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CAPÃO PECADO, A REALIDADE DA FICÇÃO

Camila Ribeiro
Isabel Guilhen
Jarlington Barros
Josias
Lucinano Canteiros dos Santos
Marcos Paulo da Silva
Vinicius Magalhães

RESUMO:

Nesse artigo o livro Capão Pecado do escritor Ferrez é analisado a partir de sua estrutura
narrativa, tendo como alvo as estratégias linguísticas próprias do tipo de escrita que o autor
produz em seus textos. O uso da linguagem coloquial, de gírias e de neologismos faz parte de
uma proposta literária nomeada pelo autor de literatura marginal, termo do qual também é
analisado no presente trabalho. As entrevistas dadas pelo escritor nos meios de comunicação
são usadas como material de referência e é importante para a análise da obra, uma vez que
serve para entender melhor as intenções de Ferréz e sua visão como escritor e morador da
periferia. Enquanto literatura marginal a questão da violência física e social se faz muito
presente na obra e é também tema de discussão.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Marginal; Capão Pecado; Ferréz.

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Reginaldo Ferreira da Silva, ou Ferréz, nome literário, é um híbrido de Virgulino Ferreira
(Ferre) e Zumbi dos Palmares (Z), sendo considerado uma homenagem aos grandes nomes
dos heróis brasileiros nasceu dia 29 de dezembro de 1975, natural de São Paulo. Romancista,
contista e poeta, e fundador da literatura marginal.

Antes de se tornar exclusivamente um escritor, trabalhou como balconista, vendedor de


vassouras, auxiliar geral e arquivista. Este começou a escrever aos 07 anos de idade, e já
publicou diversos livros, entre eles “Fortaleza da Desilusão”, lançado em 1997, com
patrocínio de empresa no qual trabalhava, Capão Pecado (2000), Amanhecer Esmeralda
(2005) e Ninguém é Inocente em São Paulo (2006), Cronista de Um Tempo Ruim (2009),
Deus foi almoçar (2011), O pote mágico (2012), Os ricos também morrem (2015). É fundador
do 1DaSul, grupo interessado em promover eventos e ações culturais na região do Capão
Redondo, ligados ao movimento hip-hop. Em 2001 cria e lança a revista “Literatura
Marginal”, em parceria com a “Caros Amigos”, acarretando o surgimento do selo literário
L.M.

Conforme o segmento literário criado, Ferréz, cresceu na favela no qual sua principal
característica é falar do cotidiano das comunidades mais pobres, expressando uma forma de
resistência, onde a ideia principal é expor essa realidade, do ponto de vista de quem vive ali, à
margem da sociedade.

O livro Capão Pecado conta a história de um bairro de periferia de São Paulo chamado Capão
Redondo, que passa a ser chamado pelos moradores do mesmo de “Capão Pecado” pelas
diversas atrocidades que ocorrem naquela região. Como acontece na maioria das periferias do
Brasil, nesse local há muita precariedade, violência, drogas e assassinatos. A obra descreve de
forma simples e direta a juventude desse local com suas formas de vida e seus sonhos ou falta
de sonhos para um futuro, seus vocabulários cheios de gírias e palavrões, o que é muito
comum nos bairros periféricos.

Bom, falarei sobre um assunto embaçado: é o seguinte, tá ligado; o crime


que é noticiado no rádio, jornal, televisão, é sempre diretamente ligado à
miséria. Por quê? Porque pondo os pés no chão é bruta a nossa realidade. [...]
Aí como sou preto, vem o preconceito racial, policiais despreparados
agredindo, espancando [...] neste momento você lê, muitas famílias pedem
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socorro. Você já cresce no meio do veneno e chega uma hora em que o
desespero é total (NEGREDO, apud FERRÉZ, 2005, p. 109).

Apesar de trazer no desenrolar dos fatos, a história de diversos personagens, o foco da história
toda é o personagem Rael. Rael, um rapaz tranquilo, trabalhador, morador de periferia, com
muitos amigos e muitas histórias as quais gostava muito de contar. Era filho de um homem
bêbado, que vivia ausente da vida do filho, mas presente quase que integralmente nos botecos
do bairro. Devido a essa ausência, a mãe a muita custa tentava suprir o filho de tudo o que
podia. O que era contribuído pelo filho de forma recíproca.

Rael trabalhava e ajudava a mãe com dinheiro e nas atividades de casa. Havia desde cedo
vetado em sua vida o envolvimento com drogas, tráfico e crimes, situação muito comum aos
seus conhecidos de infância, que se envolviam de tal forma, que não havia mais como
retornar, e o destino era a morte ou a cadeia.

Um ponto alto do romance é a paixão de Rael por Paula, namorada de seu grande amigo
Matcherros, o rapaz que a traía e fazia Rael sentir pena da “pobre moça”. Na comunidade era
considerado inaceitável roubar a namorada de amigo, assim que Rael se viu entre seu amor
por Paula e sua amizade com o amigo de longa data, ficou bastante preocupado com a
situação, pois quem roubava namorada de amigo, pagava com a morte em Capão Redondo.

A “pobre moça” se revela muito além do esperado e o final do romance termina em tragédia.
O autor desconstrói totalmente os finais “felizes para sempre” dos conhecidos contos de fada.
E apesar de ter uma linguagem simples e atual, a obra foi bastante criticada por expor de
forma realista os acontecimentos do bairro e a vida sofrida dos personagens. Além de
apresentar linguagem vulgar e cenas explícitas de sexo, retratadas de forma crua, aumentando
o realismo da obra. Mesmo causando polêmica, o autor foi feliz em sua colocação, em seu
propósito de transmitir ao leitor a dura realidade as quais os jovens à margem da sociedade
estão expostos cotidianamente na periferia das grandes cidades.

Vê-se de tudo em Capão Redondo: um feto jogado na rua vira festas para a
criançada, jovens consomem maconha e crack, um gato morre de susto,
olhos são arrancados por causa de um velho Monza prateado, um enforcado
torna-se atração da vizinhança. A miséria é senhora. As pessoas matam por

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drogas, por honra, por vingança, por machismo, por um nada. E por amor,
vale à pena morrer? Pois em Capão Redondo também se vê o amor, que
nasce escondido e cresce proibido, colocando em cheque (sic) a amizade de
dois rapazes que têm em comum a violência do bairro onde vivem e o
interesse por uma morena muito mais esperta do que qualquer um poderia
imaginar. (FERRÉZ, 2011, p.110)

Principais personagens, seus sonhos versus sua realidade

Rael um dos personagens da obra gosta de leitura, compra seus livros em sebos, trabalha
árduo por um pouco de dinheiro, ajuda sua mãe, frequenta escola pública e sonha com uma
vida melhor, longe do tráfico e do crime. Paula é a namorada de Matcherros, melhor amigo de
Rael desde a infância. Paula dá em cima de Rael, traí o namorado com o amigo, casa-se com
ele e no final troca ele pelo chefe, indo morar em uma casa melhor dom o filho dela e Rael.
Paula o havia traído com Oscar, o chefe de Rael e da Paula na metalúrgica.

Matcherros é o melhor amigo do Rael, não faz nada de útil da vida, vive jogando e traindo a
namorada Paula até perder ela para Rael. Não tem sonhos, mas no fim, consegue abrir uma
pequena firma e permanecer vivo. Burgos é um assassino frio e cruel, matou vários amigos de
infância de Rael. Amigos que se envolveram com o tráfico assim como Will, um de seus
amigos de infância que acaba sendo assassinada por Burgos mesmo após ter se mudado da
favela de Capão para uma favela vizinha. No final entra com Rael na metálurgica de seu
Oscar para roubar e ajudar Rael a matar o seu ex-chefe e atual marido de sua ex-mulher Paula.

Will e Dida, amigos de infância de Rael, morador da favela vizinha e envolvido com Burgos e
as drogas. Foram assassinados por Burgos na presença de toda a vizinhança de Capão
Redondo, mas ninguém o defendeu, ao contrário, todos se esconderam na hora da morte,
aparecendo tempos depois, apenas para ver o corpo, como se seu assassinato fosse algo
comum na sociedade periférica.

Cebola, irmão de Matcherros e amigo de Rael com quem passava horas jogando videogame
até anoitecer. Dona Maria, mãe de Rael, mulher trabalhadeira e dedicada ao filho e a casa.
Esposa de um bêbado, que mal passava em casa, e quando ia, chegava bêbado e dando
trabalho. Não possuía muitas esperanças de uma vida melhor. Seu filho era seu maior orgulho.
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Maria Bolonhesa e Raulio, mãe e pai de Will e Dida. Acreditavam nos filhos e esperavam
uma vida melhor e mais tranqüila para eles. Maria Bolonhesa também é assassinada por
Burgos. Marquinhos, vendedor de algodão doce e amigo de todos. Dividia suas poucas
moedas em lanches com os amigos. Juras, Jeovás, Marquinhos, China e Mixaria, amigos e
participantes da gangue de Burgos. Assaltantes e consumidores de drogas da periferia.

A narrativa do cotidiano e a violência na obra

Ao analisarmos a vida e obra de Ferréz, se chega à conclusão de que sua obra não é apenas de
uma obra ficcional, mas também um retrato da realidade daquele lugar, como uma obra de
denúncia, onde os fatos relatados são baseados em fatos realmente ocorridos e conhecidos do
autor, ao contrário de autores que falam de cenas do cotidiano dessas regiões, mas que narram
suas histórias, não com conhecimento empírico desse cotidiano e sim com um conhecimento
apenas teórico.

É necessário que se analise também o lado artístico do escritor, que retrata a sua visão e
criação individual, ainda que ele tente relatar a realidade isso sempre será permeado pela sua
própria percepção de realidade, pelas suas crenças, seus preconceitos e preceitos. Antônio
Candido no livro Literatura e sociedade menciona um trecho de Sainte-Beuve que parece
exprimir exatamente as relações entre o artista e o meio: “O poeta não é uma resultante, nem
mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e
única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque
ele combina e cria ao devolver à realidade” (2006, p. 27-28).

Um exemplo disso é quando o personagem demostra não concordar com a imagem de cristo
que a sociedade tem como padrão, “apresentam jesus como sendo um cara loiro. Que porra é
essa, que padrão é esse”. (ibid. p.62).

Ao se debruçar sobre a biografia de Ferréz podemos ver que ele está envolvido com o tipo de
trabalho que ele faz e que o público a quem primeiramente ele destina a sua obra está
sintonizado com ele, denotando que ele é parte desse grupo e não alguém que vem de fora e
agrada a esse público. Antônio Cândido define em poucas palavras esse envolvimento com o
público. “Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o
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indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e específica entre todos), mas
alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores” (ibid. p. 83).

Apesar de estar ciente das óbvias dificuldades e das inevitáveis parcialidades desta tentativa,
para Diana Klinger o mapa da geografia literária do presente deve abordar não apenas autores
e obras, mas também os debates críticos mais importantes que circulam na
contemporaneidade e tentar dar uma visão do próprio lugar que ocupa hoje a literatura na vida
social.

Reinaldo Ladaga (2007) indica certa confluência de alguns autores latino-americanos


estabelecendo uma fórmula que “poderia se cifrar” nestas cinco coordenadas: toda literatura
aspira: condição da arte contemporânea, toda literatura aspira a condição da improvisação,
toda literatura aspira à condição instantânea, toda literatura aspira à condição do mutante e
toda literatura aspira à indução de um transe.

Diana Klinger escrevera sobre a literatura do presente (2007) e estabelecia a partir daí um
paralelismo entre a literatura e etnografia contemporânea, e nestas narrativas recentes
percebia-se um dilema da representação: “um fascínio com as figuras marginais da sociedade,
mas sem qualquer ingenuidade com relação às possibilidades de representá-las”. Essas
narrativas expõem um “dilema da representação da outridade”, uma tensão que define a
relação entre o letrado e o outro”. Para Josefina Ludmer (2007) “Estas escrituras não admitem
leituras literárias”, não se sabe ou não se importa se são ou não literatura. Podendo também
importar-se ou não importar-se se são realidade ou ficção.

Mas na obra Capão Pecado, Ferréz, joga com as ideias entre o real e ficção, como diz
Dalcastagne (2008). Em relação a escrita, o narrador utiliza-se de algumas estratégias para
conectar as ideias em sua obra. Há um jogo de valores morais na trama, como a relativização
da moral entre os personagens. O permitido e o proibido são relativos em sua obra, tudo vai
depender do contexto. Um exemplo claro disso é o casamento de Rael, que é fruto de um
relacionamento extraconjugal, mas que pôde se justificar pela situação ilustrada. O narrador
cria um caminho para convencer o leitor de que, o relacionamento proibido, em um primeiro

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momento era bom para todos. Posteriormente toda a tragédia de Rael é ocasionada por outro
relacionamento extraconjugal. Percebe-se então uma relativização da moral.

Para Smith (2009), “há uma relativização da moral quando um conjunto de condutas não se
aplicam de forma igual para todos”. O narrador também se utiliza de conectivos e artimanhas
linguísticas para não irritar leitor, e ao mesmo tempo minimizar os impactos da violência na
obra. Uma dessas ferramentas é a linguagem coloquial da comunidade. O vocabulário
coloquial contribui com o labirinto narrativo criado pelo narrador e acaba transmitindo
reforçando a sua imparcialidade com os acontecimentos. Percebe-se também que são palavras
extremamente calculadas e balanceadas, ao ponto de quebrar com todas as expectativas do
leitor.

Pelo jogo de palavras utilizado, na maioria das vezes, são imprevisíveis os próximos passos
dos personagens. Esta forma de escrever dificulta qualquer forma de previsibilidade. Sendo
assim, nada está garantido em Capão Pecado, os desfechos sempre serão nebulosos e, na
maioria das vezes, com grande probabilidade de levá-los à morte. Outra ferramenta muito
explorada pelo narrador é o jogo da sobrevivência. Capão Redondo está isolado de sociedade.
Para Smith, “o jogo da sobrevivência é uma dualidade entre liberdade individual e o poder do
Estado”.

Entre as consequências deste isolamento, está na ausência da figura do Estado, que desaparece
e abre espaço para a marginalização. Neste momento, prevalece a lei do mais forte. Um
conjunto de regras vai definir o convívio social dos personagens. Acerto de contas, lei do
silêncio, a pobreza e condições de vida precária e muito mais. Logo, a opção do narrador em
inserir os personagens nas margens, se reflete na vida de todos. Sendo assim, a violência e a
marginalização tornam-se a raiz de todos os problemas.

Para Erica Peçanha (2006) Ferréz deixa alguns indícios de como a literatura marginal
alavanca com a criação da revista “Caros Amigos” e trazendo a observância de que a literatura
marginal poderia estar nos cânones da literatura. Seguramente, os argumentos históricos,
filosóficos, políticos, econômicos e jurídicos são também presentes, principalmente as de
cunho histórico, uma área privilegiada em que se travam todos os demais embates. Não há na
verdade, como separar as áreas, só o fazemos para fins didáticos, de exposição. Afinal,

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história, política, economia, legislação e sociologia são saberes que se encontram amplamente
relacionados em Capão Pecado, que é difícil tratá-los separadamente.

As observações a respeito da força policial, por exemplo, e do comportamento, na maior parte


das vezes, agressivo de seus componentes (policiais) evidenciam um problema grave, que
envolve complicadas reflexões de teor político, econômico, jurídico, etc. Caberiam, portanto,
em relação a tais práticas policiais, reflexões em vários âmbitos.

A literatura marginal

O livro Capão Pecado, do escritor Ferréz, se inseriu no mercado editorial como representante
contemporâneo da chamada “literatura marginal”, termo usado pelo próprio autor para definir
seu trabalho. O nome do livro se relaciona diretamente ao lugar de origem do escritor, Capão
Redondo, zona Sul de São Paulo, e suas vivências nesse lugar. Seus personagens são
inspirados em pessoas e situações reais vividos em um dos bairros mais violentos da capital
Paulista. O fato de seu livro retratar de maneira tão direta os fatos cotidianos, marcados pela
violência e desigualdade social, faz com que o termo “marginal” se encaixe ao tipo de
produção literária que Ferréz produz.

O livro é inclusive escrito a partir de uma linguagem coloquial, mais próxima a da falada
pelas populações desses locais. Dessa maneira, o trabalho de Ferréz não só vem a se tornar
uma produção para o mercado editorial, mas é também dirigido ao público marginalizado do
qual se inspira e retrata em sua narrativa.

Eu não pego a história, eu pego o tom das pessoas. Se uma mulher passa
aqui [na padaria onde estávamos] e diz “para de beijar o menino, tira essa
boca de chupar rola do menino”, isso é muito foda! (risos) Eu tenho que
escrever um conto com isso. Se você falar isso na escola, você ganha todo
mundo. Eu fico convivendo com essa mulher dentro de mim e incorporo nos
contos (Ferréz em entrevista no dia 27/04/15).

Meu amigo Marcos Roberto de Almeida aparece no livro como o


personagem Marquinhos. Na história, ele morria. Só que ele acabou
morrendo na vida real, assassinado por um assaltante. Agora, vou deixar ele
vivo no livro […]. Tem gente que não quer aparecer. Dizem que estou
usando a imagem do bairro, mas não vou ficar rico vendendo livro. Se, com
o livro, eu puder convencer algum garoto que vale a pena batalhar sem

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atrapalhar a vida de ninguém está valendo (Ferréz em entrevista no dia
21/01/2000).

Ferréz escreve desde criança e lançou seu primeiro livro de poesias “Fortaleza da desilusão”
em 1997. Porém é com Capão Pecado que o autor e seu bairro viriam a ser reconhecidos. A
primeira edição do livro acontece em 2001, a partir da editora Labortexto com uma segunda
edição em 2002. Uma terceira edição surgiria em 2005, com a editora Objetiva. Uma das
razões desse reconhecimento dado ao autor tem a ver também com seu envolvimento em
outros círculos, sobretudo os relacionados a periferia, como os do hip-hop, do rap, do graffite
e demais movimentos culturais dentro do Capão Redondo. Entre eles, podemos destacar a
“Cooperativa Cultural da Periferia” (Cooperifa), lugar onde acontecem saraus, divulgação e
debates de temas locais e o “Somos Todos Um pela Dignidade da Zona Sul” (1daSul),
idealizado pelo próprio Ferréz, que também reunia os moradores do bairro interessados em
intervir com ações culturais na região.

Essa circulação e engajamento do autor nos círculos culturais da periferia, e o fato de produzir
um romance retratando esse local, possibilitou a Ferréz fortalecer cada vez mais sua imagem
enquanto escritor. Sua consolidação se dá de fato a partir das edições especiais da Caros
Amigos, revista conhecida por suas matérias de caráter social. O espaço dado em uma revista
de prestígio não somente deu visibilidade a ele, mas também a outros escritores sem voz.
Sobretudo, apresenta e traz para discussão de maneira mais massiva o termo utilizado para
nomear aquele tipo de produção literária.

Intituladas “Caros Amigos/Literatura Marginal: a cultura da periferia”, as


edições especiais foram publicadas em 2001, 2002 e 2004, e aglutinaram
quarenta e oito autores. A partir de então, a expressão “literatura marginal”
se disseminou, no cenário cultural contemporâneo, para caracterizar a
produção dos autores que vivenciam situações de marginalidade (social,
editorial e jurídica) e estão trazendo para o campo literário os termos, os
temas e o linguajar igualmente “marginais” (NASCIMENTO, 2006, p. 1).

Enquanto que na década de 70 o termo “marginal” estava relacionado a produção e circulação


de obras de uma classe média letrada, em lugares fora do círculo tradicional, com distribuição
de baixo custo, ou seja, de escritores que estavam fora do mercado editorial. Nos anos 2000 o
termo ganha novo significado com Ferréz, estando relacionado diretamente às produções de
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populações residentes de bairros pobres e afetados pela desigualdade social. Principalmente
àquelas que retratam essa realidade através de suas histórias, escritas com utilização de uma
linguagem não-padrão, com uso de gírias e expressões desses locais.

Ferréz já havia se utilizado da expressão “literatura marginal”, à época do


lançamento do seu segundo livro, Capão Pecado, em 2000, para referir-se
ao tipo de literatura que produzia e a de uma série de escritores com
semelhante perfil sociológico, que estavam publicando entre o final dos anos
1990 e o começo do novo século, uma classificação representativa do
contexto social nos quais estariam inseridos (NASCIMENTO, 2006, p. 15).

A partir da publicação do livro e sua participação na revista Caros Amigos, na qual inclusive
atuou como organizador, Ferréz se insere no cada vez mais no círculo editorial e de imprensa.
O que por sua vez gera cada vez mais visibilidade para suas produções, bem como também
para os dos envolvidos nos movimentos culturais do bairro. Um dos exemplos mais claro é o
próprio 1daSul criado por ele em 1999. Se em um primeiro momento era apenas um
movimento cultural, graças ao seu engajamento empresarial é hoje também uma grife de
roupas.

Ferréz soube utilizar bem os meios de comunicação para dar visibilidade ao que fazia. Ainda
que seja possível associar seu trabalho a palavra “marginal”, Capão Pecado se trata de um
livro com boa aceitação no mercado editorial, lido tanto na própria periferia quanto fora dela.
Um livro com olhar voltado para os excluídos, que mais além de gerar discussão no meio
acadêmico e jornalístico, possibilitou mostrar perspectivas de uma população invisibilizada
pela desigualdade social e apartada do círculo literário.

Referências bibliográficas
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