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É um caso sério.

Ele, me parece, cessou de consumir substâncias

ilícitas e agora só quer saber de interpretar, minuciosamente, os

acordes do velho Ray, Ray Charles. Tome cuidado com ele: está

ficando violento e há umas duas semanas imprimiu em seu bíceps

esquerdo a tatuagem reproduzindo a figura de Jimi Hendrix,

cabeludo e indevassável, realizando tremendas proezas amorosas com

a virtuosíssima Rainha da Grã-Bretanha, Elizabeth.

E digo mais: Westinghouse é o verdadeiro pai do mancebo, cuja

concepção se dera numa chuvosa tarde de quinta-feira, às margens

do Danúbio, numa bucólica plantação de tulipas húngaras. Nessa

época, ruim para os artistas, empregara-se como malabarista num

estranho circo místico. O mágico da trupe não ia muito com a cara

dele. Daí, numa noite em que repousavam instalados num decaído

cabaré do centro de Budapeste, o mágico, com suas afiadíssimas

unhas de mentecapto, furou-lhe sem piedade os dois olhos, enfiando-

lhe os dedos nas órbitas cranianas enquanto fazia aparecer e

desaparecer sete coelhinhos geneticamente modificados e com uma

sinistra aparência humana.

Entendi perfeitamente! Isto posto, fica fácil perceber que ao

disfarçar-se de cego, Westinghouse travestia-se de cordeiro manso,

mas, nas madrugadas transfigurava-se no mais tenebroso monstro

das montanhas do Himalaia. Ele costumava, por trás de suas lentes,

observar detalhadamente todos os passos naquele navio, em seu

Steinway & Sons nos intervalos entre uma 5ª Beethoven e uma

"oitava" de Cajú e Castanha. A viagem seguia sangrando as águas do

pacífico...
Não resta dúvida. Ao lembrar de suas origens nas afastadas

plantações de algodão do baixo Mississippi, recordava-se do avô,

velhote forte, solerte, com uma voz de trovão, que, quando saía às

sextas-feiras à noite para se reunir com os amigos na peculiar

taverna do Joey, descarrilava em acordes melancólicos as agruras de

sua vida num formidável Blues. Foi um dos pioneiros. Isso na década

de 20. Westinghouse, ainda garoto, recordava-se e se punha a

chorar. Suas lágrimas eram espessas, densas e possuíam uma

esquisita tonalidade azul-celeste. Isso não apiedou o grande mágico

Gregory, que, anos mais tarde, como se sabe, cravou-lhe as

afiadíssimas unhas de mentecapto nas órbitas cranianas. O negro

tinha distúrbios muito sérios e um talento raro. Ninguém sabia muito

bem da sua vida, do que tinha passado, das coisas que já tinha visto.

Ele não fazia o menor esforço em esclarecer. Pouco falava. Não tinha

família nem amigos. Dizem que nessa época, quando tocava o seu

incorruptível Steinway & Sons nos mares do Pacífico, já havia

ultrapassado a barreira dos cem anos.

É importante deixar patente, que em passagem pela costa da França,

mais precisamente no porto de Marselha, lá pelos idos de 30,

Westinghouse conheceu o filho do Conde Mondego. Albert Mondego.

Na época, comandava uma embarcação que estaria seguindo para o

esconderijo de Napoleão Bonaparte, na Ilha de Elba. Em meio ao

jantar solene à bordo do navio visitante, Westinghouse novamente

surpreende com "Danúbio azul", que de imediato ganha a simpatia da

família Mondego. Pois bem, segundo escritas da época, conta-se que

nesta noite, Albert o convidara para uma visita ao seu navio, que

partira na manhã seguinte. Destemido como era, num salto solto,

adentrou numas das mais bizarras histórias de sua vida... Piratas,


prostitutas, o quadro era uma mistura de pânico e sadomasoquismo

ao mesmo tempo. Mas, era a fina flor da situação que o esperava...o

pior estava por vir...

Creio que não tenha falado antes, prezado leitor, mas Solomon Hughs

Westinghouse padecia de uma estranha anomalia psíquica. Alternava

períodos de isolamento total com inconsequentes ápices de

popularidade. Albert curtiu o negro de cara. Principalmente, no

suntuoso salão de festas da embarcação, sob à luz das velas que

iluminavam o ambiente, dedilhava com suas nervosas mãos algumas

das mais belas e antigas melodias ciganas do leste europeu. Albert

não se importava com nada. Tinha os mais absurdos caprichos.

Mandava, por exemplo, sua tripulação ancorar às costas de alguma

ilha perdida do Mediterrâneo com a justificativa de catar conchinhas.

Apreciava-as coloridas e espalhafatosas. Doutra feita, parou no litoral

da Tunísia, mais precisamente em Túnis, com a proposta de

convencer os mercadores a negociar suas quinquilharias e suas

calcinhas de pura renda, que guardava num baú de mogno, herdadas

de antigas batalhas amorosas. Ninguém se sujeitou a tal, obviamente,

muito embora um charlatão de origem duvidosa, de língua berbere,

tenha se inclinado um pouco. Westinghouse ria de suas arruaças. Ele,

Albert, com a sofisticada educação que recebera, não ria

abertamente, mas, com um meio sorriso, dava dois tapinhas nas

costas do crioulo, coçava o nariz com uma afetação desnecessária e,

em seguida, adentrava em outros assuntos de cunho meramente

chauvinista. Westinghouse, nessas horas, chamava-lhe,

carinhosamente, o "Fariseu dos Sete Mares".

Certamente que havia um clima pitoresco ao ambiente. Porém, seria

um plano infalível para assassinar o Conde, seu próprio pai. Albert


estava preparado. Pois, numa estratégia política maquiavélica,

tornara-se amigo do Magistrado Chefe da Suprema Corte da França,

Monsieur Clarion, que seria seu cúmplice. Solomon Westinghouse

apavorou-se ao saber do plano. Mas, já era tarde. Tornava-se

prisioneiro deles. Tarde da noite, no convés do navio, o pianista

sentia um resfriamento no seu pé esquerdo. Salpiscava sangue por

todos os lados, pois, um crocodilho comia o seu dedo menor. Era um

animal de estimação de Zatara, o pirata disfarçado de dançarina que

animava o bacanal...

E vou além: Westinghouse não se abalou. Fez o curativo necessário,

barbeou-se, escreveu duas cartas de amor endereçadas às suas

amantes de Moscou, horrorizou-se com as próprias mãos que

começavam a crescer desenfreadamente, e, com um alicate antigo,

descomunal, que retirara de sua mala, não sem antes ter dopado o

crocodilo, arrancou-lhe todos os dentes durante a noite e com eles

fez um colar. Deu-o de presente a Zatara. Depois, no jantar do outro

dia, viu como o pirata o encarava com perversidade enquanto tocava

alguma sonata de Chopin. Albert estava mesmo decidido a levar a

cabo seu projeto. Sempre vivera de pequenos golpes. Mas este em si

era o seu plano mais ambicioso. Ele não tinha escrúpulos. Tinha se

aproximado de Monsieur Clarion, não menos escrupuloso, com a clara

intenção de adquirir influência e notoriedade nas altas rodas. Certa

vez, enquanto aguardava uma entrevista com o Magistrado,

conheceu-lhe a filha, Sofia Villefort, com os olhos empapuçados de

ressaca e seu jeito nervoso de agir. Tinha epilepsia. Albert encantou-

se. Desse encontro a estarem noivos não demorou muito. Eles

traquinavam no solar de Clarion durante os ensolarados dias do

verão de Nice. Seu pai concordava com tudo.


Há de constar nos autos que enquanto tudo isso acontecia,

Westinghouse continuava sua sacrossanta odisséia através do mundo.

Talvez não tenha ainda mencionado, mas o pianista era igualmente

talentosíssimo cozinheiro, mormente os condimentados pratos da

Andaluzia. Albert obrigava-o a passar dezoito horas por dia na

cozinha da famosa embarcação, preparando massas, temperando

carnes e se divertindo com o famigerado réptil banguela de Zatara.

Ele adorava isso. Mandou trazer um cravo antigo, roubado de um

monastério de Leipzig, para ajudá-lo a passar o tempo naquele

ambiente. Adorava particularmente as fugas de Bach. Quando as

interpretava, realizando sutis variações, o animalzinho da boca

enorme olhava para ele e parecia rir. Os dois se tornaram íntimos.

Zatara fora escorraçado do navio e lançado ao mar após descobrirem

sua verdadeira identidade. Assim, o gracioso órfão ficou sob a tutela

de Solomon Westinghouse.Faziam tudo juntos, e, quando o pianista,

esgotado depois de mais um dia estafante, ia dormir, ou melhor,

cochilar, o animal enroscava-se carinhosamente sobre a

fantasmagórica cabeleira do seu novo dono, e, entre pequenos

rosnados, adormecia.

Há quem diga, com muita veemência aliás, que Westinghouse era

visto, todas as madrugadas, no convés do navio, uivando para a lua,

com sua desgrenhada cabeleira açoitada pela ventania. Dizem até que

nessas horas cresciam pelos por todo o seu corpo, seus olhos ficavam

encarnados como fogo, seus pés e mãos adquiriam formas de garras

de alguma ave de rapina, grunhia horripilantemente, com uma voz

que parecia vir das profundezas, uma canção que aprendera quando

bambino com os marinheiros tailandeses. O réptil ficava a olhá-lo,

encantado. Depois, com as expressões tranquilas, apaziguadoras,


retornava ao seu cubículo afagando o animal entre as mãos. Ninguém

podia tocar nos seus pertences. Ninguém jamais soube o que ele

carregava na mala. Só conheciam mesmo seu famoso e embolorado

fraque verde-musgo, adornado com diversas medalhinhas e

condecorações do Exército francês; sua calça de puro linho de tom

levemente mostarda que jamais fora vista ser trocada e suas

esburacadas sandálias de camponês, de couro de búfalo, adquiridas ao

custo de suas peregrinações no Vaticano.

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