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s o
desviante
universidade federal do ceará _ centro de tecnologia
departamento de arquitetura, urbanismo e design
S UM ÁRIO
ponto de partida
* primeiras considerações, pág 5.
* metodologia, pág 12.
coreografia (parte 1)
* existências possíveis,
possíveis existências, pág 19.
* renata questionou o limite, pág 20.
* o benfica é um bairro queer?, pág 23.
* onde se concentra a cultura noturna do bairro?, pág 27.
* interseccionalidade, pág 28.
* como mapear a desobediência de gênero?, pág 31.
* considerações sobre o diagnóstico, pág 33.
transposição (parte 2)
* com nome e com endereço, pág 37.
* disposição em planta, pág 39.
* relação com o entorno e acesso, pág 42.
* acessibilidade e inclusão, pág 45.
* arquibancada, pág 48.
* múltiplas configurações, pág 51.
o salão (parte 3)
* perspectiva externa do conjunto, pág 55.
* corte perspectivado, pág 56.
* planta pav. térreo, pág 57.
* planta pav. superior, pág 57.
* planta subsolo, pág 58.
* perspectiva interna, pág 58.
por fim
* referências, pág 59.
ponto de partida
“Arquitetura = imposição ao mundo de estruturas que ele nunca pediu e que antes
existiam apenas como nuvens conjeturais no espírito de seus criadores.” (Rem Koolhaas)
“Todos sabem que nossas cidades foram feitas para serem destruídas.” (Caetano Veloso)
primeiras considerações
Começo a escrever este trabalho em Lisboa, Portugal, a terceira cidade em que habito, já há
um tempo razoável para que possa chamá-la de casa. Acredito que ter migrado do Brasil para
cá e ter tido a oportunidade de viver em cidades tão geográfica e politicamente distantes
tornou muito evidente uma coreografia própria do meu ser, não importa onde eu esteja. Esse
movimento é algo maior do que eu, o que também se torna perceptível à medida em que
encontro outras pessoas que também o tecem, no mesmo passo. Trata-se do encontro de
corpos dissidentes, muitas vezes em uma parte subterrânea, escondida e caótica da cidade,
onde quem desobedece o gênero e a sexualidade normativa pode existir. Essa reunião se faz
muito necessária. Ora, muitas vezes, é fora de casa que entendemos nossa identidade social,
ao nos distanciarmos dos embates travados em Família, primeiro núcleo de socialização que,
em geral, já denuncia desde cedo qualquer tipo de desobediência. Pessoalmente, foi buscan-
do essa cultura desobediente fora de casa como eu pude encontrar mais de mim e entender
que muito dessa coreografia é uma reação à violência que sofremos.
imagem 01: “Dia Nacional da Visibilidade Trans”. Foto retirada do Instagram @levibanida. Foto de Aurélio Alves para o Jornal O POVO.
imagem 02: “Bonde carnavalesca vyade sapatanika transvestygênere vadya y demonýaca”. Foto retirada do Instagram @carnavalnoinferno.
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O termo coreografia foi constantemente ressignificado desde os anos 1960 e não pode ser entendido “somen-
te como sequências fixas de movimentos passíveis de repetição idêntica” mas como uma “estrutura multidi-
mensional que organiza corpos vivos e/ou não-vivos, além de experiências e pensamentos” (Moraes, 2019). É
um conceito que supera sua relação com a dança e se torna um campo autônomo de conhecimento. A palavra
ganha força ainda em 1700, quando um sistema de notação gráfica de dança desenvolvido por Pierre Beau-
champ é divulgado na obra ‘Chorégraphie’ do coreógrafo francês Raoul Auger Feuillet. “Coreografias eram
partituras anotadas de danças, e coreógrafos eram as pessoas que podiam ler e escrever a notação” (Foster,
2016, p. 1). Entretanto, com o tempo o termo foi usado de diferentes formas que fazem alusão a algo menos
rígido e normativo. O coreógrafo William Forsythe, por meio da sua exposição de 2019, ‘Choreographic
Objects’, reflete: “a palavra em si, como os processos que descreve, é elusiva, ágil e enlouquecedoramente
incontrolável. Reduzir coreografia a uma definição única é não compreender o mais crucial de seus mecanis-
mos: resistir e reformar concepções anteriores de sua definição.” Em 2013, a professora italiana Stamatia
Portanova lançou o livro ‘Moving without a Body’, no qual concebe coreografia como uma forma abstrata de
compor padrões de movimento no pensamento. Expandindo para o ambiente, ela argumenta que coreografia
como movimento-pensamento explicaria o motivo de ações coordenadas de bandos de aves ou de carros
poderem ser definidos como tal — visão que corrobora a de Foster (2016): “os edifícios podem coreografar o
espaço e o movimento das pessoas através deles”. Em 2010, Claire Bishop publicou o livro ‘Installation Art’, no
qual colocou a experiência do corpo como o núcleo desse novo campo artístico. Influenciada por essa pers-
pectiva, Juliana Moraes publicou, em 2015, o artigo ‘Coreografia e Instalação’, no qual sugeriu que algumas
obras de arte solicitam um tipo de envolvimento corporal que poderia ser definido como coreográfico. Ao
pensar coreografia como uma disposição à composição corpo-espaço-tempo para além dos limites tradicio-
nais, obras de fora do circuito da dança passaram a partilhar do conceito, assim como atividades situadas
além dos campos artísticos.
Neste trabalho, o objeto de estudo é a coreografia dos corpos desobedientes de gênero, que enfrentam as
normas sociais relacionadas ao binário homem-mulher. Mesmo sofrendo repressão sistemática e estando
sujeitos a violência, esses corpos não deixam de se movimentar na cidade e criam novos modos de vida.
Entender esse movimento é importante para se pensar o desenho dos espaços.
imagem 03: “Fique perto das suas”, 2019. Bandeira, 100 x 150 cm, feita pelo coletivo Terroristas del Amor. Foto retirada do site ‘sp-arte.com’.
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Esse trecho de um artigo publicado por Araújo, Muniz e Melo (2018, p. 69) que reflete sobre identi-
dade e gênero a partir da experiência de um casal não-binário na cidade de Fortaleza, Ceará,
demonstra o ruído que a “guerra dos gêneros e guerra aos gêneros”, como nomeia Rolnik (1996),
gera na cidade em que nasci e em que comecei a estudar Arquitetura e Urbanismo. Mas não só
por meio da grade curricular obrigatória deste curso que me inclinei a estudar sobre o que viria
a ser o tema deste trabalho, se não também pela minha própria vivência na metrópole. Paul B.
Preciado, em 2012, ponderou em seu artigo “Arquitetura como uma Prática de Desobediência
Política” sobre a dificuldade da classe profissional da qual em breve farei parte em assimilar as
transformações sociais relacionadas aos estudos de gênero das últimas décadas:
O conhecimento social e urbano fomentado na sala de aula foi complementado pelas experi-
mentações que meu corpo jovem e confuso passara a tecer na cidade, sobretudo no bairro Ben-
fica, onde se localiza o Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Ceará, além dos vários Centros de Humanidades entre outros equipamentos ligados a este polo
acadêmico. Foi nesta parte da cidade onde eu - que sempre havia estudado em colégios particu-
lares e vivido em condomínios da classe média branca cearense - pude entender mais sobre a
dissidência em seus vários aspectos, sobretudo entender mais sobre a coreografia de sobrevi-
vência realizada por corpos julgados estranhos numa perspectiva de desobediência ao binário
homem-mulher e como eles criam e recriam constantemente seu habitat na cidade.
imagem 04: Cartazes desenvolvidos no contexto do programa Cidade Queer pelo laboratório gráfico desviante. Retirado de ‘edicoesaurora.com’.
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Diaz e Souza escrevem em ‘Corpos dissidentes: o movimento como busca do bem-viver’ (2019)
sobre o diálogo entre a dança e a busca pela vida:
“As vivências se estabelecem nos corpos e constroem sentidos circulantes em movimentos de comple-
mentaridade. As danças emergem como mecanismos possibilitadores deste fluxo, que é movimento de
vida e que gera energias vitais para a existência e continuidade das subjetividades e coletividades
historicamente subalternizadas.”
Nessa perspectiva, também é interessante perceber como essa comunidade se organiza para
criar no espaço condições que lhe permita viver sua sexualidade sem opressão, mas não só:
também sua liberdade de expressão, dentre outras “energias vitais para a existência”. Assim,
em ambientes gays, por exemplo, não se destacam apenas o afeto ou sexo entre corpos de
mesmo gênero, mas também a produção cultural desses sujeitos como seres sociais.
imagem 05: “Palco de importantes concursos e eventos, tais quais ‘Transformistas do Ano’, ‘Top Drag’ e ‘Transfest’, a Divine foi a boate que mais
perdurou no cenário dos espetáculos trans de Fortaleza. Inaugurada em janeiro de 2000 e fechada em 2015, a boate apresentava espetáculos
de transformistas, travestis e drag queens todas as sextas, sábados e domingos, configurando-se como o ápice para a visibilidade de perfor-
mers trans, que eram admiradas por seu talento na arte de dublar, dançar e interpretar.” Foto retirada do Instagram @arquiteturabicha.
imagem 06: “Boate Medieval, a primeira abertamente gay em São Paulo, na Rua Augusta, em 1971.” Foto retirada do Instagram @arquiteturabicha.
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Ora, se tratamos o movimento dos corpos queer como uma dança, talvez esta seja menos pre-
viamente coreografada do que se pode imaginar. Como o desvio se traduz na dança? Sabe-se
que a improvisação pode ser um recurso compositivo nas artes cênicas, sendo seu caráter
imprevisível muito cheio de outras qualidades. Há de se estar atento e vivo para conseguir se
adaptar a partir do “erro”. E como essas noções de movimento se aplicam à criação arquitetôni-
ca e urbana? Se a arquitetura tradicional é uma coreografia limpa, um balé clássico, a constru-
ção de um espaço que contempla esse movimento dissidente de gênero se dá aos pulos, aos
rodopios, e algumas manifestações culturais encontradas no cenário underground do Benfica,
as que fogem mais da norma, são um tropeço.
“Em algumas circunstâncias, falhar, perder, esquecer, desfazer, destruir, libertar-se e não saber podem,
de fato, oferecer mais criatividade, mais cooperação e mais formas surpreendentes de estar no mundo.
Fracassar é algo que pessoas queer fazem e sempre fizeram excepcionalmente bem. [...] Que tipos de
recompensa fracassar pode nos oferecer? Talvez, mais obviamente, o fracasso nos permite escapar das
punitivas normas que disciplinam o comportamento e gerenciam o desenvolvimento humano com o
objetivo de nos levar de infâncias rebeldes à ordenada e previsível maturidade.”
O autor também nos lembra, que da perspectiva feminista, por exemplo, o fracasso pode represen-
tar uma vitória, à medida que o sucesso da mulher costumeiramente foi medido por normas mascu-
linas. Falhar, neste caso, muitas vezes pode significar um alívio, livrar-se da pressão do patriarcado.
Esta pesquisa põe em foco a comunidade LGBTQIA+ para além da sua vulnerabilidade e celebra sua
produção de cultura, de arte e de lazer, a partir do “fracasso”, além de evidenciar a importância dessa
discussão em meio aos profissionais que constroem o lugar. Arquiteto, economista e professor, Bloch
reflete sobre o desenho dos espaços para a fruição do tempo e para a convivência social (2017):
A necessidade de lazer é universal, e as culturas locais devem ser consideradas como condicionantes
para a correta aproximação ao “fazer” espaços de lazer; [...] para uma correta aproximação há que se
considerar as particularidades regionais, as microculturas, ouvir a comunidade local, desenvolver
ideias inclusive no sentido de áreas “abertas” à interação do usuário.
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O objetivo principal deste projeto é estudar a dinâmica criada pela cultura dissidente na cidade,
com foco na cultura desobediente de gênero, a cultura queer. Este termo, neste trabalho, é
entendido por aquilo que é desviante, estranho e excêntrico, aquilo que não segue a norma. Já
foi um termo usado pejorativamente para se referir a homossexuais, mas posteriormente foi
reinvidicado pela comunidade LGBTQIA+. Assim, esta coletividade, para mim, é composta pelos
indivíduos que discordam, divergem e se separam do grupo dominante por seus princípios e
comportamentos. Esse tipo de subjetividade que foge da conduta padrão esperada precisa ser
entendida para fortalecer uma prática mais coerente de arquitetos e urbanistas.
Definir o que é ‘queer’ é uma tarefa difícil, já que a palavra ganha força num contexto de fuga do quadro normativo das
categorizações. Para entender este termo nas perspectivas dos estudos sociais, podemos fazer uma linha do tempo.
Gênero é um conceito que teve seus estudos reforçados a partir da segunda onda do feminismo, entre os anos 60 e 80. O
ativismo político passava a fazer parte da esfera universitária americana, junto a movimentos a favor da democracia, da
liberdade de expressão e das mulheres. Vários autores começam a evidenciar as relações de poder que a diferenciação
identitária entre masculino e feminino cria na sociedade. O campo de estudo que busca compreender a relação entre esse
binário na sociedade se consolida no final dos anos 80 como “estudos de gênero”. Nesse contexto, cabe evidenciar que a
heterossexualidade acaba sendo a expressão de desejo sexual esperada na sociedade. Assim, mais tarde, iniciam-se as
investigações acadêmicas sobre gays e lésbicas. A “teoria queer” ou “estudos queer” só apareceram em meados dos anos
90. É nesse âmbito que Berenice Bento escreve (BENTO, 2015, p. 51) que “o primeiro ‘carimbo social’ que recebemos é aquele
que identifica a qual gênero nós pertencemos. (...) Ninguém nasce com os atributos comportamentais do gênero masculino
e do gênero feminino, cada sociedade elabora formas para definir padrões comportamentais para cada gênero.” Assim, é
importante destacar que um indivíduo cisgênero se identifica com o gênero que lhe foi imposto pelo seu sexo biológico no
momento do seu nascimento e que um indivíduo transgênero não.
É relevante salientar que muito se propõe discutir o ‘queer’ como uma arena de dúvidas, um campo radicalmente instável
que ainda está em construção, uma perspectiva de futuro sob constante resignificação. Dentro do Brasil e do espaço geopo-
lítico reconhecido como ‘Sul’ do mundo, também há a construção da ideia de que os estudos queer chegam aqui e se
mesclam com as experiências locais, precisando evoluir para dar conta das nossas características específicas. Em face desse
processo decolonial, também se discute um termo próprio como teoria cuiér, sudaka, cucaracha, teoria cu, entre outros.
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imagem 10: Banda Glamourings. Foto de Jamille Queiroz, retirada do Instagram @jmllqrz.
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metodologia
“Uma metodologia é sempre uma ficção. Como uma biografia, um corpo,
uma identidade. Quando penso na figura da metodologia, especificamente
a acadêmica, imagino-a como um algoritmo, um conjunto de instruções ou
regras sucessivas que têm como objetivo eliminar a dúvida em torno dos
procedimentos. O caráter fechado das metodologias acadêmicas me leva a
imaginá-las como processos fixos, padronizados e estáveis que não permi-
tem, nem com muito esforço, perverter as lógicas estagnadas que estudam
a validade científica ou institucional a partir da repetição.”
bio g rá fi c o-
representam uma coletividade específica. Dar ouvidos a
um grupo historicamente subalternizado é muito
importante. É sobre valorizar as subjetividades que
n a rra t i v a
podem ser encontradas no local. É sobre o projeto do
espaço se moldar a vivências reais, favorecendo plane-
jamentos emancipadores.
“Fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que
se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer”
uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer,
“fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente,
aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer,
portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e
submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências,
de um dia para o outro ou no transcurso do tempo.”
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história individual tra jetória social
hist ó ri as d e v i d a
história coletiva trajetória individual
e n tre v is ta s
“Eu defendo que o espaço não existe sem o Utilizar uma metodologia qualitativa
corpo. A cidade é corpo. Se tirarmos os também diz respeito à relação entre o pes-
corpos da cidade, ela fica desconfigurada. Às quisador e os entrevistados. É criado um
vezes, os nossos corpos definem mais o universo de experiências humanas através
espaço do que o espaço define nossos do diálogo que embasa a própria constru-
corpos. É uma troca muito visceral.” ção metodológica. Um trecho de uma entre-
vista, à esquerda, pode comprovar que as
João é um dos primeiros entrevistados. Ele ajuda a compor conversas iam validando o processo esco-
o processo de metodologia a partir de suas experiências. lhido para a apreensão do lugar.
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No primeiro contato com os participantes,
este projeto é apresentado como um estudo
sobre a espacialização da cultura desobe-
diente de gênero no Benfica e na cidade.
Cada sujeito começa a contar sua história,
como acha melhor, nos moldes de uma
entrevista não-estruturada. A discussão é
guiada a partir de alguns conceitos que se
alinham com os estudos sobre o tema, que
avançam paralelamente no processo
de fundamentação teórica.
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A metodologia adotada divide o trabalho em três partes:
coreografia
acompanhado por
fa s e e x p l o r a t ó r i a constr ução do mar co
construção da trajetória de investigação; te ór ico conce itual
escolha do tópico de investigação; leituras sobre GÊNERO, TEORIA QUEER,
delimitação do problema e dos objetivos; GUETOS, IDENTIDADE, INTERSECCIONALIDA-
escolha dos instrumentos de coleta de dados; DE, METODOLOGIAS DE ANÁLISE SENSÍVEL DO
estudar como selecionar os entrevistados. LUGAR, AMBIENTE-EXPERIÊNCIA, MÉTODO DE
HISTÓRIAS DE VIDA, DISSIDÊNCIA e CIDADE
acompanhada por
a p ro fu n d am e n t o t e ó r i c o 05 e ntr e vi stas
desenvolver o estudo a partir de 5 possíveis vivências 05 existências desobedientes de
no bairro e entender a identidade desses moradores gênero possíveis no bairro Benfica
e/ou frequentadores habituais que têm forte
identificação cultural com o que tem sido produzido
no Benfica;
diagnóstico Benfica
confirmar a hipótese de que o Benfica se trata de um te r r ito r ialidade s qu eer
um polo que concentra a cultura desobediente;
transposição
d e fi n i ç ã o d o s d i s p o s i t i v os ar quite t ô nicos
transposição das histórias de vida para a construção do espaço
o salão
Aplicar os dispositivos estudados no projeto de um espaço multiuso a ser localizado na Rua Instituto do Ceará.
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imagem 17: Desenho de Simone Barreto, censurado pela Universidade de Fortaleza, no contexto da Unifor Plástica. Foto de Filipe Acácio.
imagem 18: Bordados do artista Rodrigo Lopes, parte da série "Pai", (2018). Fotos extraídas do Instagram @bichantirracista.
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coreografia
parte 1
existências possíveis, possíveis existências.
“A identidade, terminologia que se constrói há anos em estudos, pesquisas, teorias, hipóteses e proposições dentro da
área, perfaz-se hoje enquanto uma série de construções assimiladas pelo indivíduo como sendo formadoras do seu eu.
Sendo esse eu e essas construções altamente mutáveis, a identidade também apresenta-se enquanto fator mutável [...] e
profundamente influenciada pela cultura. [...] Um dos recortes por qual pode ser enxergada a identidade é o gênero.”
[...] “Em uma outra possibilidade, temos a proliferação de uma camada que não almeja encaixar-se plenamente (ou de
maneira rígida) nessas cavidades binárias - ainda que esgarçadas - do ser homem e ser mulher. Que, apesar de entende-
rem que há como entender essas construções de maneira ampliada e mais complexa - sem pensarmos estritamente e
engessadamente nos dois termos como protótipos estáticos, mas sim como zonas de identidade -, ainda desejam identifi-
car-se por outras possibilidades, mais frescas, mais experimentais, mais únicas. Essas pessoas, que fogem do espectro do
que é ser homem ou ser mulher (ou do que é ser exclusivamente homem ou/e mulher) são identificadas enquanto pessoas
não binárias. Dentro da não binariedade, encontramos diversos gêneros possíveis para que as pessoas possam se alocar
em algum outro grupo identitário e, assim, trocar experiências com outras pessoas que se identifiquem assim.”
“O gênero se tece, assim, enquanto um espaço experimental, político e relacional, propondo uma rede que vai do profun-
do de cada ser para a sociedade como um todo, rasgando eixos e propondo fluxos diversos.”
l evi p r i m e i r a e x i s tên ci a
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mapa 01: Mapa de intervenções artísticas de Levi no Benfica. Autoria própria a partir da entrevista.
“Isso é evidenciado, por exemplo, até nessa última edição do Big Brother
Brasil que a gente está vendo por aqui, que fez muitos brasileiros discuti-
rem sobre a representatividade da comunidade negra na televisão. Como
o identitarismo é fraco, ele não dá conta dos afetos, não dá conta das
especificidades e não dá conta até das alianças políticas que a gente faz.
Não são todas as pessoas não-binárias que vão se alinhar à minha luta,
nem todas as pessoas trans, muito menos todas as LGBTQIA+. Inclusive,
existe uma parte muito grande da comunidade LGBTQIA+ que questiona a
minha luta não-binária e que inclusive questionaria esse próprio trabalho
e pesquisa em questão. Não se alinhar a um espaço identitário fechado
pode ser muito rico. O gênero dentro de caixas é bobo e frágil, é ruína. No
momento em que eu afirmo que gênero e sexualidade pra mim não fazem
sentido, mas que eu me afirmo como pessoa LGBTQIA+, e não-binária. Eu
busco, em conjunto, criar elos para garantir nossos direitos usurpados."
imagem 19: Recorte de fotos do acervo da artista drag e produtora cultural Levi Banida.
Fotos extraídas do Instagram @levibanida.
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renata segunda existência
r enata
“Todos sabem que nossas cidades foram feitas para serem destruídas.”
“Eu amo essa citação do Caetano porque fala sobre criação de mundos. A gente com
a nossa desobediência de gênero inventa novos espaços e novas possibilidades
para que o corpo consiga se mover e ocupar a cidade. Existem inúmeras formas de
você elaborar qualquer pensamento e é muito forte pensar nessa imposição ao
mundo de estruturas que ele nunca pediu. Toda forma de organização, dentro da
cidade, dentro da casa ou dentro do corpo, são só uma entre as várias possíveis.
Existem sempre outros mundos possíveis para serem criados. Existem formas de nos
reposicionarmos construtivamente, dando matéria, dando vida e possibilidades
que antes só existiam no ar, nos sonhos, no invisível.”
“Parabéns para nós e aos demais. Que também como nós, se vão, voltam
atrás. Que assim como nós, não tem paz. Parabéns para nós, irracionais.
Parabéns para nós, sem rivais. Parabéns para nós, parceiros infernais.”
Música “Os Passionais” da Mariana Aydar.
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mapas 02 e 03: Desenhos de
Renata, que ilustraram nossa
conversa na plataforma ‘Miro’.
Ela desenho caminhos que
faz no bairro e contou
histórias, marcando pontos
na cidade. A entrevista
completa pode ser conferida
no anexo final do trabalho.
“Muitas vezes, a gentileza é uma desobediência de gênero. Principalmente vinda por parte dos
homens, ou dessas subjetividades mais masculinas. Há uma música do Wado:
“Meu pai me queria homem. Eu preferi regar as plantas. Eu decidi colher as flores.
Eu aprendi com as flores. Benditas flores, sem vocês não sou ninguém.”
“Sim, eu percebo que desobedeço o gênero e a norma na forma de me vestir, na forma de me posicionar diante das
situações. Eu me posiciono sempre abrindo qualquer lógica muito determinista ou binária. Me incomoda perguntas
como: “O que ela faz da vida? Como ela ganha dinheiro? O casamento dela é fechado ou aberto? Ela tem uma boa
relação com a mãe?” Eu tenho uma dificuldade em qualquer linha de pensamento que leve a qualquer conclusão
muito determinada. Eu sinto que a minha inconformidade quando dentro do binarismo homem-mulher vem com a
minha repulsa por conclusões superficiais, a mania que as pessoas têm de que as coisas sejam simples.”
22
o b enfica é um ba i r ro q u e e r?
mapa 04: Primeiro mapa elaborado a partir de percepções
atravessadas a partir dos entrevistados. Autoria própria.
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praça da gentilândia
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23
Levi:
“Se existe uma demanda para que um bando de viados e travestis bebam cerveja, vão existir bares que
atendam a isso. E esse movimento já acontece há anos. Ao longo de décadas e décadas, as relações de
dissidência vão crescendo no Benfica. É um bairro histórico para nossa resistência. A gente descaracte-
riza o que é uma rua e cria uma nova rua com múltiplos outros usos. A gente descaracteriza o que é
um bar: quais corpos podem beber um litrão? Criamos outro tipo de bar, mais plural.”
João:
“Foi no Benfica onde minha ex-aluna podia ser ela mesma, enquanto amadurecia sua identidade. Na
escola onde eu lecionava, no Adauto Bezerra, essa aluna não afirmava seu gênero. Ela passou por
esse processo de mudança e era monitora da disciplina de Inglês da qual eu era professor. Só foi no
The Lights em que a encontrava como ela mesma, mais feliz do que na escola.”
Renata:
“The Lights, bar mais coração dessa força dissidente, força coletiva. É bem poético mas parece
mesmo que lá é um farol, lugar de acolhimento. Já vi muita coisa sendo criada ali, de performances
a apenas existências mesmo. Gosto de momentos em que as pessoas conseguem chegar a pontos de
existência que é mesmo arte ou poesia. Já brincamos muito de carimba nessa rua. Foi um evento
organizado pelo The Lights e pelo Gato Preto, havia um time de cada bar. Era uma movimentação bem
aberta e super improvisada, quem queria brincava. Uma vez usamos uma bola de pilates, parecia um
grande teatro a céu aberto. Era incrivel ver pessoas jogando mesmo com deficiências f ísicas. Havia
de héteros malhados da academia a gays afeminados. Eu não acho que seja um ambiente que cons-
tranja por si só as pessoas, como outros ambientes normativos me constrangem.”
Nanda:
“Houve uma época em que eu chegava a passar dois ou até três dias fora de casa, já que morava
muito longe, na Messejana. Acabei fazendo várias besteiras nesse tempo todo por aí. A própria rua
do Gato Preto é a cara do padê (cocaína). Passei uma época surfando nessa onda errada. Me drogava
sem me cuidar e passei a andar com gente que não se importava comigo.”
Renata:
Quando eu tinha 15 anos, comecei a estudar na Casa de Cultura Britânica e a frequentar o Bosque.
Sempre tive uma relação com este lugar, inclusive depois entrei na Casa de Cultura Frances também.
Antes disso eu estudava num colégio particular, em que tinhamos que usar farda, é muito delimitado
o que é masculino e feminino, não se podia nem beijar. Foi no Bosque em que eu me senti chapada
pela primeira vez! Lembro de olhar para a copa das árvores.”
Levi:
“Andar da Gentilândia pro The Lights sempre dá muito medo, muitas pessoas já sofreram violência
nesse percurso. Mas acho que Fortaleza é por inteira marcada por esse sentimento de medo. Isso
nunca me impediu de ir.”
João:
“Fui estudar mesmo no Benfica quando entrei no curso de Letras, mas desde antes, já participava de
grupos artísticos que se reuniam por ali, alguns relacionados ao IFCE. Afetivamente, eu lembro muito
dos muros do bloco do curso de Letras, que eram todos pintados. Agora, aquele bloco tem grades,
permeáveis visualmente. Acho as grades mais proveitosas pro espaço. Mas foram naqueles muros em
que eu li “Fora FHC”, e depois “Fora Lula”, “Fora Dilma”... até o muro cair. Eu estava lá de professor subs-
tituto quando me falaram que o muro ia cair. Quase chorei quando olhei pro lado da rua da Casa de
Cultura. As grades ficaram lindas, mas eu perdi essa referência, esse outdoor do tempo, que marcava a
época e que eu via ao passar de ônibus pela Av. Treze de Maio.”
Be:
“Passei pra Ciências Sociais na UFC e essa mudança foi muito importante pra mim. Lá, eu comecei a beber,
ser mais livre. Lembro muito que eu adorava a aula de Antropologia, mas só essa aula, na verdade. Ah,
lembro também da aula de Sociologia do Gênero. Então, eu comecei a ir muito pro Benfica para poder ficar
mais à vontade. Me locomovia de ônibus, mas havia muitas vezes que conseguia carona. Por exemplo, tinha
dias em que meu pai ia deixar minha mãe no trabalho e eu ia pra UFC, mas não pra ficar na aula. Adorava
o espaço. Também porque comecei a namorar a Letícia, que cursava Jornalismo na época. Ela também
estava nas aulas de Antropologia. A professora dessa disciplina é nossa amiga até hoje, ela é ótima!”
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imagens 20 e 21: Recorte de fotos do acervo da artista visual Be Leite.
Fotos extraídas do Instagram @_bilork.
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be t e r c e i r a e x i s t ênci a
“Eu sou tão homem quanto a Pabllo Vittar. Isso inclusive me faz voltar a lembrar desses
desenhos que eu tenho, de quando era criança. Costumava desenhar muito em um caderno
em que cada página está enumerada. Eu criava muitos personagens. Há um desenho com o
título ‘Sapatongay’. Lembro de tentar retratar alguém que era gay e sapatão ao mesmo tempo.“
imagem 22: ‘Sapatongay’. Desenho feito por Be Leite, na infância. Retirada do seu acervo pessoal.
“Esse trabalho da França, do qual contava há pouco, está relacionado também com a
internacionalização de um filme que foi inspirado na minha série ‘Criança Viada’. O
longa-metragem intitulado “Deusa das Águas” conta a história de um menino de São Luis,
Maranhão, que tem vontade de ser sereia. Outros trabalhos meus estarão expostos
juntos a isso. O mais interessante tem sido me relacionar com esse menino do filme.“
Um episódio interessante para a análise de como a arte que foge dos ideais hegemônicos pode
ser condenada é o fechamento antecipado da exposição “Queermuseu: cartografias da
diferença na Arte brasileira”, realizada no Santander Cultural, no ano de 2017, em Porto
Alegre. O entrevistado Be Leite, que participava do evento, teve que lidar com a polêmica ao
redor da sua série de pinturas “Criança Viada”, alvo de ataques por parte de grupos com
interesses políticos conservadores. Selistre e Duarte (2018) escrevem a respeito da censura:
“Há que salientar a pluralidade de discursos existentes, podem haver os que geram opinião e discussão sobre a questão
artística, formando um debate aberto e o câmbio de ideias, assim como também existem os discursos moralistas, que não
geram altercação, mas simplesmente questionam de modo irredutível a produção e o comportamento artístico e midiáti-
co. Um discurso moralista quando reiterado e difundido, pode, muitas vezes, distorcer a produção artística em questão,
de modo a construir e impor uma verdade absoluta e inquestionável às sociedades manipuláveis devido à reprodução
acrítica construída por grupos políticos/sociais. [...] Apesar do distanciamento histórico do ano de 1985, dito o término do
período ditatorial, os discursos autoritários estão à tona no Brasil, resgatando muitas vezes a censura.”
26
imagens 23 e 24: Pinturas da série “Criança Viada”, do artista visual Be Leite, atacada por grupos como o Movimento
Brasil Livre (MBL) no contexto da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” do Santan-
der Cultural de Porto Alegre. Fotos retiradas do site ‘claudia.abril.com.br’.
“Sempre gostei de me montar de dia, como um ato político e um diferencial da minha arte enquanto dragqueen. Nunca achei
que o Benfica fosse seguro se eu estivesse montada. Não podemos ser bobas, corpos transviados sempre estão em perigo. Mas
de alguma maneira me sinto mais confortável no Benfica do que na Aldeota, por exemplo, pois existem outras pessoas tensio-
nando gênero mais fortemente ali também. Reconhecer outros corpos dissidentes dá força. O próprio bairro tem um grau
diferente de ocupação por hora do dia. Apesar de um bairro boêmio, acho que o Benfica não é totalmente ocupado pela noite.”
mapa 05: Mapa que comprova o caráter boêmio noturno do Benfica. Os bares marcados foram os mais mencionados pelos
entrevistados e se destacam por acolher a desobediência de gênero e pela relação com a universidade. Autoria própria.
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s 0 100 m 200 m
27
n a nda imagem 25: Recorte de fotos do acervo do artista drag e produtore
cultural Nanda Banana. Fotos extraídas do Instagram @nandabananx.
“Sinto meu corpo saindo de uma casca ou de um casulo pra se tornar o que realmente é. Dá até um frio na
barriga se sentir à vontade no próprio corpo. Nunca tinha sentido isso antes, mas agora faz todo o sentido”
q u ar t a e x i s t ê n c i a
“As discussões sobre gênero apareceram para mim muito cedo, em grupos na internet. Em um desses,
lembro que, com 14 ou 15 anos, me deparei com uma lista enorme com várias diferentes opções de gênero.
Foi confuso e libertador. Já no ensino médio, eu me assumi enquanto “agênero”. Sofri muito transfobia,
embora nem soubesse direito o que aquilo significava. Eu sempre fui uma bicha preta de favela. Nessa
escola pública em que eu estudava, no máximo, havia 2 homens gays. Eu era claramente essa figura
andrógina, uma menina masculinizada e sofri muito bullying. Então, comecei a ir pro Benfica, quando
ainda era uma bicha muito novinha. O terminal da Messejana é o único terminal de ônibus de Fortaleza
que não tinha um ônibus direto para o Benfica. Eu tinha que pegar dois ônibus, ir pro terminal do Papicu,
ou andar muito. A montação começa depois, com experimentações relacionadas a sair na noite. Costumo
falar que os pretinhos sempre se juntam, mas é fato que as bichas também sempre se juntam. Hoje perce-
bo que as percepções a partir da minha cor e da minha raça costuram todas as confusões em que eu me
meti tentando negociar meu espaço Já tentar definir uma sexualidade foi uma questão menos urgente do
que minhas tentativas de entender meu gênero. Atualmente eu me considero uma pessoas transmasculina
não-binaria, mas não me considero um homem trans. Não quero parecer cis, mas eu tenho preferencia por
pronomes masculinos. É engraçado, por outro lado, que aqui em casa, todos nós nos tratamos no feminino
o tempo inteiro. Não tenho nem problema com isso. O que me incomoda é quando alguém me trata no
feminino negando minha existência. Acontece que eu estou passando por uma fase em que não sei nem o
meu nome. Não sei se quero continuar como Nanda, Nande ou Nando. Fico me testando com vários nomes
aleatórios, peço que os meus amigos me chamem de qualquer coisa pra ver como eu me sinto.“
interseccionalidade
“A interseccionalidade é um conceito-prática feminista que articula distintas formas de dominação e posições de
desigualdade, produzidas pelos discursos de gênero, raça, idade, localidade e sexualidade. É através dessa forma de
articular distintos marcadores sociais de identidade e diferença que encontramos uma possibilidade na problematização
dos processos de subjetivação na contemporaneidade. Segundo Bilge (2009), a ideia de interseccionalidade vai além de
um simples reconhecimento da multiplicidade de sistemas de opressão, ela opera por consubstancialidade desses
marcadores. [...] É assim que alguns estudos de/em dissidência têm levado adiante a ideia de campo de pesquisa como
território de experimentação, espaço-tempo onde se produzem práticas de subjetivação, reunindo as contradições,
contestações, as continuidades e as descontinuidades que incidem sobre a produção do racismo, a tutela epistêmica do
corpo, a performatividade de gênero e do exercício da sexualidade.”
Fernando Pocahy (2016, p. 18)
28
imagens 26 e 27: Fotos da Rua Instituto do Ceará e do bar ‘The Lights’, extraídas do seu instagram oficial @thelightsbar.
29
*
joão
O termo “Def” foi criado por João e alguns
amigos. Eles gostam de se denominar assim.
No seu instagram, há um vídeo do dia
‘Dia Nacional da Luta da Pessoa com
Deficiência’ chamado “O futuro é DEF”.
quinta ex is tência
“Pra mim, identidade tem a ver com como eu me enxergo no mundo e também com como eu quero ser enxer-
gado. Não sei o que vem primeiro. Como eu me identifico é bem mais relevante, mas como sou lido também
entra na equação. Sou uma pessoa com deficiência, e isso é bem claro para quem vê. Sou gay e nordestino.
Também, tenho traços negros. Sou chamado de negro claro. Já passei por muitas experiências pelos meus
traços, pelo meu cabelo, pelo meu nariz. Pra mim, entender como sou lido também é importante. Chamo
bastante atenção por ser um corpo “Def”.* Amo essa palavra. Acho que meu trabalho também tem a ver com
a minha identidade. Sou professor e artista. Sou tradutor, minha primeira formação foi em Letras. Trabalho
com performance também. O meu corpo é um corpo que pinta o cabelo, que usa muletas, que é amputado,
que se aglomera com outros corpos de gays. Juntos chamamos atenção por desobedecer o gênero.”
30
como mapear a desobediência de gênero?
mapa 06: Mapa elaborado a partir de experiências desobedientes de gênero
narradas pelos entrevistados. Autoria própria.
Toca do Javali
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Shopping Benfica
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Birosca e Resibar
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Praça da Gentilândia
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Culinária da Van
Bar da Loura
N
0 100 m 200 m
31
João:
“Foi ali onde pela primeira vez me senti muito à vontade, saindo à noite. Muitos outros lugares gays
eram arrumadinhos demais, disciplinados. Ali não, todo mundo me parecia livre e sem se importar
muito. Tocava Madonna, depois Daniela Mercury, depois Timbalada e depois a Xuxa. E isso diz muito
sobre diversidade do local. Foi a primeira vez em que eu saí de um bar direto para um motel com
alguém. Eu tinha 23 anos. Nunca esqueci.”
Levi:
“O próprio shopping Benfica também funciona muito enquanto uma zona de encontros. Esse shopping
já foi palco de uma série daqueles “rolezinhos”, encontros marcados por jovens pela internet, que
chegam a reunir centenas de participantes. É muito comuns casais gays estarem de mãos dadas na
praça de alimentação desse shopping, muito mais do que em outros da cidade.”
Levi:
“O bairro é palco de várias experimentações. Quando a gente quer performar, enquanto artista, pensa
muito no visual icônico que tem o cruzamento da Av. 13 de Maio com a Av. da Universidade.”
Be:
“Amo que o bairro é cheio de árvores. Passar a tarde ali pelas Casas de Cultura é babado. Há muitos
cantinhos mais escondidos, becos e bancos... pra ficar mais à vontade. Eu e a minha namorada da
época sempre fazíamos pausas pra ir comer um croissant, as duas taurinas. De lá, a gente ia pros bares.
Para o Bar da Loura, ou pro Martins.”
Nanda:
“Conheci o Luís no final de 2019, no Benfica. Eu frequentava o Birosca e o Resibar (antigo Batata’s) que
eram um do lado do outro. Passamos a noite juntos com outros amigos. Depois fomos ao Bar da Loura,
e lá demos o nosso primeiro beijo. Esse era nosso primeiro dia juntos, mas eu havia saído há 3 meses
de um relacionamento abusivo com um homem branco super mais velho. Foi o Luis que me ensinou
sobre o afeto entre pessoas negras. Estamos juntos há mais de um ano.”
Renata:
“Em dia de Carnaval, encontrei uma menina que eu nunca tinha paquerado antes. Ela demonstrou
interesse e começamos a nos beijar na Praça da Gentilândia. O clima foi esquentando, começamos a
passear no meio da multidão. Nós entramos na Culinária da Van, buscando mais privacidade. Mesmo
sendo um espaço mais burguês e tradicional, o que foi estranho, entramos e começamos a transar no
banheiro e várias pessoas ficaram batendo na porta. Por algum motivo não me constrangi por nada.
Mesmo que ainda fosse um ambiente privado, ainda era nossa festa, o Carnaval, o Benfica.”
32
considerações sobre o diagnóstico
Levi:
“Acho que o bairro é o que é por ter um amplo acesso à mobilidade urbana. Há muitas paradas de ônibus e a
linha do metrô. É um dos bairros mais acessados também por algumas periferias. É um bairro próximo ao
centro histórico e comercial da cidade. É um bairro que abriga parte da Universidade Federal, principalmente o
Centro de Humanidades. E a partir disso, o próprio capitalismo também se molda para construir um espaço de
consumo ao redor do Centro de Humanidades. Obviamente, na época em que comecei a frequentar o Benfica,
eu era bem mais acomodado ao gênero. Aos poucos, comecei a almejar desobedecê-lo, conforme me percebia
também uma pensadora de arte contemporânea e iniciava as experimentações com o meu corpo. Dentro da
esfera acadêmica, construir relações afetivas e sexuais contra-normativas também foi essencial para mim.
Apesar de já ter tido namorados gays ainda nos colégios privados em que cursei o ensino fundamental e médio,
essas relações ainda eram muito regidas pela norma. O espaço novo me fez repensar também minhas relações
pessoais e amorosas. As primeiras vezes em que eu fiquei de chamego publicamente foi no Benfica e o meu
primeiro beijo público foi numa performance no Dragão do Mar, que é outro polo que conversa com o Benfica.”
Renata:
“O que há de comum entre o espaço da rua do Gato Preto ou o espaço do Bosque do CH? Por que aquelas
pessoas se sentem bem nesses dois espaços? Isso tem a ver com o não enquadramento. Precisamos de
espaços projetados que permitam que as pessoas tenham mais possibilidades do ‘ser’ delas, do ‘existir’.”
Be:
“A culpa não é minha se eu tô chocando alguém. Isso é ser quem somos, sinto muito. Não sei nem o que dizer
pra quem questiona. É a mesma coisa com o nosso corpo, eles veem a perversão onde realmente não existe.”
João:
“Foi no Benfica onde eu consegui ouvir as músicas que eu queria ouvir num bar, ou onde consegui
encontrar as pessoas que eu queria encontrar. Às vezes penso: uau, só restou o The Lights no Benfica.
Agora com a pandemia, tem sido difícil. Não tem mais nenhum lugar para encontrar as gays sem ter
medo. Outra coisa é que mesmo lá se tem medo, né. É perigoso. Mas digo que lá consigo não ter medo
de ser e de agir como se quer. Às vezes isso é um luxo.”
33
imagens 29 e 30: Fotos do ‘Carnaval no Inferno’ na Rua Instituto do Ceará, extraídas de ‘facebook.com/carnavalnoinferno’.
34
transposição
parte 2
the lights
terreno escolhido
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terreno escolhido the lights
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gato preto
37
O terreno escolhido fica num ponto
estratégico e central, se consideramos a
mancha gerada no mapa 05 que ilustra
a dinâmica noturna queer do bairro.
sa l ão
desviante
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0 100 m 200 m
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38
O projeto atende a função de SALÃO MULTIUSO. Assim, é necessário um vão livre
considerável na malha da estrutura para que as mais diversas atividades culturais
possam acontecer em diferentes disposições espaciais.
“A polaridade forçada entre forma e função na arquitetura obscurece as conexões profundas entre
valores éticos e poéticos na tradição arquitetônica. A arquitetura foi e deve continuar a ser, escreve
Alberto Pérez-Gómez, construída sobre o amor. A modernidade rejeitou com razão os excessos
arquitetônicos do passado, mas, afirma Pérez-Gómez, as alternativas materialistas e tecnológicas que
ela propõe não respondem de forma satisfatória aos desejos complexos que definem a humanidade.”
disposição em planta
D I S P O S I T I VO 01
Retirada do ‘Archdaily.com.br’.
39
co r re d o r d e e n t ra d a :
e s pa ço e n t re o pass e i o e
fa c h a d a p r i n c i pal o a m b i e n te d as a t i v i d a d e s .
salã o d as a t i v i d a d e s : s e to r fi xo d e s u p o r te :
e s pa ço g ra n d e e ce n t ral p ro g ra m a q u e d á a p o i o
re s e r va d o pa ra as a t i v i d a d e s a o salã o d e a t i v i d a d e s .
cu l t u ra i s . p o d e s e r re m o d u la d o d e p ó s i to, v e s t i á r i o, w.c . ,
a pa r t i r d e pa re d e s q u e co r re m . co pa , c i rcu la çã o, e tc .
é o n d e a e s t r u t u ra p ro p o rc i o n a o
m a i o r vã o, e u m a p la n ta re d i v i s í v e l .
40
T R A N S P O S I Ç ÃO
salã o d as a t i v i d a d e s
s e to r fi xo d e s u p o r te
co r re d o r d e e n t ra d a
41
relação com o entorno e acesso
D I S P O S I T I VO 02
Sesc Pompeia
L in a B o B ard i (1 98 6 )
Ce n t ro cu l t u ral a pa r t i r d a re n ova çã o
d e u m a fá b r i ca e m S ã o Pa u lo, B ras i l
imagem 32: Janela com buraco orgânico. Sesc Pompeia. Retirada do ‘Archdaily.com.br’.
42
Mantém o que já existia e
cria um rasgo, com o intuito
de não descaracterizar a
paisagem local, que no
projeto deste trabalho
significa contemplar e
preservar o underground
na rua Instituto do Ceará.
imagem 33: Janela com buraco orgânico. Sesc Pompeia. Retirada do ‘Archdaily.com.br’.
cuidadora
arquitetura outra
inclusiva
transdisciplinar lúdica transformável reativa
inacabada cotidiana
emergente transfronteriza experimental
múltipla ruína humana
performativa
disruptiva
afetiva
Como acontece em um poema, o espaço é criado tanto por
tanto nossa capacidade f ísica e psicológica e nossa psicológica
de moldar os estímulos via afeto e sentimentos.
Como acontece em um poema, o espaço é mantido pela
estrutura emocional que podemos manter com ele.
43
T R A N S P O S I Ç ÃO
r á
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do
u to
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in
a
ru
44
imagem 34: Isométrica “Stalled!”.
acessibilidade e inclusão
Retirada de ‘Stalled.online’.
D I S P O S I T I VO 03
Protótipo Gallaudet
STA L L E D ! ( 2 01 5)
D e s i g n d e u m b lo co fi xo d e ba n h e i ro s
p ú b l i co s s e gu ro, s u s te n táve l e i n c l u s i vo
45
idades
INCLUIR
bebês, crianças,
adultos, idosos.
incapacidades
motoras, sensoriais
e médicas.
psicologia
introvertido
extrovertido
estruturas sociais
família
imagem 35: amigos
Isométrica “Stalled!”.
Retirada de ‘Stalled.online’.
apoio
Espaços para cuidadores de todos os
gêneros. Apoio à crianças e bebês.
Dimensionamento acessivel. Pia e
mesa de trocar fralda.
e l i m i n a çã o
Bloco fixo de assentos sanitários com
divisórias do chão ao teto.
Privacidade visual e acústica.
Três tamanhos de cabine: padrão,
ambulatória e acessível para cadeirante.
á reas p ú b l i cas
46
T R A N S P O S I Ç ÃO
á reas p ú b l i cas
e l i m i n a çã o
apoio
47
imagem 36: Arquibancada do Teatro Oficina. Retirada do ‘Archdaily.com.br’.
arquibancada
D I S P O S I T I VO 0 4
Teatro Oficina
L in a B o B ard i e Ed son El i to (1 994)
Re fo r m a d e u m tea t ro co m p ro p o s ta
d e q u e a r u a i nva d a o e s pa ço cê n i co.
48
imagens 37 e 38: Teatro Oficina. Retiradas do ‘Archdaily.com.br’.
A estrutura do projeto do
Anfiteatro La Concordia
do escritório Colab-19, em
Bogotá, também foi inspi-
ração para o desejo de se
transpor o dispositivo de
uma arquibancada que
ajude a compor novas
disposições do ambiente
de forma mais lúdica.
49
T R A N S P O S I Ç ÃO
m 4,
0 80
2,6 m di
st
ân
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4, en
m 80 t re
4 0 m
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4, s e
80 st
m ru
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s
4,
80
m
50
múltiplas configurações
D I S P O S I T I VO 0 5
Teatro Polivalente
Laca ton & Vassal (201 3)
Pla n ta d e u m tea t ro q u e é re d i v i s í ve l
d e a co rd o co m as a t i v i d a d e s d e s e j a d as .
51
m eza n i n o
O espaço do mezanino pode apresentar diferentes
configurações espaciais. Conta com uma bancada
e estrutura de copa, além da área livre. Sem a
divisão que dá para o setor principal, o mezanino
pode servir também como complemento da
d i v i sã o
arquibancada. Já fechado, pode servir como sala Essa parede que divide o mezanino do setor
de reuniões, sala de aulas ou apenas servir como principal de atividades consiste em uma lâmina
um espaço mais recluso. de madeira que corre para um dispositivo que se
acopla à torre da plataforma acessível, gerando
ainda mais possíveis usos para o projeto.
c i rcu la çã o ve r t i cal
o
çã
o je
pr
salã o p r i n c i pal
de atividades
O salão principal pode abrigar diversos tipos de atividades
como performances diversas, transformar-se numa área
de jantar ou bar ou até mesmo utilizar a divisória fechada
para tomar a configuração de uma sala de cinema.
52
25
o salão
parte 3
perspectiva externa do conjunto
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in
a
á rea d o te r re n o : 312.81 m²
o terreno está em uma ZOP1
ru
(Zona de Ocupação Preferencial 1)
A área edificada no terreno foi de
214.30 m², tendo uma T.O. de quase 70%
Fo i re c u a d o d a r u a p r i n c i p a l 3 .4 0 m
55
corte perspectivado
+ 6 .9 m
+4 .6 m
+2 . 3 m co
be
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0 .0 m ed
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-2 . 3 m s u d e s te :
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qu v e n t i la çã o
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su
bs
ol
o
s u b s o lo
O subsolo também serve como espaço multiuso, mas sua função
principal é servir como depósito para as estruturas efêmeras
que ajudam a compor as diferentes configurações espaciais.
56
planta pav. térreo
57
planta pav. superior
planta subsolo
perspectiva interna
58
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