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Descartes, René

Descartes rompeu com o aparato conceitual da


escolástica medieval para edificar seu próprio sistema, e
por isso é considerado um dos fundadores da filosofia
moderna.
René Descartes -- latinizado como Renatus Cartesius,
origem do nome de "cartesianismo" dado a sua doutrina --
nasceu em La Haye, França, em 31 de março de 1596. De
família abastada, com oito anos entrou para o colégio dos
jesuítas de La Flèche, onde adquiriu ampla formação
filosófica e matemática. Formado em direito pela
Universidade de Poitiers em 1616, no ano seguinte iniciou
um período de viagens "para estudar mais livremente no
livro do mundo" e assim concretizar seu desejo de
"aprender a distinguir o verdadeiro do falso". Em 1618
alistou-se no exército de Maurício de Nassau, nos Países
Baixos, e um ano depois no de Maximiliano da Baviera. Foi
nessa época que, segundo suas próprias palavras, "brilhou
a luz de uma revelação admirável" e Descartes encontrou o
caminho para elaborar sua filosofia.
Depois de outra etapa de viagens, instalou-se em
1625 em Paris, onde levou uma vida tranqüila de reflexão e
trabalho. Três anos mais tarde, em busca de um ambiente
mais propício ao estudo, mudou-se para os Países Baixos.
Ali redigiu as Regulae ad directionem ingenii (Regras para a
direção do espírito), só publicadas em 1710. Em 1637
apareceu em Leyden seu famoso Discours de la méthode
(Discurso sobre o método), com três apêndices científicos:
Dioptrique (Dióptrica), Météores (Meteoros) e Geométrie
(Geometria).
Em 1633, ao saber da condenação de Galileu, de cujas
idéias compartilhava, Descartes sustou a publicação do
Traité du monde (Tratado sobre o mundo); contudo, partes
dessa obra apareceram em 1641. Também publicadas em
1641, suas Meditationes de prima philosophia (Meditações
sobre filosofia primeira) encontraram franca oposição nos
meios holandeses e seus livros foram proibidos pela igreja.
Isso o levou a pensar em voltar para a França. Contudo, o
convite que recebeu da rainha Cristina da Suécia o fez
decidir-se, em 1649, a viver nesse país.

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Filosofia de Descartes. No Discurso sobre o método,
Descartes afirma que sua decisão de elaborar uma doutrina
baseada em princípios totalmente novos procede do
desencanto em relação aos ensinamentos filosóficos que
recebera. Convencido de que a realidade inteira respondia a
uma ordem racional, pretendia criar um método que
possibilitasse alcançar, em todo o âmbito do conhecimento,
a mesma certeza que a aritmética e a geometria
proporcionavam em seus campos.
Teoria do conhecimento: a dúvida metódica. Para
realizar seu propósito, Descartes estrutura
fundamentalmente seu método em quatro regras: (1)
nunca aceitar como verdade senão aquilo que vejo clara e
distintamente como tal; (2) decompor cada problema em
suas partes mínimas; (3) ir do mais compreensível ao mais
complexo; e (4) revisar completamente o processo para
assegurar-se de que não ocorreu nenhuma omissão.
Todo esse método, contudo, reside na primeira regra:
como obter a certeza? O instrumento utilizado por
Descartes para resolver o problema é a "dúvida metódica".
De acordo com esse princípio, ele questiona todos os seus
conhecimentos, inclusive o de sua própria existência. Ora,
em toda dúvida existe algo de que não podemos duvidar: a
própria dúvida, isto é, eu não posso duvidar de que estou
duvidando. Mas a dúvida, prossegue Descartes, é um
pensamento, meu pensamento, e eu não posso pensar sem
existir. Portanto, há algo de que posso ter uma firme
certeza: penso, logo existo, ou je pense, donc je suis (em
latim, cogito, ergo sum). Eu sou, em última análise, uma
substância pensante, espiritual.
A partir daí Descartes elabora toda sua filosofia. O
cogito lhe servirá como chave para prosseguir: toda
representação que se lhe apresentar com "clareza" e
"distinção" -- os dois critérios cartesianos de certeza -- tal
como se manifesta o cogito, deverá ser tida como correta e
aceitável. É a aplicação positiva da dúvida metódica.
Dessa forma, Descartes começa a "passar em revista"
todos os conhecimentos que pusera de lado no início de sua
busca. Quando os reconsidera, dá-se conta de que as
representações são de três classes: idéias "inatas", como
as de verdade, justiça, substância; idéias "adventícias",

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originadas pelas coisas exteriores; e idéias "factícias" ou
"feitas por mim mesmo" , as que são tidas como criações
de nossa fantasia, como os monstros fabulosos etc.
Nesse ponto, Descartes introduziu uma nova cautela
na aceitação das idéias. Poderia ocorrer, diz ele, que os
conhecimentos "adventícios", que eu considero como
correspondentes a impressões de coisas que realmente
existem fora de mim, fossem provocados por um "gênio
maligno" que desejasse enganar-me. Contudo, essa
hipótese é rechaçada de imediato, uma vez que, por outro
lado, entre as idéias que encontro em mim mesmo, sem
correlação externa sensível e que denominei "inatas", está
a idéia de Deus. Dado que a idéia de Deus possui certos
atributos, como a infinitude, que não podem provir de parte
alguma, é necessário que ele os tenha posto no intelecto.
Portanto, Deus existe; e, dado que a idéia de Deus é a de
um ser perfeito, ele é incapaz de enganar-se ou de
enganar-me. Portanto, posso ter plena certeza da validade
de meu conhecimento.
Na verdade, essa demonstração da existência de Deus
constitui uma variante do argumento ontológico já
empregado no século XII por santo Anselmo de Canterbury,
e foi duramente atacada pelos adversários de Descartes,
que o acusavam de cair num círculo vicioso: para
demonstrar a existência de Deus e assim garantir o
conhecimento do mundo exterior, utilizam-se os critérios de
clareza e distinção, mas a confiabilidade destes é por sua
vez justificada pela existência de Deus.
Matéria e espírito. Admitida a existência do mundo
corporal, Descartes passa a determinar qual é a essência
dos seres. Aqui introduz seu conceito de substância, aquilo
que "existe de tal modo que só necessita de si mesmo para
existir". As substâncias se manifestam por seus modos e
atributos; os atributos são aqueles modos que revelam a
determinação essencial da substância, isto é, aquilo sem o
que uma substância deixaria de ser tal substância. Assim,
resulta claro para Descartes que o atributo dos corpos é a
extensão, e todas as demais determinações -- forma, cor,
figura etc -- são modos.
Da mesma forma, considera evidente que o atributo
do espírito é o pensamento, pois o espírito "pensa sempre".

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A conclusão é que existe uma substância pensante -- res
cogitans -- e uma substância que compõe os corpos físicos
-- res extensa -- e que ambas são irredutíveis entre si e
totalmente separadas. É a isso que se chama o "dualismo"
cartesiano.
O caráter que Descartes outorga aos corpos implica
outra conclusão necessária: se o corpo é uma simples
magnitude espacial, não existe espaço vazio; a matéria é
infinita, e as mudanças qualitativas nos corpos são simples
mudanças de lugar no espaço: trata-se de uma explicação
puramente mecanicista do mundo, que permite interpretá-
lo de acordo com leis matemáticas -- como, de fato,
Descartes fez em seus escritos científicos.
Corpo e alma. A separação radical entre matéria e
espírito é aplicada rigorosamente, em princípio, a todos os
seres. Assim, os animais não são mais que máquinas.
Contudo, Descartes faz uma exceção quando se trata do
homem. Dado que este se compõe de corpo e alma, e
sendo o corpo, por definição, material e extenso, e a alma,
espiritual e pensante, deveria haver entre eles uma
absoluta ausência de comunicação. No entanto, no sistema
cartesiano isso não acontece; a alma e o corpo se
comunicam entre si, mas não ao modo clássico, isto é, a
alma constituindo a "forma" do corpo, e sim de uma
maneira singular. A alma está assentada na glândula
pineal, situada no encéfalo, e dali rege o corpo, como "o
navegante dirige a nave", por meio dos spiritus animales,
substâncias a meio caminho entre espírito e corpo, à
maneira de finíssimas partículas de sangue, que
transmitem ao corpo as ordens da alma.
Influência do cartesianismo. Enquanto sistema rígido e
fechado, o cartesianismo não teve muitos seguidores e
perdeu sua vigência em poucas décadas. Contudo, a
filosofia cartesiana tornou-se ponto de referência para
grande número de pensadores, para tentar resolver as
contradições que encerrava, como fizeram os racionalistas,
ou para rebatê-la frontalmente, caso dos empiristas. Assim,
o alemão Leibniz e o holandês Spinoza estabeleceram
formas de paralelismo psicofísico para explicar a
comunicação entre corpo e alma. Spinoza, aliás, foi mais
longe, afirmando que existia uma só substância, que

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englobava em si a ordem das coisas e a ordem das idéias, e
da qual a res cogitans e a res extensa não eram senão
atributos, com o que se chega ao panteísmo. De um ponto
de vista completamente oposto, os empiristas ingleses
Thomas Hobbes e John Locke negaram que a idéia de uma
substância espiritual fosse demonstrável, afirmaram que
não existiam idéias inatas e que a filosofia devia reduzir-se
ao terreno do conhecimento pela experiência. A concepção
cartesiana de um universo mecanicista, enfim, influenciou
decisivamente a gênese da física newtoniana.
Em suma, não é exagero afirmar que, embora
Descartes não tenha chegado a resolver todos os
problemas que levantou, tais problemas se tornaram
questões centrais da filosofia ocidental. René Descartes
morreu em Estocolmo, em 1o de fevereiro de 1650, poucos
meses depois de sua chegada à corte da rainha Cristina.

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