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Livro 2 - Foragidos de Gor
Livro 2 - Foragidos de Gor
Crônicas da Contra-Terra
Foragidos de Gor
por John Norman
Tradução:
Irvin Schnyder
Revisão:
Sindy Schmooz, Tatyana W. Fewer
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Foragidos de Gor
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Foragidos de Gor
Índice
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Foragidos de Gor
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Foragidos de Gor
Uma Nota em um Manuscrito
John Norman
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Foragidos de Gor
I
A primeira vez que encontrei Tarl Cabot foi em uma pequena faculdade de artes
liberais em New Hampshire, onde tínhamos ambos sido aprovados como professores do
primeiro ano. Ele ensinava História Inglesa e eu, na intenção de trabalhar por três anos
para poupar dinheiro para a faculdade de direito, tinha aceitado o emprego de professor
de educação física, um campo no qual, para minha tristeza, Cabot nunca admitiu ser
necessário ao currículo de uma instituição educacional. Nós nos demos bem,
conversávamos e andávamos juntos, e como eu esperava, nos tornamos amigos. Eu
gostava do jovem e gentil Inglês. Ele era quieto e simpático, embora algumas vezes ele
parecesse distante, ou sozinho, de algum modo não desejando deixar transparecer aquele
escudo protetor de formalidade, por trás do qual o educado homem Inglês, de coração
talvez tão sentimental e aquecido como qualquer outro homem, tentava esconder seus
sentimentos.
O jovem Cabot era bem alto, um homem de boa estatura, bem formado, com o jeito
de andar tranquilo como o dos animais, que talvez combinasse com a portuária Bristol,
sua cidade natal, mais do que com os claustros de Oxford, cujo em um dos colégios ele
foi educado. Seus olhos eram claros e azuis, diretos e honestos. Ele era bem complicado.
Seus cabelos, lamentavelmente talvez, embora alguns de nós o amasse por isso, eram
vermelhos, mas não simplesmente vermelhos. Eram bastante embaraçados, uma ardente
afronta às características de um acadêmico bem preparado. Eu duvidava que ele tivesse
um pente e eu poderia jurar que ele não usaria um se o tivesse. De qualquer modo, Tarl
Cabot parecia ser para nós um jovem, quieto e cortês cavalheiro de Oxford, exceto pelo
cabelo. E então, já não tínhamos mais certeza de nada.
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Foragidos de Gor
próximas Montanhas Brancas, que eram muito belas em seu branco e frágil esplendor no
fevereiro de New Hampshire.
Ele nunca mais voltou a dar aulas na faculdade, para o alívio de muitos dos meus
colegas mais velhos que confessaram achar que o jovem Cabot realmente nunca se
encaixou bem lá. Mais tarde, no entanto, eu descobri que eu também não me encaixava
lá e deixei a faculdade. Recebi um cheque de Cabot para cobrir o custo do meu material
de acampamento, o qual ele aparentemente perdeu. Foi um gesto nobre mas eu preferia
que ele tivesse vindo me ver. Eu teria apertado sua mão e o forçado a falar comigo, para
me dizer o que aconteceu.
Já faziam quase sete anos desde que eu conheci Tarl Cabot naquela faculdade,
quando eu o vi nas ruas de Manhattan. Naquele tempo, eu já tinha economizado o
dinheiro que precisava para a faculdade de direito e tinha parado de dar aulas há três
anos. De fato, eu estava então completando meus estudos na escola de direito em uma
das melhores e mais conhecidas universidades privadas de Nova York.
Ele tinha mudado muito pouco, ou praticamente nada. Eu corri para ele sem
pensar e agarrei o seu ombro. O que aconteceu em seguida pareceu quase que
inacreditável, difícil de se compreender. Ele se virou como um tigre em um repentino
grito de fúria, falando uma estranha língua e eu me encontrei com as mãos imobilizadas
por seus punhos que pareciam de aço. Sob o efeito de uma grande força fui jogado
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Foragidos de Gor
indefeso sobre seus joelhos, minha coluna curvada como se estivesse a uma única
polegada de ser quebrada, tão facilmente como se quebraria um graveto de madeira.
“Harrison!” ele gritou. “Harrison Smith!” Ele me levantou com facilidade, suas
palavras saíram rápidas e tropeçantes, tentando me tranquilizar. “Me desculpe,” ele
continuou a dizer, “me perdoe! Me perdoe, Velho Homem!”
Nos meses subsequentes, tanto quanto meus estudos permitiram, nos víamos com
certa frequência. Eu parecia nutrir minha desesperada necessidade de companhia
humana com aquele homem solitário e de minha parte, eu estava mais que contente de
saber que eu era seu amigo – infortunadamente talvez, seu único amigo. Eu sentia que
chegaria a hora em que Cabot tocaria no assunto da montanha e que ele mesmo teria de
escolher o momento. Eu estava ansioso para me intrometer em seus negócios ou seus
segredos, como assim parecia ser. Era bom ser mais uma vez seu amigo. Eu me
perguntava em certas ocasiões por que Cabot não falava comigo mais abertamente sobre
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Foragidos de Gor
certas questões, por que ele guardava, tão ciosamente, os mistérios daqueles meses nos
quais ele tinha se ausentado da faculdade. Eu agora sabia por que ele não tinha falado
antes. Ele temia que eu o tomasse por louco.
Era tarde em certa noite, no começo de Fevereiro e nós tínhamos bebido mais uma
vez no pequeno bar, o mesmo em que bebemos nossa primeira bebida naquela
inacreditável tarde ensolarada, alguns meses atrás. Do lado de fora caía uma neve fraca,
leve e colorida pelas solitárias luzes de neon da rua. Cabot assistia a isso enquanto dava
goladas em seu Uísque. Ele parecia taciturno, melancólico. Eu me lembrei de que foi em
Fevereiro que ele tinha deixado a faculdade anos atrás.
Cabot continuava a olhar para fora da janela, assistindo a neve de neon caindo à
deriva até a cinzenta e pisoteada calçada.
“Eu a amo,” disse Cabot, ele não estava realmente falando comigo.
“Quem?” eu perguntei.
“Onde é casa?” perguntou Cabot, olhando dentro do copo cheio até a metade.
“Seu apartamento, a algumas quadras daqui,” eu disse, querendo que ele voltasse,
querendo que ele saísse daquele lugar. Seu estado de espírito era alheio a qualquer coisa
que eu já tivesse visto nele antes. De algum modo, eu estremeci.
Ele não se moveria. Puxou seu braço para longe de minha mão. “É tarde,” ele disse,
parecendo concordar comigo, mas se referindo talvez a algo mais. “Não deve ser tão
tarde,” ele disse, como se tivesse se resolvido sobre alguma coisa, como que pela simples
força da sua vontade ele pudesse parar o fluxo do tempo, a trajetória randômica dos
eventos.
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Foragidos de Gor
Cabot levantou seu Uísque de novo, segurando o copo perante ele, sem beber.
Então, cerimoniosamente, amargamente, ele derramou um pouco do líquido na mesa,
que espirrou, molhando parcialmente um guardanapo. Quando fez esse gesto, ele
proferiu alguma sentença naquela língua estranha a qual eu o ouvi dizer uma vez antes
– quando sucumbi em suas mãos. De algum modo eu tinha a impressão de que ele estava
se tornando perigoso. Fiquei apreensivo.
“Isso quer dizer,” gargalhou Cabot, uma desconsolada gargalhada, “para os Reis-
Sacerdotes de Gor!”
Ele se levantou instável. Parecia alto, estranho, quase de outro mundo sob aquela
luz depressiva, naquela quieta atmosfera de pequenos e geniais ruídos civilizados.
Então, sem aviso, com uma risada amarga, mais parecida com um lamento e grito
de raiva, ele atirou o copo violentamente contra a parede. O objeto se despedaçou em
milhões de esporádicos fragmentos brilhantes, submetendo o ambiente a um momento
de supremo silêncio. Eu o ouvi claramente, intensamente, repetindo em um rouco
sussurro aquela estranha frase, “Ta-Sardar-Gor!”
“Você levantou uma arma contra mim,” ele disse. “Meus códigos me permitem
matar você.”
“Ele está bêbado,” eu disse para o garçom. Segurei firmemente no braço de Cabot.
Ele não pareceu estar mais com raiva e eu pude ver que ele não pretendia machucar
ninguém. Meu toque pareceu despertá-lo do estranho estado em que estava. Ele entregou
o cassetete arruinado, de forma tranquila agora para o garçom.
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Foragidos de Gor
“Me desculpe,” disse Cabot. “De verdade.” Ele levou a mão dentro de sua carteira
e pressionou uma nota dentro da mão do garçom. Era uma nota de cem dólares.
Vestimos nossos casacos e saímos para dentro da noite de fevereiro, dentro da leve
neve a cair.
Fora do bar ficamos em pé sob a neve, sem falar. Cabot, ainda meio bêbado, olhou
em volta de si mesmo, para a brutal geometria elétrica da cidade grande, para as negras
e solitárias formas que se moviam através da neve suave e para os pálidos brilhos dos
faróis dos carros.
“Essa é uma grande cidade,” disse Cabot, “e ainda assim não é amada. Quantos
são aqueles aqui que morreriam por esta cidade? Quantos defenderiam seus perímetros
até a morte? Quantos se submeteriam à tortura a seu favor?”
“Esta cidade não é amada,” ele disse. “Caso contrário não seria usada desse jeito,
mantida desse jeito.”
De alguma forma eu sabia que esta era a noite na qual eu saberia o segredo de Tarl
Cabot.
Ele se virou e eu senti que ele estava satisfeito que eu o tinha chamado, minha
companhia naquela noite significava muito para ele.
Me juntei a ele e juntos fomos para seu apartamento. Primeiro ele preparou um
pouco de café forte, um ato no qual meus sentidos ficaram mais que agradecidos. Então,
sem parar, ele foi para seu armário e voltou trazendo um cofre. Destrancou com uma
chave que ele carregava consigo mesmo e removeu um manuscrito, escrito com suas
próprias mãos claras, decisivas, estava amarrado com um barbante. Ele colocou o
manuscrito em minhas mãos.
Quando, logo após o amanhecer, eu terminei de ler, olhei para Cabot, que todo o
tempo, esteve sentado perante a janela, seu queixo em suas mãos, assistindo a neve a cair,
perdido em pensamentos que eu escassamente podia conjecturar.
Eu não sabia o que dizer. Poderia, é claro, ser mentira, ainda assim eu tinha Cabot
como um dos homens mais honestos que eu já conheci.
Então eu notei seu anel, quase como se fosse pela primeira vez, embora eu já
tivesse visto aquilo milhares de vezes. Ele tinha sido mencionado em seu testemunho,
aquele simples anel de metal vermelho, trazendo a insígnia dos Cabot.
“Eu queria que alguém soubesse dessas coisas,” disse Cabot, simplesmente.
Levantei-me, agora consciente pela primeira vez depois de uma noite de sono
perdida, sob os efeitos da bebida e dos severos copos de café amargo. Eu sorri
ironicamente. “Eu acho,” falei, “que é melhor eu ir embora.”
“É claro,” disse Cabot, me ajudando com meu casaco. Na porta ele estendeu sua
mão. “Adeus,” ele disse.
Era fevereiro a época que ele tinha desaparecido, há sete anos atrás.
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Foragidos de Gor
Então de repente eu me virei, literalmente, correndo de volta para seu
apartamento. Eu tinha abandonado meu amigo para algo que eu não fazia ideia do que
era. Corri para a porta do apartamento e a esmurrei com meus punhos. Não houve
resposta. Chutei a porta, arrancando a fechadura do batente. Entrei no apartamento. Tarl
Cabot tinha partido!
Meus exames chegaram e foram completados com sucesso. Mais tarde, depois de
mais algumas provas, eu me formei no Estado de Nova York e entrei em um dos imensos
escritórios de advocacia da cidade, esperando obter eventualmente experiência suficiente
e capital para abrir meu próprio negócio. Na pressa do trabalho, na interminável
demanda da selva de detalhes requeridos em minha profissão, a memória de Cabot foi se
perdendo de minha mente. Agora, talvez, não há muito mais o que dizer aqui, além do
fato que eu não o vi mais. Embora tivesse razões para acreditar que ele estava vivo.
Talvez, como Tarl Cabot uma vez comentou, “Os agentes dos Reis-Sacerdotes
estão entre nós.”
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Foragidos de Gor
II
Retorno a Gor
Uma vez mais, eu, Tarl Cabot, caminho sobre os verdes campos de Gor.
Eu acordei nu nos pastos varridos pelo vento, debaixo daquela flamejante estrela
que é o popular sol de meus dois mundos, meu planeta natal, a Terra, e sua secreta irmã,
a Contra-Terra, Gor.
Levantei-me lentamente, minha pele viva sob o vento, meu cabelo esvoaçante com
seus sopros, meus músculos, cada um deles se contraindo e deleitando-se em seus
primeiros movimentos após semanas talvez, pois eu tinha novamente entrado naquele
prateado disco nas Montanhas Brancas, o qual era a nave dos Reis-Sacerdotes, usada para
as Viagens de Aquisição e, ao entrar, caí na inconsciência. Em tal estado, assim como
aconteceu uma vez há tempos atrás, eu tinha vindo para este mundo.
Fiquei lá de pé por alguns minutos, a fim de deixar cada sentido, cada nervo, beber
da maravilha do meu regresso.
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Foragidos de Gor
Então, de pé, o sol sobre mim, sem pensar eu levantei meus braços em uma prece
pagã a fim de reconhecer o poder dos Reis-Sacerdotes, os quais tinham uma vez me
trazido da Terra para este mundo, o poder no qual uma vez antes tinha me arrancado de
Gor, quando eles não precisavam mais de mim, me levando de minha cidade adotada,
meu pai, meus amigos e da garota que eu amava, a bela de cabelos negros, Talena, filha
de Marlenus, que uma vez foi Ubar de Ar, a maior cidade conhecida de toda Gor.
Não havia amor no coração dos Reis-Sacerdotes, estes misteriosos habitantes das
Montanhas de Sardar, fossem eles o que, ou quem quer que pudessem ser, mas havia
gratidão em meu coração, até mesmo para eles ou para as estranhas forças que os
moviam.
Se eu tinha retornado a Gor para procurar uma vez mais minha cidade e meu
amor, eu não tinha certeza, por mais que pudesse ser um espontâneo gesto de
generosidade, ou de justiça, como assim parecia ser. Os Reis-Sacerdotes, Guardiões do
Local Sagrado nas Montanhas de Sardar, pareciam saber de tudo o que ocorria em Gor.
Mestres da terrível Chama da Morte que poderia consumir em fogo destruindo o que
quer que desejassem, sempre que desejassem, estes não eram tão cruelmente motivados
quanto os homens. Não eram suscetíveis aos imperativos da decência e respeito que
podem, em certas ocasiões, guiar as ações de humanos. Seus interesses eram para com
seus próprios, remotos e misteriosos fins. Criaturas humanas eram tratadas como
instrumentos subservientes. Existia um rumor de que eles usavam homens da mesma
forma que se usam as peças em um jogo e, quando a peça tivesse desempenhado seu
papel, poderia então ser descartada, ou talvez, em muitos casos, removidas do tabuleiro
até que fosse do desejo dos Reis-Sacerdotes, começar um novo jogo.
O elmo era de bronze, trabalhado à moda grega, com uma unitária abertura
parecida com o formato de um Y. Não trazia insígnia alguma e o lugar onde deveria estar
a crista estava vazio.
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Foragidos de Gor
A lança era uma típica lança Goreana, com cerca de sete pés de altura, pesada,
robusta, com uma ponta cônica de bronze de aproximadamente dezoito polegadas de
comprimento. Esta era uma arma terrível e, auxiliada pela menor gravidade de Gor,
quando lançada com considerável força, podia perfurar um escudo a curta distância ou
enterrar sua ponta a um pé de profundidade em madeira sólida. Com esta arma grupos
de homens caçam até mesmo um larl em suas nativas tocas nas Cordilheiras Voltai,
aquele inacreditável carnívoro parecido com uma pantera, o qual de pé, pode chegar a
medir de seis a oito pés de altura até o pescoço.
De fato, a lança Goreana é tal que muitos guerreiros chegam a desprezar as armas
de longo alcance menores, tais como o arco longo e a besta, ambas as quais são facilmente
encontradas em Gor. Eu lamentava, contudo, que nenhum arco estava entre as armas ao
meu dispor, já que eu, em minha prévia estadia temporária em Gor, tinha desenvolvido
habilidade com tal arma e tinha reconhecidamente uma predileção por ela, um gosto que
escandalizou meu antigo mestre de armas.
Eu relembrava dele com afeição, o Velho Tarl. Tarl é um nome comum em Gor. Eu
procurava ansiosamente vê-lo novamente, aquele áspero viking gigante, aquele
orgulhoso, barbudo, um afeiçoado espadachim beligerante que tinha me ensinado o
ofício das armas usadas pelos guerreiros de Gor.
Abri o pacote de couro. Lá dentro encontrei uma túnica escarlate, sandálias e uma
capa, que constituem a indumentária normal de um membro da Casta dos Guerreiros.
Continha o que deveria conter, já que eu era de tal casta e tinha sido desde aquela manhã,
há alguns anos atrás, quando na Câmara do Conselho das Castas Altas eu tinha aceitado
as armas das mãos de meu pai, Matthew Cabot, Administrador de Ko-ro-ba, e tinha pego
a Pedra da Casa da cidade em minhas próprias mãos.
Para os Goreanos, embora eles raramente falem de tais coisas, a cidade é algo mais
do que pedras e mármores, cilindros e pontes. Não é simplesmente um lugar, uma
localidade geográfica na qual homens se veem aptos para construir suas moradias, uma
coleção de estruturas onde eles devem convenientemente conduzir suas tarefas.
Para eles a cidade é quase uma coisa viva, ou mais que uma coisa viva, é uma
entidade com uma história. Pedras e rios não tem história. É uma entidade com uma
tradição, uma herança, costumes, práticas, pessoas, intenções, esperanças. Quando um
Goreano diz, por exemplo, que ele é de Ar ou Ko-ro-ba, ele está fazendo muito mais do
que informar a você seu local de residência.
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Foragidos de Gor
Os Goreanos, geralmente, embora existam exceções, particularmente a Casta dos
Iniciados, não acreditam em imortalidade. Portanto, ser de uma cidade significa, em um
senso, ser parte de algo menos perecível que ele próprio, algo divino no sentido de que
não morre, mas é claro, como todo Goreano sabe, cidades também são mortais, já que
cidades podem ser destruídas assim como homens.
O amor por sua cidade tende a ser dedicado a uma pedra na qual é conhecida
como a Pedra da Casa, e a qual é normalmente mantida no cilindro mais alto da cidade.
Na Pedra da Casa a cidade encontra seu símbolo. Às vezes nada mais que um cru pedaço
de pedra esculpida, datada talvez por severas centenas de gerações, desde quando a
cidade era apenas um emaranhado de cabanas às margens de um rio, outras vezes um
magnífico e impressionante cubo trabalhado de mármore ou granito com joias
encrustadas. No entanto, por se tratar de um símbolo, está além de uma simples marca.
É quase como se a cidade por si só fosse identificada pela Pedra da Casa, como se esta
fosse para a cidade o que a vida é para um homem. Os mitos envoltos em tais questões
são tais que enquanto a Pedra da Casa sobrevive, então, também, a cidade irá viver.
Mas não é apenas o caso de que cada cidade tem sua Pedra da Casa. A mais simples
e humilde vila, e até mesmo a mais primitiva cabana da vila, talvez somente um cone de
palha, terá a sua própria Pedra da Casa, assim como a terá também a mais fantástica
câmara do Administrador de uma cidade tão grande como a cidade de Ar.
Minha Pedra da Casa era a Pedra da Casa de Ko-ro-ba, a cidade na qual eu tinha,
há sete anos atrás, prometido minha espada. Eu estava agora ansioso para retornar à
minha cidade.
Existiam dois itens que eu esperava encontrar dentro do pacote, que na verdade
não estavam lá: um aguilhão e um apito de tarn. O aguilhão é um instrumento na forma
de bastão, cerca de vinte polegadas em comprimento. Tinha um botão perto da
empunhadura, muito parecido com o interruptor de uma lâmpada. Quando o aguilhão
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Foragidos de Gor
estivesse ligado e ele tocasse um objeto, ele emitia um violento choque e dispersava uma
cascata de faíscas vermelhas. É usado para controlar tarns - os gigantescos pássaros,
parecidos com falcões e vestidos com selas - de Gor. De fato, tais pássaros eram
condicionados a responder ao aguilhão, desde sua infância.
O apito de tarn, como alguém já deve esperar, é usado para chamar o pássaro.
Usualmente, os mais treinados dos tarns irão responder apenas a uma nota, aquela tocada
pelo apito de seus mestres. Não há nada de surpreendente nisso levando em conta que
cada pássaro é treinado, pela Casta dos Guardiões de Tarns, para responder a apenas
uma nota. Quando o tarn é presenteado a um guerreiro ou vendido para um, o apito
acompanha o pássaro. Nem é preciso dizer que o apito é importante e cuidadosamente
guardado, pois uma vez perdido ou nas mãos de um inimigo, o guerreiro, em todos os
propósitos práticos, perde sua montaria.
Meus passos eram leves, meu coração estava feliz. Eu estava em casa, onde meu
amor esperava por mim. Onde meu pai tinha me encontrado depois de mais de vinte
anos de separação, onde meus camaradas guerreiros e eu tínhamos bebido e gargalhado
juntos, onde eu tinha conhecido e aprendido com meu pequeno amigo, Torm, o Escriba,
lá era minha casa.
Me peguei pensando em Goreano, tão fluente como se não tivesse estado ausente
por sete anos. Dei-me conta de estar cantando enquanto andava através da relva, uma
canção de guerreiros.
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Foragidos de Gor
III
Zosk
Eu tinha andado por algumas horas na direção de Ko-ro-ba quando fui tentado a
ir para uma das estreitas estradas da cidade. Eu a reconheci e, mesmo que não
reconhecesse, as cilíndricas pedras pasang que marcavam seu comprimento traziam em
cada uma o símbolo da cidade inscrito nelas e a contagem pasang apropriada à sua
posição. Um pasang Goreano é aproximadamente 0,7 de uma milha.
A estrada, assim como a maioria das estradas Goreanas, era construída como um
paredão deitado na terra e era feita para durar por centenas de gerações. Os Goreanos
tinham pouco senso de progresso quando comparados a nós, eram bem cuidadosos em
suas construções e acabamentos. O que eles constroem, o fazem para ser usado por
homens até que as tempestades do tempo as transformem em poeira. Ainda assim, esta
estrada feita com toda a dedicação dos homens da Casta dos Construtores era apenas
uma despretensiosa e subsidiária estrada, mal larga o suficiente para duas carroças
passarem. De fato, até mesmo as estradas principais para Ko-ro-ba nem chegavam aos
pés das grandes rodovias que conduziam para uma metrópole como Ar.
Já era fim de tarde e, a julgar pelas pedras pasang, eu estava a algumas horas da
cidade. Embora ainda estivesse claro, muitos dos coloridos pássaros plumados já tinham
retornado para seus ninhos. Aqui e ali, enxames de insetos noturnos começavam a se
mover, se levantando sobre as folhas dos arbustos ao longo da estrada. As sombras das
pedras pasang cresciam longas e, a julgar pelo ângulo dessas sombras (já que as pedras
eram posicionadas de modo a servirem também como um relógio de sol), já passava do
décimo quarto Ahn Goreano, ou hora. O dia Goreano é dividido em vinte Ahn, o qual é
numerado consecutivamente. O décimo Ahn é o meio dia, o vigésimo, meia noite. Cada
Ahn consiste de quarenta Ehn, ou minutos, e cada Ehn é formado por oitenta Ihn ou
segundos.
20
Foragidos de Gor
É a noite que as sleens caçam, aqueles longos carnívoros mamíferos de seis patas,
um animal quase semelhante a uma cobra. Eu nunca tinha visto uma, mas já tinha visto
suas pegadas há sete anos atrás.
Também, à noite, a cruzar os luminosos discos que eram as três luas de Gor,
ocasionalmente podia-se ver a silenciosa e predatória sombra de um ul, um gigante
pterodátilo voando longe de seus pântanos nativos no delta do Vosk.
Talvez eu temesse mais aquelas noites em que se podia ouvir os gritos dos bandos
de vart, um cego enxame de roedores parecidos com morcegos, cada um do tamanho de
um cachorro pequeno. Eles poderiam devorar uma carcaça em questão de minutos, cada
um carregando um esvoaçante filete de carne para os recessos de uma escura caverna
qualquer, que o enxame escolhia como casa. Além do que, alguns bandos de vart eram
violentos.
Um dos perigos mais óbvios se encontrava na própria estrada, ainda mais que eu
não tinha nenhuma lanterna. Depois que escurecia, várias serpentes se moviam para a
estrada à procura de calor, as pedras da estrada retinham o calor do sol por mais tempo
que os campos circundantes. Um dos tipos de serpentes era a grande, cheia de marcas,
uma python Goreana, a hith. Uma a ser até mais temida talvez, era a pequena ost, um
venenoso réptil laranja brilhante, que media pouco mais que um pé em comprimento,
cuja mordida provocava uma excruciante morte em segundos.
O homem tinha se aproximado de mim. Seus olhos estavam quase cobertos por
um branco e desgrenhado tufo de cabelo, emaranhado em galhos e folhas. Seu bigode
tinha sido raspado, provavelmente pela lâmina do amplo machado de madeira com duas
lâminas, amarrado ao topo do maço. Ele vestia o curto robe de mangas esfarrapadas de
seu ofício, reforçado com couro nas costas e ombros. Seus pés estavam descalços, e negros
até os tornozelos.
“Tal,” eu disse, levantando meu braço direito, palma pra dentro, em um usual
cumprimento Goreano.
“Tal,” ele disse, sua voz era grossa, quase não humana.
Eu senti que ele estava considerando quão rápido ele poderia alcançar o machado
amarrado em seu maço.
“O que você quer?” perguntou o carregador de madeira, que agora já deveria ter
percebido que meu escudo e equipamentos não traziam nenhuma insígnia, e teria assim
concluído que eu era um criminoso.
“Eu também, estou com fome,” ele disse, “e não tive nada para comer em muitas
horas.”
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Foragidos de Gor
“Sua cabana é aqui por perto?” perguntei. Eu sabia que era, devido a hora do dia
na qual eu o encontrei. O sol regula a agenda da maioria dos ofícios Goreanos e os
lenhadores agora deveriam estar retornando com a lenha cortada de um dia de trabalho.
“Eu não desejo nenhum mal a você ou a sua Pedra da Casa,” eu disse. “Não tenho
dinheiro e não posso pagar você, mas estou faminto.”
“Não tenho uma filha,” ele disse. “Não tenho prata e nem mercadorias.”
Eu tinha andado apenas alguns passos quando sua voz me alcançou. Era difícil
entender suas palavras, já que aqueles da solitária Casta dos Lenhadores não falavam
com frequência.
“Eu tenho ervilhas e nabos, alho e cebola em minha cabana,” disse o homem, seu
pacote mais parecia uma corcunda gigante em suas costas.
“Os próprios Reis-Sacerdotes,” eu disse, “não pediriam por mais do que isso.”
Visto que eu era de casta alta e ele, baixa, ainda assim, quando estivéssemos em
sua própria cabana ele seria, pelas leis de Gor, um príncipe e soberano, ele estaria no
mesmo lugar onde ficava sua própria Pedra da Casa. De fato, um simples homem
servente, que nunca pensaria em retirar seu olhar do chão quando na presença de um
membro de alta casta, fosse um oprimido aldeão sem espírito, ou um desacreditado vilão
ou covarde, um miserável e obsequioso mendigo, frequentemente se torna, quando no
local de sua própria Pedra da Casa, um autêntico leão perante seus companheiros,
orgulhoso e esplendoroso, generoso e solidário, um rei mesmo que apenas dentro de sua
própria toca.
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Foragidos de Gor
Zosk proferiu um inarticulado grito e começou a cambalear para trás. Suas mãos
vacilaram nas cordas e o grande maço de madeira afrouxou e se esparramou sobre as
pedras que cobriam a estrada. Se virando para correr, seus pés tropeçaram em um dos
pedaços de madeira e ele caiu. Ele caiu quase que em cima do machado que agora
repousava sobre a estrada. Impulsivamente, como se fosse uma forma de se agarrar à
vida no turbilhão de seu medo, ele apanhou o machado.
Zosk se ergueu tanto quanto o arco formado pelos gigantes ossos de sua coluna, o
permitiu fazer.
Ele falou lentamente. Sua voz era grossa, mas estava completamente sob controle.
“Eu peço a você um favor,” disse Zosk, sua voz cheia de emoção. Ele estava
pleiteando.
Parecia leve em seu aperto massivo. Eu senti que ele poderia cortar uma pequena
árvore com apenas um golpe. Passo a passo, ele se aproximava de mim, o machado
levantado sobre seu ombro com ambas as mãos. Finalmente ele parou perante mim. Eu
pensei ver lágrimas em seus olhos. Não fiz nenhum movimento para me defender. De
algum modo eu sabia que Zosk não iria me golpear. Ele brigava consigo mesmo, sua
simples e ampla face se contorcia em agonia, seus olhos torturados.
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Foragidos de Gor
“Que os Reis-Sacerdotes me perdoem!” ele gritou.
Então eu me retirei.
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Foragidos de Gor
IV
A Sleen
Eu não era Tarl de Ko-ro-ba? Não existia tal cidade? Cada pedra pasang
proclamava que ela existia no fim desta estrada. Então por que ela estava largada? Por
que não estava sendo usada? Por que tinha Zosk da Casta dos Carregadores de Madeira
agido daquele modo? Por que meu escudo, meu elmo e meu equipamento não traziam a
orgulhosa insígnia de Ko-ro-ba?
Então eu gritei de dor. Duas presas tinham mordido minha panturrilha. Uma ost,
eu pensei! Mas as presas se mantiveram firmes e pude ouvir o som pulsante, como se
estivesse sugando, o som de uma vesícula em forma de vagem de uma planta
sanguessuga, que se expandia e se contraía como pequenos e repulsivos pulmões. Me
abaixei e arranquei a planta do solo a um canto da estrada. Ela se enrolou em minha mão
como uma serpente, sua embocadura arfando. Retirei os dois espinhos com formato de
presa de minha perna. A planta sanguessuga ataca como uma cobra e finca seus dois
espinhos ocos dentro da vítima. As respostas químicas da embocadura vesicular
induzem-na a uma ação de bombeamento mecânico e o sangue é sugado para dentro da
planta, que se nutre dele. Quanto retirei aquela coisa de minha perna, fiquei feliz que a
picada não tinha sido de uma venenosa ost, as três luas de Gor se precipitaram por de
trás da cortina de nuvens que as escondiam. Eu segurava a planta que se debatia. Então
eu a torci várias vezes. Agora meu sangue, negro sob a noite prateada, se misturava com
as seivas da planta, manchando o caule até as raízes. Em questão de talvez dois ou três
segundos, ela tinha drenado talvez uma caneca de líquido. Sentindo um arrepio eu
arremessei a asquerosa planta para longe da estrada. Normalmente tais plantas são
retiradas das bordas das estradas e de áreas habitadas. Elas são essencialmente perigosas
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Foragidos de Gor
para crianças e pequenos animais, mas um homem adulto que perdesse seu equilíbrio e
caísse no meio delas dificilmente teria chances de sobreviver.
Preparei-me para seguir adiante em minha jornada novamente, grato que agora as
três luas de Gor poderiam guiar meu caminho nesta perigosa estrada. Eu me perguntei,
em um momento de sanidade, se eu não deveria procurar abrigo - e eu sabia que deveria,
mas não podia, porque aquelas questões queimavam dentro de mim e eu não ousaria
respondê-las. Apenas evidências aos meus olhos e ouvidos poderiam aliviar meus
medos, meu aturdimento. Eu solicitava uma verdade que eu não conhecia, mas sabia que
iria descobrir. E a resposta estava no final desta estrada.
Era de fato uma jovem sleen, não maior que seis pés de comprimento, e não tinha
a paciência de um animal adulto. Seu ataque, caso ela detectasse minha presença, seria
barulhento, uma corrida sibilante, uma investida desajeitada e esganiçada. Ela deslizou
para dentro das sombras, talvez não totalmente convencida de que estivesse sozinha, um
animal jovem pronto para negligenciar e esquecer os ligeiros vestígios que podem ditar
a diferença entre morrer ou sobreviver no brutal e predatório mundo de Gor.
Uma negra carreira de nuvens novamente obscureceu as três luas de Gor e o vento
começou a soprar. Eu ainda podia ver as sombras das altas árvores de Ka-la-na oscilando
dentro da escuridão da noite, suas folhas se levantando e farfalhando nos longos galhos.
Senti o cheiro de chuva no ar. Ao longe, pude ver um repentino flash de luz e o remoto
som de um trovão me alcançou alguns segundos depois.
28
Foragidos de Gor
Enquanto eu me apressava, fui ficando mais apreensivo. Agora eu já deveria estar
vendo as luzes da cidade de cilindros de Ko-ro-ba. O vento ficou mais forte, como se
quisesse rasgar as árvores.
Em um clarão de luz pude ver uma pedra pasang e, ansiosamente, corri até ela.
Sob o forte vento e na escuridão, eu pude ainda delinear o número na pedra. Era verdade.
Agora eu deveria estar vendo as luzes de Ko-ro-ba, mas eu não via nada. A cidade deveria
estar no escuro.
Por que as lanternas não estavam lá balançando nas imponentes pontes? Por que
não estavam as lamparinas de centenas de cores e chamas, acesas nos compartimentos da
cidade, indicando, através dos códigos de lamparinas de Gor, que conversavam, bebiam
ou faziam amor? Por que os imensos faróis sobre a muralha não estavam queimando, a
chamar à distância os itinerantes tarnsmans de volta para o abrigo de seus muros?
Em pouco tempo eu estava encharcado pela água gelada. O vento a rasgar minha
túnica. Estava cego na fúria da tempestade. Limpei a água fria de meus olhos e passei
meus dedos entre meus cabelos a fim de os forçar para trás. A ofuscante fúria de um
relâmpago como um chicote de eletricidade golpeou de novo e de novo dentro das
colinas, me cegando por um instante em atordoante agonia, desaparecendo novamente
dentro da escuridão.
Um raio de luz destruiu a estrada a não mais de quinze jardas à minha frente. Por
um instante aquilo pareceu estar lá de pé como uma gigantesca e tortuosa lança
posicionada em meu caminho, luminosa, sinistra, proibidora, e então desapareceu.
Aquilo tinha caído em meu caminho. Um pensamento cruzou minha mente, de que
aquilo era um sinal dos Reis-Sacerdotes de que eu deveria voltar.
29
Foragidos de Gor
Continuei à frente e parei onde o raio tinha caído. A despeito do vento e da chuva
gelados, eu pude sentir o calor das pedras através de minhas sandálias. Levantei meus
olhos para a cima, e também minha lança e escudo, e gritei pra dentro da tempestade, um
desafiador grito ao vento se arremessou de encontro as forças que pareciam investir
contra mim.
Com a ânsia e desejo que eram comparáveis aos da própria besta, eu avancei na
escuridão e, quando julguei que ela iria saltar, eu projetei para frente a ponta ampla da
lança de Gor. Meus braços pareceram molhados e presos, e foram fustigados pelas garras,
eu girei enquanto o animal se debatia em fúria e dor e rolei para fora da estrada. Eu retirei
meu braço da agora fraca e imóvel mandíbula fechada.
É dito que somente o coração de um larl da montanha traz mais sorte que o de
uma perversa e astuta sleen. A carne crua, aquecida ainda pelo sangue do animal, me
nutriu, e eu agachei ao lado de minha presa na estrada de Ko-ro-ba, outro predador entre
predadores.
30
Foragidos de Gor
Eu gargalhei. “Será que você, Oh Irmão Negro da Noite, pensou que iria me
impedir de alcançar Ko-ro-ba?”
Quão absurdo isso me pareceu que uma mera sleen teria ficado entre mim e minha
cidade. Irracionalmente eu gargalhei, pensando quão tolo o animal tinha sido. Mas como
ele poderia saber? Como ele saberia que eu era Tarl de Ko-ro-ba e que eu estava
retornando para minha cidade? Tinha um provérbio Goreano que dizia que um homem
que está retornando para sua cidade não deve ser detido. Será que a sleen não conhecia
esse ditado?
Eu sacudi minha cabeça, para livrá-la desses pensamentos loucos. Eu senti que isso
era irracional, talvez estivesse um pouco bêbado após a morte de minha presa e do
primeiro alimento que tive após severas horas.
Então, sobriamente, embora eu soubesse que isso era uma superstição, eu realizei
o ritual Goreano de olhar dentro do sangue. Com minhas mãos juntas em forma de
concha, eu bebi um punhado de sangue, e então, segurando mais sangue em minhas
mãos, eu esperei pelo clarão de um raio.
Aquele que olha dentro do sangue em suas próprias mãos em concha, é dito que
se ele vê um semblante negro e desgastado, ele irá morrer de doença, se ele vê a si mesmo
rasgado e vermelho, irá morrer em batalha, se ele vê a si mesmo velho e de cabelos
brancos, irá morrer em paz e deixará filhos no mundo.
Levantei-me e limpei a lança tão bem quanto pude nos pelos da sleen. Seu coração
tinha me dado força.
31
Foragidos de Gor
V
O Vale de Ko-ro-ba
A estrada era familiar, uma longa e relativamente íngreme ladeira até o topo
daquela série de cumes nos quais, em seu centro, situava-se Ko-ro-ba, uma ladeira que
era a desgraça dos mestres das caravanas, de transportadores como o pobre Zosk, o
lenhador, e de todos os viajantes a pé.
Um antigo poeta, que por incrível que pareça para as mentes dos Goreanos, tinha
cantado as glórias de muitas das cidades de Gor, tinha falado de Ko-ro-ba como as Torres
da Manhã, e ela é referida as vezes por este nome. A atual palavra Ko-ro-ba por si mesma,
mais prosaicamente, é simplesmente uma expressão no Goreano arcaico que se refere a
uma vila mercante.
32
Foragidos de Gor
Eu ansiava pela minha cidade, e por meu pai, o magnífico Matthew Cabot, uma
vez Ubar, agora Administrador de Ko-ro-ba, e por meus amigos, o orgulhoso Velho Tarl,
meu mestre de armas, e Torm, o bem disposto e resmungão escriba, que via até mesmo o
sono e a comida como conspiradores para separá-lo dos estudos e de seus amados
pergaminhos; e principalmente, eu ansiava por Talena, ela quem eu tinha escolhido como
minha companhia, ela por quem eu tinha lutado no Cilindro da Justiça de Ar, ela que
tinha me amado, e a quem eu amava, de cabelos negros, a bela Talena, filha de Marlenus,
uma vez Ubar de Ar.
E assim que o grito saiu de meus lábios houve um grande clarão de um relâmpago
e o vale entre as colinas se revelou com a luz, e eu vi que o vale estava vazio.
Ko-ro-ba se foi!
“Você foi tocado pelos Reis-Sacerdotes,” disse uma voz atrás de mim.
De algum modo este homem parecia diferente para mim, dos outros Iniciados que
eu tinha conhecido em Gor. Eu não poderia achar a diferença, ainda assim parecia ter
algo nele, ou sobre ele, que o diferenciava dos outros membros de sua casta. Ele poderia
ser como qualquer outro Iniciado, mas não era. Não tinha nada de extraordinário nele,
exceto talvez, que sua sobrancelha era maior que o comum, e seus olhos que pareciam ter
visto o que poucos homens já viram.
Eu me surpreendi. “Sim,” eu disse, “Eu sou Tarl de Ko-ro-ba.” Me virei para faceá-
lo.
Eu olhava para o homem, que parecia ser um homem igual a tantos outros.
Eu acreditei nele.
Era comum, é claro, para os Iniciados afirmarem falar em nome dos Reis-
Sacerdotes; de fato, era presumivelmente o papel de sua casta interpretar os desejos dos
Reis-Sacerdotes para os homens.
Ele não era como os outros Iniciados, embora ele vestisse os mesmos robes.
“Eu sou um dos que transmitem a vontade dos Reis-Sacerdotes para os mortais,”
disse o homem, escolhendo não responder minha pergunta.
Fiquei em silêncio.
“Ko-ro-ba foi destruída,” disse o homem. “É como se nunca tivesse existido. Suas
pedras e pessoas foram dispersados pelos cantos do mundo, e nem duas pedras e nem
dois homens de Ko-ro-ba ficarão de pé lado a lado novamente.”
“Porque foi,” disse o homem, “e não há nada tão elevado a ponto de questionar
ou determinar os desejos dos Reis-Sacerdotes.”
“Então assim será,” ele disse, “você daqui em diante está condenado a vagar pelo
mundo sozinho e sem amigos, sem cidade, sem muros para clamar como seus, sem Pedra
da Casa para estimar. Você será daqui em diante um homem sem uma cidade, você será
um aviso para todos, para que não desprezem a vontade dos Reis-Sacerdotes – fora isso,
você não será mais nada.”
“O que houve com Talena?” eu gritei. “Meu pai, meus amigos, as pessoas da
cidade?”
“Espalhados pelas córneas do mundo,” disse a figura nos robes, “e nem uma pedra
sobrou sobre pedra”
“Os Reis-Sacerdotes usaram você para seus fins, da forma que os agradou fazer.”
Eu levantei minha lança e senti que poderia assassinar a figura vestida em robes,
tão calmo e terrível perante mim.
Ele olhou dentro de meus olhos. “Atire-se sobre sua espada,” ele implorou.
“Eu segui você no cerco de Ar,” ele disse. “No Cilindro da Justiça eu lutei com
você contra Pa-Kur e seus assassinos.”
Ele sacudiu sua cabeça. “Não,” ele disse, “eu era um dos guardas de Ar e eu lutei
para salvar minha cidade.”
“A Gloriosa Ar,” ele disse, fraco, mas com orgulho. Ele me olhou novamente.
“Morra agora, Tarl de Ko-ro-ba,” ele disse, “Herói de Ar.” Seus olhos pareceram começar
a queimar em sua cabeça. “Não se envergonhe.”
De repente ele berrou como um cachorro torturado e o que aconteceu então eu não
sou capaz de descrever em detalhes. Pareceu como se toda a parte interna de sua cabeça
entrasse em combustão e queimasse, para efervescer uma horrível e perversa lava dentro
da cratera de seu crânio.
Foi uma morte feia – só por ter tentado falar comigo, por ter tentado me dizer o
que ia em seu coração.
Estava começando a clarear agora e o alvorecer surgia por entre as gentis colinas
que antes tinham abrigado Ko-ro-ba. Eu removi o odiado robe dos Iniciados do corpo do
homem e carreguei seu corpo nu para longe pela estrada.
Quando comecei a cobrir o corpo com as pedras, eu notava o que tinha sobrado
do crânio, agora nada mais que um punhado de estilhaços. O cérebro tinha literalmente
36
Foragidos de Gor
evaporado em ebulição. A luz da manhã refletiu brevemente em algo dourado por entre
os estilhaços. Eu peguei a coisa e levantei. Era um fio feito de um fino cabo dourado. Eu
não podia fazer nada com aquilo e joguei fora a um canto.
Coloquei uma larga pedra plana próximo do topo do monte de pedras, e com a
ponta da minha lança, arranhei uma inscrição. “Eu sou um homem da Gloriosa Ar.” Era
tudo o que eu sabia sobre ele.
“Não, Amigo,” eu disse para os restos do antigo guerreiro de Ar. “Não, eu não irei
me jogar sobre minha espada. Nem irei rastejar para os Reis-Sacerdotes, nem viverei a
vida de vergonha que eles reservaram para mim.”
“Muito tempo atrás,” eu disse, “eu prometi esta espada a serviço de Ko-ro-ba. E
assim ela continua prometida.”
Como todo homem de Gor eu sabia a direção das Montanhas de Sardar, a casa dos
Reis-Sacerdotes, a proibida vastidão dentro da qual nenhum homem abaixo das
montanhas, nenhum mortal poderia penetrar. Era dito que a Suprema Pedra da Casa de
toda Gor estava naquelas montanhas, que nenhum homem tinha visto um Rei-Sacerdote
e sobrevivido.
Eu retornei minha espada para a bainha, prendi meu elmo sobre meu ombro,
levantei o escudo e a lança e parti na direção das Montanhas de Sardar.
37
Foragidos de Gor
VI
Vera
Torm, meu amigo da Casta dos Escribas, frequentava tais feiras para trocar
pergaminhos com estudiosos de outras cidades, os quais ainda amavam ideias mais do
que odiavam seus inimigos, homens como Torm, eram tão apaixonados por aprender que
arriscariam uma perigosa jornada para as Montanhas de Sardar apenas para ter a chance
de discutir um texto ou pechinchar por um cobiçado pergaminho. Similarmente homens
de castas tais como a dos Médicos e Construtores faziam uso das feiras para disseminar
e trocar informações pertinentes aos seus respectivos ofícios.
As feiras eram uma forma de unir a intelectualidade, das quais sem ela, seriam
nada mais que isoladas cidades de Gor. E eu especulava que as feiras, de modo similar
desempenhavam o papel de estabilizar os dialetos de Gor, os quais poderiam, caso
contrário, em poucas gerações ter divergido ao ponto de serem mutualmente inteligíveis
– pois os Goreanos tinham uma coisa em comum, sua língua mãe em todas as suas
centenas de permutações, a qual eles simplesmente referem como a Linguagem, e todos
que falhassem em falar ela, independentemente de sua genealogia ou status, de suas
normas ou nível de civilização, eram vistos quase que como se estivessem fora dos limites
da humanidade. Diferentemente dos homens da terra, os Goreanos tinham pouca
sensibilidade para com a raça, mas muita para com a linguagem e cidade. Assim como
nós, eles encontram suas razões para odiar seus semelhantes, mas tais razões eram
diferentes.
38
Foragidos de Gor
Eu poderia fazer qualquer coisa para ter um tarn em minha jornada, embora eu
soubesse que nenhum tarn voaria para dentro daquelas montanhas. Por alguma razão
nem o mais destemido dos tarns, nem o mais estúpido dos tharlarions, os protótipos de
montaria em forma de lagarto de Gor, poderiam entrar nas montanhas. Os tharlarions
ficam incontroláveis e, embora o tarn esteja engajado em seu voo, o pássaro quase que
imediatamente se torna desorientado, descoordenado e volta gritando para as planícies
abaixo.
Gor era esparsamente habitada por seres humanos e abundante em vida animal
de tal forma que eu sabia que nas próximas semanas eu não teria dificuldades em
sobreviver através da caça. Eu suplementei minha dieta com frutas frescas que eu catava
de arbustos e árvores, e pescava com um espeto nos frios e velozes córregos correntes de
Gor. Certa vez eu trouxe a carcaça de um tabuk, um dos amarelos antílopes de Gor com
um único chifre, o qual eu tinha abatido em um arvoredo de Ka-la-na, para a cabana de
um aldeão e sua esposa. Sem perguntar, como seria conveniente dado a ausência de uma
insígnia em minhas vestes, eles comemoraram meu sucesso na caçada e me deram cordas,
pedras para fazer fogo e um odre de vinho.
Os aldeões de Gor não temem foragidos, pois eles raramente têm alguma coisa de
valor para ser roubada, exceto se tiverem uma filha. De fato, os aldeões e foragidos em
Gor vivem quase que sob um acordo não falado, o aldeão tende a proteger o foragido e o
foragido retribui compartilhando parte de seu saque e ganhos com o aldeão. O aldeão
não vê isso como desonesto de sua parte ou como ganância. É simplesmente o modo de
vida no qual ele está habituado. É um caso diferente, é claro, se for explicitamente
conhecido que o foragido é de uma outra cidade que não a mesma do aldeão. Neste caso
ele é normalmente visto como um inimigo que deve ser reportado para as patrulhas o
mais rápido possível. Ele é, acima de tudo, de outra cidade.
Como era sensato, eu evitei cidades em minha longa jornada, embora eu tenha
passado por mais de uma. Entrar em uma cidade sem permissão ou um motivo
satisfatório era o mesmo que cometer um crime capital, e a punição é geralmente o rápido
e brutal empalamento. Lanças sobre os muros das Cidades Goreanas frequentemente
traziam os restos de convidados indesejados. Os Goreanos sempre suspeitam de
estranhos, particularmente nas proximidades de seus muros nativos. De fato, em
Goreano a mesma palavra é usada para estranho e inimigo.
Existia uma conhecida exceção para esta prevalecente atitude hostil para com
estranhos, a cidade de Tharna, a qual, de acordo com os rumores, estava disposta a
engajar no que em Gor poderia ser avaliado como uma aventura de hospitalidade.
Existiam muitas coisas supostamente estranhas sobre Tharna, uma delas era de que ela
era governada por uma rainha, ou Tatrix e, dadas as sensatas circunstâncias, a posição
39
Foragidos de Gor
das mulheres naquela cidade, em contraste com os mais comuns costumes Goreanos, era
de privilégio e oportunidade.
Eu alegrei-me de saber que pelo menos em uma cidade de Gor as mulheres livres
não eram obrigadas a vestir os Robes de Encobrimento, limitadas em suas atividades em
grande parte dentro de seus próprios aposentos e limitadas a falar apenas com seus
parentes de sangue e, eventualmente, seu Companheiro Livre.
Eu pensei que muitas das barbaridades de Gor poderiam talvez serem atribuídas
a esta tola supressão do sexo belo, cuja delicadeza e inteligência poderia ter contribuído
para amolecer seus modos severos. Para ser exato, em certas cidades, como era o caso de
Ko-ro-ba, mulheres eram permitidas a ter status dentro do sistema de castas e tinham
uma relativa irrestrita existência.
De fato, em Ko-ro-ba, uma mulher poderia até mesmo deixar seus aposentos sem
primeiro obter permissão de um homem relacionado a ela ou seu Companheiro Livre, a
liberdade da qual era incomum em Gor. As mulheres de Ko-ro-ba podiam até mesmo ser
encontradas sentadas sozinhas em um teatro ou a ler poemas épicos.
É incomum encontrar uma mulher sem escolta fora dos muros de uma cidade, até
mesmo próxima dos muros. Eu estava espantado de vê-la sozinha neste selvagem e
deserto lugar, longe das ruas e cidades. Eu decidi esperar até que ela se aproximasse.
Eu estava confuso.
Será que seus protetores tinham sido assassinados? Seria ela talvez uma escrava
fugitiva, escapando de um mestre odiado? Poderia ela ser como eu, um exilado de Ko-
ro-ba? As pessoas de lá foram dispersadas, eu disse para mim mesmo, e nem duas pedras
nem dois homens de Ko-ro-ba poderiam estar de pé lado a lado novamente. Eu cerrei os
dentes. O pensamento corria através de minha cabeça, nenhuma pedra ficará sobre pedra.
Se ela fosse de Ko-ro-ba, eu sabia que eu não poderia, para seu próprio bem, ficar
com ela ou perto dela. Seria um convite à Chama da Morte dos Reis-Sacerdotes para um
ou outro, talvez, para ambos de nós. Eu já tinha visto um homem morrer pela Chama da
Morte, o Alto Iniciado de Ar no topo do Cilindro da Justiça de Ar, consumido em súbita
erupção de fogo azul que era o presságio do descontentamento dos Reis-Sacerdotes.
Se fosse uma mulher livre ela tinha sorte, pois estar sozinha em um lugar como
este era imprudência e insensatez.
Ela devia saber disso, ainda assim ela parecia não se importar.
E à noite, na grande festa, ele exibe sua captura, agora adequadamente adornada
por suas irmãs nas diáfanas e escarlates sedas de dança de Gor. Sinetas são amarradas
em seus calcanhares e ela é presa em braceletes de escravas. Orgulhoso, ele a apresenta
para seus parentes, seus amigos e camaradas guerreiros.
“Eu irei domá-la aos meus prazeres,” responde o jovem homem e gesticula para
os músicos.
42
Foragidos de Gor
A música começa novamente. Porém a garota hesita. Tem um chicote escravo
pendurado na parede. Então, sob a barbárica, inebriante música das flautas e tambores,
ela dança para seu captor, os sinos em seus tornozelos marcando cada um de seus
movimentos, os movimentos de uma garota roubada de sua casa, que deve agora viver
para agradar o atrevido estranho em cujas cordas ela tinha sido amarrada, cujo colar ela
agora vestia.
Ao término de sua dança é dado a ela um copo de vinho, mas ela não deve beber.
Ela se aproxima do jovem homem e se ajoelha perante ele, seus joelhos na delicada
posição de uma Escrava de Prazer e, com a cabeça baixa, ela oferece o vinho para ele. Ele
bebe. Há outro clamor da multidão em louvor e felicitações. A festa começa e ninguém
antes do jovem homem deve tocar na comida em tais ocasiões. A partir daquele momento
as irmãs do homem nunca mais o servirão, pois essa agora é a tarefa da garota. Ela é sua
escrava.
Enquanto ela o serve de novo e de novo ao decorrer da longa festa, ela lança
olhares a ele e observa que ele é até mesmo mais maravilhoso do que ela pensou. De sua
coragem e força ela já tinha tido ampla evidência. Enquanto ele come e bebe com prazer
na ocasião de seu triunfo, ela o contempla furtivamente, com uma estranha mistura de
medo e prazer.
Talvez devêssemos acrescentar que o mestre Goreano, embora muitas vezes ele
seja rigoroso, raramente ele é cruel. A garota sabe, que se ela o agradar, seu fado será
fácil. Ela quase nunca encontrará sadismo ou crueldade libertina, pois o ambiente
psicológico que tende a gerar essas doenças é praticamente inexistente em Gor. Isso não
significa que ela não espera ser castigada caso desobedeça ou falhe em agradar o seu
mestre. Por outro lado, é comum ter um conjunto de compartimentos em Gor onde o
mestre, de fato, voluntariamente faz uso do colar e de sua adorável escrava, ao exercitar
os ardis deliciosos do sexo dela, com êxito escandaloso a induz de modo triunfante para
a satisfação de um em prol do outro.
Paradoxalmente, o Goreano, que parece pensar tão pouco das mulheres em alguns
aspectos, glorificam-nas extravagantemente em outros. O Goreano é sutilmente
suscetível à beleza; isso alegra seu coração, e suas canções e arte são frequentemente hinos
à glória delas. Mulheres Goreanas, sejam escravas ou livres, sabem que sua simples
presença traz alegria aos homens, e eu não posso deixar de pensar que isso as agrada.
43
Foragidos de Gor
Eu percebi que a garota era bonita. Parecia ter alguma coisa em seu
comportamento, algo sutil e gracioso, algo que não pudesse ser escondido pelo aspecto
abatido de seus ombros, por sua marcha lenta e pela aparente exaustão, não, nem mesmo
pelas grossas e pesadas vestes que ela usava. Tal garota, eu pensei, certamente deveria
ter um mestre ou, como eu esperava, um protetor e companheiro.
Não existe matrimônio, do jeito que nós conhecemos, em Gor, mas existe a
instituição do Livre Companheirismo, que é seu correspondente mais próximo.
Surpreendentemente, uma mulher que é comprada de seus pais, por tarns ou ouro, é
considerada uma Companhia Livre, mesmo que embora ela não tenha sido consultada
sobre a transação. De forma louvável, uma mulher livre pode ela mesma, por sua própria
vontade, concordar em ser uma companhia. E não é incomum para um mestre, libertar
uma de suas escravas a fim de que ela possa compartilhar todos os privilégios de um
Companheirismo Livre. Ele pode ter, em determinado tempo, um número indefinido de
escravas, mas somente uma Companheira Livre. Tal relacionamento não é assumido
levianamente, e eles normalmente se separam apenas na morte. Ocasionalmente os
Goreanos, assim como seus irmãos em nosso mundo, talvez até mesmo com mais
frequência, aprendem o significado do amor.
A garota estava agora muito perto de mim e ainda não tinha me visto. Sua cabeça
estava baixa. Ela vestia os Robes de Encobrimento, mas a textura e cor estavam longe de
ter as vaidades gloriosas muitas vezes expressas nesse tipo de indumentária, os tons
roxos, amarelos e escarlates em que as donzelas Goreanas se deleitavam; as vestes eram
de um grosso tecido marrom, esfarrapado e coberto de poeira. Tudo nela predizia miséria
e melancolia.
“Tal,” eu disse, em tom baixo, para que eu não a assustasse demais, levantando
meu braço em gentil saudação.
Ela não tinha detectado minha presença e ainda assim não pareceu muito surpresa.
Este era o momento que ela aparentemente tinha esperado por muitos dias, e agora ele
tinha chegado. Sua cabeça levantou e seus olhos, finos olhos acinzentados, entorpecidos
com mágoa e talvez fome, me observaram. Ela não demonstrou grande interesse em mim
ou no que eu poderia fazer à ela. Deduzi que eu deveria ter sido como qualquer outro
para ela.
Então, para uma mulher Goreana, ela fez uma coisa incrível.
Sem falar, ela lentamente desprendeu o véu de sua face e o deixou cair sobre seu
ombro. Ela ficou de pé perante mim e, como dizem, de face desnudada, e por suas
44
Foragidos de Gor
próprias mãos. Ela me fitou abertamente, diretamente, não descaradamente mas sem
medo. Seu cabelo era castanho e fino, os esplêndidos olhos acinzentados ainda mais
claros, e sua face, eu vi, era bela, até mesmo mais bela do que eu tinha imaginado.
Eu sabia que esta poderia ser a primeira vez que um homem via sua face, exceto
talvez por um membro de sua família, se ela tivesse uma.
Deliberadamente, com ambas as mãos, ela abaixou suas vestes algumas polegadas
abaixo de seus ombros, revelando totalmente seu pescoço branco. Estava nu, não
circundado por um dos finos e graciosos colares de escravas de Gor. Ela era livre.
“Não,” eu disse.
“Não,” eu disse.
“Eu nunca fui possuída antes,” ela disse. “Eu não sei como atuar ou o que fazer –
salvo apenas pelo fato de que sei que devo fazer qualquer coisa que você desejar.”
Pela primeira vez ela pareceu assustada. “Você não é um deles?” ela perguntou.
“Os quatro homens que estiveram me seguindo, homens de Tharna,” ela disse.
Ela gargalhou amargamente. “Eles não estão em Tharna agora,” ela disse.
“Eles não poderiam levar você para Tharna como uma escrava,” eu disse. “A
Tatrix não libertaria você?”
45
Foragidos de Gor
“Eles não me levariam para Tharna,” ela respondeu. “Eles me usariam e me
venderiam, talvez para algum mercador de passagem, talvez na Rua das Marcas em Ar.”
Antes que ela pudesse responder, se tivesse resposta, seus olhos subitamente se
abriram em medo, e eu me virei. Se aproximando através da campina, pés afundados na
grama molhada, estavam quatro guerreiros, vestindo elmos e carregando lanças e
escudos. Pela insígnia do escudo e pelos elmos azuis eu sabia que eram homens de
Tharna.
Ela se enrijeceu em ódio. “Eu sei!” ela chiou. “Você irá me segurar para eles, você
vai reivindicar o direito de captura e exigir uma parcela do meu preço!” ela deu uma
bofetada em minha face.
“Eu venho fugindo desses homens por seis dias,” lamentou a garota, “vivendo de
frutas e insetos, dormindo em valas, escondendo e correndo.”
Ela não conseguiria correr se quisesse. Suas pernas pareciam tremer abaixo dela.
Eu pus meu braço em volta dela, emprestando meu suporte.
“Por que você quer a mulher?” eu provoquei. “Os homens de Tharna não
reverenciam as mulheres?”
Atrás de mim a garota sussurrou, um abjeto sussurro. “Guerreiro, não morra por
minha causa. No fim de tudo será a mesma coisa.” Então, levantando sua voz, ela falou
para o oficial. “Não mate ele, Thorn de Tharna. Eu irei com você.”
Ela deu um passo atrás de mim, orgulhosa mas resignada ao seu destino, pronta
para dar a si mesma àqueles desgraçados, para ser encoleirada e acorrentada, despida e
vendida nos mercados de Gor.
Eu gargalhei.
47
Foragidos de Gor
VII
Thorn, Capitão de Tharna
O oficial tinha avançado mas agora, ele parou. Ele, assim como seus homens, tinha
sido pego de surpresa. Embora eles fossem quatro e eu um, eu tinha levado a batalha até
eles. O oficial não tinha chegado a tempo. Agora minha espada estava entre eles e meu
corpo. O outro guerreiro, atrás dele, com sua lança posicionada, tinha se aproximado
cerca de dez jardas. Àquela distância ele dificilmente erraria. De fato, mesmo se o projétil
se chocasse e penetrasse meu escudo, eu teria de descartar o escudo e me encontraria em
séria desvantagem. Ainda assim, minhas chances eram grandes, ainda mais agora.
“Venha, Thorn de Tharna,” eu disse, acenando para ele. “Vamos testar suas
habilidades.”
Mas Thorn recuava e acenou para o outro guerreiro para que abaixasse sua lança.
Ele removeu seu elmo e sentou sobre seus calcanhares no gramado, o guerreiro atrás dele.
Ele tinha um novo respeito por mim agora, o que significava que ele seria mais
perigoso. Ele tinha visto a forma rápida com que engajei seus espadachins e ele estava
provavelmente considerando se poderia ou não superar meu talento. Eu senti que ele não
cruzaria espadas comigo a não ser que estivesse convencido que poderia me vencer, e ele
não estava totalmente convencido disso, ao menos, ainda não.
48
Foragidos de Gor
“Vamos conversar,” disse Thorn de Tharna.
Eu percebi que Thorn, o que quer que ele fosse ou não fosse, era um bom oficial.
O lanceiro ao lado de Thorn veio até o homem caído e examinou suas feridas. O
outro guerreiro estava nitidamente morto.
“Ele deve viver,” disse o lanceiro.
“Um de meus homens está morto,” disse Thorn. “Você pode ter a parte dele no
preço de venda dela.”
49
Foragidos de Gor
“Você é generoso,” eu disse.
“Não,” eu disse.
“Eu acho que podemos matar você,” disse Thorn, arrancando um pedaço de mato
e meditativamente mastigando ele, me considerando por um tempo.
“Talvez,” eu admiti.
“Por outro lado,” disse Thorn, “eu não desejo perder outro homem.”
Fiquei em silêncio.
“Você é um foragido,” ele disse. “Isso eu posso ver pela falta de uma insígnia no
seu escudo e túnica.”
“Tarl,” eu respondi.
“Ko-ro-ba,” eu disse.
O efeito foi elétrico. A garota, que tinha ficado de pé atrás de nós, sufocou um
grito. Thorn e seu guerreiro pularam de pé. Minha espada estava fora da bainha
novamente.
“Seu nome é o mais odiado de Gor,” ela disse, sua voz lisa, seus olhos não
querendo encontrar os meus.
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Foragidos de Gor
Nós quatro estávamos de pé, sem falar nada. Pareceu passar um longo tempo. Eu
sentia a grama em meus tornozelos, ainda molhadas pelo orvalho da manhã. Ouvi um
pássaro gritar ao longe.
Thorn olhou para a garota e para meu assombro, ela se aproximou dele e estendeu
seus pulsos. Ele trancou um bracelete de escrava neles.
“Eu não aceito nada das mãos de Tarl de Ko-ro-ba,” ela disse.
Eu olhei para a garota, agora após seus longos dias de sofrimento e fuga, ela tinha
se tornado uma prisioneira, seus delgados pulsos circundados a pouco pelos odiados
braceletes de Thorn, braceletes esplendidamente forjados, assim como tantos outros, de
acabamento requintado, brilhante em cor, recheado de joias, mas como todos os
braceletes de escravas, feito em aço inflexível.
Thorn levantou o queixo dela com seu dedo. “Você tem um belo pescoço,” ele
disse.
Ela o olhou com raiva, entendendo o sentido que ele falou.
51
Foragidos de Gor
“Em breve aí terá um colar,” ele disse.
Thorn olhou para ela cuidadosamente. A caçada, vendo em seus olhos agora, tinha
aparentemente valido a pena. “Minha,” ele disse.
“Bem, Tarl de Ko-ro-ba,” disse Thorn, “isso acaba assim. Eu levo esta garota e
deixo você para os Reis-Sacerdotes.”
“Eu não a levarei para Tharna, mas para minha vila,” disse Thorn, “que se localiza
fora da cidade.” Ele gargalhou desagradavelmente. “E lá,” ele disse, “como um bom
homem de Tharna deveria, eu irei venerá-la para o contento do meu coração.”
“Segure sua mão, Guerreiro,” disse Thorn. Ele se virou para a garota. “A quem
você pertence?” ele perguntou.
Ela endureceu e olhou para mim com ódio. “Eu era,” ela disse.
Ela me olhava, lágrimas ferventes de ódio em seus olhos. “Por que você ousou
continuar vivo após sua cidade morrer?” ela perguntou.
Ela olhou dentro de meus olhos por um longo tempo. E então, enquanto Thorn e
o guerreiro suspendiam a liteira com seu companheiro ferido e partiam, ela disse para
mim, “Adeus, Tarl de Ko-ro-ba.”
52
Foragidos de Gor
Ela se virou rapidamente, seguindo seu mestre e eu fiquei lá de pé, sozinho sobre
o campo.
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Foragidos de Gor
VIII
A Cidade de Tharna
Sobre os ombros de suas túnicas cinzas apenas uma pequenina faixa colorida
indicava sua casta. Normalmente as cores das castas de Gor estavam em abundante
evidência, alegrando as ruas e pontes da cidade, um glorioso espetáculo no claro e limpo
ar de Gor.
Talvez, lá nas ruas silenciosas de Tharna, eu tenha ficado mais assustado com as
mulheres livres. Elas andavam em sua cidade sem assistência, com passos imperiosos, os
homens de Tharna se moviam para deixa-las passar – de tal modo que elas nunca fossem
tocadas. Cada uma dessas mulheres vestia resplandecentes Robes de Encobrimento, ricos
em cor e artesanato, destacando-se entre as roupas monótonas dos homens, mas em vez
do véu comum a essas vestes, as feições de cada uma delas estavam escondidas atrás de
uma máscara de prata. As máscaras eram todas idênticas em seu esboço, cada uma
formada na aparência de uma bela, mas fria face. Algumas dessas máscaras direcionavam
seu olhar sobre mim enquanto eu passava, minha túnica de guerreiro escarlate sendo
capturada por seus olhos. Eu me sentia desconfortável em ser o objeto contemplado por
elas, por ser confrontado por aquelas impassíveis cintilantes máscaras de prata.
55
Foragidos de Gor
cavaletes com carne sob toldos, os baldes de peixes salgados, os tecidos e bugigangas
espalhados pelos carpetes perante os mercadores sentados de pernas cruzadas, não havia
nenhum som de clamor que costumeiramente se ouve em um mercado Goreano. Eu
sentia falta dos estridentes, intermináveis chamados dos vendedores, cada um diferente;
as brincadeiras afáveis de amigos no mercado a trocar fofocas e convites para jantar; os
gritos dos corpulentos ceramistas costurando seus caminhos dentro do tumulto; os gritos
das crianças que escaparam de seus tutores e brincavam de pega-pega por entre os
estandes; os risos das garotas veladas provocando e sendo provocadas por jovens
homens, garotas que supostamente estavam a entregar recados para suas famílias, mas
de alguma forma encontravam tempo para provocar os jovens pretendentes da cidade,
mesmo que por apenas um flash de seus olhos escuros e um ajuste demasiadamente
casual de seus véus.
Embora em Gor, por costume se espera da donzela livre que veja seu futuro
companheiro apenas depois que seus pais o tiverem selecionado, é de conhecimento
comum que ele seja muitas vezes um jovem que ela conheceu no mercado. Ele que pede
por sua mão, especialmente se ela for de casta baixa, raramente é um desconhecido para
ela, embora os pais e os jovens solenemente agem como se este fosse o caso. A mesma
donzela a qual seu pai deve severamente ordenar a comparecer na presença de seu
pretendente, a mesma garota tímida, a quem seus pais notam aprovativamente, que se
encontra delicadamente incapaz de levantar seus olhos em sua presença, é
provavelmente a mesma garota que o esbofeteou com um peixe ontem e lhe lançou uma
torrente de insultos que seus ouvidos até agora se lembravam, e tudo porque aconteceu
de ele acidentalmente estar olhando em sua direção quando um vento imprevisível tinha,
apesar de seu grande esforço, desarrumado temporariamente as dobras de seu véu.
Mas este mercado não era como os outros mercados que eu tinha conhecido em
Gor. Este era simplesmente um lugar monótono onde se podia comprar comida e trocar
mercadorias. Até mesmo as barganhas que se seguiam agora, pois não existem preços
fixados nos mercados Goreanos, pareciam ser melancólicas, austeras, sem o entusiasmo
e disputa dos outros mercados que eu tinha visto, os gloriosos expletivos e superlativos
insultos trocados entre os compradores e vendedores com estilo e prazer incomparáveis.
De fato, em certas ocasiões, em outros mercados, um comprador que tentasse vencer o
regateio poderia atirar cinco vezes mais o número de moedas que tinha concordado em
pagar ao vendedor, o humilhando com sua presunção, “Porque eu quero pagar o que isso
vale.” Então, se o vendedor ficasse suficientemente enfurecido, ele poderia dar de volta
as moedas ao comprador, incluindo boa parte do que ele tinha concordado em pagar,
dizendo, em falso arrependimento, “Eu não desejo enganar você.” Então uma próxima
etapa de insultos começava, e eventualmente, quando ambas as partes estivessem
satisfeitas, alguns compromissos firmados, a transação seria concluída. Comprador e
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Foragidos de Gor
vendedor, cada qual convencido de que ele tinha conseguido de longe se sair melhor na
barganha.
Eu subi em uma das torres de Tharna, querendo ver a cidade do alto. E emergi na
ponte mais alta que pude encontrar. Ela era cercada com parapeitos, ada forma que a
maioria das pontes Goreanas, altas ou baixas, não são. Lentamente deixei meus olhos
vaguearem pela cidade, sobre as pessoas e seus costumes, uns dos mais incomuns em
Gor.
Tharna, embora fosse uma cidade de cilindros, não pareceu aos meus olhos, tão
bela quanto muitas outras cidades que eu tinha visto. Talvez devido à forma dos
cilindros, menos altivos que aqueles de outras cidades, e muito mais largos, dando a
impressão de um conjunto de acocorados e acumulados discos, tão diferentes da altiva
floresta de torres e ameias que desafiavam os céus da maioria das cidades Goreanas.
Além disso, em contraste com a maioria das cidades, os cilindros de Tharna pareciam
excessivamente solenes, como se fossem derrotados por seu próprio peso. Era difícil
distinguir um do outro, um agregado de cinzas e marrons, tão diferentes das milhares de
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Foragidos de Gor
cores alegres que cintilavam na maioria das cidades, onde cada cilindro em altaneiro
esplendor apresentava sua pretensão de ser o mais bravo e belo de todos.
Eu me virei.
Um dos dois homens não descritíveis que tinham me seguido se aproximou. Sua
face escondida nas dobras de seu robe. Com uma das mãos ele segurava as dobras juntas,
impedindo que o vendo levantasse o tecido e revelasse sua face, e com a outra mão, ele
apoiava no parapeito da ponte, como se estivesse desconfortável, inseguro àquela altura.
“Tal,” eu disse para o homem, levantando meu braço na usual saudação Goreana.
“Tal,” ele respondeu, sem tirar seu braço da ponte. Ele se aproximou de mim, mais
perto do que eu gostaria.
“Eu sou um homem sem cidade,” eu disse, “o qual se chama Tarl.” Eu não queria
causar mais estragos como tinha feito antes, pela mera menção do nome Ko-ro-ba
“Eu gostaria de obter um tarn,” eu disse, “para uma viagem que tenho em mente.”
Eu tinha respondido a ele muito diretamente. Eu pensava que se ele era um espião,
incumbido de descobrir minhas razões para visitar Tharna. Não tinha problemas em
revelar minhas razões, embora o objetivo de minha jornada eu reservei para mim mesmo.
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Foragidos de Gor
O fato de eu estar determinado a ir para as Montanhas de Sardar ele não precisava saber.
Que se eu tinha negócios a tratar com os Reis-Sacerdotes, não seria de sua conta.
“Não,” eu disse.
“Eu não sou um foragido,” eu disse, “embora minha túnica ou escudo não tenham
uma insígnia.”
“É claro que não,” ele disse rapidamente. “Não há lugar em Tharna para um
foragido. Nós somos um povo trabalhador e honesto.”
Eu podia ver que ele não acreditava em mim, e de algum modo eu não acreditava
nele também. Sem motivo eu começava a não gostar dele. Com ambas as mãos eu alcancei
seu capuz e o puxei fora de sua face. Ele arrebatou o tecido e recolocou o capuz
rapidamente. Eu capturei um breve vislumbre de uma pálida face, com pele parecida com
a de um limão seco e pálidos olhos azuis. Seu companheiro, que estivera furtivamente
espreitando ao redor, avançou um pouco e então parou. O homem de face pálida,
puxando as dobras do capuz sobre sua face, virou sua cabeça para a esquerda e direita
para ver se alguém estava por perto, se alguém o tinha visto.
“Eu quero obter um tarn,” eu disse. “Você pode me ajudar?” Se ele não pudesse,
eu estava decidido a terminar essa entrevista.
Eu me interessei.
“Eu posso ajudá-lo a obter não apenas um tarn,” disse o homem, “mas mil discos
tarn de ouro e provisões para a mais longa jornada que você desejar fazer.”
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Foragidos de Gor
Desde o cerco de Ar, quando Pa-Kur, Mestre Assassino, tinha violado os limites
de sua casta e decidido, em contradição com as tradições de Gor, liderar uma horda sobre
a cidade, intencionando fazer dele mesmo um Ubar, a Casta dos Assassinos tinha se
tornado odiada, homens caçados, não mais estimados mercenários quais os serviços eram
comprados pelas cidades e frequentemente, pelas facções das cidades. Agora muitos
assassinos vagavam por Gor, temendo vestir a sombria túnica negra de sua casta,
disfarçados como membros de outras castas, frequentemente como guerreiros.
“Claro que não,” disse o homem. “A Casta dos Assassinos não mais existe.”
Eu duvidei disso.
“Mas você não está intrigado, Estranho,” perguntou o homem, seus pálidos olhos
me olhando de soslaio por trás das dobras de seu robe cinzento, “com a oferta de um tarn,
ouro e provisões?”
“Você sem dúvida tem experiência em tarefas desse tipo,” sugeriu o homem.
A leve garoa, quase como uma bruma cinza coincidindo com a miserável
solenidade de Tharna, não tinha cessado, e agora, ensopava minhas vestes. O vento, que
até agora eu nem tinha notado, pareceu frio.
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Foragidos de Gor
IX
A Loja de Kal-Da
O pequeno homem com cara de limão se afastou como se tivesse tomado um tapa.
“Eu represento um personagem de poder nesta cidade,” ele disse.
“Eu não desejo nenhum mal a Lara, Tatrix de Tharna,” eu disse a ele.
“Nada,” eu disse.
“Você nunca conseguirá seu tarn,” chiou o homem. Ele se virou e ainda se
apoiando no parapeito da ponte correu para a entrada do cilindro, seu companheiro à
sua frente. Logo na entrada ele gritou de volta. “Você nunca deixará os muros de Tharna
vivo,” ele disse.
A franzina figura em robe cinza, quase tão irreal quando a própria névoa, pareceu
pronto para partir, mas subitamente hesitou. Ele pareceu vacilar por um momento, então
ele brevemente aconselhou-se com seu companheiro. Eles pareceram chegar a um acordo.
Cautelosamente, seu companheiro ficou na retaguarda enquanto ele, saiu para a ponte
novamente.
61
Foragidos de Gor
“Eu falei precipitadamente,” ele disse. “Nenhum mal lhe acontecerá em Tharna.
Nós somos um povo honesto e trabalhador.”
Então para minha surpresa ele pressionou um pequeno e pesado saco de couro
cheio de moedas contra minha mão. Ele sorriu para mim, um torto sorriso visível através
das obscuras dobras de seu robe cinzento. “Bem-vindo a Tharna!” ele disse, e escapou
através da ponte para dentro do cilindro.
“Volte aqui!” Eu gritei, apontando o saco de moeda em sua direção. “Volte aqui! ”
****
Pelo menos essa noite, nessa noite chuvosa, eu não dormiria ao relento. Graças ao
estranho presente do conspirador encapuzado, eu tive meios de pagar por um
alojamento. Deixei a ponte, e descendo pela escadaria em espiral do cilindro, em breve
me encontrei nas ruas novamente.
Pousadas, por assim dizer, não são abundantes em Gor, sendo a hostilidade das
cidades do jeito que era, mas usualmente uma ao menos poderia ser encontrada em cada
cidade. Lá, afinal, deve-se fazer provisões para entreter os mercadores, delegações de
outras cidades, visitantes autorizados de um tipo ou de outro, e para ser franco o
estalajadeiro não é sempre escrupuloso sobre as credenciais de seus convidados,
perguntando pouca coisa se ele tiver seu punhado de discos tarn de cobre. Em Tharna,
contudo, famosa por sua hospitalidade, eu estava confiante que as pousadas deveriam
ser comuns. E me surpreendi quando percebi que não conseguia localizar nenhuma.
Eu decidi, caso o pior viesse a piorar, que eu poderia sempre ir para uma simples
Taverna de Paga onde, se aquelas de Tharna fossem como aquelas de Ko-ro-ba e Ar,
alguém poderia, enrolado no tapete atrás das mesas baixas, discretamente passar a noite
pelo preço de um cântaro de Paga, uma forte bebida fermentada fabricada a partir
daqueles grãos amarelos que faziam parte do cultivo básico de Gor, Sa-Tarna ou Vida-
Filha. A expressão está relacionada com Sa-Tassna, que significa carne, ou comida em
termos gerais, ao qual se refere por Vida-Mãe. Paga é um termo distorcido de Pagar-Sa-
Tarna, o qual significa Prazer da Vida-Filha. É normal encontrar muitas outras coisas
além de Paga nas Tavernas de Paga, mas na cinzenta Tharna, os címbalos, tambores e
flautas dos músicos, o tilintar das pulseiras nos tornozelos das dançarinas, eram sons não
muito familiares.
Eu parei uma das anônimas figuras em robes cinzentos, que se apressava através
das sombras úmidas e frias.
62
Foragidos de Gor
“Homem de Tharna,” eu perguntei, “onde posso encontrar uma pousada?”
“Saia daqui enquanto ainda há tempo,” ele disse, olhando ao redor para conferir
se alguém o escutava.
“Você pode passar a noite por entre os muros, ao relento,” ele disse, “ou você pode
ir para o Palácio da Tatrix.”
“Então já é tarde demais,” disse o homem, com um ar de tristeza, “pois você já está
dentro dos muros por mais de dez horas.”
Kal-da é uma bebida quente, quase escaldante, feita de vinho Ka-la-na diluído,
misturado com sucos cítricos e temperos picantes. Eu não ligava muito para essa mistura
que queimava a boca, mas ela era popular entre alguns das castas baixas, particularmente
aqueles que realizavam estrênuos trabalhos manuais. Eu penso que sua popularidade se
devia mais à sua capacidade de aquecer um homem e alfinetar suas costelas, e ao seu
baixo preço (um vinho Ka-la-na de baixa categoria era usado em sua preparação), do que
uma excelência gustativa qualquer. Mas eu pensava que para esta noite, mais do que
todas as outras, essa noite fria, depressivamente molhada, uma taça de Kal-da cairia
realmente bem. Além disso, onde havia Kal-da deveria haver também pão e carne. Me
lembrei do amarelo pão Goreano, cozido em formato de redondos e achatados pães,
frescos e quentes; minha boca encheu d’água pensando em um bife de tabuk ou, talvez,
se eu tivesse sorte, uma fatia de tarsk assado, o formidável javali selvagem de seis presas
das florestas temperadas de Gor. Eu sorri para mim mesmo, toquei o saco de moedas em
minha túnica, me inclinei e empurrei a porta aberta.
Eu desci três degraus, e me encontrei em uma quente e mal iluminada sala de teto
baixo, desordenada com suas mesas baixas tão comuns em Gor, em torno das quais
amontoavam-se grupos de cinco ou seis dos homens vestidos com os robes cinzas de
Tharna. Os murmúrios da conversação cessaram quando eu entrei. Os homens me
encaravam. Parecia não ter guerreiros naquela sala. Nenhum dos homens parecia estar
armado.
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Foragidos de Gor
“Estou passando por Tharna,” eu disse. “E gostaria de adquirir um tarn para
continuar minha jornada. Esta noite eu quero comida e hospedagem.”
Fui para uma obscura e solitária mesa perto da parte de trás da sala, onde eu
poderia ver a porta. Repousei meu escudo e lança contra a parede, coloquei o elmo ao
lado da mesa, retirei o cinto que segurava a espada, colocando a arma sobre a mesa
perante mim, e me preparei para esperar.
Eu mal tinha me ajeitado atrás da mesa quando o proprietário veio colocando uma
grande e gorda tigela de Kal-da fumegante perante mim. Aquilo quase queimou minhas
mãos quando tentei levantar a tigela. Tomei um longo e quente gole da bebida
fermentada, que em outra ocasião, eu poderia não gostar, mas esta noite ela cantou
através de meu corpo como o borbulhante fogo que era, um gosto escaldante, brutal e
irritante que provei ser tão ruim e ainda assim me encantou tanto que eu tive vontade de
rir.
E eu gargalhei.
65
Foragidos de Gor
Os homens de Tharna que estavam aglomerados naquele lugar me olharam como
se pensassem que eu fosse louco. Descrença, falta de compreensão, estava escrito na face
deles. Este homem tinha gargalhado. Eu me perguntava se homens gargalhavam em
Tharna.
Era um lugar melancólico, mas a Kal-da tinha já feito aquilo parecer de algum
modo mais promissor.
“Falem, brinquem!” Eu disse para os homens de Tharna, que não tinham dito uma
palavra depois que entrei. Eu os encarava. Tomei mais um longo gole de Kal-da e sacudi
minha cabeça para espantar o turbilhão de fogo de meus olhos e cérebro. Retirei minha
lança da parede e a coloquei sobre a mesa.
“Se não podem falar,” eu disse, “se não podem sorrir, então cantem!”
O proprietário apareceu com pão quente, mel, sal e, para meu deleite, um grande
e quente pedaço de tarsk assado. Eu abarrotei minha boca de comida e a lavei com outro
trovejante gole de Kal-da.
“Essas criaturas que pairam pelas ruas atrás de máscaras de prata,” eu perguntei,
“elas são mulheres de verdade?”
“Eu duvido,” eu gritei. “Devo eu ir buscar uma, para ver se ela irá dançar para
nós?”
Os homens gargalharam.
Em pouco tempo, marcando o tempo ao bater na mesa com o cabo de minha lança,
eu liderava uma rodada estridente de músicas, em sua maioria músicas rústicas de
bêbados, músicas de guerreiros, músicas de acampamento e marcha, mas eu também os
ensinei canções que tinha aprendido na caravana de Mintar, o Mercador, tanto tempo
atrás, quando me apaixonei por Talena, canções de amor, de solidão, das belezas de uma
cidade, e dos campos de Gor.
A Kal-da correu livre aquela noite e três vezes o óleo nas penduradas lamparinas
de tharlarion precisaram ser renovados pelo suado e alegre proprietário da loja de Kal-
da. Homens nas ruas, estupefatos com os sons que vinham de dentro, empurravam a
porta achatada e em breve se juntavam a nós. Alguns guerreiros entraram, também, e ao
invés de tentar restaurar a ordem, eles incrivelmente retiraram seus elmos, os encheram
com Kal-da e sentaram de pernas cruzadas juntamente a nós, para cantar e beber
alegremente.
67
Foragidos de Gor
a um canto, atrás de onde ficavam os grandes vasos de fermentar Kal-da, agora frios e
vazios. Eu esfreguei o sono de meus olhos. Tinha uma mão em meu ombro.
Eu lutei para ficar de pé, e confrontei o pequeno conspirador com cara de limão.
“Estivemos procurando por você,” disse outra voz, a qual agora eu via que era de
um corpulento soldado da guarda de Tharna. Atrás dele em seus elmos azuis estavam
mais três de pé.
“Ele é o ladrão,” disse o homem com cara de limão, apontando para mim. Sua mão
se virou apontando agora para o saco de moedas aberto, as moedas meio esparramadas
sobre as poças secas de Kal-da.
“Estas são minhas moedas,” disse o conspirador. “Meu nome está costurado
dentro do couro do saco.” Ele empurrou o saco debaixo do nariz dos guardas.
“Ost,” leram os guardas. Esse era também o nome de uma espécie de réptil
pequeno e alaranjado, um dos mais venenosos de Gor.
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Foragidos de Gor
X
O Palácio da Tatrix
“Sim,” eu disse.
Ele me olhou, seus olhos cinzas eram sinceros na abertura em Y do seu sombreado
elmo azul de Tharna. “Isso é a Tatrix quem decidirá,” ele disse.
Eu segui o guarda, ainda que cercado por seus homens, até o palácio da Tatrix. Ost
vinha correndo atrás de nós, bufando e ofegando, suas curtas pernas arqueadas lutando
para manter o ritmo junto aos passos dos soldados.
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Foragidos de Gor
Eu senti que mesmo que escolhesse renegar minha promessa, a qual como um
guerreiro de Gor eu não poderia negar, minhas chances de escapar teriam de fato sido
pequenas. Seria mais provável que três lanças me impedissem de alcançar a liberdade
logo nos meus primeiros passos. Eu respeitei os tranquilos e eficientes guardas de Tharna,
e eu já tinha encontrado seus habilidosos guerreiros em um campo longe da cidade. Eu
me perguntava se Thorn estaria na cidade, e se Vera agora vestia sua seda de prazer em
sua vila.
Eu sabia que se a justiça fosse feita em Tharna eu seria absolvido, mas eu estava
ainda inquieto – pois como eu poderia saber se meu caso seria ouvido e julgado de forma
justa? O fato de eu estar em posse do saco de moedas de Ost certamente parecia ser uma
boa prova da minha culpa, e isso poderia muito bem influenciar a decisão da Tatrix.
Como poderia minha palavra, a palavra de um estranho, pesar contra as palavras de Ost,
um cidadão de Tharna e talvez alguém de importância na cidade?
No entanto, por incrível que pareça, eu estava ansioso para ver o palácio e a Tatrix,
para encontrar cara a cara a incomum mulher que governava, e governava bem, uma
cidade de Gor. Caso eu não tivesse sido preso, eu imagino que poderia, de livre e
espontânea vontade, ter apelado para a Tatrix de Tharna, como um cidadão mesmo tinha
dito, para passar minha noite em seu palácio.
Depois de termos andado talvez por uns vinte minutos das monótonas,
pedregosas, tortuosas ruas de Tharna, seus cidadãos cinzentos abrindo caminho para dar
passagem e encarar inexpressivamente o prisioneiro vestido em escarlate, chegamos a
uma ampla avenida sinuosa, íngreme e pavimentada com paralelepípedos pretos, que
ainda brilhavam devido à chuva da noite. A cada lado da avenida estava um muro de
pedra que ascendia gradualmente, e conforme marchávamos os muros de cada lado se
elevavam e a avenida estreitava.
A entrada em si era nada mais que uma pequena porta de ferro simples, com talvez
dezoito polegadas de largura e cinco pés de altura. Apenas um homem por vez poderia
entrar ou sair do Palácio de Tharna. Era de longe muito diferente dos amplos portais dos
cilindros centrais de muitas das cidades Goreanas, através da qual um par de tharlarions
em arreios de ouro poderiam ser conduzidos com facilidade. Eu me perguntava se dentro
da austera, brutal fortaleza, deste palácio da Tatrix de Tharna, justiça poderia ser feita.
70
Foragidos de Gor
Os soldados da guardas fizeram sinal para a porta, e deram um passo para trás de
mim. Eu estava de frente para a porta, seria o primeiro na estreita passagem.
Eu virei para olhar pra eles, e três lanças se levantaram em meu peito.
Houve o som de barras deslizando e a porta de ferro se abriu, revelando nada mais
do que escuridão.
Olhei mais uma vez para as lanças, sorri de leve para o guarda, virei-me e
abaixando a cabeça, entrei na pequena porta.
De repente eu gritei alarmado, apalpando o nada, caindo. Ouvi Ost gritar com
surpresa e terror quando ele foi empurrado através da porta atrás de mim.
Por algum tempo, o animal, andava de costas, com sua presa segura em suas
mandíbulas, se movendo através do túnel. Aquilo me arrastou em uma série de rápidos,
violentos puxões pelo túnel, me fazendo raspar nas paredes de pedra, me arranhando,
rasgando minha túnica.
Era um urt gigante, gordo, lustroso e branco; ele mostrava suas três fileiras de
dentes brancos afiados para mim e avançou em fúria; dois chifres como presas curvas
saíam de sua mandíbula; outros dois chifres, similares aos primeiros, modificações de seu
tecido ósseo e que faziam parte do cume superior da cavidade ocular, projetavam-se
71
Foragidos de Gor
sobre aqueles olhos brilhantes que pareciam banquetear-se sobre mim, como se esperasse
permissão de seu detentor para lançar-se sobre seu alimento. Seu corpo gordo tremia com
antecipação.
O chicote estalou novamente, e outro comando foi proferido, e o animal, com sua
longa calda sem pelos, balançando em frustração, se esgueirou dentro de outro túnel. Um
portão de ferro, feito com barras, caiu atrás dele.
Eu tentei levantar, mas o peso era demasiado. Ouvi o silvo de um chicote e cerrei
os dentes quando o couro mordeu minha carne. De novo, e outra vez, fui golpeado de
cima para baixo, os golpes como relâmpagos de couro em chamas. Consegui levantar
sobre meus joelhos, e então, dolorosamente, empurrei o jugo para cima, lutando contra a
instabilidade de meus pés.
“Em Tharna,” ele disse, “um homem como você não pode ser nada além de um
escravo.”
Olhei em volta da sala, que se curvava em uma cúpula com cerca de vinte e cinco
pés acima do chão. Haviam várias saídas, a maioria delas em pequenas aberturas
gradeadas. De algumas delas eu pude ouvir gemidos. De outras eu ouvi o arrastar e o
guinchado de animais, talvez mais dos urts gigantes. A uma parede pude ver uma grande
tigela com carvão a queimar, a partir da qual se projetavam várias alças de ferro. Um
72
Foragidos de Gor
certo tipo de rack foi posicionado perto da tigela de carvão. Era grande o suficiente para
acomodar um ser humano. Em algumas das paredes, correntes foram fixadas, aqui e ali,
outras correntes também pendiam do teto. Nas paredes, como se faz em algumas oficinas,
pendiam instrumentos de vários tipos, que não vou descrever, exceto para dizer que eles
foram engenhosamente concebidos para o tormento de seres humanos.
“É claro,” disse o homem. Ele riu desagradavelmente. “Eu mesmo o levarei até a
Tatrix.”
73
Foragidos de Gor
XI
Lara, Tatrix de Tharna
Emergimos em um salão amplo, mas obscuro. Várias portas poderiam nos levar
para fora deste salão. Com seu chicote, me cutucando com desdém, o homem com
braçadeiras de couro me direcionava através de uma dessas portas. A porta nos levou
para um outro corredor, que por sua vez também tinham várias portas, e assim por
diante. Era como ser conduzido através de um labirinto ou uma rede de esgotos. Os
corredores eram ocasionalmente iluminados por lâmpadas de óleo de tharlarion,
encaixadas em luminárias de ferro montadas nas paredes. O interior do palácio parecia
estar deserto, era de uma cor inocente, com adornos. Cambaleei adiante, sofrendo com as
feridas causadas pelo chicote, quase esmagado pelo peso do jugo. Eu duvidava que eu
seria capaz de encontrar, sem ajuda, meu caminho através deste sinistro labirinto.
Nos largos degraus que levavam ao trono, haviam cadeiras curule, nas quais
sentavam, assim pensei, os membros do Alto Conselho de Tharna. Suas brilhantes
máscaras de prata, cada uma delas esculpida na imagem da mesma mulher bonita, me
olhavam sem expressão alguma.
Em volta da sala, aqui e ali, guerreiros de Tharna estavam de pé, austeros em seus
elmos azuis, cada um com uma pequena máscara de prata sobre a têmpora – membros
74
Foragidos de Gor
da guarda do palácio. Um desses guerreiros com elmos estava de pé perto do trono. Algo
nele me parecia familiar.
O guerreiro aos pés do trono removeu seu elmo. Era Thorn, Capitão de Tharna,
quem eu tinha encontrado nos campos longe da cidade. Seus olhos apertados, como os
de um urt, caíram sobre mim desdenhosamente.
Thorn chutou meus pés, e sob o peso do jugo, eu caí ao chão, indefeso.
“Não o agrida,” disse uma voz imperiosa, e o braço que segurava o chicote caiu
como se seus músculos tivessem sido cortados. A voz veio da mulher atrás da máscara
de ouro, a própria Lara. Eu fiquei grato.
Quente e suado, cada fibra do meu corpo gritava em agonia, eu consegui subir
sobre meus joelhos. As mãos de Thorn não me permitiram subir mais. Eu estava
ajoelhado, jungido, perante a Tatrix de Tharna.
“Era assim, Estranho,” ela perguntou, seu tom era frio, “que você esperava levar
para fora da cidade a riqueza de Tharna?”
Eu estava confuso, meu corpo era dilacerado pela dor, minha visão turva pelo
suor.
Eu me espantei, pois se o jugo era realmente de prata, o metal nos meus ombros
poderia ter resgatado um Ubar.
75
Foragidos de Gor
“Nós de Tharna,” disse a Tatrix, “fazemos pouco das riquezas que usamos para
jungir nossos escravos.”
Da cadeira curule ao lado do trono ergueu-se uma outra mulher, vestindo uma
intricada máscara forjada de prata e vestes de um magnífico tecido prateado. Ela ficou
altiva ao lado da Tatrix, a máscara de prata inexpressiva brilhando em minha direção,
medonha sob a luz das tochas que ela refletia. Falando com a Tatrix, mas sem tirar a
máscara de mim, ela disse, “Destrua o animal.” Era uma voz fria, vibrante, clara, decisiva
e autoritária.
“As leis de Tharna não dão a ele o direito de falar, Dorna a Altiva, Segunda em
Tharna?” perguntou a Tatrix, cuja voz também, era imperiosa e fria, ainda assim me
agradava mais do que os tons daquela que vestia a máscara de prata.
“As leis se aplicam aos animais?” perguntou a mulher cujo nome era Dorna a
Altiva. Era quase como se ela desafiasse sua Tatrix, e eu me perguntei se Dorna a Altiva
estava contente em ser a Segunda em Tharna. O sarcasmo em sua voz tinha sido mal
escondido.
“Ele ainda tem língua?” perguntou a Tatrix para o homem com as braçadeiras de
couro, que estava de pé atrás de mim.
Tive a impressão de que a mulher na máscara de prata, que tinha sido chamada
de a Segunda em Tharna, pareceu endurecer apreensivamente com tal revelação. A
máscara de prata se virou na direção do homem com as braçadeiras de couro. A voz dele
gaguejou e eu me perguntei se atrás de mim, seu corpo não tremia agora. “Foi o desejo
da Tatrix que o escravo fosse jungido e trazido para a Câmara da Máscara de Ouro o mais
rápido possível, e ileso.”
Eu sorri comigo mesmo, pensando nos dentes do urt e no chicote, ambos tinham
encontrado minha carne.
76
Foragidos de Gor
“Você agora dá ordens para aquela que é a Primeira em Tharna?” perguntou a
Tatrix.
Debaixo do jugo eu levantei meus olhos para sua máscara. Em suas mãos, cobertas
com uma luva dourada, ela segurava um pequeno saco de couro negro, cheio até a
metade com moedas. Eu assumi que eram as moedas de Ost e me perguntei onde estaria
o conspirador. “Confesse que você roubou estas moedas de Ost de Tharna,” disse a
Tatrix.
Percebi que, por alguma razão, ela estava ansiosa para que eu me declarasse
culpado do crime, mas como era inocente, eu recusei.
Pude notar que Dorna a Altiva se agitava inquieta na cadeira curule. Ela alisava as
dobras de seu robe com as mãos nervosas, enluvadas em prata.
“De joelhos para a Tatrix,” comandou Thorn, quem ainda segurava o chicote.
Ost, tremendo de medo, tentou levantar, mas não podia erguer o jugo.
77
Foragidos de Gor
A mão de Thorn que segurava o chicote levantou.
Eu esperava que a Tatrix fosse intervir a seu favor, assim como tinha feito comigo,
mas, ao invés disso, ela não disse nada. Ela parecia estar me observando. Eu me
perguntava quais pensamentos brilhavam por trás daquela plácida máscara de ouro.
Sem tirar seus olhos de mim, Lara falou para Thorn. “Prepare-se para golpear,”
ela disse.
“Levante,” disse a Tatrix para Ost, “ou você irá morrer deitado como a serpente
que é.”
A Tatrix friamente levantou sua mão enluvada. Quando abaixasse então assim
também desceria a chibata.
“Não,” eu disse.
Houve suspiros vindos das mulheres nas máscaras de prata na sala. Um ou dois
guerreiros, sem se importar com as regras de Tharna, reconheceram meu ato batendo
seus escudos nas cabeças de bronze de suas lanças.
“Ainda assim ele é um belo animal, não é?” perguntou uma das mulheres em
máscaras de prata.
78
Foragidos de Gor
Lara manteve sua mão levantada ordenando silêncio.
“Eu esperava que você fosse inocente, Estranho,” ela disse. “Que Ost é culpado eu
já sabia.”
“No entanto,” ela disse, “você admite que não roubou as moedas.”
Meu cérebro titubeou. “Isso é verdade,” eu disse, “eu não roubei as moedas.”
“Então você é culpado,” disse a voz de Lara, que me pareceu triste agora.
Fiquei estupefato.
“Ost,” disse a Tatrix, sua voz congelada, “você é culpado de traição contra Tharna.
É sabido que você conspirou contra o trono.”
Um dos guardas, o que tinha trazido Ost, falou. “É como seus espiões reportaram,
Tatrix. Em seus aposentos foram encontrados sediciosos documentos, cartas de instrução
relativas ao embargo do trono, bolsas de ouro para serem usadas na obtenção de
cúmplices.”
O guarda gargalhou. “Bastou apenas um olhar do urt branco e ele admitiu tudo.”
“Eu não sei, Amada Tatrix,” ganiu Ost. “As cartas e o ouro foram entregues por
um guerreiro com elmo.”
“O que mais você sabe sobre esta trama contra o trono?” perguntou Lara para o
lastimoso Ost.
79
Foragidos de Gor
“Nada, Amada Lara,” lamuriou ele.
“Muito bem,” disse Lara, e virou a máscara brilhante para o guarda que tinha
atirado o jungido Ost aos seus pés, “leve-o para a Câmara das Urts.”
Ost olhou em volta de si mesmo da forma que pode, seus olhos arregalados com
terror.
“Não,” disse Lara. “O que mais você sabe, Serpente?” ela perguntou para o
miserável conspirador.
“Eu sei,” disse Ost, “que o líder da conspiração é uma pessoa influente em Tharna
– alguém que veste a máscara de prata, uma mulher.”
Thorn gargalhou.
“Mas,” disse Ost, esperançoso, “eu uma vez falei com ela e eu posso reconhecer
sua voz se me permitirem viver.”
Thorn gargalhou mais uma vez. “Isso é um truque para salvar sua vida.”
“O que você acha, Dorna a Altiva?” perguntou Lara para aquela que era a Segunda
em Tharna.
80
Foragidos de Gor
Mas invés de responder, Dorna a Altiva pareceu estranhamente quieta. Ela
estendeu sua mão em luva de prata, palma virada para ela mesma e a desceu brutalmente
como se fosse uma lâmina.
Mas as mãos de Lara estavam estendidas, palmas para cima, e ela as levantou
levemente; este era um gracioso gesto que predizia misericórdia.
“Me diga, Serpente,” disse Lara, “este guerreiro roubou as moedas de você?”
“Você pressionou o saco sobre mim e correu,” eu disse. “Eu não tive escolha.”
“Se eu fosse um conspirador,” eu disse, “se eu tivesse aliança com este homem,
porque ele me acusaria de ladrão de moedas, porque ele iria me querer preso?”
Thorn falou. “Ost sabia que seria suspeito de tramar contra o trono.”
“Assim,” disse Thorn, “para não parecer que ele tinha dado dinheiro para este
guerreiro, ou assassino como deve ser o caso, ele fingiu que tinha sido roubado por ele.
Deste modo ele poderia ficar livre de culpa e destruir o homem que sabia de sua
cumplicidade.”
81
Foragidos de Gor
“Isso é verdade,” exclamou Ost em reconhecimento, ansioso para assumir seu
papel no palpite de tão poderosa figura como era Thorn.
“Ost nunca deu nada de graça em toda sua vida,” rosnou Thorn, limpando sua
boca, lutando para ganhar compostura.
Houve até um leve som de divertimento por parte das figuras em máscaras de
prata que sentavam sobre os degraus do trono.
Mas a máscara da Tatrix brilhou sobre Ost, e seu sorriso morreu dentro de sua
garganta. A Tatrix se levantou do trono, e apontou seu dedo para o maldito conspirador.
Sua voz era fria e ela falou para os guardas que o tinham trazido até a câmara. “Para as
minas com ele,” ela disse.
“Não, Amada Tatrix, não!” gritou Ost. O terror, como de um gato encurralado,
parecia arranhar por trás de seus olhos, e ele começou a se sacudir em seu jugo como um
animal doente. Desdenhosamente os guardas o levantaram de pé e o arrastaram a se
debater e lamentar para fora da sala. Eu calculei que a sentença de ir para as minas seria
equivalente a sentença de morte.
Depois de um tempo a Tatrix, que estava quieta em seu trono, falou. Sua voz era
baixa. “Às vezes, Estranho,” ela disse, “é difícil ser a Primeira de Tharna.”
“E você,” disse Lara, sua máscara brilhando sobre mim, “você admite que não
roubou as moedas de Ost, e com esta admissão, você concorda que ele as deu para você.”
82
Foragidos de Gor
“Ele as empurrou em minhas mãos,” eu disse, “e correu.” Eu olhava para a Tatrix.
“Eu vim para Tharna a fim de obter um tarn. Eu não tinha dinheiro. Com as moedas de
Ost eu poderia comprar um e continuar minha jornada. Eu deveria tê-la jogado fora?”
“Estas moedas,” disse Lara, segurando o pequeno saco em sua mão, enluvada em
ouro, “eram para comprar minha morte.”
“Obviamente a quantia total viria assim que se completasse a façanha,” ela disse.
“As moedas foram um presente,” eu disse. “Ou foi assim que pensei.”
Fiquei em silêncio.
“Qual era a soma total que Ost lhe ofereceu?” ela perguntou.
“Qual foi a soma total que Ost lhe ofereceu?” repetiu a Tatrix.
“Ele falou,” eu disse, “de um tarn, mil discos tarn de ouro e provisões para uma
longa jornada.”
“Discos tarn de ouro – diferente daqueles de prata – são escassos em Tharna,” disse
a Tatrix. “Alguém está aparentemente disposto a pagar alto por minha morte.”
“Não,” gritou a Tatrix, e para o assombro de todos, ela desceu os amplos degraus
de seu estrado.
Tremendo em fúria ela ficou de pé perante mim, e sobre mim, em seu robe e
máscara de ouro. “Me passe o chicote!” Ela gritou. “Me dê o chicote!” O homem com
braçadeiras de couro se ajoelhou perante ela, levantando o chicote até suas mãos. Ela o
estalou cruelmente no ar, e seus movimentos foram cortantes e mordazes.
83
Foragidos de Gor
“Então,” ela disse para mim, ambas as mãos cerradas no cabo da chibata, “você
me teria perante você mesmo no tapete escarlate, amarrada com suas cordas amarelas,
não é?”
“Você poderia me ter em um camisk e em uma coleira, não é?” ela chiou
histericamente.
“Eu sou uma mulher de Tharna,” ela gritou, “Primeira em Tharna! Primeira!”
Em seguida, fora de si, em fúria, segurando a chibata com as duas mãos, ela me
atacou violentamente. “Este é o beijo da chibata para você!” ela gritou. De novo e de novo
ela me golpeou, ainda assim, depois disso tudo, eu consegui ficar ajoelhado, sem cair.
Meus sentidos vacilaram, meu corpo, torturado pelo peso do jugo de prata, agora
envolto nas chamas do chicote, balançava em incontrolável agonia. Então, quando a
Tatrix tinha se esgotado, com algum esforço eu entendi que era difícil de compreender,
eu consegui ficar de pé, sangrando, vestindo o jugo, minha carne em frangalhos – e olhei
para ela.
Ela se virou e fugiu para o estrado. Subiu correndo os degraus e se virou apenas
quando estava de pé perante seu trono. Ela apontou sua mão imperiosamente para mim,
aquela mão vestindo sua luva dourada, agora salpicada com meu sangue, molhada e
escura pelo suor de sua mão.
84
Foragidos de Gor
XII
Fui encapuzado e conduzido através das ruas, cambaleando sob o peso do jugo.
Antes eu tinha entrado em uma construção e desci uma longa e curvada rampa, através
de passagens úmidas. Quando removeram o capuz, meu jugo já estava acorrentado no
muro de uma masmorra.
O lugar era iluminado por pequenas, sujas lamparinas tharlarion colocadas nas
paredes perto do teto. Eu não fazia ideia quão longe abaixo do solo nós tínhamos descido.
O chão e as paredes eram de pedras negras, extraídas de pedreiras em grandes blocos ou
talvez em pedaços menores. A lamparina secava a umidade da pedra ao seu redor, mas
o chão e a maior parte das paredes eram úmidas e cheiravam a mofo. Um pouco de palha
se espalhava pelo chão. De onde eu estava acorrentado, eu podia alcançar uma cisterna
de água. Uma panela de comida repousava perto de meus pés.
Exausto, meu corpo dolorido pelo peso do jugo e pelas picadas do chicote, eu me
deitei sobre as pedras e dormi. Por quanto tempo eu dormi eu não sei. Quando despertei,
cada um dos meus músculos doía, mas agora, era uma tediosa dor causada pelo frio.
Tentei me mover, mas meus ferimentos me torturavam.
85
Foragidos de Gor
Olhei para a garota. Apesar de ser singela, eu a achei atraente. Tinha um calor nela
que eu não esperava encontrar em Tharna. Seus olhos negros me fitaram, cheios de
preocupação. Seu cabelo, o qual era de um marrom avermelhado, estava amarrado atrás
de sua cabeça com um barbante grosso.
Enquanto eu a olhava ela abaixou seus olhos timidamente. Ela vestia apenas uma
única peça, um longo, estreito retângulo marrom de material áspero, talvez com dezoito
polegadas de largura, jogado por sua cabeça como um poncho, que caía na frente e atrás
até um pouco acima do joelho, e amarrado em sua cintura por uma corrente.
Nós encarávamos um ao outro sob a meia escuridão da masmorra, sem falar. Não
havia nenhum som naquele lugar escuro e frio. As sombras da pequenina lamparina
tharlarion à distância trepidavam nas paredes, na face da garota.
Sua mão se estendeu e tocou o jugo prateado que eu vestia. “Eles são cruéis,” ela
disse.
Então, sem dizer mais nada, ela pegou o pão da panela, e o segurou para mim. Dei
duas ou três bocadas vorazes no grosso pão, mastiguei e engoli.
Reparei que seu pescoço estava circundado por um colar de metal cinza. Supus
que aquilo indicava que ela era uma escrava do estado de Tharna.
Ela foi até a cisterna, primeiro ela ciscou na superfície da água para remover a
sujeira verde que flutuava lá, e então, juntando as mãos no formato de concha, ela
carregou a água até meus lábios entreabertos.
“Obrigado,” eu disse.
Ela sorriu pra mim. “Ninguém agradece uma escrava,” ela disse.
“Pensei que as mulheres eram livres em Tharna,” eu disse, apontando com minha
cabeça na direção do colar de metal que ela vestia.
“Não serei mantida em Tharna,” disse ela. “Serei enviada para fora da cidade, para
as Grandes Fazendas, onde irei carregar água para os Campos de Escravos.”
“Eu uma vez vesti a máscara de prata, Guerreiro,” disse a garota. “Mas agora eu
sou apenas uma Mulher Rebaixada, porque permiti a mim mesma o amor.”
A garota riu alegremente. Eu amo ouvir a súbita música contente do riso de uma
mulher, o riso que tanto alegra um homem, que age em seus sentidos como vinho Ka-la-
na.
“Tarl,” eu disse.
“Ah!” disse a garota, sorrindo e não perguntando mais nada. Ela deve ter se dado
conta de que compartilhava a cela com um foragido. Ela sentou sobre seus calcanhares,
seus olhos estavam alegres. “Ele nem era,” ela disse, “desta cidade.”
Eu assobiei. Isso sim seria algo sério aos olhos dos Goreanos.
“E pior ainda,” ela riu, batendo palmas, “ele era da Casta dos Cantores.”
Poderia ter sido pior, eu pensei. Afinal, embora a Casta dos Cantores, ou Poetas,
não fosse uma casta alta, ela tinha mais prestígio do que, por exemplo, a Casta dos
Oleiros, ou a dos Seleiros, com a qual era comparada às vezes. Em Gor, o cantor, ou poeta,
é visto como um artesão que cria provérbios consistentes, da mesma forma que um oleiro
cria um bom pote ou um seleiro faz uma boa sela. Ele tem um papel a desempenhar na
estrutura social, celebrando batalhas e histórias, canções de heróis e cidades, mas
também, é esperado dele que cante sobre a existência, sobre o amor e a alegria, não
somente de brasões e glórias; e também, é sua função relembrar os Goreanos de tempo
em tempo, da solidão e da morte, para que eles não se esqueçam de que são homens.
O cantor era visto como portador de uma habilidade rara, mas assim também o
eram, os treinadores de tarns e os lenhadores. Poetas em Gor, assim como em meu mundo
nativo, eram vistos com certo ceticismo e pensavam-se que eram meio tolos, mas
ninguém pensava que eles pudessem sofrer de uma loucura divina, ou que seriam
87
Foragidos de Gor
beneficiários periódicos da inspiração dos deuses. Os Reis-Sacerdotes de Gor, que
serviam como uma forma de divindade para este planeta rude, inspiravam nada mais
que admiração, e ocasionalmente, temor. Os homens viviam em uma trégua com os Reis-
Sacerdotes, mantendo suas leis e festivais, fazendo os sacrifícios requeridos e libações
necessárias, mas, no final das contas, se esqueciam deles sempre que possível. Se fosse
sugerido para um poeta que ele tinha sido inspirado por um Rei-Sacerdote, ele ficaria
escandalizado. “Eu, fulano de tal, de tal cidade, fiz essa canção,” ele poderia dizer, “não
um Rei-Sacerdote.”
Salvo algumas exceções, o Poeta, ou Cantor, era amado em Gor. Ele não se dava
conta da miséria e tormento de sua profissão, e, na maioria dos casos, a Casta dos Poetas
era vista como o bando de homens mais felizes de Gor. “Um punhado de pão por uma
canção,” era um convite Goreano comum para os membros desta casta, e poderia vir dos
lábios de um aldeão ou de um Ubar, e o poeta tinha muito orgulho de poder cantar a
mesma canção em ambos os lugares, na cabana de um aldeão e nos salões de um Ubar,
embora ele ganhasse apenas uma crosta de pão em um lugar e um punhado de ouro no
outro, ouro frequentemente desperdiçado com belas mulheres que muitas vezes o
deixava com nada mais do que suas canções.
Poetas, geralmente, não vivem bem em Gor, mas eles nunca passam fome, nunca
são forçados a queimar os robes de sua casta. Alguns até mesmo cantam suas canções em
seu caminho de cidade a cidade, sua pobreza os protegia dos bandidos, e sua sorte os
protegia dos predatórios animais de Gor. Nove cidades, muito tempo depois de sua
morte, reivindicavam o homem que a séculos atrás, tinha chamado Ko-ro-ba de Torres
do Amanhecer.
“Claro que não,” ela disse, “mas eles são banidos em Tharna.”
“Oh,” eu disse.
“No entanto,” ela disse, seus olhos alegres, “este homem, Andreas, da Cidade de
Tor, no Deserto, se esgueirou para dentro da cidade – procurando por uma canção, como
ele mesmo disse.” Ela gargalhou. “Mas eu acho que ele na verdade queria olhar o que
tinha atrás das máscaras de prata de nossas mulheres.” Ela bateu palmas com alegria.
“Fui eu,” ela continuou, “quem o repreendeu e desafiou, eu que vi a lira sob suas vestes
cinzentas e soube que ele era um cantor. Em minha máscara de prata eu o segui, e me
certifiquei que ele tinha estado na cidade por mais de dez horas.”
“Qual o significado disso?” eu perguntei, pois eu tinha antes ouvido algo desse
gênero.
88
Foragidos de Gor
“Esse é o tempo em que alguém é bem-vindo em Tharna” disse a garota, “e isso
significa que esse alguém será enviado para as Grandes Fazendas para ser um Escravo
de Campo, para cultivar o solo de Tharna em correntes, até que esse alguém morra.”
“Por que os forasteiros não são avisados sobre isso,” eu perguntei, “quando eles
entram pelos portões?”
“Isso seria tolice de fato, não seria?” a garota riu. “Pois como então as fileiras de
Escravos de Campo seriam reabastecidas?”
“Entendo,” eu disse, agora entendendo pela primeira vez parte da motivação por
trás da hospitalidade de Tharna.
“Como alguém que vestia a máscara de prata,” continuou a garota, “era meu dever
reportar aquele homem para as autoridades. Ainda assim eu estava curiosa pois eu nunca
conheci um homem que não fosse de Tharna. Eu o segui, até que ele ficou sozinho, e então
eu o desafiei, informando-o sobre o destino que cairia sobre ele.”
“Eu nunca tinha estado nos braços de um homem antes,” ela disse, “pois os
homens de Tharna não podem tocar as mulheres.”
“A Casta dos Médicos,” ela disse, “sob a direção do Alto Conselho de Tharna,
cuida dessas questões.”
“Entendo,” eu disse.
“Sim,” ela disse, “mas não me importo, pois eu prefiro vestir o camisk e poder
sentir seu beijo, que viver para sempre atrás de uma máscara de prata.” Seus ombros
tremeram. Eu desejava poder pegar ela em meus braços e confortá-la. “Eu sou uma
89
Foragidos de Gor
criatura degradante,” ela disse, “envergonhada, uma traidora de tudo que é nobre em
Tharna.”
“Eu o abriguei,” ela disse, “e cuidei de retirá-lo da cidade.” Ela suspirou. “Ele me
fez prometer que o seguiria, mas eu sabia que eu não poderia fazer isso.”
“Quando ele estava a salvo,” ela disse, “eu cumpri meu dever, me entregando ao
Alto Conselho de Tharna e confessando tudo. Foi decretado que eu deveria perder minha
máscara de prata, vestir o camisk e ser encoleirada, e ser enviada para as Grandes
Fazendas para carregar água para os Escravos de Campo.”
Ela gargalhou. “Você é estranho, também,” ela disse, “assim como Andreas de
Tor.”
“E Andreas?” eu perguntei, “Já que você não se juntou a ele, será que ele não virá
a sua procura, e voltará à cidade?”
“Não,” ela disse. “Ele irá pensar que eu não o amava mais.” Ela abaixou sua
cabeça. “Ele irá embora, e encontrará outra mulher, alguma mais amável do que a garota
de Tharna.”
“Sim,” disse ela. “E,” ela adicionou, “ele não entrará na cidade. Ele sabe que
poderia ser capturado e, considerando seu crime, ele pode ser mandado para as minas.”
Ela deu de ombros. “Talvez até mesmo ser usado nos Entretenimentos de Tharna.”
“Então você acha que ele tem medo de entrar na cidade?” eu perguntei.
“Sim,” disse ela, “ele não irá entrar na cidade. Ele não é um tolo.”
“O que,” gritou uma voz jovem e divertida, insolente e de boa índole, “poderia
uma jovem como você saber sobre os tolos, os da Casta dos Cantores, dos Poetas?”
90
Foragidos de Gor
Linna saltou de pé.
Através da porta do calabouço, uma figura jungida foi empurrada pelos cabos de
duas lanças. Ele tropeçou pela sala inteira até bater contra a parede com seu jugo. Ele
tratou de virar o jugo deslizando pela parede até se sentar.
Era um rapaz de aparência forte, despenteado, com olhos azuis alegres e um tufo
de cabelo que mais parecia a juba de um larl negro. Ele se sentou sobre a palha, e sorriu
para nós, um alegre e travesso sorriso envergonhado. Ele esticou o pescoço no jugo e
moveu seus dedos.
“Muito bem, Linna,” ele disse. “Eu cheguei para te levar embora.”
91
Foragidos de Gor
XIII
Os Entretenimentos de Tharna
O sol castigava meus olhos. A areia branca, perfumada, polvilhada com mica e
fitas vermelhas, queimava meus pés. Eu pisquei, de novo, e de novo, tentando atenuar a
tortura do brilho intenso. Eu já podia sentir o calor do sol se infiltrando dentro do jugo
de prata que eu vestia.
Minhas costas sentiam o cutucar das lanças enquanto eu era impelido à frente aos
tropeços, instável sob o peso do jugo, meus pés afundando até os tornozelos na areia
escaldante. Em ambos os lados, estavam outros miseráveis companheiros, similarmente
jungidos, alguns lamentando, outros praguejando, já que eles, também, eram conduzidos
à frente como animais. Um deles, silencioso, à minha esquerda, eu sabia que era Andreas,
da Árida Cidade de Tor. Ao menos agora eu não mais sentia a ponta da lança em minhas
costas.
“Ajoelhem para a Tatrix de Tharna,” comandou uma voz imperial, falando através
de um tipo de trombeta.
De repente ele foi golpeado por trás, brutalmente, nas costas, pelo cabo de uma
lança, e com um gemido, ele arriou de joelhos. A lança me golpeou também, de novo, e
de novo, nas costas e nos ombros, mas eu permaneci de pé, de alguma forma ainda forte
92
Foragidos de Gor
no jugo, como um boi. Então com uma lapada forte, o chicote subitamente golpeou minha
perna e se enrolou nela como uma serpente escaldante. Minhas pernas foram puxadas
debaixo de mim e eu caí com força na areia.
Era um recinto oval, talvez com cem jardas de diâmetro em seu eixo mais longo, e
cercado por muros de doze pés de altura. Os muros eram divididos em seções, as quais
eram brilhantemente coloridas, com dourados, púrpuras, vermelhos, laranjas, amarelos
e azuis.
Parecia que todas as gloriosas cores de Gor que tinham sido proibidas às
construções de Tharna foram esbanjadas neste lugar de entretenimento.
Olhei sobre o muro e vi, vestida em seus robes dourados, régia em um trono de
ouro, ela que era a única que podia vestir uma máscara de ouro, ela que era a Primeira
em Tharna – Lara, a Tatrix em pessoa.
93
Foragidos de Gor
A Tatrix ergueu-se e levantou sua mão. Pura em sua luva de ouro, ela segurava
uma echarpe dourada.
Então, para meu assombro, os homens de Tharna que estavam jungidos na arena,
ajoelhados, rejeitados por sua cidade, condenados, entoaram um estranho hino. Andreas
e eu, como não éramos de Tharna, ficamos em silêncio, e eu podia adivinhar que ele
estava tão surpreso quanto eu.
A echarpe dourada flutuou até a areia da arena e a Tatrix se resumiu ao seu trono,
reclinando-se em suas almofadas.
Gritos agudos de antecipação saudaram este anúncio, mas mal tive tempo de ouvir
pois estava sendo arrastado pelos pés.
“As Batalhas dos Bois,” gritou uma máscara prateada, e seu grito foi repetido por
dez mais e então por cem outros mais. Rapidamente as arquibancadas pareciam inteiras
a gritar. “As Batalhas dos Bois,” gritavam as mulheres de Tharna. “Que comecem as
batalhas!”
Andreas, uma vez que seu jugo foi similarmente guarnecido como o meu, falou
comigo.
“Esse pode ser o fim, Guerreiro,” ele disse. “Espero apenas que não nos
confrontemos.”
Andreas sorriu para mim. “Que assim seja, Guerreiro,” ele concordou.
95
Foragidos de Gor
Embora jungidos, nós faceamos um ao outro, homens, cada um sabendo que tinha
encontrado um amigo nas areias da arena de Tharna.
Meu oponente não foi Andreas, mas um atarracado, poderoso homem com cabelo
curto e loiro, Kron de Tharna, da Casta dos Ferreiros. Seus olhos eram azuis como metal.
Uma orelha tinha sido rasgada de sua cabeça.
“Eu sobrevivi aos Entretenimentos de Tharna três vezes,” ele disse quando virou
para mim.
O homem com as pulseiras de couro nos rodeava com seu chicote, seu olhar
voltado para o trono da Tatrix. Quando a luva de ouro uma vez mais se levantasse, o
terrível conflito começaria.
“Sim,” eu disse.
A mão da Tatrix deveria ter levantado. Eu não olhei pois não queria tirar os olhos
de meu oponente. “Comece,” disse o homem nas pulseiras de couro.
Uma, duas vezes, ele investiu, mas eu pulei de leve, para cima, vendo se ele
poderia me empurrar, me desequilibrar com o choque da sua investida. Nos movíamos
cautelosamente, ocasionalmente simulando ataques com nossos terríveis jugos. A plateia
cresceu inquieta. O homem com braçadeiras de couro ricocheteou seu chicote.
96
Foragidos de Gor
olhos. Aquilo veio como uma tempestade avermelhada de prata, me pegando de
surpresa, me cegando.
Cego eu ouvi Kron se recompor de pé, levantando o pesado jugo que o prendia.
Ouvi sua respiração pesada, como o resfolegar de um animal. Ouvi seus curtos, rápidos
passos a correr na areia, baqueando em minha direção correndo como um búfalo.
Virei meu jugo obliquamente, escorregando por entre os chifres, bloqueando seu
golpe. Era como se fosse o som de duas bigornas que se chocavam violentamente. Minhas
mãos caçaram as dele, mas ele manteve seus punhos fechados e se afastou o quanto pode
no bracelete do jugo. Minhas mãos se fecharam em seu punho e escorregaram, incapazes
de manter o aperto devido ao suor dele e meu.
Uma, duas vezes mais ele investiu, e cada vez eu tratei de bloquear seu golpe,
resistindo ao choque dos jugos a se colidir, escapando da estocada dos chifres mortais.
Uma vez eu não tive sorte e o chifre de metal raspou a lateral de meu corpo, deixando
um rasgo de sangue. A multidão gritava enlouquecida.
Ele estava quente, assim como o meu sob o sol, e minhas mãos queimaram no
metal. Kron era um homem pesado, porém baixo, e eu levantei seu jugo, e o meu, para o
assombro da arquibancada, que caia agora no silêncio.
Kron praguejou quando ele sentiu seus pés deixando a areia. Dolorosamente,
enquanto ele se contorcia, pendurado ao jugo, eu o carreguei até o muro dourado, e o
atirei contra a parede. O impacto de Kron, preso ao jugo, poderia ter matado um homem
menor, quebrando seu pescoço.
Kron, ainda preso ao jugo, agora inconsciente, escorregou muro abaixo, o peso do
jugo tombando seu corpo inerte para o lado, na areia. Meu suor e lágrimas causadas pela
irritação da areia, agora lavavam minha visão.
97
Foragidos de Gor
Olhei para cima, dentro da máscara brilhosa da Tatrix. Ao lado dela eu vi a
máscara prateada de Dorna a Altiva.
Fiquei lá de pé, pés afundados na areia, coberto de suor e areia, minhas costas
abertas pelas chicotadas da corrida, minha lateral rasgada pelo chifre do jugo de Kron.
Eu fiquei lá, imóvel.
O primeiro homem que me alcançou foi o homem com braçadeiras de couro, sua
face pálida de raiva. Ele selvagemente me golpeou na face com seu chicote enrolado.
“Sleen,” ele gritou, “você estragou os Entretenimentos de Tharna!” Dois guerreiros
apressadamente desprenderam os chifres de meu jugo e me arrastaram até o muro
dourado.
Será que eu ganharia minha liberdade? Era assim nos Entretenimentos de Tharna?
Ou teria a feroz, altiva Tatrix agora se dado conta da crueldade dos Entretenimentos?
Teria aquele coração, escondido naqueles frios, brilhantes robes de inflexível ouro pelo
menos abrandado, se mostrado susceptível de compaixão? Ou teria o grito da justiça
finalmente triunfado em seu peito, de tal modo que minha inocência tivesse sido
reconhecida, minha causa reivindicada, para que agora eu pudesse rapidamente retomar
o meu caminho para fora da cinzenta Tharna?
Ela gargalhou. “- que ele vire comida para o tarn,” ela adicionou.
99
Foragidos de Gor
XIV
O Tarn Negro
A multidão parecia ansiosa para ver o que aconteceria a seguir. Eles se remexiam
impacientemente debaixo das sedas esvoaçantes dos toldos, aprumando suas almofadas
de sedas, compartilhando balas e doces distribuídos por figuras em robes cinzentos. Seus
gritos chamando pelo tarn, se misturavam ocasionalmente com as provocações e
sarcasmos lançados à arena.
Talvez os Entretenimentos de Tharna não tinham sido arruinados afinal; será que
o melhor ainda estaria por vir? Certamente minha morte sob o bico e garras do tarn
providenciaria um espetáculo gratificante para as insaciáveis máscaras de Tharna, mas
seria essa uma adequada compensação para as decepções desta tarde, pelo desprezo para
com suas vontades, para a provocação que haviam testemunhado?
Embora eu sentisse que fosse morrer, eu não estava de todo insatisfeito com a
maneira que morreria. Por mais hedionda que tal morte pudesse parecer para as máscaras
prateadas de Tharna, eles não sabiam que eu era um tarnsman, e eu conhecia tais
pássaros, seu poder, sua ferocidade; assim, a meu modo eu os amava; e como um
guerreiro eu não consideraria a morte pelo tarn ignóbil.
Como a maioria dos membros de minha Casta, mais do que os monstruosos tarns,
aqueles carnívoros de Gor que pareciam falcões gigantes, nós temíamos outras criaturas
100
Foragidos de Gor
tais como a pequena ost, aquele pequenino réptil venenoso, laranja, mal medindo
algumas poucas polegadas em comprimento, que podem esconder-se nas sandálias de
alguém e então, sem provocação ou aviso, atacar, suas presas eram o prelúdio de um
excruciante tormento, terminando somente com a morte certa. Entre guerreiros, a
mordida de uma ost é considerada a mais cruel de todas as entradas para as Cidades de
Poeira; preferiam muito mais os bicos e as terríveis garras de um tarn.
Estava livre para vagar na areia, enclausurado apenas pelos muros. Eu me deleitei
sobre essa nova liberdade, na ausência do jugo, embora eu soubesse que tal liberdade
tinha me sido dada apenas para aprimorar o espetáculo. Para que eu pudesse correr,
pudesse gritar e me humilhar, para que eu pudesse tentar me defender na areia, isso sim
encantaria as máscaras prateadas de Tharna.
Movi minhas mãos e ombros, minhas costas. Minha túnica já tinha há muito sido
rasgada até a cintura e agora eu arranquei os pedaços até o cinto, irritado com o pano
esfarrapado. Meus músculos pareceram exuberantes em meu corpo, se deleitando com
sua liberdade.
Eu a peguei.
“Como algo para lembrar da Tatrix de Tharna,” disse a voz atrás da máscara de
ouro, se divertindo.
Mal eu tinha chegado no centro quando uma das seções do muro rolou para trás,
revelando um portal quase tão alto quanto o muro e talvez com trinta pés de largura.
Através deste portal, em duas longas fileiras, chicoteados pelos feitores, jungidos
escravos encabrestados em correntes puxavam a grande plataforma de madeira montada
sobre rodas. Eu aguardei até que a plataforma emergisse sob a luz do sol.
101
Foragidos de Gor
Houve gritos de admiração e surpresa, de prazer, das emocionadas máscaras de
prata de Tharna. Lentamente enquanto a crepitante plataforma rolava para fora, para
dentro da areia, puxada por seus escravos a se esforçar, jungidos como bois, eu vi o tarn
aparecer, um gigante negro, encapuzado, seus bicos amarrados juntos, uma grande barra
de prata acorrentada à uma de suas patas. Ele não poderia voar, mas podia se mover,
arrastando a barra de prata. Ele, também, em Tharna, vestia seu jugo.
Eu examinei o tarn.
Ele não tentaria voar encapuzado; de fato, eu duvidava que o pássaro tentasse voar
enquanto estivesse preso à barra de prata. Se ele fosse mesmo o pássaro que estava
pensando que era, ele não lutaria futilmente contra o peso de sua trava degradante, ele
não iria expor sua impotência para seus captores. E sei que isso pode soar estranho, mas
eu acredito que alguns animais têm orgulho, e se assim for, eu sabia que este monstro
aqui era um deles.
Eu arranquei o chicote de suas mãos, e com meu braço o atingi de lado. Ele voou
e caiu na areia. Eu joguei longe o chicote desdenhando do homem.
Eu estava de pé perto da plataforma agora. Tentava ver o anel que o pássaro vestia
em seu tornozelo. Com satisfação notei que suas garras estavam calçadas com aço. Era
um Tarn de Guerra, criado para ter coragem, para ter resistência, para o combate nos céus
de Gor. Minhas narinas beberam daquele selvagem e forte odor do tarn, tão ofensivos
para alguns, ainda uma ambrosia para as narinas do tarnsman. Tal cheiro relembrava os
berços de tarn de Ko-ro-ba e Ar, dos Complexos de Mintar na Cidade de Tendas de Pa-
Kur, no Vosk, nos acampamentos do foragido Marlenus entre os penhascos da
Cordilheira Voltai.
O escravo estremeceu em seu jugo à menção deste nome. Ele se virou, desesperado
para ser desacorrentado para correr como um animal até a segurança das masmorras.
Embora a maioria dos que observavam pudessem perceber que o tarn estava
estranhamente calmo, eu senti que ele tremia, assim como eu, mas de excitação. Parecia
incerto. Sua cabeça estava alta, alerta dentro da escuridão em seu capuz de couro. De
forma quase inaudível ele puxava o ar através das fendas em seu bico. Eu me perguntava
se ele tinha captado meu cheiro. Então o grande bico amarelo, em forma de gancho para
rasgar uma presa, agora preso por uma cinta, se virou curiosamente, lentamente na
minha direção.
Eu me virei para encará-lo. “Eu agora não sou mais um escravo jungido,” eu disse.
“Você confronta um guerreiro.”
Eu gargalhei na cara dele. “Me golpeie agora,” eu disse, “e eu irei matar você.”
“Não tenho medo de você,” ele disse, sua face branca, se retraindo. Seu braço do
chicote abaixou. Ele tremia.
Eu gargalhei novamente.
“Você estará morto em breve,” ele disse, balbuciando nas palavras. “Cem
tarnsmans tentaram montar esta besta, e cem tarnsmans morreram. A Tatrix decretou
que ele só deveria ser usado nos Entretenimentos de Tharna, para se alimentar de sleens
como você.”
O tarn abriu seu bico e as correias que o prendiam se desfizeram em pedaços. Ele
sacudiu a cabeça, como se limpasse a água em suas penas e o capuz de couro foi atirado
longe no ar e atrás do pássaro. Então ele esticou suas asas e bateu no ar, levantando seu
bico e pronunciando o aterrorizante grito de desafio de sua raça. Sua crista negra, agora
não mais confinada no capuz, se expandiu ereta como um som de fogo, e o vento parecia
levantar e alisar cada uma das penas.
Eu o achei belo.
“Ho! Ubar dos Céus!” eu gritei, com meus braços estendidos. Meus olhos
brilharam com lágrimas. “Você não me reconhece? Eu sou Tarl! Tarl de Ko-ro-ba!” eu
gritei alto. Eu não sei qual foi o efeito que este grito causou nas arquibancadas da arena,
pois eu tinha me esquecido deles. Eu me dirigia ao tarn gigante, como se ele fosse um
guerreiro, um membro de minha casta. “Você pelo menos,” eu disse, “não teme o nome
de minha cidade.”
Eu sabia que os guerreiros de Tharna poderiam matar a nós dois, pois o enorme
tarn me defenderia até a morte.
Eu ajoelhei para examinar a tranca. Não tinha sido forjada no lugar já que deveria
ser removida nos confinamentos onde o tarn dormia, para permitir que o pássaro subisse
em seu poleiro, como era costume. Por sorte ela não tinha sido bloqueada no local. Mas
tinha, contudo, sido trancada, presa com um parafuso pesado, de cabeça quadrada, muito
parecido com parafusos de máquinas de grande porte, seu eixo deveria ter cerca de uma
polegada e meia de diâmetro.
Minhas mãos pressionaram o metal. Estava apertado. Tinha sido fechado com uma
chave. Minhas mãos se fecharam sobre o parafuso, tentando torcer para abri-lo. Ele
resistiu. Eu lutei com ele. O amaldiçoei. Interiormente eu gritava para que aquilo abrisse.
Mas não abriu.
Eu agora me dava conta dos gritos nas arquibancadas. Não eram apenas gritos de
impaciência, mas de pavor. As máscaras de prata não estavam simplesmente se sentindo
enganadas no espetáculo, mas também, aturdidas, confusas.
A voz da Tatrix ecoou através das areias. “Matem-no,” ela gritou. Ouvi, também,
a voz de Dorna a Altiva incitando os guerreiros para a tarefa. Em pouco tempo os
lanceiros de Tharna estariam sobre nós. Um ou dois já tinham pulado sobre o muro das
arquibancadas e estavam se aproximando. A grande porta através da qual o tarn tinha
105
Foragidos de Gor
sido trazido também estava se abrindo, e uma fila de guerreiros passavam através da
abertura.
Minhas mãos se fecharam ainda mais apertadas sobre as peças do parafuso. Ele
estava agora manchado com meu sangue. Pude sentir os músculos de meu braço e costas
usando sua força contra o inflexível metal. Uma lança afundou na madeira da plataforma.
Suor irrompia por cada poro de meu corpo. Outra lança se chocou contra a madeira, mais
perto que a primeira. O metal parecia rasgar a carne de minhas mãos, quebrar os ossos
de meus dedos. Outra lança contra a madeira, passou raspando em minha perna. O tarn
empurrou sua cabeça sobre mim e soltou um perfurante grito feroz, um terrível grito de
fúria que deve ter estremecido os corações de todos dentro dos limites da arena. Os
lanceiros pareceram congelar, e se afastaram, como se o grande pássaro estivesse livre
para ataca-los.
O tarn, como se entendesse que agora estava livre, sacudiu o odioso metal para
fora de sua perna e levantou seu bico para o céu, proferindo tal grito que deve ter sido
ouvido por todos em Tharna, um grito que era raramente ouvido exceto nas montanhas
de Thentis ou entre os desfiladeiros de Voltai, o grito de um tarn selvagem, vitorioso, que
clama como seu território a terra e todos que vivem nela.
Eu saltei em suas costas e agarrei as robustas penas de seu pescoço. O que eu não
daria por uma sela de tarn e uma ampla correia púrpura que prendia o guerreiro na sela!
Tão cedo o tarn sentiu meu peso ele gritou novamente e com uma explosão de suas
asas levantou dentro do ar, ascendendo em tortuosos círculos. Algumas lanças passavam
descrevendo parábolas preguiçosas abaixo de nós, atiradas de longe, caindo de volta na
areia em cores festivas da arena. Houve gritos de fúria vindos de baixo de nós quando as
máscaras de prata de Tharna começaram a entender que eles tinham sido enganados por
sua presa, os Entretenimentos tinham acabado mal.
Eu não tinha como guiar o tarn de forma eficiente. Normalmente o tarn é guiado
por um arreio. Existe uma cinta no pescoço que habitualmente, se conecta a seis rédeas
no sentido horário. Estas passam a partir da alça do pescoço para o anel principal da sela,
que é fixado na mesma. Alguém pode guiar o pássaro exercendo pressão sobre estas
rédeas. Mas eu não tinha nem a sela, nem os arreios. Na verdade, eu não tinha sequer um
106
Foragidos de Gor
aguilhão de tarn, e sem isso a maioria dos tarnsmans nem sequer se aproximavam de
suas montarias ferozes.
Eu me perguntava às vezes se aquele pássaro, meu Ubar dos Céus, o tarn dos tarns,
chamados pelos Goreanos de Irmãos do Vento, poderia considerar a si mesmo como
superior ao aguilhão, se ofendendo com seu choque e faíscas, ressentido por que aquele
débil dispositivo humano fingia ensiná-lo, ele, o tarn dos tarns, fingia ensiná-lo como
voar, quão rápido e quão longe. Mas eu tomei tais pensamentos como absurdos. O tarn
era nada mais que outro dos animais de Gor. O sentimento que eu tentava atribuir à ele
estava além do alcance de tão simples criatura.
Mas eu sabia que por mais que eu gritasse que estava livre, e queimasse com a
vergonha de ter pressagiado tal coisa, como poderia eu estar livre enquanto outros
estavam presos naquela cidade cinzenta?
Tinha a garota, de olhos mornos, Linna, que tinha sido tão gentil comigo, cujos
cabelos ruivos estavam amarrados com barbante grosso, que vestia o colar cinzento de
107
Foragidos de Gor
uma escrava do estado de Tharna. Tinha Andreas de Tor, da Casta dos Cantores, jovem,
valente, irreprimível, seus cabelos revoltos como a juba de um larl negro, que preferiu
morrer do que tentar me matar, condenado aos Entretenimentos de Tharna. E quantos
outros mais, jungidos e não jungidos, presos e livres, nas minas, nas Grandes Fazendas,
na própria cidade que sofriam na miséria de Tharna e suas leis, que estavam sujeitos ao
peso esmagador de suas tradições, e sabiam que na melhor das hipóteses não teriam nada
melhor na vida do que uma taça do barato Kal-da no final de um árduo dia de trabalho
vergonhoso?
O grande tarn negro, ao ouvir o grito “Tabuk!”, para minha alegria, começou a
descrever seu longo voo circular de caça, quase como se tivesse recebido seu treinamento
ontem. Ele era realmente o tarn dos tarns, meu Ubar dos Céus!
Era um plano desesperado que eu tinha pensado, não mais que uma chance em
um milhão, a não ser que o grande tarn mudasse a balança a meu favor. Seus olhos
brilhavam perversos, vasculhando o chão, cabeça e bico jogados para frente, suas asas
ainda, planando silenciosamente em grandes varreduras, cada vez mais baixo, sobre as
torres cinzentas de Tharna.
Agora nós passávamos sobre a arena de Tharna, ainda fervendo com sua latejante
multidão revoltada. Os toldos tinham sido rasgados, mas as arquibancadas ainda
estavam cheias, enquanto as milhares de máscaras de prata de Tharna esperavam pela
própria Tatrix dourada para ser a primeira a deixar a cena dos macabros entretenimentos
da cidade cinzenta.
Muito abaixo, no meio da multidão eu avistei as vestes douradas da Tatrix.
108
Foragidos de Gor
“Tabuk!” eu gritei. “Tabuk!”
O grande predador rodava no céu, virando tão levemente como um punhal sobre
um fio. Ele emparelhou com o sol em sua traseira. Suas garras, calçadas com aço,
desceram como grandes ganchos; pareciam tremer quase imóveis no ar; e então suas asas,
paralelas, se levantaram, quase me envolvendo, e lá permaneceram.
A descida foi tão suave e silenciosa como a queda de uma rocha, ou o abrir de uma
mão. Agarrei-me ferozmente no pássaro. Meu estômago parecia subir pela minha
garganta. As arquibancadas da arena, repletas de robes e máscaras, pareciam vir voando
na minha direção.
Houve gritos estridentes de terror vindos de baixo. Em cada mão, robes e regalias
esvoaçantes, as máscaras de prata de Tharna que tinham tão insolentemente gritado
alguns momentos atrás por sangue, corriam agora por suas vidas em uma desesperada
debandada, atropelando uns aos outros, arranhando e rasgando uns aos outros, lutando
ao longo dos bancos, empurrando se até mesmo por cima dos muros nas areias abaixo.
Em um instante que deve ter sido o mais aterrorizante de sua vida, a Tatrix ficou
lá de pé, sozinha, olhando para cima, abandonada por todos, nos degraus a frente de seu
trono, em meio às almofadas caídas e bandejas de doces e guloseimas. Um grito selvagem
foi emitido por de trás daquela plácida e inexpressiva máscara de ouro. Os longos braços
de seu robe, as mãos enluvadas em ouro, se levantaram sobre sua face. Os olhos por trás
da máscara, os quais eu pude ver naquela fração de segundo, estavam histéricos de medo.
O tarn golpeou.
Imobilizando suas garras calçadas com aço fechadas como grandes ganchos no
corpo da histérica Tatrix. E assim por um instante o tarn parou, sua cabeça e bicos
estendidos, suas assas estalando, sua presa trancada em suas garras, e proferiu o grito de
captura aterrorizante de um tarn, que era ao mesmo tempo um grito de vitória, e de
desafio.
Naquelas titânicas, impiedosas garras o corpo da Tatrix estava indefeso. Ela tremia
em terror, se debatendo incontrolavelmente como um gracioso tabuk capturado,
esperando para ser levado para o ninho. A Tatrix não mais podia nem mesmo gritar.
109
Foragidos de Gor
XV
Um Trato é Acertado
O grito tabuk é a única palavra na qual um tarn é treinado para reagir. Fora isso o
resto é tudo feito através das rédeas e do aguilhão de tarn. Eu me criticava duramente
por não ter condicionado o pássaro a responder a comandos de voz. Agora, acima de
tudo, sem um arreio e uma sela, tal treinamento teria sido de grande ajuda.
Sob o vento sibilante, quando tinha necessidade, eu gritava para ela, “Primeira-
rédea!”, “Sexta-rédea!” e assim por diante, e ela então puxava a rédea. Aquela era a única
associação entre a voz de um homem e os arranjos das rédeas que o tarn poderia fazer. O
pássaro, é claro, não seria condicionado em tão pouco tempo, e nem tinha sido minha
intenção condicionar a ave – pois eu tinha falado apenas para ensinar Talena. No entanto,
mesmo que fosse o caso de o pássaro ter sido inadvertidamente condicionado naquele
curto espaço de tempo, não seria possível que ele ainda retivesse a memória daquele
causal imprinting, que tinha acontecido a mais de seis anos atrás.
“Sexta-rédea!” eu gritei.
110
Foragidos de Gor
Não disse mais nada e o pássaro se nivelou, suas asas golpeando o ar em grandes
batidas rítmicas, ocasionalmente planando de forma rasa, se elevando, por um bom
tempo. Eu observava os pasangs fluindo abaixo de mim, eu vi Tharna desaparecer ao
longe.
Perdoe-me se eu digo isso, mas eu estava feliz, como não deveria estar dada as
circunstâncias, mas meus sentimentos eram tais que um tarnsman poderia facilmente
entender. Eu conheço apenas poucas sensações tão esplêndidas, tão divinas, quanto as de
voar sobre um tarn.
Eu era daqueles tipos de homens, um tarnsman, que preferem a sela de uma dessas
titânicas feras predadoras do que o trono de um Ubar.
Uma vez que alguém se torna um tarnsman, é dito, que ele deve voltar de novo, e
de novo para os gigantes, selvagens pássaros. Na minha opinião esse ditado reflete a
realidade. Ele sabe que deve dominá-los ou ser devorado. Ele sabe que eles não são
confiáveis, que eles são perversos. Um tarnsman sabe que seu pássaro pode se virar
contra ele sem o menor aviso. Ainda assim o tarnsman não escolhe outra vida. Ele
continua a montar os pássaros, para subir em suas selas com o coração repleto de alegria,
para pilotar o monstro no ar. Mais que o ouro de cem mercadores, mais que os incontáveis
cilindros de Ar, ele valoriza aqueles sublimes, solitários momentos, alto sobre a terra,
cortando o vento, ele e o pássaro como uma única criatura, sozinhos, majestosos, velozes,
livres. Vamos dizer que eu simplesmente, estava contente, pois estava nas costas de um
tarn uma vez mais.
Olhei para trás para saber se alguém me seguia. Certamente poderiam ter feito
isso, a pé ou em tarns. Tharna não mantém uma larga cavalaria de tarns, mas com certeza
poderiam lançar ao menos alguns esquadrões de tarnsmans para resgatar e vingar sua
111
Foragidos de Gor
Tatrix. Um homem de Tharna, ensinado desde o nascimento a se ver como sem valor,
uma ignóbil e inferior criatura, na melhor das hipóteses um estúpido animal de carga,
não daria, ao todo, um bom tarnsman. Mesmo assim eu sabia que tinham tarnsmans em
Tharna, e alguns bons, pois o nome de tal cidade era respeitada pelas militares e hostis
cidades de Gor. Seus tarnsmans eram bem vistos por eles mesmos e mantiveram pelo
menos o que restou do orgulho de sua casta.
Embora eu escrutinasse o céu atrás de mim, procurando por pequenos pontos que
poderiam ser tarns voando ao longe, não vi nada. Estava azul e vazio. Nesse momento
cada tarnsman em Tharna deveria estar voando. Ainda assim não pude ver nada.
“Quarta-rédea!” eu gritei.
O grande pássaro pausou em seu voo, freando com suas asas, e então suavemente
desceu para uma alta saliência em um dos cumes, um lugar acessível apenas para alguém
que montasse um tarn.
Eu pulei das costas do monstro e corri para a Tatrix, para protege-la no caso do
tarn tentar se alimentar. Puxei as garras fechadas sobre seu corpo, gritando para o tarn,
empurrando suas pernas. O pássaro pareceu confuso. Eu não tinha gritado “Tabuk!?”
essa coisa que ele tinha capturado não era para ser devorada agora? Não era uma presa?
Empurrei o tarn para trás e para longe da garota, e a segurei em meus braços. A
deitei gentilmente sobre a pedra do penhasco, o mais longe possível da beirada. O abrigo
pedregoso no qual nos encontrávamos tinha talvez vinte pés de largura e vinte de
profundidade, do tamanho daqueles que os tarns escolhem para fazerem seus ninhos.
Dando uma última olhada para Tatrix o pássaro virou e espreitou as bordas
daquela magnífica saliência, e com um simples bater de suas grandes asas, saltou no ar,
sua sombra levava uma mensagem de terror pra qualquer um que se encontrasse debaixo
dela.
Às vezes quando um tarn captura um tabuk, ele quebra a coluna do animal. Foi
um risco que eu tive de correr. Eu sabia que não tinha muita escolha. Com a Tatrix em
mãos, eu estaria em condições de barganhar com Tharna. Eu não pensei que poderia
mudar qualquer coisa em sua forma dura de governar, mas eu tinha esperança de usá-la
para conseguir a liberdade de Linna e Andreas, e talvez daqueles pobres miseráveis que
encontrei na arena. Isso com certeza seria um preço baixo pelo retorno da Tatrix dourada.
Era a resposta que eu esperava, embora sem dúvidas seu corpo tivesse quase sido
quebrado, sua carne quase sido esmagada até os ossos.
“Você está dolorida,” eu disse, “mas principalmente, agora, você deve estar
estarrecida e com frio pela perda da circulação.” Eu a observava. “Mais tarde,” eu disse,
“irá doer ainda mais.”
113
Foragidos de Gor
“Esse tarn é meu,” eu disse, simplesmente. O que mais poderia dizer a ela? O fato
dele não ter me matado, conhecendo a natureza dos tarns, pareceria quase que
inacreditável para mim, assim como para ela. Se eu conhecesse mais sobre os tarns, eu
teria adivinhado que ele tinha algum tipo de afeição por mim.
A Tatrix olhou em volta, examinou o céu. “Quando ele voltará?” ela perguntou.
Sua voz saiu num sussurro. Eu sabia que se existisse algo que pudesse aterrorizar o
coração da Tatrix, isso seria o tarn.
“Em breve,” eu disse. “Vamos esperar que ele encontre algo para comer nos
campos lá em baixo.”
“Se ele não encontrar um passatempo,” ela disse, “ele vai voltar com raiva e com
fome.”
“Certamente,” eu concordei.
“Talvez,” eu disse.
“Sim,” eu disse.
Com um grito de medo a Tatrix caiu sobre seus joelhos perante mim, suas mãos
estendidas, implorando. Lara, Tatrix de Tharna, estava aos meus pés, suplicante.
Eu sorri.
“Sim,” eu disse.
114
Foragidos de Gor
“O que você vai fazer comigo?” ela perguntou, de face para o paredão, indigna de
olhar para mim.
“Trocar você por uma sela e armas,” eu disse. Eu tentava alarmar a Tatrix, seria
bom para beneficiar minha posição de barganha.
Sua estrutura se abalou com medo, e fúria. Ela se virou para me encarar, seus
punhos enluvados fechados. “Nunca!” ela gritou.
“Remova a máscara,” eu sugeri, “para que eu possa julgar melhor o quanto posso
conseguir por você na Rua das Marcas.”
“Eu acho que só essa máscara,” eu disse, “deve valer o preço de um bom escudo e
uma lança.”
A Tatrix gargalhou amargamente. “Isso poderia lhe comprar um tarn,” ela disse.
Eu poderia dizer que ela não estava levando a sério o que eu estava falando, que
ela não acreditava realmente que eu faria o que eu disse. Era importante para meus planos
convencê-la de que estava em perigo, que eu ousaria coloca-la em um camisk e um colar.
Ela riu, me testando, segurando a esfarrapada borda de seu robe na minha direção. “Você
vê,” ela disse, em dissimulado desespero, “eu não vou valer muito nestas pobres vestes.”
Ela gargalhou.
Ela pareceu se abalar por esta resposta tão prática. Eu poderia dizer que ela não
mais estava confidente de sua posição. Ela decidiu jogar sua carta trunfo então. Ela
assumiu uma postura desafiante contra mim, régia, altiva, insolente. Sua voz foi fria, cada
palavra como um cristal de gelo. “Você não ousaria,” ela disse, “me vender.”
115
Foragidos de Gor
“Por que,” disse ela, se elevando sobre si mesma, aprumando seus esfarrapados
robes sobre ela, “Eu sou a Tatrix de Tharna.”
“Você realmente,” ela perguntou, sua voz vacilante, “me colocaria à venda?”
Ela embranqueceu.
“Você será simplesmente uma escrava entre outras escravas,” eu disse, “nem mais
nem menos.”
“É claro,” eu disse.
“- sem roupa?”
Ela andou para trás, se afastando de mim, e agora ela tocava o obdurado granito
da parede do penhasco. Ela sacudia sua cabeça. Embora aquela plácida máscara não
mostrasse emoção alguma, eu pude ler o desespero no corpo da Tatrix.
“Você faria isso comigo?” ela perguntou, sua voz estremecida em um sussurro.
116
Foragidos de Gor
“Não, não, não,” ela choramingou, e seu corpo torturado se recusou a sustenta-la.
Ela se derreteu lamentavelmente contra o muro, chorando.
“Guerreiro,” ela disse, sua cabeça se levantando lastimosa, “você precisa reclamar
uma vingança tão terrível sobre mim?”
“Eu irei pagar mil vezes mais o meu valor nos blocos de Ar,” ela declarou.
“Mil vezes mais o seu valor em um bloco de Ar,” eu disse severamente, “não
satisfaria minha vingança – apenas você no bloco de Ar o faria.”
Ela gemeu.
Agora, eu pensei, era a hora. “E,” eu disse, “você não prejudicou apenas a mim,
mas também escravizou meus amigos.”
“Ai de mim,” ela gritou, “posso fazer mais do que isso, eu posso libertar os seus
amigos! Eu irei libertá-los! Minha liberdade pela deles!”
Ela pulou de pé. “Pense, Guerreiro,” ela gritou, “em sua honra.” Sua voz estava
triunfante. “Você satisfaria sua vingança pelo preço da escravidão de seus amigos?”
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Foragidos de Gor
“Não,” eu gritei nervoso, mas na verdade me deleitando, “pois eu sou um
guerreiro!”
A voz dela estava exultante. “Então, Guerreiro, você deve barganhar comigo!”
Sua cabeça se abaixou. “Muito bem, Guerreiro,” ela disse. “Eu libertarei a todos.”
“Sim,” ela disse, sem me olhar diretamente, “você tem a palavra da Tatrix de
Tharna.”
A Tatrix olhou para mim. “Mas,” ela disse, incrédula, “eles se apaixonaram um
pelo outro.”
“Ela é uma Mulher Rebaixada,” disse a Tatrix, “e ele membro de uma casta banida
em Tharna.”
“Liberte-os,” eu disse.
118
Foragidos de Gor
crua e sangrando, que tinha sido retirada de alguma presa, talvez um bosk a mais de
vinte pasangs de distância. Ele soltou o grande pedaço de carne na minha frente.
Eu não me movi.
Eu não tinha intenção de contestar o prêmio do grande pássaro. Mas o tarn não
atacou a carne. Eu imaginei que ele já devia ter se alimentado em algum lugar nas
planícies abaixo. Ao examinar seu bico eu confirmei meu palpite. E não tinha nenhum
ninho na saliência, nenhum tarn fêmea, nenhum filhote guinchando. O grande bico
cutucou a carne contra minha perna.
Eu estava agachado ao lado da carne, minha boca mastigava, cheia de carne crua.
“O que uma mulher de Tharna sabe sobre Talêndulas?” eu a provoquei.
Quando acabei de comer, ela disse, “Leve-me agora para o Pilar de Trocas.”
“Um pilar nas bordas de Tharna,” ela disse, “onde Tharna e seus inimigos efetuam
as trocas de prisioneiros. Eu irei guiar você.” Ela adicionou, “você será recebido lá pelos
homens de Tharna, que estão à sua espera.”
“É claro,” ela disse, “você não se perguntou por que não te perseguiram?” ela
gargalhou pesarosamente. “Quem seria tolo o suficiente para ir embora com a Tatrix de
Tharna quando ela poderia ser resgatada pelo valor em ouro de uma dúzia de Ubars?”
119
Foragidos de Gor
Eu olhei para ela.
“Eu temia,” ela disse, seus olhos baixos, “que você fosse tal tolo.” Agora pareceu
ter uma emoção na sua voz que eu não pude entender.
“Vire-se,” eu disse para a Tatrix, “e coloque suas mãos pra trás, em suas costas.”
Com a cabeça empinada, a Tatrix fez como lhe foi dito. Eu tirei as luvas de ouro
de suas mãos e as guardei em meu cinto. Então, com a echarpe, usando simples nós de
captura de Gor, eu amarrei seus pulsos juntos.
Eu joguei a Tatrix levemente nas costas do tarn e pulei ao lado dela. Então,
segurando ela com um braço, e fixando uma mão fundo nas penas do pescoço do tarn,
eu chamei “Primeira-Rédea!” e a besta saltou da saliência e começou a subir.
120
Foragidos de Gor
XVI
O Pilar de Trocas
Guiado pela Tatrix, em talvez não mais de trinta minutos, nós avistamos,
brilhando ao longe, o Pilar de Trocas. Se localizava a cerca de cem pasangs a noroeste da
cidade, e era uma coluna solitária de mármore sólido, talvez com quatrocentos pés de
altura e cem pés em diâmetro. Era acessível somente através de um tarn.
Não era um lugar ruim para a troca de prisioneiros, e oferecia uma situação quase
que ideal no intuito de evitar uma emboscada. O sólido pilar não permitiria a entrada de
homens que estivessem no chão, e tarns que se aproximassem seriam facilmente
avistados à milhas antes que chegassem perto.
Eu examinei a zona rural cuidadosamente. Parecia vazia. No pilar tinha três tarns,
e seus respectivos guerreiros também, e uma mulher, que vestia a máscara de prata de
Tharna. Quando passei sobre o pilar, um guerreiro removeu seu elmo, e sinalizou para
mim para que trouxesse meu tarn para baixo. Eu vi que era Thorn, Capitão de Tharna.
Notei que ele e seus companheiros estavam armados.
“Esse é o costume,” eu disse para a Tatrix, “de guerreiros levarem armas para o
Pilar de Trocas?”
“Quarta-rédea!” eu gritei para o pássaro, para o fazer descer até o pilar. O pássaro
pareceu não entender. “Quarta-rédea!” eu repeti, mais severamente. Por alguma razão o
121
Foragidos de Gor
pássaro parecia se negar a pousar. “Quarta-rédea!” gritei, comandando o pássaro
severamente para que me obedecesse.
O grande gigante pousou no pilar de mármore, suas garras calçadas com aço
rangendo na pedra.
O Tarn parecia nervoso. Tentei acalmar o pássaro. Falei com ele em tom baixo,
batendo bruscamente em seu pescoço.
Dorna parou, cerca de cinco jardas à frente de Thorn e dos dois guerreiros, que
não tinham ainda se movido.
“Tharna é toda sua, Guerreiro,” gritou Dorna a Altiva, “se você libertar a nobre
Tatrix! A cidade chora pelo seu retorno! Eu temo que não haverá mais alegria em Tharna
até que ela sente novamente em seu trono dourado!”
Eu gargalhei.
Dorna a Altiva endureceu. “Quais são os seus termos, Guerreiro?” ela demandou.
Fez-se silêncio.
“Sim,” eu disse.
Dorna lançou um olhar para a Tatrix. “Eu devo acrescentar,” ela disse, “o peso de
cinco tarns em ouro, uma sala de prata, elmos recheados com joias!”
“Menos que isso,” disse Dorna a Altiva, “seria um insulto à nossa Amada Tatrix.”
Eu estava satisfeito, pois embora eu tivesse pouco uso para tais riquezas nas
Montanhas de Sardar, Linna e Andreas, e os pobres coitados da arena, poderiam se
aproveitar disso.
Lara, a Tatrix, se endireitou em meus braços. “Eu não acho esses termos
satisfatórios,” ela disse. “Dê a ele o que ele pede e mais, o peso de dez tarns em ouro,
duas salas de pratas e cem elmos recheados com joias.”
Dorna a Altiva se curvou em graciosa aquiescência. “De fato, Guerreiro,” disse ela,
“por nossa Tatrix nós daríamos até mesmo as pedras de nossas muralhas.”
“Sim,” eu disse, sentindo a afronta que tinha sido oferecida à Dorna a Altiva.
“Liberte-me,” eu disse.
Tão cedo seus pulsos foram soltos e ela se tornou novamente, em cada parte de si,
a majestosa Tatrix de Tharna.
Eu me perguntava se ela poderia ser aquela garota que tinha passado por tal
aventura angustiante, cujas vestes foram despedaçadas, cujo corpo ainda deveria sentir
a miserável dor de ter permanecido nas garras do meu tarn.
Imperiosamente, como se eu não fosse digno de falar com ela, ela gesticulou
apontando para suas luvas de ouro que estavam agora em meu cinto. Eu as devolvi para
ela. Ela as vestiu, lentamente deliberadamente, me encarando enquanto o fazia.
Quando ela estava ao lado deles, ela se virou e com um repentino girar daqueles
robes dourados ela apontou um dedo imperial para mim. “Prendam-no,” ela disse.
123
Foragidos de Gor
“Traidora!” eu gritei.
A voz da Tatrix agora estava alegre. “Tolo!” ela gargalhou, “você ainda não
aprendeu que ninguém faz pactos com um animal, que ninguém barganha com uma
besta?”
Atrás de mim o tarn subitamente gritou em fúria e suas assas bateram no ar.
O outro guerreiro tentou me trespassar com sua espada mas eu dei um passo para
o lado fugindo de seu golpe e agarrei seu braço da espada. Eu torci seu braço e empurrei
para cima, sobre meu braço esquerdo, e então puxei para baixo fazendo uma chave de
braço, seu cotovelo subitamente estalou. Ele caiu ao chão choramingando.
Thorn tinha se levantado e investiu sobre mim, pelas minhas costas, e o outro
guerreiro também, pouco depois dele. Eu parti para o ataque corpo a corpo, agarrando
eles, ferozmente. Então, lentamente, enquanto eles me amaldiçoavam, impotentes, eu os
levantei, polegada por polegada sobre meus ombros, e os joguei de repente sobre o
mármore aos meus pés. Naquele momento, ambas, a Tatrix e Dorna a Altiva fincaram
instrumentos pontiagudos, grampos de algum tipo, nas minhas costas e em meu braço.
Eu ri de quão absurdo era aquilo que elas tentaram fazer, mas então, com minha
visão a escurecer, o pilar a girar, eu caí a seus pés. Meus músculos não mais obedeciam à
minha vontade.
124
Foragidos de Gor
A gargalhada alegre da Tatrix ecoava em meus ouvidos.
Lentamente, ainda que a força não tenha retornado ao meu corpo, minha visão
começou a clarear, primeiro na parte central, e então gradualmente nas bordas, até que
eu pude ver novamente o pilar, o céu ao redor e meus inimigos.
Ao longe eu vi um minúsculo ponto voando, que deveria ser o tarn. Quando ele
me viu cair ele aparentemente levantou voo. Agora, eu pensei, ele estaria livre, escapando
finalmente para algum rude habitat onde ele poderia, sem selas e arreios, sem a trela de
prata, reinar como o Ubar dos Céus que ele era. Sua partida me entristeceu, mas eu estava
contente que ele tinha conseguido escapar. Melhor que morrer sob a lança de um dos
guerreiros.
A Tatrix tinha aparentemente perdido o interesse em mim, pois ela se virou para
Dorna a Altiva e Thorn, Capitão de Tharna.
A Tatrix olhou para as planícies, na direção da cidade. “Neste momento,” ela disse,
“filas de cidadãos cheios de alegria devem estar comemorando na cidade.”
A Tatrix andou através do pilar, régia em seus robes esfarrapados, e parou perto
de mim. Ela apontou para as planícies, na direção de Tharna. “Guerreiro,” ela disse, “se
você permanecer tempo suficiente neste pilar você irá ver procissões vindo para me dar
as boas-vindas em meu retorno a Tharna.”
125
Foragidos de Gor
A voz de Dorna a Altiva ecoou sobre o pilar. “Eu acho que não, Amada Tatrix,”
ela disse.
“Porque,” disse Dorna a Altiva, e eu pude predizer que por trás daquela máscara
de prata, ela sorria, “você não voltará para Tharna.”
O guerreiro machucado agora tinha subido na sela do tarn, o que vestia o anel no
tornozelo, onde eu estava acorrentado impotente. Ele puxou a primeira-rédea e o monstro
alçou voo. Dolorosamente eu fui puxado pra dentro do ar e, cruelmente pendurado pelas
algemas em meus pulsos, eu vi a coluna branca se afastando abaixo de mim, assim como
as figuras sobre ela, dois guerreiros, uma mulher em uma máscara prateada, e a dourada
Tatrix de Tharna.
126
Foragidos de Gor
XVII
As Minas de Tharna
A sala era longa, baixa, estreita, quatro pés de altura por quatro pés de largura, e
cem pés de comprimento. Pequenas e sujas lamparinas tharlarion queimavam em cada
lado. Quantas salas como essa haviam debaixo do solo de Tharna, em todas as suas minas,
eu não sabia. A longa fila de escravos, acorrentados juntos, parados e agachados, ia até o
fim da sala. Quando a fila ficou cheia com seus amaldiçoados ocupantes, uma porta de
ferro, com um painel deslizante de ferro, se fechou. Pude ouvir quatro linguetas sendo
empurradas trancando a porta.
Era um lugar frio e úmido. Tinha poças de água aqui e ali, sobre o chão; as paredes
eram úmidas também; em certos locais água escorria do teto. Era inadequadamente
ventilada por um conjunto de pequenas aberturas circulares, com cerca de uma polegada
de diâmetro, abertas na sala a cada vinte pés. Uma abertura larga, um buraco circular
com dois pés de diâmetro, era visível no centro da longa sala.
Andreas de Tor, que estava algemado ao meu lado, apontou. “Aquele buraco,” ele
disse, “inunda a sala.”
Concordei com a cabeça e me recostei contra a úmida e sólida pedra que formava
as laterais da câmara. Eu me perguntava quantas vezes, sob o solo de Tharna, tal câmara
tinha sido inundada, quantos coitados acorrentados tinham se afogado em tais
armadilhas, que se assemelhavam à uma rede de esgoto. Eu tinha ouvido que apenas a
um mês atrás, em uma mina a não mais de quinhentas jardas desta aqui, houve um
problema gerado por um único prisioneiro. “Afoguem todos eles,” tinha sido a decisão
do Administrador das Minas. Eu não me surpreendia então que os prisioneiros tinham
horror só de pensar em qualquer tipo de resistência. Eles preferiam estrangular um de
seus companheiros que pensasse em se rebelar, do que arriscar ter a câmara alagada. De
fato, a mina por inteiro, em caso de emergência, poderia ser inundada. Uma vez, como
disseram, fizeram isso, para conter uma rebelião. Só para drenar a água para fora e limpar
os túneis cheios de corpos levou semanas.
127
Foragidos de Gor
Andreas disse para mim, “Para aqueles que não se afeiçoam a vida, este lugar tem
muitas conveniências.”
Ele pôs uma cebola e um pedaço de pão em minhas mãos. “Fique com isso,” ele
disse.
Antes de sermos levados para a cela, do lado de fora, em uma ampla e retangular
câmara, dois dos atendentes das minas tinham virado um tonel com pães e vegetais
dentro da manjedoura fixada na parede, e os escravos correram na direção dela, como
animais, gritando, xingando, empurrando, acotovelando, tentando pôr a mão no cocho
antes que a comida tivesse se acabado. Revoltado, eu não me juntei à eles em sua disputa
miserável, embora tivesse sido arrastado até a borda da calha devido às correntes que
vestia. E eu sabia, como Andreas tinha dito, que eu aprenderia como chegar até o cocho,
pois eu não queria morrer, e eu não podia continuar a viver da caridade dele.
“Quieto, seu tolo!” sibilou uma baixa e aterrorizada voz, talvez a uns doze pés de
distância.
Era Ost de Tharna, aquele que, assim como Andreas e eu, tinha sido também
condenado às minas.
Ele me odiava, me culpava de alguma forma pelo fato de ele se encontrar nesta
terrível situação. Hoje, mais de uma vez, foi ele quem surrupiou o minério no qual eu,
com mãos e joelhos ao chão, tinha coletado nos estreitos túneis da mina. E duas vezes
mais ele roubou a pilha de minério que eu tinha empilhado, empurrando para dentro do
saco de tecido que nós escravos carregávamos pendurado em nosso pescoço, nas minas.
Eu fui açoitado pelo Escravo do Chicote por não ter contribuído com minha parte na
quota do dia de minério, que era requerida dos escravos que estavam na mesma corrente
que eu.
Se a cota não fosse alcançada, os escravos não teriam comida por aquela noite. Se
a cota não fosse alcançada em três dias seguidos, os escravos seriam chicoteados dentro
daquela cela longa, a porta seria trancada, e a cela inundada. Muitos dos escravos me
128
Foragidos de Gor
olhavam com desaprovação. Talvez pelo fato da cota ter sido aumentada no dia em que
fui adicionado à corrente deles. Eu, por mim mesmo, achava que aquilo era mais do que
uma coincidência.
Sob a meia luz das pequenas lamparinas tharlarion colocadas em cada canto da
sala, eu vi a pesada figura agachada ao lado de Ost enrolar a corrente de seu pulso
silenciosamente em volta da garganta daquela criatura. O círculo de corrente apertou, e
Ost arranhava tentando agarrar a corrente, impotente, seus olhos esbugalhados. “Você
não irá denunciar ninguém,” disse a voz, que agora eu reconhecia como a voz daquele
homem que mais parecia um touro, Kron de Tharna, da Casta dos Ferreiros, ele quem eu
tinha poupado a vida na arena, durante a Batalha dos Bois. A corrente apertou mais
ainda, Ost tremia como um macaco em convulsão.
Pela primeira vez sua voz ficou triste. “Nas Grandes Fazendas,” ele disse. “Eu
falhei com ela.”
“Todos nós falhamos,” eu disse.
Não havia muita conversa na cela, pois os homens talvez tivessem pouco a dizer,
e seus corpos estavam cansados do cruel trabalho daquele dia. Eu sentava com minhas
costas recostadas na parede úmida, ouvindo os sons que emitiam enquanto dormiam.
Tharna tinha cerca de cem ou mais minas, cada uma mantida por seus próprios
escravos em correntes. Estas minas eram redes de túneis tortuosos que se ramificam,
129
Foragidos de Gor
polegada por polegada, irregularmente através dos ricos minérios que eram a base da
riqueza da cidade. A maior parte destes veios de túneis não permitem que um homem
fique de pé dentro deles. Muitos são inadequadamente apoiados. Quando o escravo
trabalha dentro do túnel ele deve rastejar com suas mãos e joelhos, que sangram no início,
mas gradualmente desenvolve-se calos de tecido grosso e escabroso. Em volta de seu
pescoço o escravo pendura um saco de tecido, dentro do qual os pedaços de minério são
levados para as balanças. O minério em si é arrancado das paredes das minas por uma
pequena picareta. A luz é suprida por pequenas lâmpadas, nada mais que pequeninas
tigelas com óleo de tharlarion e pavios de cordas.
O dia de trabalho tem quinze horas Goreanas (Ahns), o qual, dada a leve diferença
no período de rotação do planeta, seria aproximadamente dezoito horas da Terra. Os
escravos nunca são levados à superfície, e uma vez jogados dentro da escuridão das
minas, nunca mais verão o sol novamente. O único consolo em sua existência vem uma
vez ao ano, com o aniversário da Tatrix, onde podem desfrutar de um pequeno bolo, feito
com mel e sementes de gergelim, e uma pequena tigela da pobre Kal-da. Um indivíduo
da minha corrente, nada mais que um esqueleto desdentado, ostentou que já tinha bebido
Kal-da três vezes nas minas. A maioria não tem tanta sorte. A expectativa de vida de um
escravo nas minas, dado o trabalho e a comida, se ele não morrer antes pelo chicote dos
feitores, é geralmente de seis meses a um ano.
****
Pela manhã, embora eu soubesse que tinha amanhecido somente pelo praguejar
dos Escravos do Chicote, o estalido de suas chibatas, os gritos dos escravos e o chacoalhar
das correntes, eu e meus companheiros prisioneiros nos arrastávamos para fora de nossa
cela, emergindo novamente na ampla sala retangular que dava diretamente para nossa
cela.
Os escravos estavam tensos, seus olhos fixos na calha. O chicote foi levantado.
Quando ele caísse, seria o sinal de que eles deveriam correr para a calha.
130
Foragidos de Gor
Havia prazer nos olhos do Escravo do Chicote como se ele gostasse do angustiante
momento de suspense que seu chicote levantado infligia nos pobres escravos
esfomeados.
Os escravos avançaram.
“Não,” eu disse.
Ost tentou puxa-los na direção da calha, mas ele estava acorrentado a Kron, que
recusava a se mover. Era como se Ost estivesse acorrentado a uma árvore.
Ele se afastou, o braço do chicote abaixou. Ele tinha me entendido, ele sabia que
sua vida estava em perigo. Que consolação ele teria se antes da mina ser completamente
inundada ele tivesse perecido pela minha corrente em volta de seu pescoço?
Eu virei para os homens. “Vocês não são animais,” eu disse. “Vocês são homens.”
Ost meteu as mãos dentro do cocho, e abarrotou sua boca com um punhado de
pão.
A corrente no pulso de Kron acertou ele entre a bochecha e orelha, e o pão foi
lançado para fora de sua boca.
“Nós escolhemos você,” disse Andreas de Tor, “porque você é conhecido por sua
honestidade.”
131
Foragidos de Gor
E é incrível dizer, que aqueles miseráveis acorrentados caíram na gargalhada.
Em fúria, seus olhos correndo de um lado para o outro, como os de um urt, ele
mordeu o pão e engoliu. “A câmara vai ser inundada por isso,” ele disse.
Andreas de Tor disse, “Eu sou um, que ficaria honrado em morrer na companhia
de Ost.”
132
Foragidos de Gor
XVIII
É através da via central que as minas de Tharna são abastecidas. Por tal via não
desce apenas comida, mas também quando necessário, lona, ferramentas e correntes.
Água potável, é claro, era suprida por poços naturais em cada mina. Eu mesmo, e meus
companheiros escravos, descemos pela via central. Apenas escravos mortos sobem por
ela.
133
Foragidos de Gor
“Ela foi levada embora,” ele disse.
“O que?” eu gritei.
Eu estava estupefato.
“Tinha um tarn, que vestia uma coxeadura de prata, que teria de matá-lo, mas ele
libertou o tarn, pulou nas costas dele e caiu fora.” O escravo colocou no chão o tonel de
vegetais e pães. Seus olhos ficaram úmidos de alegria e ele deu um tapa na própria coxa.
“Ele voltou em tempo suficiente para atacar a própria Tatrix com seu tarn,” ele disse. “O
tarn a carregou como se fosse um tabuk!” Sua gargalhada, que logo se espalhou para os
outros escravos na sala, aqueles que estavam acorrentados a mim, foi estrondosa, e eu
entendi melhor do que tinha entendido antes, a afeição que tinham pela Tatrix de Tharna
lá naquelas minas.
“E o Pilar das Trocas?” eu perguntei. “A Tatrix não foi trazida até o Pillar, e
libertada?”
“Todos pensaram que ela seria sim,” disse o escravo, “mas o tarnsman
aparentemente preferiu ela que as riquezas de Tharna.”
“Não,” ele disse. “Dois dos mais altos em Tharna, Dorna a Altiva, e Thorn, um
Capitão, foram para o Pilar das Trocas, mas a Tatrix nunca foi devolvida. Iniciaram uma
busca, os penhascos e campos foram vasculhados sem sucesso. Apenas seus robes
esfarrapados e a máscara dourada foram encontrados, por Dorna a Altiva e Thorn,
Capitão de Tharna.” O escravo sentou sobre o tonel. “Agora,” disse ele, “Dorna veste a
máscara.”
“Qual,” eu perguntei, “você acha que foi o destino de Lara, que era a Tatrix?”
134
Foragidos de Gor
O escravo riu alto, e assim, também, riram os outros.
“Bem,” disse ele, “nós sabemos que ela não mais vestia seus robes dourados.”
“Sem dúvida,” disse um dos escravos, “algum traje mais adequado os substituiu.”
O escravo gargalhou. “Sim,” ele berrou, batendo em sua coxa. “Sedas do Prazer!”
Ele se remexia sobre o tonel. “Você pode imaginar?” ele gargalhava, “Lara, a Tatrix de
Tharna, em uma seda do prazer?!”
****
Os homens de minha corrente trabalhavam bem, e a quota era atingida dia após
dia, e quando era aumentada, nós a alcançávamos novamente. Às vezes os homens, até
mesmo cantarolavam enquanto trabalhavam, o som alto ressoava nos túneis da mina. Os
Escravos do Chicote ficaram indecisos, e começaram a nos temer.
Esta noite, depois que eles nos tocaram para dentro das longas celas, e os ferrolhos
se fecharam sobre as portas, eu falei para os homens.
“Eu tenho um plano,” eu disse, “mas irá requerer grande coragem, e todos
podemos morrer.”
Ost guinchou em terror, e o grande punho de Kron se fechou sobre sua traqueia,
o silenciando. Ost se debateu, lutando na escuridão, impotente. “Quieto, Serpente,” disse
Kron, o homem que parecia um touro. Ele soltou Ost, e o conspirador se arrastou até onde
sua corrente permitiu e se comprimiu contra a parede, tremendo de medo.
O grito agudo de Ost me disse o que eu procurava saber. Eu agora sabia como
poderíamos fazer para a câmara ser inundada.
****
“Não,” eu disse.
Naquela noite Ost não voltou para sua corrente. “Seu pé precisa de cuidados,”
disse o Escravo do Chicote, apontando na direção da longa cela.
“Esta noite,” disse Andreas de Tor, “você sabe que a câmara será inundada.”
Eu praguejei.
Então pareceu que Andreas e o escravo cresceram abaixo de meus pés. Outros
escravos se ajoelharam abaixo deles, dando suas costas para que eles subissem em cima
e se elevassem. De pé, lado a lado eles me levantaram mais alto dentro do veio.
Então Andreas e o escravo pularam para fora do buraco e eu senti as correntes que
prendiam meus pulsos e tornozelos aos deles rasgando meus membros. “Puxem!” eu
137
Foragidos de Gor
gritei, e os cem escravos na longa sala começaram a puxar as correntes. Minhas mãos
sangravam na grade, o sangue respingava na minha face virada para cima, mas eu não
soltaria as barras. “Puxem!” eu gritava.
“Pressione seus pés contra as paredes do buraco,” eu disse. “Use seus pés!”
Nós ouvíamos ele dentro do veio, grunhindo, arfando, os sons de suas correntes
contra as pedras enquanto ele começava a tortuosa escalada, polegada por polegada.
“Estou escorregando!” ele gritou, e deslizou pelo buraco caindo no chão da cela
choramingando.
Uma hora o segundo homem escorregou, arrastando o primeiro para baixo com
ele, e fazendo com que o terceiro perdesse a firmeza, mas agora tinha uma sólida corrente
de homens dentro do túnel, e o quarto e quinto homem os seguraram. O primeiro
começou sua escalada tortuosa uma vez mais, seguido pelo segundo e terceiro.
A água estava talvez a dois pés de altura dentro da cela, me empurrando para cima
contra o teto baixo, quando eu segui Andreas para dentro do túnel. Kron foi o quarto
homem, ele estava atrás de mim.
Andreas, Kron e eu estávamos no túnel, mas o que seria dos pobres miseráveis na
corrente atrás de nós?
Olhei para cima no longo buraco, para a fila de escravos a subir, polegada por
polegada.
“Rápido!” eu gritei.
A corrente de água agora parecia nos pressionar para baixo, para impedir nosso
progresso. Era como uma pequena cachoeira.
O primeiro homem na corrente tinha agora escalado o túnel até a origem da água,
um outro túnel. Ouvimos um súbito som alto e veloz de água corrente. Ele gritou em
desespero, “Está vindo, está vindo com tudo!”
Mas minhas últimas palavras foram afogadas em uma catarata de água que se
chocou contra meu corpo como um grande punho, arrancando a respiração de mim. Ela
rugiu buraco abaixo, martelando nos homens. Alguns perderam o equilíbrio e ficaram
pendurados dentro do veio. Era impossível respirar, mover ou ver.
Em talvez mais alguns dois ou três minutos eu alcancei o túnel horizontal que
tinha alimentado o túnel horizontal com a torrente de água. Encontrei aqueles que
estavam à minha frente na corrente. Assim como eu, eles estavam ensopados e tremendo,
mas ainda assim vivos. Agarrei os ombros do primeiro homem.
Finalmente cada homem de cada corrente estava dentro do túnel horizontal, ainda
que os quatro últimos homens tiveram de ser arrastados para cima, pois seus corpos
moles estavam pendurados pelas correntes. Quanto tempo eles ficaram debaixo d’água
era difícil dizer.
Nós nos focamos neles, debruçando sobre eles na escuridão, eu e três homens de
Port Kar, que sabiam o que deveria ser feito. Os outros dois escravos nas correntes
esperaram pacientemente, ninguém reclamou, ninguém insistiu para que nos
apressássemos. Finalmente, um por um, os inertes corpos se mexeram, seus pulmões
abrindo para puxar o úmido e frio ar da mina.
Conduzindo eles em duas filas, algemados atrás de mim, nós nos esgueiramos
através do túnel horizontal.
140
Foragidos de Gor
XIX
“Esse é um problema para os homens de Tharna,” disse ele. Aqueles olhos azuis
como metal olharam em volta para as faces obstinadas dos escravos acorrentados.
“Sim,” gritou Ost. “Eu sou da corrente.” Ele olhava como um roedor para dentro
das faces de seus captores. “Levem-me com vocês. Libertem-me!”
Ost tremeu.
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Foragidos de Gor
“Sim,” implorou Ost histericamente, rastejante aos pés de Kron. “Façam isso,
Mestres!”
Andreas de Tor falou. “Façam como Tarl de Ko-ro-ba pede,” ele disse. “Não
manchem suas correntes com o sangue dessa serpente.”
“Obrigado, Mestres,” disse Ost, bufando aliviado, sua face uma vez mais
retomando aquele semblante frio, aquele olhar esperto que eu conhecia tão bem.
“Você terá uma chance melhor do que a chance que você nos deu,” disse o homem
touro de Tharna.
Ele tentou rastejar na minha direção, suas mãos estendidas. Eu estiquei minhas
mãos, mas Kron tinha agarrado ele e o puxado de volta.
O pequeno conspirador foi jogado de escravo a escravo por toda a extensão das
correntes até que o último homem o arremessou, de cabeça para baixo, gritando por
misericórdia, dentro do estreito canal escuro que nós tínhamos escalado. Ouvimos seu
corpo se chocando contra as laterais uma dúzia de vezes, e seus gritos estridentes a se
distanciar foram somente silenciados pelo distante som de um corpo se chocando contra
a água longe abaixo de nós.
****
Aquela era uma noite como nenhuma outra nas minas de Tharna.
142
Foragidos de Gor
Em pouco tempo encontramos os martelos que arrancariam nossas correntes de
nós e, um por um, formamos uma fila atrás da grande bigorna onde Kron de Tharna, da
Casta dos Ferreiros, com golpes de perito, arrancava as correntes de nossos pulsos e
tornozelos.
“Para o Veio Central!” eu gritei, segurando uma espada que tinha retirado de um
guarda, agora acorrentado nos veios lá atrás.
Um escravo que carregava toneis de comida para os coxos abaixo ficou realmente
satisfeito de nos guiar lá dentro.
A entrada que dava para nossa mina no veio central deveria estar talvez a mil pés
abaixo da superfície. Nós podíamos ver as grandes correntes penduradas no veio,
delineadas pela luz das pequenas lamparinas nas entradas das outras minas acima de
nós, e, bem lá no alto do veio, podia-se ver o branco reflexo da luz do luar. Os homens se
amontoavam sobre o piso do veio, que ficava apenas a um pé acima da entrada de nossa
mina, pois a nossa era a mina mais baixa de todas.
O homem que tinha se gabado de ter bebido Kal-da três vezes nas minas de Tharna
chorou quando olhou para cima e vislumbrou uma das três luas de Gor.
Enviei vários homens para escalar até o topo das correntes, lá em cima.
“Vocês têm de proteger as correntes,” eu disse. “Elas não devem ser retiradas de
lá.”
Para meu orgulho nenhum dos homens sugeriu que o seguíssemos, nenhum
implorou para fugirmos antes que dessem o alarme geral.
Quão terríveis aqueles momentos devem ter sido para os guardas e Escravos do
Chicote, que de repente viram, a desacorrentada e avassaladora avalanche de ira e
vingança que se chocou contra eles! Dados e cartas, tabuleiros de jogos e cálices com
bebida se esparramaram pelo chão da câmara dos guardas quando Escravos do Chicote
e guardas tiveram em suas gargantas as lâminas dos desesperados e condenados homens,
agora entorpecidos pelo gosto da liberdade e determinados a libertar seus companheiros.
143
Foragidos de Gor
Cela após cela foi esvaziada pelos seus miseráveis ocupantes acorrentados,
somente para serem reabastecidas com guardas e Escravos do Chicote acorrentados,
homens que sabiam que o menor sinal de resistência traria somente uma rápida e
sangrenta morte.
Mina após mina foi libertada, e quando cada mina era libertada, seus escravos,
renunciando a sua própria segurança, vertiam para as minas de cima para libertar seus
companheiros. Isso foi feito como se tivesse sido planejado, mas eu sabia que era apenas
uma ação espontânea dos homens que tinham agora aprendido a respeitarem a si
mesmos, os homens das minas de Tharna.
Eu fui o último dos escravos a deixar as minas. Escalei uma das grandes correntes
do enorme guindaste que ficava sobre o veio e me encontrei entre centenas de homens
animados, suas correntes removidas, suas mãos ostentando armas mesmo que fossem
apenas um pedaço de pedra afiada ou um par de algemas. As formas torcidas e escuras,
muitos deles curvados e desgastados pelo trabalho, me saudaram à luz das três
apressadas luas de Gor. Eles gritaram meu nome e da minha cidade, sem medo. Fiquei
de pé na borda do grande buraco e senti o vento frio da noite sobre mim.
Eu estava satisfeito.
E estava orgulhoso.
Pude ver a grande válvula que eu sabia que era usada para alagar as minas de
Tharna, e percebi que ela estava fechada.
Eu me perguntava se eles podiam entender que tal ação não era digna de um
homem livre, e que os homens que aqui lutavam – que fizeram sua conquista nesta fria
noite, que tinham lutado como larls na escuridão lá em baixo, que abriram mão da
própria segurança para ajudar a libertar seus companheiros - eram tais homens.
Fez-se silêncio.
“Homens de Tharna,” eu gritei, “e das Cidades de Gor, vocês estão livres!”
144
Foragidos de Gor
Houve um grande clamor de alegria.
“As notícias de nosso feito agora devem estar chegando no Palácio da Tatrix,” eu
gritei.
“Que ela trema!” gritou Kron de Tharna com uma voz aterrorizante.
“Pense, Kron de Tharna,” eu gritei, “em breve tarnsmans estarão voando sobre as
muralhas de Tharna e a infantaria virá atrás de nós.”
“Fale, Tarl de Ko-ro-ba,” disse Kron, usando o nome de minha cidade tão
facilmente como se diria o nome de qualquer outra.
“Mas morreremos livres!” gritou Andreas de Tor, e o eco de seu grito veio na
forma de centenas de outras vozes.
“Você está pedindo que nos tornemos guerreiros?” gritou uma voz.
“Sim!” eu gritei, e tais palavras nunca antes tinham sido ditas em Gor. “Nesta
causa,” eu disse, “sendo ou não da Casta dos Camponeses, ou dos Poetas, ou dos
Ferreiros, ou dos Seleiros, vocês devem ser guerreiros!”
“Nós seremos,” disse Kron de Tharna, seus punhos agarrando o grande martelo
que ele tinha usado para quebrar nossas correntes.
“Se este for o desejo dos Reis-Sacerdotes,” eu disse, “vamos realizá-lo.” E então eu
levantei minhas mãos novamente, e de pé em cima do guindaste, sobre a via, sob o vento,
com as luas de Gor acima de mim, eu gritei. “E se este não for o desejo dos Reis-Sacerdotes
– ainda assim, vamos realiza-lo!”
A frase Goreana para dizer adeus saiu silenciosamente de meus lábios. “Desejo-
lhes bem.”
O gigante atarracado da Casta dos Ferreiros estava em pé, plantado no chão. Ele
segurava o grande martelo em seu pulso massivo como se fosse uma lança à frente de seu
corpo. Reparei que seu cabelo curto era agora um cabelo loiro e embaraçado. Vi que
aqueles olhos, normalmente azuis como o aço, pareciam agora mais brandos do que eu
me lembrava deles.
Ele então se virou, abruptamente eu acho, e se moveu rápido para dentro das
sombras.
Ele esfregava aquela juba de cabelo negro como um larl e sorriu por entre os dentes
para mim. “Bem,” ele disse, “eu experimentei as minas de Tharna, e agora acho que devo
experimentar as Grandes Fazendas.”
Eu tinha uma ardente esperança de que ele poderia encontrar aquela ruiva que
vestia o camisk, a gentil Linna de Tharna.
146
Foragidos de Gor
“E para onde você vai?” perguntou Andreas, despreocupadamente.
Nós ficamos um de frente para o outro sob as três luas. Ele parecia triste, foi uma
das poucas vezes que eu o vi assim.
Eu sorri. Andreas sabia tão bem quanto eu que os homens não retornam das
Montanhas de Sardar.
“Não,” eu disse. “Eu acho que você não encontraria muitas canções nas
montanhas.”
Andreas bateu com suas mãos em meus ombros. “Escuta aqui, miolo mole da
Casta dos Guerreiros,” ele disse, “meus amigos são mais importantes para mim do que
minhas canções.”
“Nunca fui tanto quanto o sou agora,” disse Andreas, “pois como minhas canções
poderiam ser mais importantes do que as coisas que elas celebram?”
Fiquei admirado que ele tenha dito isso, pois eu sabia que o jovem Andreas de Tor
daria seu braço ou anos de sua vida para aquilo que poderia ter sido a verdadeira canção,
digna do que ele tivesse visto, ou sentido, ou gostado.
Andreas da Casta dos Poetas ficou atormentado perante mim, com agonia em seus
olhos.
Ele concordou com a cabeça. “Eu desejo-lhe bem,” ele disse, “- Guerreiro.”
Talvez nós dois estivéssemos nos perguntando naquele momento, se seria possível
existir amizade entre membros de castas tão diferentes, mas talvez, nós dois
147
Foragidos de Gor
soubéssemos, embora não tivéssemos comentado nada, que nos corações dos homens,
armas e canções nunca estão muito distantes umas das outras.
Andreas tinha virado para partir, mas hesitou, e se virou para mim uma vez mais.
“Os Reis-Sacerdotes,” ele disse, “estarão esperando por você.”
“É claro,” eu disse.
Andreas levantou seu braço. “Tal,” ele disse, triste. Eu me perguntei por que ele
tinha dito aquilo, pois essa era uma forma de saudação.
Eu acho que talvez ele quisesse me saudar uma vez mais, já que ele acreditava que
jamais voltaria a ter tal oportunidade.
Como Andreas tinha dito, eu estaria sendo esperado. Eu sabia que pouca coisa do
que se passava em Gor não era de algum modo sabido nas Montanhas de Sardar. O poder
e conhecimento dos Reis-Sacerdotes está talvez além da compreensão dos homens
mortais, ou como dito em Gor, dos Homens Abaixo das Montanhas.
É dito que o que nós somos em relação à ameba e ao paramecium então assim
também o são os Reis-Sacerdotes para nós, que os maiores voos líricos de nosso intelecto
são, quando comparados aos pensamentos dos Reis-Sacerdotes, nada mais do que os
tropismos de um organismo unicelular. Pensei em tal organismo, cegamente estendendo
seus pseudópodes para englobar uma partícula de alimento, um organismo complacente
neste mundo – que talvez seja nada mais que uma placa de ágar na mesa de algum ser
superior.
Ainda assim, eu sabia que o poder dos Reis-Sacerdotes – que de acordo com os
rumores consegue controlar até mesmo a gravidade – poderia devastar cidades, dispersar
populações, separar amigos, arrancar amantes dos braços um do outro ou levar à morte
hedionda quem quer que eles escolhessem. Como todos os homens de Gor eu também
sabia que seu poder inspirava terror através do mundo e que não se podia fazer frente a
tal poder.
148
Foragidos de Gor
As palavras daquele homem de Ar, ele que vestia os robes dos Iniciados, ele quem
tinha me trazido a mensagem dos Reis-Sacerdotes na estrada para Ko-ro-ba, naquela
violenta noite meses atrás, aquelas palavras soavam em meus ouvidos, “Atire-se sobre
sua espada, Tarl de Ko-ro-ba!”
E soube então que eu não poderia me jogar sobre minha espada, e que eu não o
faria agora. Eu soube então como sei agora que invés disso eu iria para as Montanhas de
Sardar, que eu entraria lá e procuraria pelos próprios Reis-Sacerdotes.
Eu os encontraria.
Em algum lugar no meio daquelas escarpas glaciais inacessíveis até mesmo para o
tarn selvagem, eles esperavam por mim, essas espécies de deuses deste mundo áspero.
149
Foragidos de Gor
XX
A Barreira Invisível
Em minha mão eu segurava uma espada, que peguei de um guarda nas minas. Ela
era a única arma que eu carregava. Antes de começar a subir as montanhas, me pareceu
sábio conseguir algum equipamento. A maioria dos soldados que lutaram com os
escravos no topo do veio foram mortos ou fugiram. Aqueles que tinham morrido foram
desprovidos de suas roupas e armas, ambas requeridas desesperadamente pelos
malvestidos escravos.
Eu sabia que não tinha muito tempo, pois os vingativos tarnsmans de Tharna em
breve estariam visíveis sob as três luas.
No escritório do Administrador das Minas, ele que tinha uma vez dado o
comando, “Afoguem todos eles,” eu encontrei um corpo despido, desfigurado de tal
forma que quase não dava para reconhecê-lo. No entanto eu o tinha visto apenas uma
vez antes, quando eu tinha sido trazido de volta pelo soldado para seus gentis cuidados.
Era o Administrador das Minas, o próprio. O corpulento e sofrido corpo estava agora
rasgado em centenas de lugares.
Na parede haviam centenas de bainhas vazias. Eu esperava que ele pelo menos
tivesse tido tempo de desembainhar sua lâmina antes dos escravos terem corrido e
pulado sobre ele. Embora fosse fácil para mim odiá-lo, eu não desejava que tivesse
morrido desarmado.
150
Foragidos de Gor
por si só, é claro, foram levadas. Eu decidi que poderia usar uma bainha, e peguei uma
da parede.
Joguei minha arma dentro da bainha vazia, afivelei o cinto da espada e, à maneira
Goreana, o pendurei sobre meu ombro esquerdo.
Deixei a cabana, vasculhando os céus. Não havia tarnsmans ainda à vista. As três
luas estavam fracas agora, como pálidos discos brancos no céu brilhante, e o sol já tinha
se erguido até a metade em seu trono no horizonte.
Tufos de poeira passavam rodopiando, como animais fungando aos pés dos
corpos. A porta de um dos galpões, com a fechadura quebrada, se mexia solta em suas
dobradiças, batendo com o vento.
Eu tinha coletado meu equipamento, mas tinha encontrado apenas uma bainha e
um elmo danificado, e em breve os tarnsmans de Tharna chegariam. Usando a Marcha
de Guerreiro, uma caminhada lenta que pode ser prolongada por horas, eu então saí dos
Complexos das Minas.
Eu mal tinha alcançado o abrigo sob uma fileira de árvores quando vi, em torno
de mil jardas atrás de mim, descendo para o Complexo das Minas, como uma nuvem de
vespas, os tarnsmans de Tharna.
****
Foi nas imediações do Pilar de Trocas, três dias depois, que eu encontrei o tarn. Eu
tinha visto sua sombra e temi que ele tivesse se tornado selvagem, e que estivesse se
preparando para tirar minha vida, mas a grande besta, meu próprio gigante plumado,
que deve ter vasculhado o Pilar de Trocas por semanas, pousou nas planícies a mais de
trinta jardas de mim, sacudindo suas grandes asas, e correu para o meu lado.
151
Foragidos de Gor
Este foi o motivo de eu retornar ao Pilar, na esperança de que talvez o monstro
pudesse ter permanecido na região. Tinha boa caça nas redondezas, e os penhascos onde
eu tinha levado a Tatrix ofereciam abrigo para seu ninho.
Ele não ofereceu resistência, não mostrou raiva, quando eu pulei em suas costas e
gritei, como antes, “Primeira-rédea!” sob tal sinal, com um grito estridente e um salto
poderoso, aquelas gigantescas asas estalaram como chicotes, e escavaram seu caminho
dentro do ar na glória do voo.
Quando passamos sobre o Pilar das Trocas eu me lembrei que o pássaro estava lá
quando eu fui traído por aquela que uma vez foi a Tatrix de Tharna. Eu me perguntava
qual teria sido o destino daquela mulher. Perguntei-me também sobre sua deslealdade,
sobre o estranho ódio que tinha por mim, pois de alguma forma isso não parecia típico
daquela solitária garota na saliência, que tinha ficado em silêncio contemplando os
campos de talêndulas enquanto um guerreiro se empanturrava na presa de seu tarn.
Então, novamente, minha memória escureceu em fúria ao lembrar de seu gesto
imperioso, aquele insolente comando, “Prendam-no!”
Qualquer que fosse seu destino, eu insistia em pensar que foi o que ela realmente
mereceu. Ainda assim eu me peguei tendo esperança de que ela não tivesse sido morta.
Fiquei imaginando que tipo de vingança poderia satisfazer o ódio cultivado a Lara, a
Tatrix, por Dorna a Altiva. Deduzi infelizmente que ela poderia ter lançado Lara em um
poço cheio de osts ou ficado assistindo enquanto ela fervia viva em óleo de tharlarion.
Talvez ela teria sido jogada nua às garras das perigosas plantas sanguessuga de Gor ou
jogada para alimentar os urts gigantes nas masmorras abaixo de seu próprio palácio. Eu
sabia que o ódio dos homens é nada mais que uma febre quando comparado ao ódio das
mulheres, e eu imaginava quanto seria preciso para saciar a sede de vingança de tal
mulher como Dorna a Altiva. O que seria necessário para satisfazê-la?
****
Como seria de se esperar existem expressões relacionadas aos meses dos solstícios,
En’Var-Lar-Torvis e Se’Var-Lar-Torvis, ou novamente na forma literal, O Primeiro
Descanso e O Segundo Descanso do Fogo Central. Estes, contudo, assim como as outras
expressões, geralmente ocorrem na língua apenas como En’Var e Se’Var, ou O Primeiro
Descanso e O Segundo Descanso.
Cronologia, aliás, é o desespero dos estudiosos de Gor, pois cada cidade mantém
seu controle do tempo, em virtude dos Registros de seus próprios Administradores.
Alguém pode pensar que certa estabilidade pode ser conseguida através dos Iniciados
que mantém um calendário para suas festas e observâncias, mas os Iniciados de uma
cidade nem sempre celebram as mesmas festas nos mesmos dias que os de outras cidades.
Caso os Altos Iniciados de Ar tiverem sucesso em estender sua hegemonia sobre os Altos
Iniciados de uma cidade rival, aliás, uma hegemonia que eles alegam já possuir, então
um calendário unificado pode ser introduzido. Porém já que até agora não houve
nenhuma vitória militar de Ar sobre outras cidades, portanto, sem portar espadas, os
Iniciados de cada cidade se consideram supremos dentro de suas próprias muralhas.
Há, no entanto, alguns fatores que tendem a reduzir o desespero em tais situações.
Um deles são as feiras nas Montanhas de Sardar, que ocorrem quatro vezes ao ano e são
numeradas em ordem cronológica. Outro fator, é que as vezes, cidades se dispõem a
adicionar em seus registros, ao lado de suas próprias datas, as datas de Ar, que é a maior
cidade de Gor.
****
Cerca de quatro dias depois que eu recuperei o tarn, nós avistamos ao longe as
Montanhas de Sardar. Se eu tivesse em posse de uma bússola Goreana, seu ponteiro
apontaria invariavelmente para aquelas montanhas, como se indicasse a casa dos Reis-
153
Foragidos de Gor
Sacerdotes. Perante as montanhas, em um panorama de sedas e bandeiras, eu vi os
pavilhões da Feria de En’Kara, ou a Feira do Primeiro Turno.
Girei o tarn no céu, não querendo me aproximar demais, ainda. Olhei sobre as
montanhas que eu agora via pela primeira vez. Um frio que não vinha dos altos ventos
me fustigou nas costas do tarn, se entranhando dentro de meu corpo.
As montanhas diante de mim eram negras, exceto pelos altos picos e passagens,
que eram manchados de branco pela fria neve reluzente. Procurei pelo verde de
vegetação nas encostas mais baixas e não avistei nada. Nas Montanhas de Sardar, nada
cresce.
Eu pensei – uma estranha suspeita que de repente passou pela minha cabeça – e
se as Montanhas de Sardar estivessem atualmente vazias? – se não tivesse nada,
simplesmente nada além de vento e neve naquelas tenebrosas montanhas, e se os
homens, sem saber, veneravam o nada? O que dizer das intermináveis preces dos
Iniciados, dos sacrifícios, das observâncias, dos rituais, dos inúmeros santuários, altares
e templos para os Reis-Sacerdotes? Seria possível que a fumaça dos sacrifícios queimados,
a fragrância dos incensos, os murmúrios dos Iniciados, toda a prostração e bajulação eram
dedicados a nada além do que os vazios cumes de Sardar, à neve, ao frio e ao vento que
uivavam por entre estes penhascos negros?
154
Foragidos de Gor
A ideia de ausência nas Cordilheiras de Sardar foi banida de minha mente, pois
aqui estava uma evidência dos Reis-Sacerdotes!
Aquilo foi quase como se o pássaro tivesse sido agarrado por um punho invisível.
Os olhos do pássaro, talvez pela primeira vez em sua vida, se encheram de terror,
um incompreensível terror cego.
Quando alcançamos uma altitude de talvez cem jardas do chão, o efeito passou,
de forma tão repentina quanto tinha começado. O pássaro reganhou sua força e seus
sentidos, exceto pelo fato de que eu ainda estava agitado, quase que inepto.
De novo, e de novo ele tentou subir e de novo e de novo ele foi forçado a descer.
Eu temia que a corajosa besta pudesse se matar antes de se render para a força
oculta que bloqueava seu caminho.
155
Foragidos de Gor
Eu bati no seu bico com afeição e, apalpando por entre as penas de seu pescoço
com meus dedos, arranquei alguns piolhos, do tamanho de bolas de gude, que
infestavam tarns selvagens. Joguei-os sobre sua língua comprida. Depois de um
momento de impaciência, com suas penas se eriçando em protesto, o tarn sucumbiu
relutantemente à sua modéstia, e os parasitas desapareceram dentro de seu bico curvado
em forma de cimitarra.
O tarn tinha atingido algum tipo de campo, que talvez afetasse o funcionamento
do ouvido interno, resultando na perda do equilíbrio e coordenação. Um dispositivo
similar, eu supunha, pode impedir a entrada de tharlarions, os lagartos equipados com
selas, de Gor, para dentro das montanhas. Contrariado eu tive de admirar os Reis-
Sacerdotes. Eu sabia agora que aquilo era verdade, o que tinham me dito, que aqueles
que entrassem nas montanhas deveriam ir a pé.
Conversei com ele por talvez uma hora, uma coisa tola de se fazer talvez, e então
dei um forte tapa em seu bico e o empurrei para longe de mim. Apontei para os campos,
longe das montanhas. “Tabuk!” eu disse.
“Tabuk!” eu repeti.
Eu acho, embora isso seja absurdo, que a besta sentia que tinha falhado comigo, já
que ele não me levou montanha adentro. Eu acho, também, embora isso seja ainda mais
absurdo, que ele sabia que eu não estaria esperando por ele quando ele voltasse de sua
caçada.
Quando eu disse Ubar dos Céus, o pássaro levantou sua cabeça, mais de uma jarda
acima da minha própria cabeça. Eu o tinha chamado assim quando o reconheci na arena
de Tharna, quando ascendemos ao céu juntos como se fossemos uma única criatura.
156
Foragidos de Gor
A grande ave se afastou de mim, cerca de quinze jardas, e então se virou, para me
olhar de novo.
Ele bateu suas asas e gritou, se lançando contra o vento. Eu fiquei lá assistindo até
que se tornasse um pequeno cisco contra o azul do céu, e assim ele desapareceu à
distância.
157
Foragidos de Gor
XXI
Fora da bainha saltou minha espada e eu cruzei o córrego gelado, fazendo meu
caminho até o bosque de árvores do outro lado.
Então o cheiro de algo sendo cozido em uma fogueira alcançou minhas narinas.
Ouvi os murmúrios de uma calma conversação. Através das árvores eu pude ver as lonas
das tendas, um vagão de tharlarion, os mestres das rédeas removendo os arreios de um
tharlarion abaixado, aquele enorme herbívoro de Gor que se parecia com um lagarto.
Aparentemente, eu podia dizer que ou nenhum deles ouviu os gritos, ou não deram
atenção.
Reduzi meu ritmo para o de uma caminhada e entrei na clareira entre as tendas.
Um ou dois guardas me olharam curiosos. Um deles se levantou e foi checar a mata atrás
de mim, para ver se eu estava sozinho. Olhei ao redor. Era uma cena pacífica, as fogueiras
de cozimento, as tendas abobadadas, os animais sem arreios, uma cena que me lembrou
da caravana de Mintar, da grande Casta dos Mercadores. Mas este era um acampamento
pequeno, não tinha todos aqueles pasangs de vagões que constituíam a comitiva do rico
Mintar.
Percebi que a lona que cobria o vagão de tharlarion, que tinha sido puxada para
cima, era de seda azul e amarela.
158
Foragidos de Gor
“Tal,” eu disse para dois guardas que estavam agachados ao lado de uma
fogueira, jogando Pedras, um jogo de adivinhação no qual uma pessoa tem de adivinhar
se o número de pedras no punho da outra é par ou ímpar.
Era uma loira e seus cabelos dourados caíam longos até abaixo de suas costas. Seus
olhos eram azuis. Ela era de uma beleza estonteante. Tremia como um animal frenético,
suas costas pressionadas contra o tronco fino e branco de uma árvore videira na qual ela
estava acorrentada nua. Suas mãos estavam presas juntas sobre sua cabeça e atrás do
tronco por braceletes de escravas. Seus tornozelos aprisionados de forma semelhante por
uma curta corrente de escravas enrolada na árvore.
Seus olhos se viraram para mim, implorando, pedindo, como se eu pudesse livrá-
la de sua situação, mas quando ela me olhou, aqueles olhos repletos de medo, se possível,
pareceram ainda mais aterrorizados. Ela soltou um grito desesperado. Começou a se
debater incontrolavelmente com sua cabeça caída para frente em desespero.
Tinha um braseiro de ferro perto da árvore, que estava repleto de carvão em brasa.
Eu podia sentir o calor a dez jardas de distância. De dentro do braseiro se projetavam os
cabos de três ferros.
Tinha um homem ao lado dos ferros, despido até a cintura, vestindo grosas luvas
de couro, um dos criados do mercador de escravos. Ele era um homem de cabelos
grisalhos, bem pesado, suado, cego de um olho. Ele me olhou sem muito interesse
também, parecia esperar que os ferros esquentassem.
Quando um indivíduo captura uma garota para seu próprio uso, ele nem sempre
marca ela, embora seja o mais comum a ser feito. Por outro lado, o mercador de escravos
profissional, em uma prática comum a esse tipo de negócio, quase sempre marca seus
bens, e é muito raro que uma garota sem marca suba sobre os blocos.
A marca é para ser diferente do colar, embora ambos sejam uma forma de designar
a escravidão. A primeira função do colar é que ele identifique o mestre e sua cidade. O
colar de uma dada garota pode ser trocado incontáveis vezes, mas a marca continua seja
qual for o status que ela alcance. A marca é normalmente escondida pelo curto traje das
159
Foragidos de Gor
escravas de Gor mas, é claro, quando o camisk é vestido, ela fica claramente visível,
relembrando a garota e os outros de sua situação.
A marca por si só, no caso das garotas, é uma marca muito graciosa, sendo ela a
primeira letra da expressão Goreana para escravo na escrita corrente. Se um homem é
marcado, a mesma inicial é usada, mas é feita com a letra em negrito.
Notando meu interesse pela garota, o homem ao lado dos ferros foi até a garota, e
agarrando ela pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás para que eu pudesse inspecioná-
la. “Ela é uma beleza, não é?” ele disse.
“Não,” eu disse.
O grande e forte homem piscou seu olho cego na minha direção. Sua voz se
abaixou ao tom de um sussurro conspiratório. “Ela não é treinada,” ele disse. “E ela é tão
difícil de lidar quanto uma sleen.”
Eu sorri.
Ele retirou um dos ferros do fogo. Aquilo brilhava com um vermelho feroz.
160
Foragidos de Gor
“Me desculpe, Doce Meretriz,” disse o homem de cabelos grisalhos, sacudindo a
cabeça da garota de forma amigável, “mas nós não queremos que Targo venha aqui com
seu chicote e nos espanque arrancando óleo de tharlarion de nosso couro, não é mesmo?”
Além disso, estes homens não conferiam perigo para a garota. Para eles ela era
apenas outra meretriz em sua corrente, talvez mal treinada e menos dócil que a maioria.
No mais, eles estavam apenas impacientes com ela, e pensavam que ela fazia muito alarde
sobre as coisas. Eles não podiam compreender seus sentimentos, sua humilhação, sua
vergonha, seu terror.
Eu achava que até mesmo as outras garotas, as outras que eram transportadas pela
caravana, deveriam pensar também que ela exagerava demais. Afinal, como pode uma
escrava não esperar pelo ferro? E pelo chicote?
A garota a minha frente, tão indefesa em suas correntes, em breve seria marcada.
Naquela ocasião eu me perguntei por que marcas são tão usadas em escravos
Goreanos. Certamente Goreanos tem à sua disposição meios para indelevelmente, mas
sem dor, marcar o corpo humano. Minha suposição, que foi confirmada em certa parte
pelas especulações do Velho Tarl, quem tinha me ensinado o ofício das armas em Ko-ro-
ba anos atrás, era de que a marca é usada primariamente, de forma curiosa, por causa de
seu renomado efeito psicológico.
De forma mais simples, é suposto que a marca convença a garota de que ela é
realmente possuída; é suposto que a faça sentir como propriedade. Quando o ferro é
puxado de volta e ela sente a dor e a degradação, e sente o odor de sua carne queimada,
é suposto que ela diga para si mesma, entendendo sua completa e terrível implicação, EU
SOU DELE.
Mas afinal, depois de tudo, eu ainda não sei se a marca é usada principalmente
por seu efeito psicológico ou não. Talvez seja um mero dispositivo para que mercadores
tenham meios de rastrear escravos fugitivos, pois isso constituiria um risco caro para seu
comércio. Às vezes eu acho que o ferro é nada mais que um sobrevivente anacrônico de
uma era mais atrasada tecnologicamente.
Uma coisa era certa. A pobre criatura perante mim não desejava o ferro.
O criado do mercador de escravos retirou outro ferro do fogo. Seu único olho
considerava o metal, o avaliando. Estava rubro. O homem pareceu satisfeito.
A garota se encolheu contra a árvore, suas costas contra a branca, áspera casca do
tronco. Seus pulsos e tornozelos forçavam as correntes que os esticavam atrás da árvore.
Sua respiração era espasmódica; ela tremia. Havia terror em seus olhos azuis. Ela
chorava. Um outro som que ela teria proferido foi abafado pela mordaça feita de cabelo.
162
Foragidos de Gor
Pude notar que alguns dos delicados fios de cabelos dourados em sua coxa, devido
à proximidade do ferro, se curvaram e escureceram.
Ela fechou seus olhos e contraiu seu corpo para o repentino, inevitável, lancinante
pico de dor.
De dentro das tendas em forma de cúpula, vestindo um robe rodado de seda azul
e amarela, com uma faixa na cabeça do mesmo material, saiu um homem baixo e gordo,
Targo o Mercador de Escravos, ele que era o mestre desta pequena caravana. Targo vestia
sandálias roxas, com tiras decoradas com pérolas. Seus grossos dedos estavam cobertos
com anéis, que brilhavam quando ele movia suas mãos. Em seu pescoço, como era de
praxe em um negociador, ele vestia um conjunto de moedas amarradas em um fio de
prata. Do lóbulo de cada pequena e redonda orelha pendia um enorme brinco, um
pingente de safira em haste de ouro. Seu corpo tinha sido recentemente banhado em óleo,
e eu deduzi que ele tinha sido banhado naquela tenda a pouco tempo atrás, um prazer
no qual mestres de caravanas apreciam ao final de um dia quente e empoeirado de
viajem. Seu cabelo, longo e preto atrás da faixa de seda amarela e azul, estava penteado
e lustroso. Aquilo me lembrava do pelo arrumado e brilhante de um urt doméstico.
“Bom dia, Mestre,” sorriu Targo, se inclinando tanto quanto sua cintura o
permitia, às pressas, levando em conta o improvável estranho que estava diante dele. Em
seguida ele se virou para o homem que vigiava os ferros. Sua voz agora foi mais dura e
desagradável. “O que está acontecendo aqui?”
O homem grisalho apontou para mim. “Ele não quer que eu marque a garota,” ele
disse.
Targo olhou para mim, sem entender. “Mas por que?” ele perguntou.
Eu me senti um tolo. O que eu poderia dizer para este mercador, este especialista
no tráfico de humanos, este homem de negócios que conhecia bem as antigas tradições e
163
Foragidos de Gor
práticas de seu comércio? Eu poderia dizer que eu não queria que machucassem a garota?
Ele me tomaria por louco. Que outro motivo então eu poderia ter?
“Ah!” disse Targo, e seus pequenos olhos cintilaram. “Isso é diferente.” Então uma
expressão de grande tristeza se formou em sua grande cara redonda. “Mas é uma pena
pois ela é tão cara.”
Obedientemente o homem jogou o ferro de volta dentro do fogo. Ele notou que
minha espada estava na barriga de seu mestre, mas não pareceu nem um pouco
perturbado. “Devo chamar os guardas?” ele perguntou.
Eu guardei a espada.
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Foragidos de Gor
Aos resmungos o homem foi buscar água em um recipiente de couro no estreito
córrego perto do acampamento. Targo e eu nos entreolhávamos até que o homem voltou,
trazendo o recipiente de couro pendurado em seu ombro por sua alça.
Ele virou o recipiente com água gelada, oriunda da neve derretida de Sardar, sobre
a garota acorrentada, que praguejando e tremendo, abriu seus olhos.
“Uma verdadeira beldade,” disse Targo. “E perfeitamente treinada por meses nos
currais de escravos de Ar.”
“Tão gentil quanto uma pomba, tão dócil quanto uma gatinha,” continuou Targo.
A garota fixou seus olhos em Targo. “Seu gordo urt imundo!” ela sussurrou.
“Oh, Mestre,” gritou Targo, rodando seus robes, descrente que eu pudesse ter
proferido tal ideia. “Eu em pessoa paguei cem discos tarns de prata por ela!”
“Eu duvido,” falei para Targo, “que ela valha mais do que cinquenta.”
Targo pareceu atordoado. Ele me olhava agora com um novo respeito. Será que
talvez eu já tenha sido um comerciante? Atualmente, cinquenta discos tarns de prata era
um preço extremamente alto, e indicava que a garota provavelmente fosse de casta alta
assim como extremamente bela. Uma garota ordinária, de casta baixa, graciosa, mas
destreinada, pode, dependendo do mercado, ser vendida por não menos de cinco e não
mais que trinta discos tarns.
165
Foragidos de Gor
“Vou te dar duas das pedras desta bainha, por ela,” eu disse. Na verdade, eu não
tinha ideia do valor das pedras, e não sabia se a oferta era sensata ou não. Aborrecido,
olhando para os anéis de Targo e as safiras penduradas em suas orelhas, eu sabia que ele
estava muito mais apto a julgar seu valor do que eu.
Deduzi que ele não estava blefando, pois como poderia ele saber que eu não tinha
ideia do verdadeiro valor das pedras? Como ele saberia se eu não as tinha comprado e
encaixado elas na bainha por mim mesmo?
“Com certeza,” eu disse, e retirei a bainha de meu cinto, entregando à ele. A espada
eu retive, dando um nó nas tiras que seguravam a bainha e colocando a espada entre elas.
Targo olhava para as pedras, apreciando. “Nada mal,” ele disse, “mas não é o
bastante-”
Pude notar que isso não agradou Targo, pois aparentemente ele desejava livrar
suas correntes da loira. Talvez ela fosse problemática, ou fosse perigoso retê-la por
alguma outra razão.
“Mostre a ele as outras,” disse o homem grisalho. “Essa aí nem mesmo vai dizer
‘Me compre, Mestre’.”
Targo lançou um olhar violento para o homem grisalho, que sorria para si mesmo,
supervisionando os ferros no braseiro.
Ele bateu palmas, com força, duas vezes, e houve então uma correria e tumulto de
corpos ao som de longas correntes que deslizavam através de anéis de tornozelos. As
garotas agora se ajoelharam, cada uma na posição de uma Escrava de Prazer, em seus
camisks sobre a grama, alinhadas entre duas árvores as quais suas correntes estavam
presas. Enquanto eu passava por cada uma, elas audaciosamente levantavam seus olhos
para os meus e diziam, “Me Compre, Mestre.”
Muitas delas eram beldades, e eu percebi que a corrente, embora pequena, era rica,
daquelas correntes onde qualquer homem encontraria uma mulher de seu gosto. Elas
eram vitais, esplêndidas criaturas, muitas delas sem dúvida requintadamente treinadas
para deliciar os sentidos de um mestre. E muitas das cidades de Gor estavam
166
Foragidos de Gor
representadas naquela corrente, muitas vezes chamada de o Colar do Mercador de
Escravos – tinha uma loira da grandiosa Thentis, tinha uma garota de pele escura com
cabelos negros que caíam até seus tornozelos da cidade do deserto, Tor, tinham garotas
das miseráveis ruas de Port Kar no delta do Vosk, garotas até mesmo dos altos cilindros
da própria Grande Ar. Eu me perguntava quantas delas eram escravas de nascença e
quantas uma vez já foram livres.
E quando eu parava perante cada uma das beldades naquela corrente e encontrava
seus olhos, e ouvia suas palavras, “Me Compre, Mestre,” eu me perguntava por que eu
não a compraria, por que eu não libertaria uma delas em vez da outra garota. Seriam
essas criaturas maravilhosas, que já vestiam a graciosa marca de uma escrava, menos
merecedoras do que a outra?
Após refletir, aquilo me pareceu claro, que a corrente deve, enfim, ser um lugar
solitário para uma garota, cheia de vida, sabendo que a marca tinha sido destinada a ela
para amar, que cada uma delas deve cobiçar por um homem que goste tanto dela que a
compre, que cada uma deve ansiar para seguir um homem de volta pra casa até seus
aposentos, vestindo seu colar e suas correntes, onde elas irão aprender o coração e a força
dele, e serão ensinadas nas delícias da submissão. Melhor os braços de um mestre que o
frio aço de um anel no tornozelo.
Quando elas me disseram, “Me Compre, Mestre,” aquilo não foi simplesmente
dito como um ritual. Elas queriam ser vendidas para mim – ou, eu supunha, para
qualquer homem que as retirassem da odiosa corrente de Targo.
Targo pareceu aliviado. Agarrando meu cotovelo, ele me guiou de volta para a
árvore onde a loira se ajoelhava acorrentada.
Quando eu olhei para ela eu me perguntei, por que ela? Por que não outra, ou por
que tinha de comprar uma garota? De que importaria se sua coxa, também, trouxesse
uma graciosa marca? Eu imaginei que era a instituição escravista que eu repudiava, e que
essa instituição não mudaria em nada se eu, em um ato de tolo sentimentalismo,
libertasse uma garota. Ela não poderia ir comigo para dentro de Sardar, é claro, e quando
eu a abandonasse, ela, sozinha e desprotegida, seria presa fácil para as bestas ou então se
encontraria de novo na corrente de outro mercador de escravos. Sim, eu disse para mim
mesmo, isso era tolice.
Olhei para ela, e vi que era de fato bela, mas principalmente, eu vi que seus olhos
se declaravam para os meus. E quando vi isso, minha decisão racional de abandoná-la se
dissipou, e eu me rendi, como fiz algumas vezes no passado, a um ato sentimental.
“Fechado,” eu disse.
Ele agarrou a bainha e a alegria com que ele a segurava me disse que eu tinha sido,
em sua mente, dolorosamente derrotado na barganha. Quase que como uma reflexão
tardia ele arrancou o capacete de minhas mãos. Tanto ele quanto eu sabíamos que aquilo
seria praticamente inútil. Sorri com tristeza para mim mesmo. Eu não era muito bom em
tais assuntos, eu supunha. Mas e se eu soubesse o valor real daquelas pedras?
Os olhos da garota olhavam dentro dos meus, talvez tentando ler em meus olhos
qual seria o seu destino, pois sua sina agora estava em minhas mãos, eu era seu mestre.
Estranhos e cruéis são os modos de Gor, eu pensei, onde seis pequenas pedras
verdes, pesando talvez duas onças, e um elmo danificado, poderiam comprar um ser
humano.
Targo e o homem grisalho foram para a tenda curvada para buscar as chaves das
correntes da garota.
“Uma escrava não tem nome,” ela disse. “Você pode me dar um se desejar.”
Em Gor uma escrava, não sendo uma pessoa legalizada, não tem direito a um
nome, assim como na terra, nossos animais domésticos, não sendo pessoas perante a lei,
não tem nomes também. O nome que ela tem quando nasce, pelo qual ela se chama e se
conhece, este nome que tanto faz parte de sua própria concepção de si mesma, de sua
verdadeira e mais íntima identidade, subitamente desaparece.
168
Foragidos de Gor
Ela sorriu e balançou a cabeça. “Não,” ela disse.
“Eu me contento,” eu disse, “em chama-la pelo nome que você usava quando era
livre.”
“Lara?” eu perguntei.
“Sim Guerreiro,” ela disse. “Você não me reconhece? Eu fui Tatrix de Tharna.”
169
Foragidos de Gor
XXII
Cordas Amarelas
O chão da tenda era coberto por espessos e coloridos tapetes, e o lado de dentro
era decorado com inúmeras sedas penduradas. A luz era fornecida por uma lamparina
de bronze com óleo de tharlarion, a qual estava pendurada por três correntes. Almofadas
se espalhavam sobre os tapetes. A um lado da tenda estava, com suas correias, um
Cavalete de Prazer.
“Não,” eu disse.
Então ela se ajoelhou aos meus pés e tocou o tapete com a cabeça, jogando seu
cabelo sobre sua cabeça, expondo seu pescoço.
Eu a pus de pé.
“Não,” eu disse. “Foi por isso que você me disse, ‘Compre-me, Mestre’?”
“Eu acho que sim,” ela disse. “Acho que eu queria que você me matasse.” Ela então
olhou para mim. “Mas não tenho certeza.”
“Eu que uma vez fui Tatrix de Tharna,” ela disse, seus olhos abatidos, “não desejo
viver como uma escrava.”
170
Foragidos de Gor
“Não vou te matar,” eu disse.
“Dê-me sua espada, Guerreiro,” ela disse, “e eu vou me jogar sobre ela.”
“Não,” eu disse.
“Ah sim,” ela disse, “um guerreiro nunca está disposto a ter o sangue de uma
mulher em sua espada.”
“Você é jovem,” eu disse, “- bonita e muito viva. Tire as Cidades de Poeira de sua
mente.”
“Por que você me comprou?” ela perguntou. “Você certamente deseja reclamar
sua vingança? Você se esqueceu que fui eu que te coloquei em um jugo, quem te
chicoteou, que te condenou aos Entretenimentos, quem te deu para o tarn? Esqueceu que
fui eu quem te traiu e o enviou para as minas de Tharna?”
“E nem eu,” ela disse orgulhosamente, deixando claro que ela não me pediria
nada, e não esperaria nada de mim, nem mesmo por sua vida.
Ela permaneceu brava perante mim, mesmo estando tão impotente, tão à minha
mercê. Ela poderia ter ficado assim perante um larl na Voltai. Para ela era importante
morrer bem. Eu a admirei por isso, e a achei bela em seu desespero e desafio. Seu lábio
inferior tremia, mesmo que levemente. Quase que imperceptivelmente ela o mordeu para
controlar seu movimento, para que eu não notasse. Eu a achei magnífica. Uma pequena
gota de sangue apareceu eu seus lábios. Sacudi minha cabeça para afastar o pensamento
de que eu queria provar do sangue em seus lábios, de beijar sua boca.
“Você não sabia até então, que eu era a Tatrix de Tharna,” ela zombou.
“Não,” eu disse.
“Agora que você sabe,” ela perguntou, “o que irá fazer comigo? Vai usar o óleo de
tharlarion? Vai me jogar para as plantas sanguessugas? Vai me dar para seu tarn, me usar
de isca em uma armadilha para sleen?”
171
Foragidos de Gor
Eu gargalhei, e ela me encarou, aturdida.
Ela deu um passo para trás, descrente. Seus olhos azuis pareceram se encher de
espanto, e então eles brilharam com lágrimas. Seus ombros se sacudiam enquanto ela
soluçava.
Envolvi seus frágeis ombros com meus braços e para meu espanto, ela que tinha
vestido a máscara de ouro de Tharna, ela que tinha sido a Tatrix daquela grande cidade,
colocou sua cabeça sobre meu peito e chorou. “Não,” ela disse, “eu sou digna apenas de
ser uma escrava.”
“Isso não é verdade,” eu disse. “Lembre-se que uma vez você disse para um
homem não me bater. Lembre-se que uma vez você disse que era difícil ser a primeira de
Tharna. Lembre-se que uma vez você olhava para um campo de talêndulas e eu fui
extremamente rude e tolo ao falar com você.”
“Não,” eu disse.
“Você é de fato linda,” eu disse. “- tão linda que mil guerreiros dariam suas vidas
para ver sua face, tão linda que centenas de cidades poderiam cair em ruinas em seu
nome.”
“Seria uma vitória para um homem ter você em suas correntes,” eu disse.
“No entanto, Guerreiro,” ela disse, “você não ficou comigo – você ameaçou me
colocar sobre o bloco e me vender para outro.”
172
Foragidos de Gor
Fiquei em silêncio.
Essa foi uma pergunta corajosa, estranha vindo dessa garota, que uma vez foi a
Tatrix de Tharna. “Meu amor é Talena,” eu disse, “filha de Marlenus que uma vez foi
Ubar de Ar.”
“Um homem pode ter muitas escravas,” ela bufou. “Com certeza em seus Jardins
de Prazer – sejam eles onde forem – muitas belas prisioneiras vestem seu colar, certo?”
“Não,” eu disse.
Eu dei de ombros.
Olhei para baixo, para o tapete, imaginando o que dizer para ela.
Depois dessa inacreditável explosão ela foi para um canto da tenda, e segurou uma
das sedas penduradas com seu punho, atirando sua face contra ela.
Ela então se virou, ainda agarrando a seda em seu punho. Seus olhos estavam
cheios de lágrimas, mas raivosos. “Você me levou de volta para Tharna,” ela disse, quase
como se fizesse uma acusação.
“Algumas coisas,” eu disse, “são mais atraentes até mesmo do que a beleza de uma
mulher.”
“Sinto muito.”
173
Foragidos de Gor
Lara riu, um pequeno e triste riso, e sentou no tapete a um canto da tenda,
aconchegando seus joelhos debaixo de seu queixo. “Eu não te odeio, você sabe,” ela disse.
“Eu sei.”
Fiquei em silêncio. Sabia que ela tinha dito a verdade. Eu tinha percebido esses
sentimentos virulentos com os quais ela uma vez, inexplicável para minha mente, havia
nutrido por mim.
“Você sabe, Guerreiro,” ela perguntou, “por que eu – agora apenas uma escrava
miserável – te odiava tanto?”
“Não,” eu disse.
“Por que na primeira vez que te vi eu te reconheci de mil sonhos proibidos.” Seus
olhos me procuraram. Ela falou de forma suave agora. “Nestes sonhos eu estava
orgulhosa em meu palácio, cercada pelos meus conselheiros e guerreiros e então,
estilhaçando o teto de vidro, um grande tarn desceu, trazendo um guerreiro com elmo.
Ele estraçalhou meus conselheiros e derrotou meus soldados, e me pegou, e arrancou
minhas roupas, me amarrou nua sobre a sela de seu pássaro e então, com um grande
grito, ele me levou para sua cidade, e lá eu, uma vez a orgulhosa Tatrix de Tharna, vesti
sua marca e sua coleira.”
“E em sua cidade,” disse a garota, seus olhos brilhavam, “ele colocou sinos em
meus tornozelos me vestiu em sedas de dança. Eu não tinha escolha, você não entenderia.
Eu devia fazer o que ele desejava. E quando eu não podia mais dançar ele me pegou em
seus braços e como um animal me forçou a servir aos seus prazeres.”
Ela gargalhou, e sua face se queimou com vergonha. “Não,” ela disse, “este não
foi um sonho cruel.”
“Nos braços dele eu aprendi o que Tharna não pôde me ensinar. Nos braços dele
eu aprendi a compartilhar o ardente esplendor de sua paixão. Nos braços dele eu conheci
montanhas e flores e os gritos dos tarns selvagens, e o toque da unha de um larl. Pela
primeira vez em minha vida meus sentidos foram despertados – pela primeira vez eu
pude sentir o movimento das roupas sobre meu corpo, pela primeira vez eu aprendi a
abrir os olhos e soube qual é, de verdade, a sensação do toque de uma mão – e eu soube
174
Foragidos de Gor
então que eu não era nem mais nem menos do que ele ou qualquer outra criatura viva, e
eu o amei por isso!”
“Eu não seria capaz,” ela disse, “de desistir de sua coleira nem por todo o ouro e
prata de Tharna, nem por todas as pedras de sua muralha cinzenta.”
Abaixei meu olhar para a intrincada decoração do tapete, sem falar nada.
“É claro,” ela disse, “como alguém que vestia a máscara de Tharna eu repeli este
sonho. Eu o odiei. Ele me aterrorizava. Ele sugeria para mim que eu, mesmo sendo a
Tatrix, poderia compartilhar da vil natureza de uma besta.” Ela sorriu. “Então eu vi você,
Guerreiro, pensei que você poderia ser o guerreiro deste sonho. Então foi por isso que te
odiei e tentei te destruir, pois você era uma ameaça para mim e para tudo o que eu era, e
ao mesmo tempo que te odiava, eu te temia, e também te desejava.”
“Sim,” ela disse. “Eu te desejava.” Sua cabeça abaixou e sua voz ficou quase que
inaudível. “Embora eu fosse a Tatrix de Tharna,” ela disse, “eu queria me deitar aos seus
pés sobre o tapete escarlate. Eu queria ser amarrada com cordas amarelas.”
Me lembrei de que ela tinha dito algo sobre um tapete e cordas lá na câmara do
conselho de Tharna, quando ela parecia consumida pela ira, quando ela pareceu querer
cortar a carne de meus ossos.
“Nos dias antigos, em Tharna,” disse Lara, “as coisas eram diferentes do que são
hoje.”
E então, na tenda do mercador de escravos, Lara, que tinha sido a Tatrix de Tharna,
me contou sobre a estranha história de sua cidade. No começo Tharna era muito parecida
com as outras cidades de Gor, onde mulheres eram muito pouco respeitadas e gozavam
de poucos direitos também. Em tais dias, como parte dos Ritos da Submissão, que era
praticado em Tharna, era comum despir e amarrar uma prisioneira com cordas amarelas
e a colocar sobre um tapete escarlate, o amarelo das cordas simbolizava as talêndulas,
uma flor frequentemente associada com o amor feminino e a beleza, o escarlate do tapete
simbolizava o sangue, e talvez a paixão.
175
Foragidos de Gor
Aquele que tinha capturado a garota colocaria sua espada nos seios dela e assim
proferia as rituais frases do processo de escravidão. Aquelas seriam a últimas palavras
que ela ouviria como uma mulher livre.
Chore, Escrava.
Assim como o status das mulheres se tornou mais enobrecido e menos claramente
definido, as sutis tensões entre dominação e submissão, instintivas através de todo o
mundo animal, tenderam a se acertar.
No entanto esta situação, por mais socialmente viável que possa ser durante
gerações, não é um meio em que se produz felicidade humana de verdade. De fato, não
é totalmente claro se é preferível o etos de dominação masculina da maioria das cidades
Goreanas, o qual, também, certamente tem seu lado negativo. Em uma cidade como
Tharna os homens, ensinados a se verem como bestas, como seres inferiores, raramente
desenvolvem o completo respeito por si mesmos que é essencial para a verdadeira
masculinidade. Mas de modo mais estranho ainda, as mulheres de Tharna não parecem
contentes em sua ginocracia. Embora elas desprezem homens e se vangloriem em seus
mais altos status, me parece que elas, também, falham em respeitarem a si mesmas.
Odiando seus homens elas odeiam a si mesmas.
Para minha surpresa Lara caiu de joelhos, os colocando na posição de uma Escrava
de Prazer, e abaixando sua cabeça de forma submissa.
177
Foragidos de Gor
Targo irrompeu dentro da tenda carregando um pequeno pacote e
aprovativamente notando a postura da garota.
“É Mestre,” ele disse, “parece que com você ela aprende rápido.” Ele olhou
radiante para mim. “Eu apaguei meus registros. Ela é sua.” Ele colocou o pacote em
minhas mãos. Era um camisk dobrado, e dentro dele tinha uma coleira. “Um símbolo de
meu apreço pela nossa negociação,” disse Targo. “Não haverá nenhum custo extra.”
Targo então tateou dentro do saco que ele vestia e retirou duas cordas amarelas,
com cerca de dezoito polegadas cada uma. “Eu notei pelo seu elmo azul,” ele disse, “que
você é de Tharna.”
“Ah, bem,” disse Targo, “como é que se poderia saber?” Ele jogou as cordas sobre
o tapete na frente da garota.
“Não tenho mais chicotes de escravos,” disse Targo, balançando seus ombros
tristemente, “mas a cinta de sua espada vai servir muito bem.”
Ele recuperou seu equilíbrio lá e, com seus brincos a balançar, se virou para me
fitar como se pensasse que eu tivesse perdido meu juízo. “Será que talvez o Mestre não
está cometendo um erro?” ele sugeriu.
178
Foragidos de Gor
“Talvez,” eu admiti.
Pouco tempo depois Targo tropeçou de volta pra dentro da tenda, seus braços
abarrotados com roupas. Ele as atirou sobre o tapete, bufando. “Escolha uma, Mestre,”
ele disse, e saiu da tenda, sacudindo sua cabeça.
Para minha surpresa ela andou até as abas da entrada da tenda e as fechou,
amarrando-as juntas e fechadas por dentro.
Era muito bela sob a luz de lamparina, entre as ricas sedas penduradas da tenda.
Fiquei quieto.
179
Foragidos de Gor
E então eu peguei as cordas de suas mãos, e na mesma noite, Lara que tinha uma
vez sido a orgulhosa Tatrix de Tharna se tornou, segundo os antigos ritos de sua cidade,
minha escrava – e uma mulher livre.
180
Foragidos de Gor
XXIII
Retorno a Tharna
Lara estava ao meu lado, vestida como mulher livre mas não nos Robes de
Encobrimento. Ela tinha encurtado e aparado uma das mais graciosas vestes Goreanas,
cortando-a na altura de seus joelhos e removendo as mangas de modo que cobrissem
apenas até seus cotovelos. Era uma veste amarelo claro e ela tinha usado uma faixa
escarlate como cinto. Seus pés vestiam sandálias planas de couro vermelho. Sobre seus
ombros, por sugestão minha, ela enrolou uma capa de lã pesada. Era escarlate. Eu pensei
que ela precisaria disso para se aquecer. Eu acho que ela gostou pois combinava com a
faixa em sua cintura. Sorri comigo mesmo. Ela estava livre.
Ela tinha recusado os usuais Robes de Encobrimento. Alegando que ela seria um
empecilho para mim caso se vestisse dessa forma. Eu não argumentei, pois ela estava
181
Foragidos de Gor
certa. Enquanto eu assistia seus cabelos loiros a balançar atrás dela com o vento, enquanto
eu considerava os prazerosos delineamentos de sua beleza, eu também me sentia
contente por ela não ter escolhido, quaisquer que fossem suas razões, se vestir da maneira
tradicional.
No entanto, embora eu não fosse capaz de reprimir a admiração que tinha por essa
garota, e pela transformação que tinha acontecido com ela, da fria Tatrix de Tharna para
a escrava humilhada e depois para esta gloriosa criatura que agora estava aqui ao meu
lado, meus pensamentos estavam mais voltados para Sardar, pois eu sabia que eu não
tinha tido ainda meu encontro com os Reis-Sacerdotes.
“Sim,” eu disse.
Eu tinha falado para ela do meu objetivo de ir para as montanhas, que meu destino
residia lá. Ela tinha simplesmente dito, “eu vou com você.”
Ela sabia, assim como eu, que aqueles que entravam nas montanhas não
retornavam. Ela conhecia assim como eu, talvez melhor, o temeroso poder dos Reis-
Sacerdotes.
“Quando eu era sua escrava,” ela tinha me dito, “você poderia me ordenar a te
seguir. Agora que sou livre irei acompanha-lo por minha própria vontade.”
Olhei para a garota. Quão orgulhosa e ainda assim, quão maravilhosa ela estava
ao meu lado. Percebi que ela tinha catado uma talêndula na colina, e que a tinha posto
em seu cabelo.
“Bela Lara,” eu disse, “perdoe-me.” Eu a abracei mais apertado. “Eu não posso
leva-la para Sardar. Não posso deixa-la aqui. Você seria morta pelas bestas ou voltaria
para a escravidão.”
“Vai me levar de volta pra Tharna?” ela perguntou. “Eu odeio Tharna.”
“Eu não tenho uma cidade na qual pudesse levar você,” eu disse. “E eu acredito
que você pode transformar Tharna em algo que você não mais irá odiar.”
Eu a beijei.
Segurando sua cabeça em minhas mãos eu olhei dentro dos olhos dela.
Ela olhou para cima, para mim e sorriu, um sorriso triste. “É claro, Guerreiro,” ela
disse, “não deve haver lágrimas – pois eu sou a Tatrix de Tharna e uma Tatrix não chora.”
183
Foragidos de Gor
Eu me abaixei pegando a flor e a recoloquei no lugar.
****
O incêndio que queimava nas Minas de Tharna não tinha ainda sido extinguido.
A revolta dos escravos tinha se espalhado das minas para as Grandes Fazendas. Algemas
tinham sido quebradas e armas foram apreendidas. Homens raivosos, armados com
qualquer ferramenta capaz de destruir que encontrassem, perambulavam pelas terras,
evitando os soldados de Tharna, caçando celeiros para roubar, construções para queimar,
escravos para libertar. De fazenda a fazenda a rebelião se espalhou e os suprimentos das
fazendas para a cidade se tornaram esporádicos ou cessaram. O que os escravos não
pudessem usar ou esconder, eles cortavam ou queimavam.
A não mais de duas horas da colina, onde eu tinha tomado a decisão de retornar
Lara para sua cidade nativa o tarn nos encontrou, assim como pensei que ele faria. Assim
como ele fez no Pilar de Trocas, quando o pássaro vasculhou a vizinhança, agora, pela
segunda vez, sua paciência foi recompensada. Ele pousou a umas quinze jardas de nós e
corremos para seu lado, eu primeiro, Lara depois de mim, ela ainda estava apreensiva
com a besta.
Minha alegria foi tão grande que eu abracei o pescoço daquele monstro negro.
Novamente aquela indescritível emoção me possuiu e eu acho que desta vez até
mesmo Lara compartilhou de meus sentimentos. “Primeira-rédea!” eu gritei, e a
monstruosa figura do tarn se impulsionou uma vez mais para os céus.
184
Foragidos de Gor
Quanto mais subíamos, mais campos carbonizados de Sa-Tarna víamos abaixo de
nós. A sombra do tarn flutuava sobre as armações enegrecidas das construções, sobre
currais quebrados que uma vez guarneceram os animais das fazendas, sobre pomares
que agora eram nada mais que árvores destruídas, suas folhas e frutos estavam marrons
e murchos.
Sobre as costas do tarn Lara chorou ao ver a desolação que tinha acometido sua
terra.
As investidas dos tarnsmans tinham mais sucesso, mas a maior parte dos bandos
de escravos, que agora eram quase regimentos, se moviam apenas à noite e se escondiam
durante o dia. Com o tempo ficou perigoso para a pequena cavalaria de Tharna investir
contra eles, para enfrentar a brava tempestade de flechas que parecia subir do próprio
solo, de todos os lados.
Foi no fim de tarde do quinto dia que nós avistamos ao longe as cinzentas
muralhas de Tharna. Não fomos ameaçados ou abordados por nenhuma patrulha. Na
verdade, pudemos ver tarnsmans em suas montarias aqui e ali por entre os cilindros, mas
nenhum veio para nos desafiar.
Trouxe o tarn para baixo e pousei sobre a muralha perto do portão. Libertei o
pássaro. Não havia puleiros lá no qual eu pudesse deixa-lo, e também, mesmo se tivesse,
eu não confiaria nos guardiões de tarns de Tharna. Eu não sabia quem estava e quem não
estava a favor rebelião. Talvez eu realmente quis deixar o pássaro livre para o caso de
minhas esperanças terminarem em desastre, no caso da Tatrix e eu perecermos em algum
beco de Tharna.
Um dos lados do elmo estava rachado e aberto, talvez pelo golpe de um machado.
A correia do elmo, a parte de dentro do elmo e os cabelos loiros do soldado estavam
ensopados com seu sangue. Ele era apenas um garoto.
186
Foragidos de Gor
Assim que ele sentiu o vento sobre a muralha soprando em sua face ele abriu seus
olhos azuis acinzentados. Sua mão tentou agarrar sua arma, mas a bainha estava vazia.
“Não se esforce,” eu disse para ele, olhando para a ferida. O elmo absorveu a maior
parte do impacto, mas a lâmina do instrumento que o golpeou vincou seu crânio, o que
fez o sangue escorrer. É mais provável que foi a força do golpe que o deixou inconsciente
e o sangue sugeriu para quem o atacou que o trabalho estava acabado. Seu agressor
aparentemente não era um guerreiro.
Com um pedaço da capa de Lara eu amarrei a ferida. Estava limpa e não era
profunda.
Seus olhos alternavam entre mim e Lara. “Você está do lado da Tatrix?” ele
perguntou.
“Sim,” eu disse.
“Eu lutei por ela,” disse o garoto, recostando sua cabeça em meu braço. “Eu
cumpri meu dever.”
Pude notar que ele não gostou de fazer seu trabalho, e que talvez seu coração
estivesse com os rebeldes, mas o orgulho de sua casta o manteve em seu posto. Até
mesmo em sua juventude ele tinha a lealdade cega de um guerreiro, a lealdade na qual
eu respeitava e que talvez não fosse mais cega do que a mesma lealdade que eu tinha.
Tais homens são terríveis adversários, mesmo que suas espadas estejam juradas para as
mais desprezíveis das causas.
“Não,” eu disse, “você lutou por Dorna a Altiva, pretendente ao trono de Tharna
– uma usurpadora e traidora.”
“Aqui,” eu disse, apontando para a bela garota ao meu lado, “está Lara, a
verdadeira Tatrix de Tharna.”
“Sim, bravo Guarda,” disse a garota, colocando sua mão gentilmente em sua testa
como se quisesse acalmá-lo, “eu sou Lara.”
O guarda se remexeu em meus braços, e então caiu de volta, fechando seus olhos,
em dor.
187
Foragidos de Gor
“Lara,” ele disse, embora de olhos fechados, “foi levada para longe pelo tarnsman
nos Entretenimentos.”
“O tarnsman,” disse Lara, falando suavemente, “me levou de volta para o Pilar de
Trocas. Lá eu fui sequestrada por Dorna a Altiva e por Thorn, seu cúmplice, e assim fui
vendida para a escravidão. O tarnsman me libertou e agora me trouxe de volta para meu
povo.”
“Eu lutei por Dorna a Altiva,” disse o garoto. Seus olhos azuis cinzentos se
encheram com lágrimas. “Perdoe-me, verdadeira Tatrix de Tharna,” ele implorou. E se
não fosse proibido, já que um homem de Tharna não poderia tocar ela, uma mulher de
Tharna, eu acho que ele teria esticado sua mão na direção dela.
Para seu deleite Lara pegou as mãos dele com as delas. “Você fez bem,” ela disse.
“Estou orgulhosa de você, meu guarda.”
“Não,” eu disse, “ele não morreu. Ele apenas é jovem e perdeu muito sangue.”
Sem perder tempo eu coloquei a espada de volta no meu cinto e agarrei Lara pela
cintura. Enquanto ela protestava eu me virei e a forcei a correr ao meu lado.
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Foragidos de Gor
Mal tínhamos alcançado a escada de pedra em espiral que levava para baixo da
muralha quando as seis lanças, suas pontas descrevendo um círculo de talvez uma jarda
de diâmetro, bateram contra o muro sobre nossas cabeças lascando as pedras.
Uma vez que alcançamos o chão nos mantivemos perto da base da muralha assim
não seríamos alvo fácil para as lanças. Por outro lado, eu não acredito que os guardas
lançariam suas armas de cima do muro. Caso errassem, ou se não errassem também,
teriam de descer dos muros para recuperar as armas. Era improvável que um pequeno
grupo como aquele abandonaria a vantagem de estar sobre a alta muralha para perseguir
dois rebeldes.
****
Começamos a traçar nosso tortuoso caminho através das ruas de Tharna, perigosas
e manchadas de sangue. Algumas construções tinham sido destruídas. Lojas tinham sido
bloqueadas. A desordem estava por todo lado. Lixo queimava em valetas. As ruas
estavam extremamente desertas salvo aqui ou ali, onde podia-se encontrar um corpo, às
vezes de um guerreiro de Tharna, mais frequentemente o corpo de um de seus cidadões
em vestes cinzentas. Em muitos dos muros podia-se ler a palavra “Sa'ng-Fori”.
Pela frente e por trás de nós um grupo de homens pareceu se materializar. Muitos
deles seguravam bestas; pelo menos quatro deles tinham lanças posicionadas; outros
ostentavam espadas; mas a maioria carregava nada mais que uma corrente ou uma estaca
com ponta afiada.
“Sim,” eu disse.
Eu também ri, pois resistir seria inútil, ainda assim eu sabia que eu devia resistir,
que eu não seria desarmado até que tivesse caído morto sobre as pedras da rua.
E Lara?
Qual seria seu destino nas mãos daquele bando de enlouquecidos e desesperados
homens? Eu fitava meus inimigos enfurecidos, alguns deles estavam feridos. Eles
estavam imundos, selvagens, exaustos, nervosos, talvez famintos. Ela provavelmente
seria assassinada ali mesmo no muro em que estava de pé. Seria brutal mas rápido, de
toda forma, seria misericordioso.
Era aquele homem que tinha sido o primeiro na corrente, nas minas, ele que teve
de ser o primeiro a escalar o buraco do canil de escravos para a liberdade.
Sua face estava transfigurada com alegria e ele correu à frente e me abraçou.
A esse ponto, para meu deleite, o bando de esfarrapados levantou suas armas e
soltou um grito barbárico. Eu fui arrancado do chão e atirado sobre os ombros deles. Fui
carregado através das ruas e outros rebeldes, vindos de vãos de portas e janelas, quase
que como se brotassem das pedras das ruas, se juntaram ao que se transformou em uma
procissão de triunfo.
Lara, tão descrente quanto eu, corria por entre os homens, ficando tão perto de
mim quanto a tumultuada multidão permitia.
Lá, de pé perante a porta baixa, eu avistei uma vez mais a atarracada e poderosa
figura de Kron, da Casta dos Ferreiros. Seu grande martelo estava pendurado em seu
cinto e seus olhos azuis brilhavam de felicidade. As grandes mãos cheias de cicatrizes do
ferreiro estavam estendidas na minha direção.
Ao seu lado, para minha alegria, eu vi a face imprudente de Andreas, com aquele
tufo de cabelo preto quase tapando sua testa inteira. Atrás de Andreas, em um vestido de
mulher livre, sem véu, com seu pescoço não mais envolto na coleira de escrava do estado,
eu vi a estonteante, a radiante Linna de Tharna.
“Sim,” disse Kron, a apenas um passo atrás dele, agarrando meu braço. “Bem-
vindo a Tharna.”
191
Foragidos de Gor
XXIV
A Barricada
Desci os curtos e largos degraus até o interior. Desta vez a loja estava tumultuada.
Era difícil ver onde eu pisava. Estava cheia e barulhenta. Mais parecia uma Taverna de
Paga de Ko-ro-ba ou de Ar, não uma simples loja de Kal-da de Tharna. Meus ouvidos
eram atacados pelos ruídos, pela jovial algazarra dos homens que não mais temiam rir
ou gritar.
A loja por si mesma estava agora repleta com talvez meia centena de lamparinas e
as paredes foram coloridas com as cores das castas dos homens que bebiam aqui.
Espessos tapetes tinham sido jogados por baixo das mesas baixas e estavam repletos de
manchas de Kal-da que derramavam.
Atrás do balcão, o magro proprietário de cabeça raspada, com sua testa a brilhar,
com seu liso avental preto manchado por especiarias, sucos e vinho, trabalhava duro com
sua longa colher de cozinha em um vasto pote de Kal-da borbulhante. Funguei com meu
nariz. Não havia dúvidas de que aquele cheiro era de Kal-da sendo preparada.
Atrás de três ou quatro mesas baixas, à esquerda do balcão, uma banda de músicos
suados se sentava alegremente de pernas cruzadas sobre o tapete, de alguma forma eles
produziam naqueles estranhos tubos e cordas, tambores, discos e fios, as mais intrigantes,
selvagens, encantadoras – belas – barbáricas melodias de Gor.
Neste momento eu me perguntei se a Casta dos Músicos tinha sido, assim como a
Casta dos Poetas, exilada de Tharna. Eles, assim como a Casta dos Poetas, tinham sido
uma casta que era vista pelas soberbas máscaras de Tharna como não pertencente a uma
cidade de gente séria e delicada, pois a música, assim como a Paga e as canções, pode
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Foragidos de Gor
acender o coração dos homens e quando os corações dos homens estão em chamas não é
fácil saber para onde as chamas irão se espalhar.
Atrás de mim, descendo as escadas vinham Kron e Andreas, seguidos por Lara e
Linna.
Kron agarrou meu braço e me guiou para uma mesa próxima do centro da sala.
Segurando Lara pela mão eu o segui. Os olhos dela estavam perplexos, mas assim como
os olhos de uma criança, estavam também cheios de curiosidade. Ela nunca imaginou
que os homens de Tharna pudessem ser assim.
Quando eu entrei a música tinha parado, mas Kron agora bateu suas mãos duas
vezes e os músicos voltaram para seus instrumentos.
“Kal-da de graça para todos!” gritou Kron, e quando o proprietário, que conhecia
os códigos de sua casta, tentou contestar, Kron jogou um disco tarn de ouro para ele. Feliz
da vida o homem se abaixou e pegou o disco no chão.
“Ouro é mais comum aqui do que pão,” disse Andreas, se sentando perto de nós.
Para dizer a verdade a comida nas mesas baixas não era tão abundante e era bem
simples, mas ninguém parecia notar isso dado o bom ânimo dos homens no recinto.
Aquilo deveria parecer para eles, comida vinda das mesas dos próprios Reis-Sacerdotes.
Até mesmo a vulgar Kal-da para eles, que se deleitavam pela primeira vez intoxicados
por sua liberdade, era a mais rara e mais potente das bebidas.
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Foragidos de Gor
Kron bateu palmas novamente e para minha surpresa ouvi o repentino som de
sinetas, e quatro garotas estonteantes, obviamente escolhidas por sua beleza e graça, se
apresentaram perante nossa mesa, vestindo somente as escarlates sedas das dançarinas
de Gor. Elas jogaram suas cabeças para trás e levantaram seus braços e sob um
decaimento barbárico feito pelos músicos, elas dançaram perante nós.
Andreas, que estava enchendo a boca com um pedaço de pão, respondeu, suas
palavras saíram em um balbuciado alegre. “Atrás de cada máscara de prata,” ele
respondeu sentenciosamente, “existe uma potencial Escrava do Prazer.”
“Andreas!” gritou Linna, e ela gesticulou como se fosse dar um tapa nele por sua
insolência, mas ele a calou com um beijo, e ela alegremente começou a mordiscar o pão
preso nos dentes dele.
Ele deu de ombros. “Essas coisas são instintivas em uma mulher,” ele disse. “Mas
elas são destreinadas, é claro.”
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Foragidos de Gor
Algumas delas lançaram um olhar invejoso para Lara, outras lançaram um olhar
de ódio. Seus olhares diziam para Lara, por que você não está vestida como nós? Por que
você não usa uma coleira e serve como nós servimos?
Para meu espanto Lara removeu sua capa e pegou um pote de Kal-da de uma das
garotas e começou a servir os homens.
Algumas garotas olharam para ela com gratidão pois ela era livre e fazendo isso
ela mostrava que não se considerava melhor do que elas.
Enquanto Andreas a assistia ele disse em tom baixo, “Ela realmente é uma Tatrix.”
****
Quando Kron ficou cansado de assistir as dançarinas ele bateu palmas duas vezes
e sob o chacoalhar discordante das sinetas em seus tornozelos elas rapidamente deixaram
a sala.
Kron levantou sua taça de Kal-da e virou de frente para mim. “Andreas me disse
que você pretendia entrar em Sardar,” ele disse. “Vejo que você não foi para lá então.”
Kron quis dizer que se eu tivesse entrado em Sardar eu não teria retornado.
“Eu vou para Sardar,” eu disse, “mas antes tenho negócios em Tharna.”
“Não,” disse Kron. “Eu não sei como ela te enfeitiçou mas nós não teremos Tatrix
em Tharna!”
“Ela é tudo pelo qual lutamos contra,” protestou Andreas. “Se ela ascender ao
trono, nossa batalha estará perdida. Tharna voltaria a ser a mesma.”
195
Foragidos de Gor
Kron não achou graça.
Sua severa personalidade formada entre as bigornas e forjas de seu ofício não
aceitavam bem a monstruosidade que eu tinha dito.
“Vocês são homens de Tharna,” eu disse, “Mas os homens com quem vocês lutam
também são de Tharna.”
“É correto que os homens de Tharna levantem suas armas uns contra os outros,
homens dentro das mesmas muralhas?”
“Essa é uma coisa triste,” disse Kron. “Mas tem de ser assim.”
“Não precisa ser assim,” eu protestei. “Os soldados e guardas de Tharna são
comprometidos com sua Tatrix, mas a Tatrix que eles defendem é uma traidora. A
verdadeira Tatrix de Tharna, Lara em pessoa, é esta que essa nesta sala.”
Kron observou a garota, que por sua vez não estava ciente da conversa. Do outro
lado da sala ela estava servindo Kal-da para os homens que levantavam a taça para ela.
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Foragidos de Gor
“Os soldados de Tharna e seus guardas irão abandonar sua falsa Tatrix e servirão
à verdadeira Tatrix,” eu disse.
“Isso se ela viver -” concordou Kron, olhando para a inocente garota do outro lado
da sala.
“Ela vai viver,” eu incitei. “Ela irá trazer um novo dia para Tharna. Ela irá unir
ambos, os rebeldes e os homens que se opõem a você. Ela entendeu como são cruéis e
miseráveis os modos de Tharna. Olhe para ela!”
E os homens olharam para a garota calma servindo a Kal-da, por vontade própria
compartilhando do trabalho das outras mulheres de Tharna. Isso não era o que alguém
esperava de uma Tatrix.
“Não,” eu disse, “você luta contra os modos cruéis de Tharna. Você luta pelo seu
orgulho e liberdade, não contra esta garota.”
“Nós lutamos contra a máscara de ouro de Tharna,” gritou Kron, martelando com
seu punho sobre a mesa.
E Kron olhou para a bela garota que se prostrava perante ele com toda a graça e
dignidade, sem nenhum traço de orgulho ou crueldade, ou medo.
****
Era óbvio para os defensores do palácio, os que formavam a maior parte do bastião
do regime contestado de Dorna, que este problema seria decidido naquele dia, e pela
espada. Boatos já tinham se espalhado como se voassem nas asas de um tarn, boatos de
que os rebeldes tinham abandonado suas táticas de emboscadas e evasão, e estavam
finalmente marchando na direção do palácio.
Eu via perante nós, uma vez mais, aquela ampla, curvada mas estreita avenida que
dava no palácio da Tatrix. Cantando, os rebeldes começaram a subir os degraus da
avenida. Os paralelepípedos negros podiam ser facilmente sentidos através do couro de
nossas sandálias.
Uma vez mais eu notei que os muros nas laterais da avenida ficavam mais altos
conforme a avenida se estreitava, mas desta vez, bem antes de alcançarmos a pequena
porta de ferro, nós vimos uma barricada dupla montada na avenida, feita de um segundo
muro que sobrepunha o primeiro e de onde projéteis poderiam ser disparados naqueles
que tentassem atacar o primeiro muro. A barricada tinha sido montada entre os dois
grandes muros laterais na parte em que se distanciavam por talvez cinquenta jardas um
do outro. A primeira barricada tinha talvez cerca de doze pés de altura; a segunda, cerca
de vinte.
Atrás das barricadas eu pude ver o brilho das armas e o movimento de elmos
azuis.
E também, caso os guerreiros tentassem usar os tarns somente para atirar flechas
na multidão, eles repentinamente encontrariam as ruas vazias, até que a sombra do
pássaro tivesse passado e assim os rebeldes poderiam se mover mais uma centena de
jardas para perto do palácio. Infantaria treinada, incidentalmente, pode se mover
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Foragidos de Gor
rapidamente através das ruas de uma cidade com seus escudos protegendo suas cabeças,
bem parecido com a estratégia Romana chamada testudo, mas essa formação requer
disciplina e precisão, e não se pode esperar dos rebeldes de Tharna um grau elevado de
virtudes marciais.
Uma figura alta apareceu na barricada e fez o mesmo que eu tinha feito.
Embora ele vestisse o elmo azul de Tharna eu sabia que se tratava de Thorn.
Eu falei alto para que minha voz alcançasse todos que estavam na barricada dupla.
“Eu venho a pedido de Lara, que é a verdadeira Tatrix de Tharna. Guardem suas
armas. Não derramem mais o sangue dos homens de sua própria cidade. Eu peço isso em
nome de Lara, em nome da cidade de Tharna e de seu povo. E eu peço isso em nome dos
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Foragidos de Gor
códigos de sua própria casta, pois suas espadas estão juradas para a verdadeira Tatrix –
Lara – não Dorna a Altiva!”
Thorn também agora falou alto para que os guerreiros escutassem. “Lara está
morta. Dorna é a Tatrix de Tharna.”
“Estou viva!” gritou uma voz atrás de mim e eu me virei, e para meu assombro,
eu vi que Lara tinha me seguido até a barricada. Se ela fosse morta a esperança dos
rebeldes seria destruída, e a cidade mergulharia num conflito civil interminável.
Thorn olhou para a garota e eu admirei a frieza com a qual ele a observou. Sua
mente deveria estar em tumulto, pois ele não achava que aquela garota apresentada pelos
rebeldes como a verdadeira Tatrix poderia ser atualmente Lara.
“A Tatrix de Tharna,” disse Lara, “escolhe não mais vestir uma máscara de ouro.”
“Onde você conseguiu essa criada do campo, seu impostor?” perguntou Thorn.
Eu gritei para os homens atrás da barricada. “Eu trouxe de volta essa garota – sua
Tatrix – para o Pilar de Trocas onde a entreguei nas mãos de Thorn, este Capitão, e Dorna
a Altiva. Então, traiçoeiramente eu fui atacado e enviado para as Minas de Tharna, e
Dorna a Altiva e Thorn, este capitão, prenderam Lara, sua Tatrix, e a venderam para a
escravidão – a venderam para Targo, cujo acampamento está agora na Feira de En'Kara,
a venderam pela quantia de cinquenta discos tarns de prata!”
Ouvi uma voz vinda de trás da barricada, uma voz jovem. “Dorna a Altiva veste
um colar com cinquenta discos tarns de prata!”
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Foragidos de Gor
“Dorna a Altiva é atrevida de fato,” eu gritei, “para ostentar as moedas pela qual
sua rival – sua verdadeira Tatrix – foi entregue para dentro das correntes de uma
escrava!”
“Vocês ouviram,” eu gritei, “ele dizer que deveria ter me matado no Pilar de
Trocas! Vocês sabem que fui eu quem roubou sua Tatrix nos Entretenimentos de Tharna.
Por que eu voltaria ao Pilar de Trocas se não fosse para entrega-la aos emissários de
Tharna?”
Uma voz gritou atrás da barricada. “Por que você não levou mais homens com
você para o Pilar de Trocas, Thorn de Tharna?”
Outro homem apareceu no topo da barricada. Ele removeu seu elmo. Eu vi que
era o jovem guerreiro cuja ferida eu e Lara tínhamos cuidado sobre a muralha de Tharna.
“Eu acredito neste guerreiro!” ele gritou, apontando para baixo, para mim.
“Isso é um truque para nos dividir!” gritou Thorn. “Volte para seu posto!”
Outros guerreiros em seus elmos azuis e túnicas cinzas de Tharna subiram ao topo
da barricada, para ver mais claramente o que acontecia.
“Vocês são guerreiros!” eu gritei. “Suas espadas estão juradas para sua cidade,
para suas muralhas, para seu povo e sua Tatrix! Sirvam a ela!”
Ele pulou para fora da barricada e deitou sua espada nas pedras aos pés de Lara.
“Pegue sua espada de volta,” ela disse, “em nome de Lara, a verdadeira Tatrix de
Tharna.”
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Foragidos de Gor
Ele pôs um joelho ao chão se ajoelhando perante a garota e agarrou o cabo da arma.
“Eu empunho minha espada,” ele disse, “em nome de Lara, que é a verdadeira Tatrix de
Tharna.”
“Como você pode ter tanta certeza?” perguntou um dos guerreiros sobre o muro.
Thorn ficou em silêncio, pois como ele poderia dizer saber que aquela garota não
era Lara, quando presumivelmente ele nunca tinha olhado para a face da verdadeira
Tatrix?
“Eu sou ela,” gritou a garota. “Não tem ninguém dentre vocês que serviu na
Câmara da Máscara de Ouro? Nenhum de vocês que possa reconhecer minha voz?”
“É ela!” gritou um dos homens. “Eu tenho certeza!” ele removeu seu elmo.
“Você é Stam,” ela disse, “primeiro guarda do portão norte e você pode lançar sua
lança mais longe do que qualquer outro homem de Tharna. Você foi o primeiro nos jogos
militares de En'Kara no segundo ano de meu reinado.”
“Você é Tai,” disse ela, “um tarnsman, ferido na guerra com Thentis um ano antes
de eu ascender ao Trono de Tharna.”
“Ela é Lara!” gritou outro homem. Ele pulou sobre o muro e colocou também sua
espada nas pedras aos pés dela.
Uma vez mais ela graciosamente requisitou que a arma fosse levantada em seu
nome, e assim foi feito.
Abraçado com Lara, eu caminhei através da barricada, e atrás de nós veio o jovem
guerreiro, os outros defensores da barricada, e Kron, Andreas, Linna e muitos dos
rebeldes.
Andreas trazia com ele o escudo e lança que eu tinha colocado ao chão quando
pedi pela trégua, e assim eu peguei as armas de volta. Nos aproximamos da pequena
porta de ferro que dava acesso ao palácio, eu estava na frente.
O rebelde que tinha sido o primeiro na corrente lá nas minas jogou uma tocha em
minhas mãos.
O chão parecia sólido, mas desta vez eu conhecia o perigo que ele ocultava.
Uma longa prancha retirada do andaime da barricada foi trazida e nós a deitamos
sobre os limites do chão.
A tocha foi levantada alta, eu entrei, cuidadosamente sobre a prancha. Desta vez
a armadilha não abriu e eu me encontrei em um estreito e mal iluminado corredor do
lado oposto da porta do palácio.
Eu não escutei os protestos e sem dizer mais nada comecei minha jornada à luz da
tocha por entre o agora escuro labirinto dos corredores do palácio. Minha memória e
senso de direção começaram a me levar infalivelmente de salão a salão, me guiando
rapidamente na direção da Câmara da Máscara de Ouro.
O silêncio parecia sinistro e a escuridão era intensa, após sair da brilhante luz sol
das ruas no lado de fora. Eu não ouvia nada além de quietude, nada além do silencioso
ruído de minha própria sandália nas pedras do corredor.
203
Foragidos de Gor
O palácio talvez tivesse sido abandonado.
Havia luz lá dentro. As tochas nas paredes ainda queimavam. Atrás do trono de
ouro da Tatrix agigantava-se a enfadonha máscara de ouro, feita na imagem de uma fria,
mas bela mulher, os reflexos das tochas nas paredes se agitavam de forma grotesca em
sua superfície polida.
Sobre o trono sentava-se uma mulher vestida nos robes dourados e na máscara da
Tatrix de Tharna. Sobre o seu pescoço estava um colar recheado com discos tarns de prata.
Nos degraus perante o trono estava um guerreiro, completamente armado, que segurava
em suas mãos o elmo azul de sua cidade.
Thorn abaixou seu elmo lentamente sobre sua cabeça. Ele desprendeu sua espada
em sua bainha. Retirou seu escudo e sua longa lança de cabeça achatada de seu ombro
esquerdo.
204
Foragidos de Gor
XXV
O Topo do Palácio
Nós dois arremessamos nossas lanças ao mesmo tempo e as duas armas passaram
uma pela outra como dois borrões de luz amarelados. Ambos ao lançar a arma tínhamos
inclinado nossos escudos de modo a diminuir o impacto de um golpe direto. Ambos
lançamos bem e o solavanco daquele enorme projétil trovejando contra meu escudo me
vez girar para o lado.
Pouco tempo depois de mim o escudo de Thorn também foi atirado sobre as
pedras do piso da câmara. Minha lança tinha atravessado seu escudo em uma jarda e a
cabeça dela passou sobre o ombro esquerdo dele quando ele se agachou atrás do escudo.
Sua espada também estava fora da bainha agora, e nós corremos na direção um do
outro como larls na Voltai, nossas armas se encontraram em um afiado e aberto som de
choque metálico, o trêmulo e brilhante rangido das lâminas bem temperadas, cada tom
ressoando na clara e cintilante música da esgrima.
Parecendo quase impassível, a figura em robes dourados sobre o trono assistia aos
dois guerreiros se movendo pra frente e pra trás perante ela, um vestindo o elmo azul e
túnica cinza de Tharna, o outro na universal túnica escarlate da Casta dos Guerreiros
Goreanos.
205
Foragidos de Gor
Nossas sombras ferozes se distorciam como gigantes engajados em combate contra
as altivas paredes da câmara iluminada por tochas.
Eu chutei a espada de sua mão e virei o corpo com meu pé. Seu peito tremia
debaixo de sua túnica manchada; sua boca mordia o ar como se tentasse captura-lo, como
se o ar escapasse de sua garganta. Sua cabeça virava de um lado a outro sobre as pedras.
“Eu venci,” ele disse, suas palavras saiam cuspidas em um tipo de sussurro, um
contorcido sorriso em sua face.
Lentamente, insensivelmente, ela desceu do trono, passo a passo, e então para meu
assombro ela caiu de joelhos ao lado de Thorn e abaixou sua cabeça até o peito
ensanguentado dele, chorando.
Eu me afastei, para a deixar com sua aflição. Pude ouvir os sons dos homens se
aproximando nos corredores. Eram os soldados e rebeldes, e os salões do palácio ecoaram
com o hino da canção de arado.
Eu nunca imaginei que uma mulher como Dorna a Altiva pudesse ter gostado de
um homem.
“Eu acho que não,” eu disse, sem entender, “e você Dorna a Altiva é agora minha
prisioneira.”
“Você vê?” ela disse, “meu mestre te derrotou, do jeito que ele sabia que podia,
não pela espada mas pelo desperdício de tempo. Dorna a Altiva escapou intacta.”
Uma vez mais sua cabeça se deitou sobre o peito ensanguentado do Capitão de
Tharna e seu corpo tremeu com soluços.
Lara olhou para mim. “Mas o palácio está cercado,” ela disse.
Lara correu na minha frente e eu a segui enquanto ela mostrava o caminho para o
topo do palácio. Através dos corredores escuros ela correu com a familiaridade da longa
convivência com o lugar. Finalmente alcançamos o cômodo onde ficava a escada em
espiral.
Eu puxei ela atrás de mim, e com minha outra mão no muro, subi a escura
escadaria tão rápido quanto pude. No topo das escadas eu pressionei contra uma porta e
a empurrei aberta. Do lado de fora eu pude ver o brilho azul do céu aberto. A luz me
cegou por um momento.
Eu emergi sobre o topo, meus olhos meio fechados contra a intensa luz.
207
Foragidos de Gor
grande e lustroso urt branco que eu tinha encontrado no poço naquela primeira porta do
palácio.
Seu jeito de correr como um rato era incompreensivelmente rápido e quase antes
que eu pudesse me preparar contra sua investida ele já tinha cruzado o topo cilíndrico do
palácio em dois ou três saltos e já dava o bote para me capturar em suas presas nuas.
Minha lâmina entrou no céu de sua boca empurrando sua cabeça para cima e para
longe de minha garganta. Seu grito deve ter alcançado as muralhas de Tharna. Seu
pescoço se torceu e a espada foi arrancada de minha mão. Meus braços envolveram seu
pescoço e minha face foi pressionada contra seu lustroso pelo branco. A espada soltou de
sua boca e tilintou contra o piso do topo do palácio. Eu me agarrava ao pescoço do animal
para fugir das mordidas de suas mandíbulas, daquelas três fileiras de afiados, frenéticos
dentes brancos lacerantes, que procuravam se enterrar em minha carne.
Ele rolava sobre o chão tentando me arrancar de seu pescoço; ele pulava e
sacolejava, se contorcia e se debatia. O homem com braçadeiras de couro tinha pego a
espada e com ela em mãos, e com seu chicote, nos circundava, esperando pela
oportunidade de me golpear.
Eu tentava virar o animal de maneira a deixar seu corpo a se debater entre mim e
o homem com braçadeiras de couro.
Sangue da boca do animal escorria em seu pelo e em meu braço. Eu pude sentir
quando o sangue respingou na lateral de minha face e em meu cabelo.
Então eu me virei para que o meu corpo ficasse exposto para o golpe da espada
nas mãos do homem em braçadeiras de couro. Ouvi seu grunhido de satisfação quando
ele avançou. Um instante depois que eu soube que a lâmina desceria sobre mim eu soltei
meus braços do pescoço do animal e deslizei sobre sua barriga. O animal veio ao meu
encontro e seu pescoço se moveu como se fosse um chicote, eu pude sentir os longos e
afiados dentes raspando em meu braço, mas ao mesmo tempo eu ouvi outro guinchado
de dor e o grito de horror do homem com braçadeiras de couro.
208
Foragidos de Gor
Eu rolei para longe do animal e me virei para ver o bicho faceando o homem com
as braçadeiras. Uma orelha tinha sido cortada de sua cabeça e o pelo no lado esquerdo
estava ensopado com o sangue que jorrava. Agora o animal tinha seus olhos fixados no
homem com a espada, ele que tinha desferido o último golpe.
Pude ouvir seu comando aterrorizado, o débil estalar daquele chicote segurado
por um braço quase paralisado de medo, pude ouvir seu abrupto e quase que silencioso
grito.
O urt estava sobre ele, suas ancas levantadas, seus ombros quase que no nível do
chão, o animal estava mordendo.
Eu espantei a visão de meus olhos me virando para os outros que estavam no topo
do palácio.
A impassível máscara de prata me olhava e eu senti que aqueles olhos negros atrás
dela queimavam com indescritível ódio.
Para meu espanto os homens não levantaram suas armas contra mim. Um deles
respondeu para ela.
“Você escolheu abandonar sua cidade,” ele disse. “Daqui em diante você não tem
mais cidade, pois você escolheu renunciar a ela.”
“Besta insolente!” ela gritou para ele. Então ela ordenou ao outro guerreiro que
matasse o primeiro.
“Se você ficasse para morrer nos pés de seu trono nós a seguiríamos e morreríamos
ao seu lado,” disse o primeiro guerreiro.
“Isso é verdade,” disse o segundo. “Fique como uma Tatrix, e nossas espadas
estarão presas ao seu serviço. Fuja como uma escrava e desista do seu direito de
comandar nosso metal.”
Dorna a Altiva olhou para mim a algumas jardas dela sobre o topo.
209
Foragidos de Gor
O ódio que ela nutria por mim, sua crueldade, seu orgulho, eram tão tangíveis
quanto um fenômeno físico, como ondas de calor ou gelo se formando.
Ela gargalhou. “Ele também era um tolo, como todas as bestas o são.”
Eu me perguntava como foi que Thorn pôde dar sua vida por esta mulher. Não
me pareceu que foi um caso de obrigação de sua casta pois esta obrigação ele teria de ter
não para com Dorna mas sim para com Lara. Ele tinha quebrado os códigos de sua casta
para apoiar a traição de Dorna a Altiva.
Eu subitamente soube a resposta, eu soube que Thorn de alguma forma amou esta
mulher cruel, que seu coração de guerreiro se voltou para ela embora ele nunca tivesse
visto sua face, embora ela nunca tivesse dado para ele um sorriso ou um toque de sua
mão. E eu soube então que Thorn, homem de confiança que deve ter sido, em seu
dissoluto e selvagem antagonismo, tinha ainda assim sido maior do que aquela que foi o
objeto de sua desesperada e trágica afeição. Sua ruína foi gostar de uma máscara de prata.
Eu sabia que Dorna teria poucas chances sozinha em Gor. Cheia de recursos como
ela era, mesmo que carregasse as riquezas que trouxe com ela, ainda assim ela era apenas
uma mulher e, em Gor, até mesmo uma máscara de prata precisa da espada de um
homem para protege-la. Ela acabaria como a presa de uma besta, talvez de seu próprio
tarn, ou seria capturada por um tarnsman itinerante ou por um grupo de mercadores de
escravas.
“Fique para encarar a justiça de Tharna,” eu disse.
Olhei para trás e vi que Lara agora estava de pé, perto de mim, observando Dorna,
e que atrás dela Kron e Andreas, seguido por Linna, os rebeldes e soldados, tinham
subido até o topo do palácio.
A máscara de prata de Dorna a Altiva se virou para Lara, que não vestia nenhuma
máscara, nem véu. “Animal sem vergonha,” ela escarneceu, “você não é melhor do que
eles – bestas!”
210
Foragidos de Gor
“Sim,” disse Lara, “isso é verdade.”
“Eu sentia isso em você,” disse Dorna. “Você nunca foi digna de ser a Tatrix de
Tharna. Eu era a única digna de ser a verdadeira Tatrix de Tharna.”
Então como se fosse uma só voz, os soldados, guardas e rebeldes levantaram suas
armas e saudaram Lara como a verdadeira Tatrix de Tharna.
“Salve Lara, a verdadeira Tatrix de Tharna!” eles gritaram, e como era o costume
da cidade, cinco vezes aquelas armas brandiram e cinco vezes aquele alegre grito ressoou.
O corpo de Dorna a Altiva se encolheu como se tivesse sido golpeado cinco vezes.
Ela olhou uma vez mais para os rebeldes, soldados e guardas, e para Lara, com
uma repugnância que eu pude sentir por trás daquela impassível máscara, e então aquela
imagem de metal se virou uma vez mais para mim.
“Adeus, Tarl de Ko-ro-ba,” ela disse. “Não se esqueça de Dorna a Altiva, pois nós
temos contas a acertar!”
Eu assistia o cesto balançando abaixo do pássaro enquanto ele voava fazendo seu
caminho sobre a cidade.
O pássaro agora era nada mais que um cisco no céu azul sobre a cidade livre de
Tharna.
Dorna a Altiva, graças ao sacrifício de Thorn, seu capitão, tinha conseguido fazer
sua fuga, embora seu destino eu não ousaria conjecturar.
Sorri comigo mesmo, pensando que ela teria poucas oportunidades para tais
questões. De fato, se ela conseguisse sobreviver de qualquer modo, ela teria sorte se não
211
Foragidos de Gor
se encontrasse vestindo um anel de tornozelo na corrente de algum mercador de
escravos.
Talvez ela seria comprada para a cozinha de um cilindro Goreano e sua vida se
revelaria limitada aos azulejos das paredes e ao vapor e sabão dos baldes de limpeza. Ela
poderia ganhar uma esteira de palha úmida e um camisk, sobras das mesas das salas de
jantar, e chibatadas caso ousasse deixar a sala ou fugir de seu trabalho.
Mas eu me livrei desses pensamentos, sobre qual poderia ser o destino de Dorna
a Altiva.
212
Foragidos de Gor
XXVI
Nestes últimos dias passados em Tharna eu tive o tempo necessário para escrever
esta estória. Agora que ela foi contada eu devo começar minha jornada para as
Montanhas de Sardar.
Eu vou bater com minha lança no portão e o portão se abrirá, e quando entrar eu
ouvirei o fúnebre som das grandes barras presas ao portão, significando que mais um dos
Homens Abaixo das Montanhas, outro homem mortal, ousou entrar em Sardar.
Eu entregarei este manuscrito para algum membro da Casta dos Escribas que
encontrar na Feira de En’Kara na base de Sardar. A partir desse ponto se ele vai ser
passado adiante ou não, vai depender, assim como muitas outras coisas que eu passei a
amar nesse mundo bárbaro – da vontade inescrutável dos Reis-Sacerdotes.
Eles tiraram de mim meu pai e a garota que eu amava, e meus amigos, e me deram
sofrimento e privação, me expuseram ao perigo, e ainda assim, eu sentia que de um modo
estranho, a despeito de mim mesmo, eu tinha servido a eles – sentia que era o desejo deles
213
Foragidos de Gor
que eu viesse a Tharna. Eles tinham destruído uma cidade, e de certo modo, restauraram
outra.
Que tipo de coisas eles são eu não sei, mas estou determinado a descobrir.
Muitos entraram nas montanhas e muitos devem ter aprendido os segredos dos
Reis-Sacerdotes, embora nenhum deles voltou para contar.
Tharna agora é uma cidade diferente do que qualquer coisa que já tivesse sido na
memória dos homens vivos.
Sua regente – a graciosa e bela Lara – é sem dúvida um dos mais sensatos e mais
justos dos soberanos neste mundo bárbaro, e dela foi a tortuosa tarefa de recuperar uma
cidade despedaçada pela guerra civil, de fazer paz entre facções e agir de forma justa com
todos. Se ela não fosse amada como é pelos homens de Tharna sua tarefa seria
praticamente impossível.
Quando ela ascendeu uma vez mais ao trono nenhuma nota de proibição foi
postada mas sim uma anistia geral foi garantida a todos, tanto para aqueles que
abraçaram sua causa quanto para aqueles que tinham lutado por Dorna a Altiva.
O sangue correu solto nas ruas de Tharna depois da revolta e homens enfurecidos,
tanto os rebeldes quanto os defensores, iniciaram uma caçada brutal às máscaras de prata.
Aquelas pobres criaturas foram caçadas de cilindro a cilindro, de salão a salão.
Quando encontradas elas eram arrastadas para as ruas, sem máscara, cruelmente
amarradas juntas e guiadas para o palácio pela ponta das armas, suas máscaras pendiam
sobre seus pescoços.
Algumas das Máscaras de Prata foram descobertas até mesmo nos esgotos abaixo
da cidade e estas eram afugentadas por gigantes urts em coleiras através dos longos tubos
até que enchessem as redes de captura posicionadas nas aberturas da rede de esgoto.
Outras Máscaras de Prata tinham se refugiado nas montanhas além dos muros e
estas foram caçadas como sleens por um bando de camponeses irados, que se
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Foragidos de Gor
posicionavam formando um anel, e as direcionavam para o centro do círculo, onde, sem
máscaras e amarradas, elas eram tocadas para a cidade para encontrar seu destino.
Muitas das máscaras de prata no entanto, quando entenderam que sua batalha
tinha sido perdida e que as leis de Tharna seriam irrevogavelmente aniquiladas, vieram
por sua própria vontade para as ruas e se submeteram da forma tradicional de uma
prisioneira Goreana, se ajoelhando, abaixando a cabeça, e levantando os braços, pulsos
cruzados para que fossem amarrados.
Eu mesmo estava aos pés dos degraus do trono de ouro quando Lara ordenou que
a gigante máscara de ouro pendurada atrás dela fosse retirada da parede pelas lanças e
jogada ao chão, aos seus pés.
Não mais aquela fria e serena fisionomia iria espreitar a sala do trono de Tharna.
“Levem isso para ser derretido,” Lara tinha dito, “a transformem em discos tarn
de ouro e distribuam para aqueles que sofreram em nossos dias ruins.”
“E acrescentem aos discos tarn de ouro,” ela tinha exclamado, “discos tarn de prata
que devem ser feitos das máscaras de nossas mulheres, pois daqui em diante em Tharna
nenhuma mulher vestirá uma máscara, seja de ouro ou seja de prata, nem mesmo se ela
for a Tatrix de Tharna em pessoa!”
E assim que ela falou, de acordo com os costumes de Tharna, suas palavras
viraram leis e a partir daquele dia nenhuma mulher em Tharna poderá vestir uma
máscara.
Nas ruas de Tharna, logo depois do fim da revolta, as cores das castas de Gor
começaram a aparecer abertamente nas vestes dos cidadãos. Os maravilhosos detalhes
reluzentes da Casta dos Construtores, por tanto tempo proibidos, ditos frívolos e caros,
começaram a aparecer nas paredes dos cilindros, até mesmo nos próprios muros da
cidade. Ruas em cascalho agora estavam sendo pavimentadas com blocos de pedras
coloridas colocadas de forma padronizada para agradar aos olhos. A madeira do grande
portão foi encerada e seu bronze polido. Novas pinturas resplandeciam nas pontes.
O som dos sinos de caravanas não é mais um som estranho em Tharna e torrentes
de mercadores traçavam seu caminho até os portões, para explorar o mais surpreendente
de todos os mercados.
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Foragidos de Gor
Aqui e ali a montaria de um tarnsman se gabava com seu arreio de ouro. Em um
dia no mercado eu vi um camponês, com seu saco de farelo de Sa-Tarna em suas costas,
cujas sandálias eram feitas de tiras de prata.
Talvez seja uma coisa pequena, ver no cinto de um artesão uma fivela de prata do
estilo usado na montanhosa Thentis ou notar a delicadeza das enguias desidratadas de
Port Kar no mercado, mas essas coisas, por mais pequenas que fossem, mostravam para
mim uma nova Tharna.
Uma mudança que achei interessante, embora eu não possa aprovar de coração,
os corrimões foram removidos das pontes altas de Tharna. Eu achei isso sem sentido, e
talvez perigoso, mas Kron tinha dito simplesmente, “Que aqueles temem andar sobre as
pontes altas, não andem sobre as pontes altas.”
No vigésimo dia após ser declarada a paz em Tharna, o destino das máscaras de
prata foi determinado.
Elas foram amontoadas, amarradas umas às outras pelo pescoço, sem véu, pulsos
presos atrás em suas costas, organizadas em longas filas na arena dos Entretenimentos
de Tharna. Lá elas puderam ouvir o julgamento de Lara, sua Tatrix. Elas se ajoelharam
perante ela – uma vez orgulhosas máscaras de prata, agora, tementes e indefesas
prisioneiras – sobre a mesma areia reluzente que tinha tão frequentemente sido machada
com o sangue dos homens de Tharna.
Lara tinha pensado muito sobre tais questões e as tinha discutido com muitos,
incluindo eu mesmo. No final, ela tomou sua decisão por conta própria. Eu não acho que
se eu tivesse de decidir, eu seria tão duro quanto ela, mas eu admito que Lara conhecia
sua cidade e suas máscaras de prata melhor do que eu.
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Foragidos de Gor
Eu reconhecia que não seria possível restaurar a velha ordem de Tharna, nem era
desejado que fosse assim. Também, eu sabia que não havia mais nenhuma provisão
adequada – dada a destruição das instituições de Tharna – para abrigar indefinidamente
um grande número de mulheres livres dentro dos muros da cidade. A família, por
exemplo, não existiu em Tharna por gerações, tinha sido substituída pela divisão entre
os sexos e as isoladas creches públicas.
E também deve-se lembrar que os homens de Tharna que tinham provado uma
mulher durante a revolta, agora demandavam por elas como que por direito. Nenhum
homem que tivesse visto uma mulher nas Sedas de Prazer, ou assistido ela a dançar, ou
ouvido o som de uma sineta de tornozelo, ou observado o cabelo de uma mulher, solto,
caindo até sua cintura, não, nenhum deles poderia viver agora sem ter a posse de tais
deliciosas criaturas.
Também, deve-se observar que não seria realista oferecer para as máscaras de
prata a alternativa de exílio, pois isso poderia simplesmente condená-las à morte violenta
ou à escravidão em território estrangeiro.
Cada máscara de prata teria seis meses para que pudesse ser libertada, para viver
dentro da cidade e se alimentar nas mesas comuns, muito parecido como era antes da
revolta. Mas nesses seis meses ela teria de encontrar um homem de Tharna no qual ela
deveria se propor como uma Livre Companheira.
Caso ele não a aceite como uma Livre Companheira – e alguns homens de Tharna
certamente vão estar dispostos a não fornecer os privilégios de um Companheirismo
Livre para uma máscara de prata – ele pode então, sem mais delongas, simplesmente
encoleirar ela como sua escrava, ou se ele desejar, pode rejeitá-la completamente. Se ela
for rejeitada ela pode ainda se oferecer de forma similar para outros homens de Tharna,
e talvez outro e depois, outro.
Depois desses seis meses, contudo – teria ela talvez sido relutante em procurar um
mestre? – sua iniciativa em tais questões podia se perder e ela pertenceria ao primeiro
homem que circundou seu pescoço com o gracioso, brilhante emblema da servidão.
Nesses casos ela não é considerada de forma diferente, e não é tratada de forma diferente
daquelas garotas trazidas nas costas de um tarn, vindas de uma distante cidade.
Talvez Lara tenha entendido, e eu não, que tais mulheres como as máscaras de
prata deveriam ser ensinadas a amar, e só poderiam aprender isso de um mestre. Não era
sua intenção condenar suas irmãs de Tharna em uma interminável e miserável
escravidão, mas sim força-las a darem o primeiro passo na estrada que elas teriam de
viajar por conta própria, nas estranhas estradas que podem levar ao amor. Quando a
questionei, Lara tinha me dito que somente depois que se aprende o verdadeiro amor é
que se torna possível o Livre Companheirismo, e que algumas mulheres só conseguem
aprender a amar se estiverem em correntes. Eu refletia sobre suas palavras.
Kron permanece em Tharna, onde ele tem uma posição alta no Conselho da Tatrix
Lara.
Andreas e Linna vão deixar a cidade, pois ele me disse que tem muitas estradas
em Gor que ele ainda não vagou e ele acha que em uma delas ele pode encontrar a canção
pela qual ele sempre procurou. Eu espero com todo meu coração que ele a encontre.
A garota Vera de Ko-ro-ba, pelo menos por enquanto, irá residir em Tharna, onde
ela irá viver como uma mulher livre. Por não ser da cidade ela é isentada das restrições
impostas sobre as máscaras de prata.
Se ela vai ou não escolher continuar na cidade eu não sei. Ela, assim como eu, e
todos de Ko-ro-ba, é uma exilada, e exilados às vezes acham difícil chamar uma cidade
estrangeira de casa; às vezes eles consideram os riscos da vida selvagem preferível ao
abrigo de um muro alienígena. E também, em Tharna poderia encontrar a memória de
Thorn, um capitão.
Esta manhã eu disse adeus para a Tatrix, a nobre e bela Lara. Eu sei que nós
gostávamos um do outro, mas nossos destinos não eram os mesmos.
“E caso eu seja mais uma vez tentada a ser arrogante ou cruel,” ela disse, sua voz
estava risonha, “eu vou simplesmente lembrar que uma vez fui vendida por quinze
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discos tarn de prata – e que um guerreiro uma vez me comprou por nada mais que a
bainha de uma espada e um elmo.”
Ela olhou para mim, seus olhos cheios de lágrimas, ainda assim sorrindo. Ela riu
por um momento. “E se o tempo chegar, Guerreiro, quando você desejar uma escrava,
alguma garota para vestir sua seda e sua coleira, sua marca se assim quiser – lembre-se
de Lara, aquela que é a Tatrix de Tharna.”
Ela irá governar em Tharna e governar bem, e eu irei começar minha jornada para
Sardar.
Eu falo como se meu frágil braço pudesse fazer frente ao poder dos Reis-
Sacerdotes. Quem sou eu para desafiar seu poder? Eu não sou nada; nem mesmo um grão
de poeira, levantado pelo vento como um minúsculo punho em desafio; nem mesmo a
folha da grama que arranha o tornozelo de deuses que caminham sobre ela. Ainda assim,
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Foragidos de Gor
eu, Tarl Cabot, vou para Sardar; vou me encontrar com os Reis-Sacerdotes, e deles,
embora sejam os deuses de Gor, eu vou cobrar uma conta pendente.
Eu me pergunto algumas vezes se caso eu tivesse ido antes para Sardar se minha
cidade não teria sido destruída. Ao meu ver, se eu tivesse simplesmente retornado a Gor,
e retornado para minha cidade, meu pai, meus amigos e minha amada Talena, eu não
teria me preocupado em entrar em Sardar, eu não teria me preocupado em renunciar às
alegrias da vida para ir investigar os segredos daquelas montanhas negras. E eu me
perguntei algumas vezes, e tal pensamento me apavora e me estremece, será que minha
cidade não tinha sido destruída apenas para que eu fosse até as montanhas dos Reis-
Sacerdotes? Pois eles certamente sabiam que eu poderia desafia-los, que eu poderia ir
para Sardar, que eu subiria até as próprias luas de Gor, para exigir satisfação.
E foi assim que eu talvez fui movido no tabuleiro dos Reis-Sacerdotes – talvez eu
tenha jurado minha vingança e partido para Sardar do jeito que eles sabiam que eu faria,
do jeito que eles calcularam e pensaram, do jeito que eles planejaram. Mas mesmo assim
eu disse para mim mesmo, que era eu quem me movia, e não os Reis-Sacerdotes, mesmo
que eu esteja me movendo sobre seu tabuleiro; se é da intenção deles que eu vá cobrar
uma pendência, essa é minha intenção também; se isso é o jogo deles, então é também o
meu.
Mas por que os Reis-Sacerdotes desejariam que Tarl Cabot fosse até suas
montanhas? Ele não é nada para eles, nada para nenhum homem; ele é apenas um
guerreiro, um homem sem cidade para chamar de sua, sendo assim, um foragido. Poderia
os Reis-Sacerdotes, com seu conhecimento e poder, necessitar de tal homem? Mas os Reis-
Sacerdotes não necessitam de nada dos homens, e uma vez mais meus pensamentos
tenderam para a tolice.
Agora é hora de por a caneta de lado. Eu lastimo apenas o fato de ninguém voltar
de Sardar, pois eu amo a vida. E neste mundo bárbaro eu pude ver a vida em toda sua
beleza e crueldade, em toda sua glória e tristeza. Eu aprendi que a vida é esplêndida,
assustadora e sem preço. Eu pude ver isso nas torres destruídas de Ko-ro-ba e no voo de
um tarn, nos movimentos de uma linda mulher, no brilho das armas, no som dos
tambores de tarn e no estrondo de um trovão sobre o campo. Eu pude encontrar isso nas
mesas com companheiros de espada e no estrondo dos metais na guerra, no toque dos
lábios e dos cabelos de uma garota, no sangue de uma sleen, nas areias e nas correntes de
Tharna, no perfume das talêndulas e no silvo de um chicote. Eu sou grato aos elementos
imortais que conspiraram para que eu pudesse existir.
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Eu era Tarl Cabot, Guerreiro de Ko-ro-ba.
Eu estou satisfeito.
Eu desejo-lhe o bem,
Tarl Cabot.
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Uma Nota Conclusiva
no Manuscrito
O MANUSCRITO TERMINA COM a carta de Tarl Cabot. Não havia nada mais.
Nestes severos meses depois da entrega misteriosa do manuscrito, nenhuma outra
palavra foi recebida.
J.N.
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