Você está na página 1de 4

A CAPELA DE FERRO

Intro: Desde os finais da Idade Média e até 1928 existiu na Rua Escura
uma pequena capela, de invocação a Nossa Senhora do Ferro, à qual
andavam associadas curiosas tradições e lendas. Uma delas referia mesmo
que, na sequência de um privilégio supostamente concedido por um dos
primeiros reis de Portugal, os condenados à morte poderiam encontrar
nela uma forma da sua execução ser anulada.
Desenvolvimento:
Da lenda à realidade
Demolida em 1928, a capela da Nossa Senhora do Ferro – então conhecida
por Capela de S. Sebastião – localizada na Rua Escura (que devido à
presença deste templo foi também, durante algum tempo, Rua da Nossa
Senhora do Ferro) possuía epigrafada na sua fachada a data de 1681. Tal,
no entanto, não corresponderia à data da sua construção, mas muito
presumivelmente, a uma qualquer remodelação já que a capela era
seguramente muito mais antiga, datando provavelmente dos finais da
Idade Média ou dos inícios da Idade Moderna. Esta sua suposta
antiguidade parece ser reforçada pela tradição descrita nos parágrafos
anteriores e que indicava que os condenados à morte que, a caminho da
sua execução, conseguissem tocar no ferro cravado junto à padieira
ficariam libertos da pena capital, com base num suposto privilégio
concedido por um dos primeiros monarcas portugueses.
Certo é que esta crença lendária era muito antiga. Disso mesmo nos dá
conta, já no início do século XVIII, Frei Agostinho de Santa Maria que na
sua obra “Santuário Mariano” (1707 – 1723) indicava que, quando
transportavam os condenados e passavam no local, os homens da justiça
“(…) iam todos encostados à parte oposta da capela, para que o
padecente que por ali passasse não pudesse deitar a mão ao ferro da
capela”.
A esta tradição não será alheia, de resto, a circunstância da capela da
Nossa Senhora do Ferro se localizar junto ao percurso que, durante
séculos, foi o percorrido na cidade do Porto pelos condenados à Morte.
Com efeito, e até que em 1714 a Câmara Municipal deliberou transferi-la
para a Ribeira, a forca situava-se em Campo de Mijavelhas (actual 24 de
Agosto).
Ora, situando-se esta capela junto à saída da cidade e à “estrada” que
seguia para nascente e passava junto ao local dos suplícios, não é de
estranhar esta sua relação com os condenados à forca. Além do mais, nas
suas imediações e durante séculos, concentraram-se diversas prisões.
Para já não falar do próprio edifício do Paço do Concelho na medieval Rua
da Sapataria (designada, a partir do século XVI e até hoje por rua S.
Sebastião), que presumivelmente terá servido, ainda que de um modo
pontual, para interrogar e encarcerar alguns criminosos, poderíamos
referir também o cárcere da Inquisição, que, criado em 1541 por ordem
do Rei D. João III, foi instalado sensivelmente em frente da capela. Em
1542 tinha já 40 encarcerados. Aqui surgiria também, dois séculos depois,
em 1749 o aljube eclesiástico.
Certo, portanto, é que muitos condenados à morte passaram à porta da
capela de Nossa Senhora do Ferro e que terão olhado para aquela peça
metálica como a sua última hipótese de sobrevivência. Conta a lenda que
nunca nenhum dos prisioneiros conseguiu tocar no ferro…
A Lenda: No Porto, finais da Idade Média, o aprisionado, a minutos de
morrer, lembrava, entre os impropérios, a mole de gente que enxameava
o percurso que, penosamente, ia fazendo a carroça que o transportava até
ao lugar do enforcamento.
Seguindo cabisbaixo, dentro da gaiola metálica que o aprisionava e cujas
grades não eram suficientes para o colocarem a salvo de todo o tipo de
porcarias e de pedras que lhe iam arremessando desde que saíra do
cárcere, localizado no piso térreo do edifício dos paços municipais.
Chegando o momento de ser concretizada a sentença que o condenara à
morte, tinha consciência do seu crime hediondo e compreendia a fúria da
população. Rodeado por vários soldados e pelos homens da Justiça, a
carroça descia a Rua da Sapataria, os gritos e o imenso barulho que os
acompanhavam, não o impediam de continuar a rezar pela salvação da
sua alma, esperando que a sinceridade do seu arrependimento fosse
escutada pela Virgem e que esta intercedesse por ele junto do seu Filho.
No campo de Mijavelhas, iria morrer pela forca, mantendo uma ténue
expectativa de continuar a viver. Tudo dependeria do que estava prestes
acontecer. Esperançado alçava os olhos do chão e mirava o caminho que,
entre a gente ruidosa, se abria à sua frente. E foi então, no desembocar da
Rua da Sapataria e Rua Escura, que a viu. A sua última esperança: a Capela
da Nossa Senhora de Ferro. Contemplava avidamente a porta daquele
pequeno espaço sagrado constatando que ali se encontrava, cravado e
atravessado entre as pedras que definiam a sua entrada, o velho ferro que
dera o nome à capela.
Mas, não era só ele que contemplava a pequena ermida. O intenso
barulho de gritos e impropérios, à mistura com algumas raras rezas,
atenuava-se e toda a multidão, centrava a sua atenção na fachada do
modesto edifício religioso.
Reinando um silêncio absoluto e expectante só cortado pelos passos
compassados dos soldados e pelo chiar das rodas da carroça que,
inevitavelmente e porque não há outro caminho, se vai aproximando da
capela. No interior da gaiola, o condenado benze-se e ensaia colocar de
fora, por entre as grades, um dos seus braços.
A respiração das gentes suspende-se, os olhos esbugalham-se, as bocas
vão se abrindo, não sabendo ainda se de espanto ou para continuarem os
gritos e insultos. O silêncio é tal que se houve até o arfar do criminoso no
seu esforço, lá no alto da carriola, o ferro atravessado junto à padieira da
porta da capela.
Misericordioso, os soldados e os responsáveis pela condução do
condenado fazem mesmo uma paragem. Nada os obriga a tal pausa. Mas
esta é já uma tradição da cidade e, uma vez mais, deverá ser cumprida.
Mais perto é impossível e, por isso, chega o momento que o prisioneiro
aguardava: a sua última esperança. Reina a mais absoluta quietude e,
olhando para o céu, o prisioneiro pede mais uma vez a proteção da Nossa
Senhora. Benze-se uma outra vez e, decidido, lança então o seu braço em
direcção ao ferro. Como tantos outros depois, tem a esperança de
conseguir tocá-lo.
Se o conseguir fazer, e com base num velho privilégio concedido por um
dos primeiros reis de Portugal, não será executado.
Com toda a força e esticando o membro com um esforço sobre-humano,
compreendendo de que desse sacrifício depende a sua própria
sobrevivência, o encarcerado procura tocar com a ponta dos seus dedos,
trémulos, no ferro libertador. A rua estreita dá-lhe um ânimo suplementar
e o vazio de mais de um metro que medeia entre o objeto metálico e a
mão vai-se encurtando rapidamente.
A tensão é evidente no rosto de todos. Apenas mais um esforço e o
homem, sinceramente arrependido do seu crime, era libertado. O seu
ombro, dilacerado pelas grades contra as quais se esmaga na ânsia de
ganhar os poucos centímetros que falta para assegurar a libertação, jorra
sangue no pavimento.
Desesperado, no entanto, o condenado percebe que nem com a unha
consegue raspar levemente no ferro. A sua última esperança está perdida!
A carroça reinicia a marcha e, com ela, os gritos da multidão. Agora ainda
mais furiosos, cientes de que nem os céus entenderam haver lugar a
qualquer tipo de clemência para com o criminoso. Este cai no chão da
jaula e chora compulsivamente, pois sabe que a forca espera por ele.

Você também pode gostar