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rh oral onlas i hap ts ee he RSLS ot —_ a — < NY ey NT oo OC aT ee ITN oe, Tr KICHARD FLETCHER A CRUZ £ © CRESCENFE 4 cvrwtivnca enter emaalen ames ¢ oretde do Croceadeo 4 Reteema ISsetntaes ®) LCR AR Die UE sG Erb A CRUZ £ @ CRESCEN+E Cristianismo e isla, de Maomé a Reforma Tradugio de Andréa Rocha = EDITORA NOVA FRONTEIRA Titulo original: The Cross and the Crescent © Richard Fletcher, 2003 Publicado originalmente no Reino Unido por Penguin Books Ltd. 2003 Direitos de edi¢ao da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela Eprrorsa Nova Frontema S.A, Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar. em qualquer forma ou meio, seja eletrénico, de fotocépia, gravagdo etc., sem a permissdo do detentor do copirraite. Eprrora Nova Frontrira S.A. Rua Bambina, 25 — Botatogo —22251-050 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Tel.: (21) 2131-1111 —Fax: (21) 2537-2659 http://www. novafronteira.com.br e-mail: sac@novafronteira.com.br CIP-Brasil. Cataloga¢io-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ F631c Fletcher, R.A. (Richard A.) = A cruze o crescente : cristianismo e isla, de Maomé 4 Reforma / Richard Fletcher ; tradugaéo de Andréa Rocha. —Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2004 Traducio de: The cross and the crescent ISBN 85-209-1614-7 1. Isla ~ Relagdes — Cristianismo. 2. Cristianismo e outras religides — Isla. I. Titulo. CDD 261.27 CDU 261.8:297 Para Emma Clark —A historia — disse Stephen — é um pesadelo de que tento despertar... Que dizer entao se esse pesadelo lhe desse um pontapé por tras? James Joyce, Ulisses Ox One ae Oech Sumario Lista de mapas, 11 Prefacio, 13 Filhos de Ismael, 17 Um elefante para Carlos Magno, 43 Cruzando fronteiras, 77 Comércio, coexisténcia e saber, 109 Peneirando 0 Corao, 139 Epilogo, 163 Cronologia, 167 Outras obras sobre o assunto, 171 Notas, 177 Indice, 183 No Lista de mapas . O Mediterraneo e o Oriente Médio no primeiro século islamico, c. 630-730, 18 . O Mediterrineo e o Oriente Médio, c. 1000, 44 . O Mediterrineo e o Oriente Médio no inicio da era das Cruzadas, c. 1140, 78 . O mundo mediterrineo, c. 1400, 110 CS Sa eee Oe eae en ee Ce a eS EEE eEOrOn7uToooorerereeeeeeeee i Prefacio ESTE LIVRO ME FOI SUGERIDO pela primeira vez durante uma conversa em outubro de 1998, encomendado em junho de 2000, pensado du- rante os meses seguintes e escrito entre maio e dezembro de 2001. Sua publicagdo foi atrasada por motivos alheios 4 minha vontade. Este trabalho pretende ser uma introdu¢ao imparcial 4 histéria de um. grande, complicado, intricado e controvertido conjunto de rela- cionamentos que ajudou a dar forma ao mundo para muitos milhées de pessoas que vivem hoje em diferentes contextos culturais. Nem mais, nem menos. As origens do livro remontam a datas bem anteriores 4s que aca— baram de ser mencionadas. Por muitos anos dei aula em cursos de graduacdo que tratavam de varios aspectos das relacdes entre cristianis- mo e isla na Idade Média. Esses cursos foram ministrados na Universi- dade de York, onde até recentemente eu trabalhava. Bem antes disso, entretanto, uma experiéncia formadora em minha propria carreira como estudante de graduacao em Oxford langou as sementes de um ! 14 Rrcusanp FPrepener interesse por esse confronto cultural, Em minha primes longa viagem de férias, em 1963, visitet a Espanha com amigos ¢ pela primeira vez na vida contemplei adimirado a mesquita de Cordoba ¢ o Alhambra de Granada: voltei de minhas férias decidido a aprender mais sobre a cultura que havia produzido aguelas maravilhas. Nas semanas iniciats do periode letive seguinte, freqiientei o que eram as chamadas “aulas” — na verdade eram grupos de discussio informais — sobre o tema “cristianismo e¢ isli na Idade Média”. Essas aulas erani comandadas por um triunvirato formado por Richard Southern (naquela época Professor Chichele de Historia Medieval), Samuel Stern e Richard Walzer. A esses trés juntavam-se as vezes Albert Hourani ou Lorenzo Minio-Paluello, ocasionalmente ambos. A simples men¢io dos no- mes desses ilustrissimos eruditos traz logo 4 lembranga o quanto nés alunos fomos extremamente privilegiados. Nao posso falar pelos ou- tros memibros do grupo, mas estou bem certo de que, na maneira despreocupada de um jovem de 19 anos, eu nio tinha a menor idéia do quanto era afortunado por poder ouvir aquelas reflexoes inteli- gentes, hicidas e instigantes. As aulas aconteceram no All Soul's College, se nado me engano nas salas do dr. Stern, Nao havia cadeiras para todos, entio nos sentivamos no chio, quase que literalmente aos pés desses sibios, e apenas ouviamos o que eles tinham a dizer, as vezes participando com uma pergunta ou até aventurando uma observagao. Era um métodc de ensino que talvez nio tivesse sido possivel em nenhuma outra universidade no mundo ocidental daquele tempo, ¢ que seria totalmente impensavel nas condicées que regem a vida académica hoje. Ainda tenho as paginas amarelecidas, cheias de ano- tacdes apressadas feitas naquele periodo, que mesmo fora de ordem e fragmentadas sio uma lembranga de uma das mais valiosas experién- cias pedagégicas de minha vida. De um passado mais recente, registro meu muito obrigado a Craig Taylor por orientar a compra e me ajudar em minha primeira utiliza¢do de um novo computador, e também por chamar minha atencio para A chuyv E © GCRESGENTE t> Honorat Bouvet (ver capitulo 5). A minha esposa Emma Chirk (2 quem o livro é dedicado) sou profundamente devedor, por ela ter cncontracle tempo em sua vida atribulada para ler todo o texto digitade & fier comentirios construtivos de uma perspectiva muculmana. A luz de criticas, fiz muitas modificagdes em meu texto. Quando descons re seus conselhos, nunca foi sem uma hesitagdo repleta de ansiedade. Sou tambén: devedor, mais uma vez.as habilidades editoriais de Stuart Pref aplicada aqui num texto que ele nac encomendou. As datas sio fornecidas na forma d.C. (hoje, as vezes, expressas de uma maneira mais neutra como EC ou Era Comum): existem muitos livros de referéncia que fornecem listas paralelas da Hégira islamica ¢ datas a.C./EC cristas. Em minha nomenciatura, estou ciente de que a combinagio de termos como “cristandade e isli” é, em estrito senso, uma imprecisio: o “isla” € uma fé, que pode, portanto, ser ligada a “cristianisnio” * ;“‘cristandade” é 1m territério, ou cultura, ou socieda- de, um termo que pode, portanto, ser associado a Dar al-Islam, cu“ Casa da Paz”, aquela porgio de mundo na qual a fé e a lei do isla prevale- cem. Se deixei passar instancias em que incorri nesse erro, peco per- dao aqueles que o possam considerar ofensivo. Cronologia, sugest6es de leitura adicional e notas que identificam as citacSes no texto esto 3 disposigio dos leitores no final do volume. Ao escrever este livro, por muitas vezes lamentei no ter podido incluir algumas considerag6es sobre o judaismo, como 0 terceiro (mas mais antigo) dos monoteismos do mundo medieval, cujo destino este- ve indissociavelmente entrelagado com o dos outros dois. Mas isso teria resultado num livro muito diferente e muito mais longo. Finalmente, um breve comentario sobre o titulo.Tenho conscién- cia de que o crescente nao se tornou amplamente usual como um * Optamos por traduzir a palavra inglesa Islam por “isli”, que em portugues pode significar tanto a religido quanto a civiliza¢ao islimica. (N.T.) 16 KRicharp FLETCHER simbolo do isla antes do periodo otomano. Da mesma forma, estou cliente de que a outros autores também ocorreu a adequagio da ex- pressao “cruz e crescente” como um titulo para trabalhos sobre o as- sunto. No prefacio ao seu romance Summer Lightning (1929), PG. Wodehouse admitiu a vergonha que sentiu ao ser informado de que dois romances com esse mesmo titulo haviam sido publicados na Ingla- terra e trés nos Estados Unidos. Aproveito sua deixa e arrisco a modes- ta esperanga de que o presente trabalho seja considerado digno de ser incluido entre os cem melhores livros chamados A cruz e o crescenite. Nuumington, York Junho de 2002 1 Filhos de Ismael O ISLA E A FE DE UM UNICO texto sagrado; 0 cristianismo, em contraste, a de muitos textos. Essa diferenca entre credos monotextuais e multitextuais teve conseqiiéncias de longo alcance na histéria do mundo, O texto sagrado do isla é 0 Cordo. De acordo com a tradigio islamica ortodoxa,o Corao foi revelado por Deus ao profeta Maomé e, aproximadamente vinte anos apdés sua morte, em 632 d.C., alcangou forma fixa e final por mos editoriais humanas. Os diversos textos cristaos sio normalmente encontrados sob a capa de apenas um livro,a Biblia. A palavra “‘biblia” é derivada do latim bibliotheca, e & exatamente isso 0 que a Biblia é. Uma parte dessa biblioteca é constituida por uma massa de mito, histdria, lei, poesia, aconselhamento e profecia herdados do judaismo e reunidos para formar o Antigo Testamento. J4 o Novo Testamento contém os primeiros escritos cristéos em cartas atribuidas a sio Paulo e a outros lideres da era apostdlica; nada menos que quatro versGes da vida e dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, cada uma ligeiramente diferente das outras trés; uma narrativa que se concentra na atividade missionaria de sio Paulo; e um trabalho de profecia apocaliptica que revela o fim iminente do mundo e a segunda vinda do Messias. Gragas a essa multiplicidade e diversidade de textos cristios, espe- cialmente de cartas € narrativas que se referem aos ensinamentos de Jesus € seus primeiros seguidores, discussdo, debate e discordancia fizeram par- te da histéria cristd desde os momentos mais iniciais que se pode docu- mentar. De um certo ponto de vista, a histéria cristi tem sido a histéria a City, : ne eee Rants, “" : te : Cérdoba nee aie : Cartagos ++. ‘ Kairuane Suen aen t = Rez —_— \ fees Tripoli ° 500 milhas Limites aproximados do dominio islimico, c. 730 ——— Limites aproximados do Império Romano do Oriente/Império Bizantino, ¢.730 ° 800 km t i me Alexandria akiees SINAL he = | t i rel ‘ as : Ti 2 : - a zs ee oN Baydi * Cresitonte : ; : --" i Bama Jerusalew (762) Mapa 1: O Mediterraneo ¢ 0 Oriente Médio no primeiro s€culo islamico, c. 630-730 20 RICHARD FLETCHER do florescimento de diferentes tendéncias ou seitas, de fragmentagoes em pequenas células e de reformas,encenadas tendo como pano de fundo 6 tumulto da polémica, da dentincia ¢ da trapaga. Durante os primeiras séculos cristdas, os assuntos teoldgicos que geravam os debates mais in- tensos e destemperados eram as doutrinas associadas da Trindade e da Encarnagao. Deus é um, mas é tambénz trés, o Pai, o Filho e o Espirito Santo. O que isso significa exatamente? Quais sio as relagses entre essas Trés Pessoas da Trindade? O que” Filho de Deus” significa? Como Deus podia ser Seu prdprio Filho? Em que sentido Jesus era Homem e tam- bém Deus? Essas e outras questdes relacionadas ao assunto, obscuras e dificeis, exercitaram as maiores inteligéncias da Igreja crista durante a maior parte do terceiro, quarto e quinto séculos da era Crista, ¢ ainda sao discutidas. Em resposta a elas, foram propostas defini¢des teolégicas de grande sutileza — ¢ para as mentes leigas, quase incompreensiveis. Em algumas esferas essas definigdes foram aceitas; em outras, rejeitadas. Disputas doutrindrias desse tipo nio s4o possiveis sob uma ordem isKimica. As doutrinas estritamente teoldgicas entronizadas no Corao nio sofrem das ambigiiidades, obscuridades e aparentes contradigdes dos primeiros textos cristaos. E claro, isso nao significa que 0 isla tenha ficado imune a conflitos internos; eles existiram, mas costumavam ser de outra ordem. Uma geracio apés a morte do Profeta, quest6es a respeito da origem da autoridade dentro da comunidade islimica se revelaram causadoras de dissenso, e dividiram-na nas facgGes sunita e xdita, numa fissura que nunca se reconstituiria.* A elaboragdo de um * Os xditas t@m seu nome derivado da palavra arabe sfti“at, que significa “grupo” ou seit de Ali, ao mesmo tempo primo e genro do Profeta. Os xaitas se recusaram. a peas as reivindicagdes de autoridade dos trés primeiros califas que sucederam a Mase, uma recusa que precipitou a guerra civil na primeira comunidade islamica, Os sunitas, por outro lado, reconheceram e reverenciaram os primeiros califas, e nio atribufram nenhu- ma condicio especial a Ali e seus descendentes. Atualmente, os sunitas constituem 90% dos muculmanos no mundo todo, e as varias seitas xditas integram os 10% restantes. A CRUZ F © CRESCENTE Zt cédigo islimico de leis a partir do Corio, ¢ o quase tio autoritirio Hadith, ou “Tradiges”, requeriam interpreta¢io; por isso, escolas ri- vais de lei islamica se estabeleceram ao longo do tempo. Diferentes comentadores desses textos sagrados defendiam praticas ligeiramente diferentes, bem como formas e rotinas de devocio também ligeira- mente diversas. Individualmente, pessoas santas experimentaram novas maneiras de se aproximar de Deus através do ascetismo, do misticismo ou de atividades coletivas. A partir dessas experiéncias seus adeptos formaram grupos ou seitas. Homens santos e, as vezes — de fato mais freqiientemente do que se costuma imaginar —, mulheres santas podem ser venerados dentro do Dar al-Islam (iteralmente “Casa da Paz’’,as terras onde a fé islAmica € observada e a lei islamica prevalece) como mestres, guias espirituais, iniciados na lei. Mas eles nio sio sacerdotes no sentido cristo. Nao ha sacerdécio no isli. Como também nao ha, nem pode haver, uma Igreja no sentido de uma instituico religiosa separada do mundo laico, com sua propria organizagio, receita, seus costumes e funciondrios.A auto- ridade dentro do isla é indivisivel: nao h4 separacao entre o sagrado e 0 secular. Sob uma ordem cristi, entretanto, ha uma distincio entre “Es- tado”, “mundo” e “‘sociedade”, de um lado, e “Igreja” de outro. Pode haver pouco ou muito espaco entre esses dois blocos; as relacdes po- dem ser calorosas ou cautelosas, mas a distingao est4 sempre 14, um potencial de tensao e conflito. Essas diferencas fundamentais entre isli e cristianismo impossibi- litaram o entendimento facil e o didlogo harménico. O monotefsmo austero do isla considera as doutrinas crist’is da Trindade e da Encarna¢ao incompreensiveis e desagradveis. O que € um Deus que é de alguma forma “divisivel”, um Deus que pode se transformar num homem, numa pomba, ou num cordeiro, senio uma forma de politeismo ou idolatria — crengas repetidamente condenadas no Corio? A divisio crista em seitas tem sido tradicionalmente objeto de escdrnio entre os oie) a RicHaARD FLETCHER muculmanos que a testemuntiam. Se hi na cristandade uma linha de tensio entre Tgreja ¢ Estado (ou sociedade) que seria intoleravel no isli, isso vai revelar formas conrpletamente diferentes de pensar sobre autoridade ¢ de organizar a conmunidade dos fidis — isto ¢, de condu- air a politica. Na época em que Maomé recebeu suas primeiras revelagdes, no co- meco do século VIL, o cristianismo era, oficialmente, ha dois séculos, a % exclusiva do Império Romano, a superpoténcia do Mediterraneo. Isso nio significa que a autoridade romana e a fé crista tivessem fron- teiras coincidentes. Também nao significa que 0 cristianismo do mun- de romano fosse uniforme ou monocromatico. Ha muito o cristianismo vinha se estendendo para além das fronteiras politicas do Império Ro- mano: desde os tempos de Maomé, colénias cristas foram instaladas no exterior, da Etidpia 4 Inlanda, do Marrocos a Georgia.A expansic havia sido mais significativa, tanto numérica quanto culturalmente, em diregio ao Oriente. Um ramo especialmente florescente do cristianismo seria encontrado na Mesopotimia — mais ou rmenos 0 Iraque atual —, que estava politicamente dentro das fronteiras de outra superpoténcia da An- tiguidade, o Império Persa. Essa “Igreja do Oriente”, como os estudiosos da historia eclesidstica chamam — embora “Igrejas”, no plural, possa ser mais preciso —, ja estava espalhando comunidades missiondrias em luga- res tao distantes quanto a india e a China. Dentro do mundo romano, a grande divisao cultural se dava entre o Oriente ¢ o Ocidente. O Oriente — de lingua grega ¢ urbanizado, que abrangia algumas das grandes cidades da Antiguidade (Alexandria, Antioquia, Efeso € a novata Constantinopla) — era o mais amplamente cristianizado. No Ocidente — de iingua latina, mais pobre e rural, com suas provincias aquela altura sob o controle de reis germanicos, que haviam estabelecido Estados-sucessores no decadente Império do Ocidente do século V — 0 cristianismo continuava tentando realizar avancos junte ao campesinato ainda pouco influenciado. As ja citadas A CRUZ EO CRESCENTE 24 confusas disputas doutrinarias haviam chegado ao que parecia ser uma resolucao, apds uma série de concilios da Igreja, culminando no im- pressionante encontro de aproximadamente 600 bispos na Calcedénia, perto de Constantinopla,em 451. Entretanto,as definicdes de ortodo- xla entio propostas eram inaccitaveis, ndo apenas para as Igrejas do Oriente que ficavam além das fronteiras imperiais — portanto, dificeis de serem disciplinadas —, mas também para uma bem fortificada coa- lizio de seitas cristas dentro das fronteiras, que podia ser, e foi, coagida. Essas seitas seguiam a doutrina da Encarnagao de Jesus, conhecida como monofisismo, a crenga de que no Cristo Encarnado havia apenas uma natureza, nao duas (divina e humana). Aqui, ndo precisamos nos ocupar dos detalhes teolégicos: basta dizer que os monofisistas estavam densa- mente distribuidos pelas provincias orientais do Irapério Romano desde a Armenia, passando pela Siria e pela Palestina, até 0 Egitc. Ao longo do periodo entre o fim do séculoV eo comeco do século VII, os mo- nofisistas dentro do Império softeram periédicas e 4s vezes intensas per- segui¢des, comandadas do centro da ortodoxia em Constantinopla. Os arabes eram grupos tribais seminémades que tinham uma lin- gua ¢ uma cultura em comum, agrupavam-se ao longo das fronteiras dos dois maiores poderes imperiais, is margens do deserto da Siria, e espalhavam-se pelas regides habitaveis da peninsula arabica propria- mente dita.* Interagiam das mais variadas formas com seus dois pode- rosos vizinhos imperiais: trabalhando como soldados mercendrios; ven- dendo incenso, camelos ou escravos para Siria ou Mesopotamia; e sofrendo captura e deportacio como ptisioneiros de guerra. Muitos & ae esclarecer um pequeno ponto que as vezes causa confusio: a provincia im- perial romana chamada “Arabia” limitava-se a um territério razoavelmente pe- queno, localizado aproximadamente entre o vale do Jordio e 0 deserto a leste. Quando sio Paulo mencionou sua permanéncia temporaria “na Arabia” (Gilatas 1:17), ndo se referiu ao que chamamos de Arabia Saudita. 24 Ricuarp FLETCHER deles permaneceram, voluntariamente ou nio, dentro dos impérios nos quais haviam conseguido progredir; alguns, como logo veremos, assu- miram posicdes de destaque em seus novos lares. Havia também trife- go na direcio contriria, j4 que as fronteiras do Império eram porosas. Imigrantes vindos de Roma ou da Pérsia, como, por exemplo, judeus e cristios que fugiam da perseguicio em seus paises, estabeleceram-se entre os arabes. Na época de Maomé havia um grande niimero de comunidades de expatriados judeus e cristios em terras arabes. Essas co- munidades difundiram sua fé ¢ suas praticas entre os arabes sirios que estavam intrigados e atraidos pelos monoteismos do mundo remano. Do século IV em diante passaram a existir na Siria comunidades de drabes nascidos cristios, embora nao ainda na peninsula arabica. Foram Igrejas que cresceram regularmente ao longo dos séculos V e VI e desenvolveram sua cultura arabe-cristA especifica. O préprio Maomé tinha viajado para a Siria a negécios, e numerosas passagens no Corao atestam sua familiaridade tanto com o judaismo quanto com 9 cristia~ nismo. Os povos radicados nos dois impérios demonstravam esse des- dém pelos arabes que tio freqiientemente marca a atitude dos seden- tarios em relac3o aos némades.A inimizade entre pastores e agricul- tores, entre o 4rido e o semeado, remonta a Abel e Caim. Amiano Marcelino, tiltimo dos grandes historiadores latinos da Antiguidade, escreveu ld pelo fim do século IV e é representativo. Ele considerava os arabes um povo destrutivo, que investia como aves de rapina para se apoderar do que fosse possivel encontrar. Diferentes em seus habi- tos, nio eram pessoas como a gente: usando o que hoje seria chama- do de estereotipia cultural, ele repeliu o 4rabe como o desagradavel Outro. Nenhum homem jamais pega no cabo de um arado, nem cultiva uma Arvore, nenhum busca o sustento cultivando a terra, mas pe- rambula continuamente por amplas e extensas regides, sem um lar, sem moradia fixa ou leis (...) Eles vagam tanto, que uma mulher casa- A CRUZ E © CRESCENTE 25 se em um lugar, di 4 luz em outro, ¢ educa seu filho bem longe (..) Sem nenhuma familiaridade com grios ou vinho, eles se alimenum de animais selvagens, leite ¢ uma variedade de plantas.! Escritores cristéos como sdo Jeroniino — contemporaneo de Amiano, vizinho préximo dos arabes durante seu longo periodo de residéncia em Belém, entre 386 e 420 — concordavam com ele. E essas autorida- des cristas sabiam como explicar as tais pessoas estranhas. Estava tudo 14 no que a Biblia tinha a dizer sobre Ismael, cujo nascimento e destino sao descritos no Génesis 16. Ismael seria um ““homem feroz;a sua mao contra todos, e a mao de todos contra ele; e ele viverd em hostilida- de contra todos os seus irmaos”. Aqui, Isidoro de Sevilha, o grande polimata e enciclopedista do fim da Antiguidade, e contemporaneo de Maomé, resume um consenso cristio: Os sarracenos vivem no deserto. Eles também sio chamados de is- maelitas, como © livro do Génesis ensina, porque descendem de Ismael [filho de Abraao]. Eles também sio chamados de agarenos porque descendem de Agar [escrava concubina de Abraio, a mie de Ismael]. Eles também, como ja dissemos, insistem em se denominar sarracenos, porque falsamente se vangloriam de descender de Sara [a mulher legitima de Abraao].? Desse modo, os arabes puderam ser marginalizados como inimigos da raga humana pela sua origem desonrada, ou, como diriamos hoje em dia, pela sua etnia, tanto quanto por seus repugnantes h4bitos de némades, diferentes daqueles do mundo civilizado. E isso tinha a sancio das escri- turas.A palavra do préprio Deus na Biblia,ao que parecia, havia declara— do que os arabes deveriam ser para sempre os excluidos. Um povo perigoso, um povo repulsivo, mas util, desde que manti- do a distancia. O governo imperial romano do Oriente estabeleceu como um tipo de Estado-tampZo uma confederacio tribal crista co- nhecida como os arabes gassinidas (de um pretenso ancestral Ghassan), 26 Ricenarnp Frercuer cuja zona de atividade se estendia ao longo da fronteira oriental do Eutrates até o Sinai. Em troca de subsidios, consideragao ¢ alguns dos adornos do poder sedentario, os gassanidas fzeran um bom trabalho de defesa da fronteira, no século VI. S6 que depois alguma coisa deu errado, ¢ nio esta totalmente claro o que foi. Talvez tenham achado que os gassanidas estivessem1 se tornando muito independentes. Talvez os burocratas de Constantinopla estivessem querendo fazer economia. Por alguma razio, o subsidio gassanida foi cancelado. Eles se ofende- ram, ¢ as relacées foram cortadas.A fronteira oriental ficou vulneravel aos tradicionais inimigos de Roma, os persas. Os dois poderes se en- frentaram até uma exausta imobilidade, numa guerra longa e desastro- samente cara entre 603 e 629. Outra conseqtiéncia da ruptura com os gassnidas foi um hiato na obten¢ao de informagées politicas. Os gas- sanidas haviam mantido o governo imperial bem informado sobre os acontecimentos no mundo 4rabe. Mas no come¢o do século VII, Cons- tantinopla fatalmente perdeu contato com o que estava acontecendo mais adiante, para o sul, em Meca e Medina. Segundo o relato canénico do inicio do isla, Maomé recebeu as revelacdes divinas contidas no Corio a partir de 610, comegou a pre- gar para o povo de Meca em mais ou menos 612, encontrou oposicio e fugiu para Medina em 622. O iiltimo evento, o Hijrah, ou Hégira (literalmente “migraco”), marca o inicio da era cronologica islamica. Vitérias militares realizadas pelos ansar, ou “colaboradores”, seus alia- dos de Medina, possibilitaram que Maomé conquistasse o povo de Meca em 630. Na época de sua morte, tradicionalmente datada como 632, afirma-se que a maioria dos arabes das partes ocidentais da penin- sula arabica submeteu-se A sua profética lideranga e se juntou 4 wma, ou comunidade de fiéis, movida pelos ideais do islam ou pela obedién- cia a vontade de Ald. Esse relato tradicional enfrenta todo tipo de dificuldades, porque as fontes, se avaliadas imparcialmente, de fato nos contam muito pouco que seja confiavel sobre a vida do Profeta e suas crencas. Admitindo-se isso, fica razoavelmente claro que Maomé nao A CRUZ E © CRESCENTE 27

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