
em autoinspeção serpentesca? Ou numa paródia tarantulesca? Considerada desse ângulo, a expressão da tendência super­
O s devires-animais arranham, mordem e picam nas situações normal na form a dinâmica do afeto de vitalidade é uma verda­
de vida norm opática e sociopática de um m odo que só são deira produção em série de importância — um a contínua rein­
capazes os gestos que não denotam aquilo que iriam denotar. venção daquilo que é im portante para a vida. Isso significa
E crucial m anter a distinção entre afeto de vitalidade e que uma pura form a de expressão — seja deslizando sobre a
afeto categórico. O afeto de vitalidade, não sendo hedônico, barriga, seja escrita à mão — carrega um significado potencial.
é irredutível a qualquer afeto categórico. Pode ser agradável, A fuga que ela inventa em intensidade anuncia im portantes
mas tam bém pode morder. A brincadeira e sua política não m odos de vida ainda por vir. Um a expressão ludicam ente
são necessariam ente alegres e prazerosas. De fato, nunca o pura ocupa uma zona de indiscem ibilidade entre o sério e o
são, no sentido categórico. Elas são, em todos os casos, inten­ frívolo. Quando levada a sério, soa frívola. Mas quando depre­
sas. Todo afeto de vitalidade é uma form a dinâm ica de inten­ ciada, deixa passar batido que há algo extra se agitando, já
sidade que, em si, é desqualificada em relação ao conteúdo enrolado, pronto para morder.
em ocional da situação dada. N o m ovim ento de invenção N a busca pela política animal não é necessário abster-se de
cuja form a dinâmica é o afeto de vitalidade é precisamente o denunciar os com plexos de espetáculo-espectador e a estru­
conteúdo da vida que pode acabar transform ado. O afeto de tura opressiva que eles enquadram. Tampouco é indicado parar
vitalidade é a form a dinâmica de expressão do movim ento de de analisar as formas de poder, sejam elas da arena midiática
devir que leva à reinvenção do conteúdo da vida. O que ele irá ou da política, em seu entendim ento tradicional. Mas aquilo
trazer, uma vez percorrido seu curso, terá sido o expressado que é exigido é não contentar-se com a denúncia ou com aná­
da situação pela qual seu m ovim ento de invenção se arreba­ lises. Sob o espetáculo... porco-espinhitude. Sempre e por toda
tou. Após o ocorrido, esse expressado será total e com pleta­ parte há explorações supernormais germinando, expressões
m ente reconhecido e autorizado com o o “ o que” ao qual a para se haver com a -esquidade do anim al, espinhos para
situação disse respeito. Retroativamente, irá se tornar o con­ lançar, portas de fuga para abrir analogicam ente, situações
teúdo convencionalm ente reconhecido da situação, assinado para repolarizar, tensores para extrapolar, potencialidades

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inauditas para inventar, conteúdos de vida para reinventar, As respostas para essas perguntas m erecem um desenvol­
tudo através dos gestos revigorantes de uma cartografia vivida. vim ento aprofundado que está para além do esco p o deste
Sempre há, em todo lugar, algo a ser feito politicam ente. Pois ensaio; para além, de fato, do escopo da escrita. Não é na pura
não há lugar sem corporalidade e sua dependência ao que expressão que o tipo de m ovim ento pode ser levado adiante
está dado. Os im perativos da im portância já expressa estão de m odo a m etam odelar a superação da estrutura zo o -ló ­
por toda parte em que chegar a vida. Por toda parte em que gica numa verdadeira reinvenção da im portância vivida das
a herança é sentida com o sufocante, por toda parte em que o relações animal-humano. N um a arena tão carregada de co r­
já-expresso fala num tom imperativo demais, por toda parte poralidade e com plexidade afetiva, um a diversidade de pen-
em que uma corporalidade se choca contra um impasse estru­ sares-fazeres exploratórios e dram atizações experim entais
tural em seus esforços de revigorar a si mesma, por toda parte — dentre muitas, um a arena da atividade expressiva — deve
em que a sentim entalidade confina em ocionalm ente o afeto, vir à expressão recíproca. Som ente um a ecologia enativa de
há trabalho a ser feito, repetindo a situação e brincadeira a ser diversidade de práticas animais, em tensão criativa de mútua
reelaborada enativo-cartograficamente. inclusão diferencial, pode conseguir essa façanha. O que o
A zoo-logia é um convite à viagem animal. Caso você ainda puro devir-animal-escrito da filosofia, tal com o empreendido
não esteja convencido da pertinência de viagens de desterri­ neste ensaio, pode fazer é brincar de deflagrar a mínima dife­
torialização tão expressamente supérfluas, cuja seriedade está rença que é a condição de em ergência abstratam ente vivida
sempre m uito à frente delas, então considere que, se há uni­ do m ovim ento de superação do que está dado, ajudando a
versais da existência humana, a propensão infantil a brincar de alavancar a mais-valia de vida potencialm ente ético-estética
animal está certam ente no topo da lista. Nunca houve criança e in-formação.
que não deveio-anim al ao brincar. O projeto da política ani­ Pode ser dito que a política animal com o concebida aqui é
mal: fazer com que o mesmo possa ser dito dos adultos. a representação ecológica de uma filosofia ativista e pluralista.
Q ue estratégias específicas a p olítica animal deve seguir Reciprocamente, a filosofia animal, entendida de form a super­
com relação à política dem asiado hum ana do zoológico? O normal, é a in-atuação de uma política da brincadeira singular.
gesto denunciatório deveria ser favorecido com o um a exce­
ção nesse caso, perante o cinism o estrutural do zoológico, o
sufocam ento da vitalidade de seus internos e o revestim ento
de sua própria barbárie? Acaso a nova vocação do zoológico é
uma arca para animais ameaçados que é suficiente para resga­
tá-los? Se o zoológico fosse abolido, as rem anescentes expe­
riências dos animais, baseadas em vídeos, às quais a maioria
das crianças estaria então confinada, carregariam tão intensa­
mente um aprendizado de escape do humano pelo humano?

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SUPLEMENTO 3 Seis teses sobre o animal que devem ser evitadas

1. N ão presum a que você tem acesso a um critério para sepa­


rar categoricam en te o hum ano do anim al. O critério m ais
am plam ente convocado é a linguagem . Se a cultura é assi­
m ilada à linguagem , com o freq u en tem en te o é, então ela
tam bém resvala para a com p etência exclusiva do hum ano.
E ntretanto, com o vim os, a linguagem já está presente, em
potencial, na brincadeira animal. A brincadeira anim al p ro­
duz, de fato, as reais condições de em ergência da linguagem.
Uma v e z que essas condições concernem aos poderes reflexi­
vos da vida, um m odo ou grau de consciência já está em vigor.
Então não coloque na cabeça que a consciência vai prover a
linha divisória. Considerando que a linguagem humana, em
suas form as m ais elaboradas, im plem enta seus poderes de
invenção mais puram ente expressivos, em vez de se separar
do animal, ela retorna instintivam ente a ele, na form a super­
norm al com a qual a vida animal sempre esteve acostum ada
a ultrapassar a si mesma.

2. Não confunda criatividade com um desvio do instinto para


os reinos sim bólicos (sublim ação). Isso ainda é um pouco
m elhor do que a abordagem oposta, de confinar a expressão
às molduras constritoras da função e da adaptação. De qual­
quer maneira, a criatividade é reduzida a um epifenôm eno e o
estilo e a graça de seus algo-extras expressivos, à superfluidez
e à ornam entação. N a natureza, a criatividade e o instinto
estão inextricavelm ente entrelaçados. Eles estão presentes
con ju n tam en te no ato e atuam ju n to s no arrebatam ento

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adiante da ten d ên cia supernorm al qu e co n d u z am bos a nas obras de ficção científica dos anos 1950. Mas se conside­
potências mais elevadas. ramos que o humano se torna mais animal quanto mais longe
leva o seu poder mental; que ele se torna mais vital quanto
3. N ão profetize com tanta seriedade o fim do hum ano e a mais vive a abstração, então fica ainda mais difícil imaginar
alvorada de um a era pós-hum ana. Pronunciam entos com o que o nó da mútua inclusão — que une animalidade, vida e
esse presum em , m u ito freq u en tem en te, a habilidade de consciência — possa ser desatado. Talvez não esteja fora de
separar de form a categórica o humano do animal. Ainda que questão que um dia essa mútua inclusão possa ser, ela mesma,
o hum ano seja entendido com o estando em pressuposição maquinada. A natureza, afinal de contas, é cheia de artifícios.
recíproca com o animal, a transcendência do humano é tam ­ De fato, não há nada mais efetiva e paradoxalm ente artificial
bém a transcendência do animal. Invocar o pós-hum ano é do que a natureza sob a propulsão de sua tendência constitu­
invocar o pós-animal. Mas, então, se o animal é im buído de tiva voltada para o supernormal.
consciência, de m odo que consciência e vida animal andam A essa altura vo cê pode sim plesm ente se livrar do em bo­
de mãos dadas, com o querem Ruyer e Bergson, o pós-animal tado cortejo dos “p ós” , pois a questão é reingressar o m ovi­
tam bém seria o pós-vital. Isso significa que, a fim de chegar ao m ento do supernorm al na direção da autossuperação, ten-
tão almejado “pós-” , seria necessário arrancar a consciência sorando-o para mais longe, através de qualquer artifício que
e a vida dos territórios existenciais existentes do humano e pareça funcionar, em v e z de pular para um novo quadro. A
do animal, e confiná-las na tecnologia. O “pós-” chega, assim, questão tod a é só aparentem ente apocalíptica. Em últim a
à já tão batida noção do “ciborgue” com o vida prostética — análise, é lúdica. Tecnicamente lúdica: uma questão de encon­
vida radicalm ente deslocada e prolongada para além de seu trar o artifício correto e deixar-se arrebatar por ele.
fim. Entretanto, a imagem do ciborgue hiperfuncional é muito Seguindo esse movimento, nunca se chega à finalidade apo­
frequentem ente superada em popularidade pelo arrastar dos calíptica da era pós-humana, categoricam ente além da esfera
m ortos-vivos. A cascata de pós---- hum ano, animal, vital — humana. Em v e z disso, sem pre se depara com o já mais-que-
deságua de m odo exangue no zum bi. Mas no zum bi a cons­ -humano: m utuam ente incluído no continuum animal integral,
ciência se eclipsa. Então, não se ganhou muita coisa, ao passo na medida em que se segue o seu caminho natural em direção
que se perdeu mais do que sangue quente. à sua autossuperação imanente. O m ais-que-hum ano: o ter­
E claro que ainda resta a opção de um retom o a um “pós-” ceiro incluído do devir-anim al, sem pre-já em processo, no
pré-pós-cascata, de uma época anterior, quando não parecia progresso do divertido peregrino rum o a seu próprio h ori­
totalm ente extravagante o fato de que a consciência pudesse zo n te.1 C item os Judith Butler, que escreve a partir de uma
ser desacoplada da vida, e a consciência, conservada sozinha
1 Em Always More Than One, Erin Manning desenvolve um conceito de “mais-
(ou p elo m enos a inteligência, sua prim a pobre intuitiva).
-que-humano” como uma alternativa ao discurso do pós-humano. Seu conceito
Esse é o velho sonho da inteligência artificial, tal com o prefi- é derivado independentemente e não se refere à noção bastante distinta de mais-
gurada enorm em ente na imagem do cérebro dentro do pote -que-humano de David Abram (The Spell of the Sensuous: Perception and Language

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linha filosófica m uito diferente, mas com a qual cruzam os 4. Não se confunda ao pensar que o mais-que-humano fica do
neste ponto: “Tanto a animalidade quanto a vida constituem lado de fora, cercando o humano, no ambiente. O mais-que-hu­
e excedem tudo aquilo que chamamos de humano. O ponto mano também está na própria composição do humano. Pois o
não é encontrar a tipologia certa, mas entender onde o pen­ corpo humano é um corpo animal e a animalidade é imanente
sam ento tipológico desm orona”.2Onde o pensam ento tipoló- à vida animal (e vice-versa). Quanto mais a fundo se inves­
gico de separações categoriais desm orona será encontrada a tiga a composição do corpo animal, mais se encontram níveis
necessidade — e a oportunidade — de em preender o projeto de inumanidade. Processos físicos e químicos aninham-se no
positivo de construir uma lógica de m útua inclusão diferen­ corpo animal, não cedendo a ele nada da sua alteridade, ainda
cial dos modos de existência, e das eras da natureza, ou seja, que contribuam para compô-la. Os processos fisiológicos em
mais para o escopo do animal-político.3 contínua operação no corpo contribuem com vários níveis de
Onde desm orona o pensam ento tipológico? Seria... desde sensação não consciente in-formando a ação e a consciência.
o início, no fim e, mais especialm ente, no terceiro (que ele Basta pensar na maneira com o o “cérebro intestinal” do sis­
ousa excluir): o meio.4 tem a nervoso entérico m odula a experiência consciente; ou
nas inflexões do afeto, em segundo plano, pelos hormônios; ou
in the More-Than-Human World. Nova York: Vintage, 1997). Para Abram, o mais- na orientação contínua da experiência pelo sistem a proprio-
-que-humano se refere ao mundo não humano em oposição ao mundo humano.
Concebido dessa maneira, o conceito valida o humano essencialmente como um
ceptivo; ou na aprendizagem do que é popularmente chamado
sujeito fenomenológico, alienado pela tecnologia e pela vida moderna e convocado de “mem ória muscular” ou, mais no escopo deste ensaio, no
a superar essa alienação, renovando seus laços com a natureza — como se humano
instinto. Todos estes são, por natureza, não conscientes.
e natureza pudessem estar numa relação de mútua exterioridade, mesmo num
movimento lapsariano. “ Sujeitos larvais” é com o D eleuze denom ina os acon teci­
2 Butler e Athanasiou, Dispossessed: The Performative in the Political. Cambridge: m entos experienciais infraindividuais que ocorrem nesses
Polity Press, 2013, p. 35.
3 Para outra explanação, mais uma vez de uma perspectiva filosófica muito dife­ Press, 2013) é uma proeminente exceção. Ainda que o discurso pós-humanista
rente — que opera no limite da lógica tradicional da vida — , cf. Thacker, After como um todo tenha extremo medo do instinto, a ponto de a palavra quase nunca
Life. Chicago: University o f Chicago Press, 2010. Thacker não adere ao projeto aparecer — a não ser para ser jogada para escanteio. O continuum natureza-cultura
positivo de construir uma lógica alternativa, preferindo trabalhar com as com­ é construído como pós-natural, precisamente a fim de exorcizar o instinto, consi­
plexidades aporéticas produzidas no limite da lógica tradicional, sob a égide do derado como tendo sido deixado na lata de lixo da história natural pela reconstru­
negativo (contradição). ção artificial do continuum através das máquinas e da tecnologia. Repetindo: não
4 Tratamentos acadêmicos do pós-humano abordam a questão, é claro, com há nada mais efetiva e paradoxalmente artificial do que a natureza sob a propul­
muito mais nuances do que o pós-itinerário superficial aqui esboçado (Hayles, são de sua tendência constitutiva voltada para o supernormal — que tem tudo a
How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybemetics, Literature, and Informatics. ver com o instinto. As abordagens pós-humanas também conservam, como parte
Chicago: University o f Chicago Press, 1999; Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, de sua herança dos estudos culturais, “o sujeito” como uma categoria analítica
tecnologia e feminismo-socialista no final do século x x ” in Tomaz Tadeu (trad. e priyilegjada — isso é verdade até mesmo para Braidotti (The Posthuman op. cit.),
org.), Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 33-118; Brai- que, nos termos das suas referências filosóficas, é o mais próximo da abordagem
dotti, The Posthuman. Londres: Polity Press, 2013). A maioria afirma que o animal aqui desenvolvida. Em resumo, o pós-humanismo acadêmico é insuficientemente
e o humano, a natureza e a cultura, estão num continuum — Wolfe (Before the Law: supem om al e muito severamente vacinado contra as subjetividades-sem-sujeito.
Humans and Other Animais in a Biopolitical Frame. Chicago: University o f Chicago Os pós-humanos, afirma Haraway, são irônicos. Mas: será que eles brincam?

170 171
níveis.5 O s sujeitos larvais são superjectos aninhados co n ­
p o r m ovim entos que o superam . Sua existência é membra-
tribuindo cum ulativam ente com suas form as de vitalidade
nosa e, com o todas as membranas, precária.9.
assubjetivam ente-subjetivas para a inspeção integralm ente
L em bre-se: "N o fu n d o do hom em não existe nada de
em ergente da consciência primária. A dim ensão do infrain-
hum ano” .10
dividual é tão im p ortan te quanto a d o transind ividu al, e
p ro cessu a lm en te in separável dela. As duas co n ectam -se 9 Deleuze (Foucault, trad. bras. de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasil-
diretam ente, entrando e saindo um a da outra, contornando iense, 2005, pp. 101-130) desenvolve uma teoria topológica similar do dentro e do
fora em termos da dobra, assim como Simondon: “ as verdadeiras formas implíci­
frequentem ente a reflexão consciente. O feedback infra/trans tas [que correspondem aproximadamente aos sujeitos larvais de Deleuze] não são
ocorre na incipiência de toda experiência, atingindo ou não geométricas, mas topológicas” (Simondon, Uinformation à la lumière des notions de
forme et d’information op. cit., p. 53). Para Simondon, “o vivente vive no seu limite”,
o m áxim o de sua reflexão consciente. O m odo com o esse
concebido como uma membrana de mão dupla (p. 225). Uma vez que as formas
circuito form ativo ativa o pensar-sentir da consciência p ri­ implícitas se embutem umas nas outras de um modo complexo, a “ membrana”
m ária para um a co lo ca çã o em ação é o qu e eu cham o de não é simplesmente redutível ao invólucro da pele, mas deve ser concebida de
maneira fractal. Sobre topologia, cf. também Simondon, pp. 28,210-211,224-229,
"atividade nua” .6 254-304. 0 monadismo pós-leibniziano de sistema aberto proposto por Whitehead
A atividade nua é o antídoto conceituai para a “vida nua” divisa uma infinidade de ocasiões atuais (também chamadas de entidades atu­
de Agamben, com toda sua dependência em relação à distin­ ais) embutidas umas nas outras. Ele enfatiza que os níveis se inter-relacionam
não através de suas formas físicas, tampouco por suas conexões quantificáveis
ção zoé/bios e sua preocupação fundacional com o estabeleci­ parte a parte, mas — de maneira mais abstrata — através de suas “formas sub­
mento de uma fronteira entre o dentro e o fora (nem que seja jetivas”. Essas ele define qualitativamente, em termos afetivos (0 que eqüivale,
aqui, ao “afeto de vitalidade”). Sobre a forma subjetiva como determinadora da
apenas para suspendê-la na dialética-sem-síntese da inclusão
inter-relação entre as ocasiões atuais e definida em termos afetivos, cf. Whitehead
exclusiva).7A atividade nua, de sua parte, constrói o dentro e (Adventures ofldeas op. cit., pp. 176-177,182-183).
o fora com o acionam ento e desligam ento de cada um deles: 10 Lapoujade, Potências do tempo op. cit., p. 72. É a filosofia da animalidade de Niet­
zsche, tal como analisada por Vanessa Lemm (Nietzsche’s Animal Philosophy: Culture,
a mudança de fase designa os polos num m esm o processo de
Politics, and theAnimality ofthe Human Being. Nova York: Fordham University Press,
m útua inclusão. O transindividual se junta ao individual, que 2009), que é a que mais se aproxima da presente explanação. Nietzsche abarca o
se desdobra de volta no transindividual.8 O mais-que-humano instinto num continuum natureza-cultura/humano-animal; é exemplarmente sensí­
vel aos sujeitos larvais; desenvolve centralmente o conceito de subjetividades-sem-
não está do lado de fora. Antes m esm o, o hum ano — onde
-sujeito (feitos sem fazedores por trás); recusa-se a confinar a vida ao orgânico ou
ocorre por si só na natureza — está no meio, transecionado a atribuir uma linha divisória entre ele e a matéria; reconhece a centralidade do
afeto; repensa a política como função da animalidade e, definitivamente, brinca
com a linguagem. Lemm interpreta corretamente o “ super-homem” de Nietzsche
5 Deleuze, Diferença e repetição op. cit., pp. 111,118,122-123,203. não como uma superação da natureza, mas como uma reinvenção da natureza que
6 Massumi, Semblance and Event op. cit, pp. 1-3,10-11; 2010. possibilita ao humano superar a si mesmo. “No termo nietzschiano ‘super-homem’,
7 Cf. Para mais sobre Agamben, ver notas 22 p. 98,7 p. 130 e 21 p. 141. o prefixo ‘super-’ não é usado nem para separar o humano do animal, tampouco
para posicionar um acima do outro, mas para estabelecer distância suficiente [a
8 Em outros momentos chamei isso de “ retomo das formas elevadas”, para enfa­
diferença mínima necessária], de modo a abrir o espaço para um encontro ago-
tizar como as operações de linguagem efetuam, em particular, uma volta ao nível
nístico” (p. 21). Agonístico: combatesco. A filosofia animal de Nietzsche é uma
infraindividual de ação incipiente, onde figuram como um fator imediato em devir
inversão do paradigma pós-humano. Para Nietzsche, “a natureza utiliza o humano
(Massumi, Parablesfor the Virtual, pp. 10-12,35-39,198-199).
como meio para sua própria compleção, e não o contrário” (p. 3).

172
173
5.Não tenha a esperança de que a categoria da matéria inorgâ­ Requeremos que [...] a noção de “vida” envolva a noção
nica irá salvar o dia categórico provendo um a linha divisória de “natureza física” [...]. Nem a natureza física nem a vida
em pírica que perm itirá que você analise onde anim alidade, podem ser entendidas, a não ser que possamos fundir as
consciência e vida com eçam e terminam. Ruyer: duas como fatores essenciais na composição das coisas
“realmente reais” , cujas interconexões e características
Em relação ao átomo, assim como para o ser vivo e o ser individuais constituem o universo.13
consciente, não é possível separar o que eles são do que eles
fazem [...] Enquanto houver a crença na “substância” mate­ P ós-pronunciam entos à parte, o que é requerido é um co n ­
rial tradicional, o tempo poderá ser concebido como uma ce ito de “ atividade u n iversal” , que n aturalm ente se auto-
dimensão vazia através da qual a substância é passivamente conduz para um a aposta na liberdade, estendendo a m útua
transportada. Quando o conceito tradicional de matéria é subs­ in clu são da anim alidade, da v id a e da co n sciên cia, assim
tituído pelo conceito de atividade, o tempo não aparece mais com o do instinto, da intuição e da espontaneidade, na dire­
como um enquadramento vazio e alheio, e o tempo da ação ção do lim ite especulativo da abstração vivida, fundindo a
[devir] deve ser visto como inerente ao tempo, à guisa de n atu reza física co m o p o d er m en tal de ultrapassar o que
uma melodia temporal, um ritmo mnêmico próprio à ativi­ está dado.
dade. Há certa memória que é aquela com ritmos físicos [...]
Há um isomorfismo perfeito entre a atividade finalista dos Precisamente porque a pura animalidade é vivida como
organismos mais elevados e a atividade dos seres físicos [...] inorgânica, ou supraorgânica, pode tão bem combinar-se
Nós devemos falar [...] da liberdade [...] dos seres físicos." com a abstração, e mesmo combinar a lentidão ou o pesa-
dume de uma matéria com a extrema velocidade de uma
A vida, escreve W hitehead, é uma “aposta na liberdade” .12Em linha que é unicamente espiritual. Essa lentidão pertence
qualquer lugar do continuum — do humano às profundezas da ao mesmo mundo da extrema velocidade.16
matéria, passando por tudo o que há no m eio; dos filhotes de
lobo às gaivotas e m inhocas, para não m encionar as amebas Essa “linha” é um a “força vital própria da Abstração” .17 Sua
— , a aívida’ significa novidade”.13O novo não possui enquadra­ “extrem a velocidade” e a intuição constituem um a só coisa.18
m ento predefinido: “não há lacuna absoluta entre ‘vivente’ e E isso não porque tud o é orgânico ou organizado, mas, ao
‘não vivente” ’.14

u Ruyer, Le néo-finalisme op. cit., pp. 158-160; grifo nosso. 15 Whitehead, Modes ofThought op. cit., p. 150.
12 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 104. 16 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 o. cit., p. 212.
13 Ibid., p. 104. 17 Ibid., p. 213.
14 Ibid., p. 102. 18 Ibid., p. 212.

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contrário, “porque o organism o é um desvio da vida” .19 Na as espécies, tom am -se m uito m enos im portantes” .24 O que
intuição, “tudo passa entre os organism os” .20 “A vida espreita im porta é a naturalidade da participação não natural na ten­
nos in terstício s” .21 N ão no organism o. N ão em nenhum a dência universal, num a im ediatez transindividual da ativi­
organização dada. “ É evidente que, de acordo com essa defi­ dade cuja im portância é vivida, tal com o a abstração in-atua
nição, nem um a única ocasião pode ser dita viva. A vida é a um pensar-fazer que aposta na liberdade em todo gesto vital.
coordenação das espontaneidades m entais no decorrer das Nesse jogo ético-estético de relação, “tudo é político” .25
ocasiões de um a sociedade”, com “ so cied ad e” tom ada no
sentido mais am plo de um agrupam ento de atividades que 6 .“ É a marca que faz o território”.26 Esse é um modo de dizer
participam do fazer de um acontecim ento.22 que o mapa enativo cria o território. N ão caia na armadilha
A vida, em todas as suas dim ensões, pertence ao transin­ da suposição do senso com um de que o que está em jo g o
dividual, nunca ao indivíduo considerado separadamente. É preexiste ao sujeito já constituído, em interação funcional
no elem ento do transindividual que a vida se estende, pro­ com objetos sem elhantem ente pré-constituídos num enqua­
cedendo através de blocos qualitativos absorvidos num pro­ dram ento espacial já traçado. Por um lado, “as funções num
cesso de variação contínua, arrebatando tu d o em conjunto território não são prim eiras” .27 Por outro, o enquadramento
num a unidade dinâm ica de m útua inclusão, enquanto que, é sem pre excedido na abstração vivida. A realização do ato
ao m esm o tem po, dispersa a unidade num a m ultiplicidade expressivo coloca em m ovim ento o espaço de superação de
de variantes sim ultaneam ente constrastantes que vêm mar­ sua própria operação — embora ele não seja tanto um espaço,
car de form a singular cada passo ao longo do cam inho, para m as um espaço-tem po. U m a cartografia criativa enativa o
serem tão logo arrebatadas de volta à variação. “ Tendência espaço-tem po processual de seu próprio desdobram ento.
U n i v e r s a la vid a se im p ulsion a para a fren te através da Não há sujeito por trás do ato criativo, existindo previamente
superação de tudo o que estiver putativam ente fixado, que ao processo. O sujeito sempre está à frente de si mesmo, no
estiver dado de m odo individualizável; da propulsão relacio­ m ovim ento de expressão. O sujeito é um “ supeijecto”28 sem­
nai através do que está dado rum o à em ergência do novo.23 pre por vir, ou já superado num a próxim a pulsação da vida.
A essa altura, “ os problem as relacionados às fronteiras O m ovim ento autocondutor da expressão é essencialm ente
entre os ‘rein os’ da N atureza, e ainda mais àquelas entre uma subjetividade-sem-sujeito. Isso de maneira alguma signi­
fica que existem apenas objetos, com o quereria uma ontologia
19 Ibid.
20 Ibid. 24 Simondon, Vinformation à la lumière des notions deforme et dHnformation op. cit.,
p. 112.
21 Whitehead, Process and Reality op. cit., p. 105. Cf. também Didier Debaise (“A
Philosophy of the Interstices: ThinMng Subjects and Societies from Whitehead’s 25 Deleuze e Guattari, Kafka:por uma literatura menor, p. 36.
Philosophy” Subjectivity,v. 6, n2 1,2013, pp. 101-111). 26 Deleuze; Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit, p. 122.
22 Whitehead, Adventures ofldeas op. cit., p. 207. 27 Ibid., p. 122.
23 Deleuze e Guattari, Mil platôs, v. 5 op. cit., p. 89. 28 Sobre o superjecto, cf. ver nota 17 p. 134.

176 177
orientada ao objeto. Há, no fundo, som ente atividade e ten ­
dência afetando blocos qualitativos de relação plástica sob
variação. Por fim, não deixe que a alegoria da cognição “cor-
porificada” o leve erroneamente a pensar o corpo com o algo
que está esperando — com a paciência infinita de uma maté­
ria burra — para encarnar um a mente. Se tudo está vivo, é
p orque os gestos expressivos da natureza seguem se a-cor-
poralizando. C orp oralizações-sem -“ o ” -corpo para subjeti-
vidades-sem -sujeito. Se tudo está vivo, é porque a vida vive
sua própria abstração — cada gesto seu é um a especulação
pragmática sobre a natureza do fazer.

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188
Dados Internacionais de C atalo gação na Publicação (CIP)
'I M
Vagner Rodolfo CRB-8/9410

O livro com o im agem do mundo é de toda


maneira uma ideia insípida. Na verdade não
M422q Massumi, Brian
basta dizer Viva 0 múltiplo, grito de resto difícil
O que os animais nos ensinam sobre política / de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica,
Brian M assum i; Francisco Trento, Fernanda Mello. - São Paulo: lexical ou m esm o sintática será suficiente para
n-i edições, 2017. fazê-lo ouvir. E preciso fazer 0 múltiplo, não
192 p . : i l .; 14011 x 2icm.
acrescentando sem pre uma dim ensão

Inclui índice.
superior, m as, ao contrário, da maneira m ais
ISBN: 978-85-66943-47-4 sim ples, com força de sobriedade, no nível das
dim ensões de que se dispõe, sem pre n-1
1. Ciências políticas. I. Trento, Francisco. II. Mello,
(é som ente assim que o uno faz parte do '
Fernanda. Título.
múltiplo, estando sem pre subtraído dele).
C D D 3 2 .0 Subtrair o único da m ultiplicidade a ser
2 0 1 7 -6 7 3 CDU 32 constituída; e screver a n-1. ,

G illes Deleuze e Félix Guattari


índice para catálogo sistemático
1. Ciência política 320
2. Ciência política 32

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