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1. Este artigo foi construído com base em alguns capítulos de m inha tese de doutorado
defendida no ano de 2005 na Universidade de Brasília, intitulada “Modernos e rústicos:
tradição, cantadores nordestinos e tradicionalistas gaúchos em Brasília’’.
Anuário Antropológico/2005
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2. Rebelião sustentada por estanceiros gaúchos, ocorrida no Rio Grande de Sul entre os anos
de 1835 e 1845. Os revolucionários almejavam a independência política em relação ao
país. O “centro” era acusado de má gestão do dinheiro público, de realizar gastos supérfluos
e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem indenizá-lo pelos danos sofridos
(PESAVENTO. 1982, p. 38-39).
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3. Entidade que congrega e orienta as atividades dos CTGs de Brasília, Goiás. Oeste Baiano e
algumas localidades de Minas Gerais.
4. A denominação faz referencia à Revolução Farroupilha iniciada no ano dc 1835.
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5. As pilchas são os trajes utilizados pelos freqüentadores dos CTG. Os elementos típicos da
indum entária masculina são as calças, denominadas bombachas, e diversos acessórios
como cintos, botas de couro, lenços, chapéu, etc. O traje feminino é constituído por
sapatos tipo “boneca” e longos vestidos, sem decotes, na maioria das vezes de mangas
compridas e armados por muitas anáguas.
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8. Segundo Augusto Meyer, o termo bocha corresponde ao italiano “boccia”, bola de jogar de
madeira. O jogo foi transm itido por im igrantes italianos no Brasil, tornando-se muito
popular no Rio Grande do Sul (MEYER, 1975, p. 46).
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objetais” - são utilizados nas lutas “... pelo monopólio de fazer ver e fazer
crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer” (p. 113). A todo o momento,
os freqüentadores do CTG lutam pela visualização, comprovação,
conhecimento e reconhecimento de uma imagem. Ao evocar representações
objetais, notamos a necessidade de diferenciar o espaço e seus
freqüentadores. Ao escolherem objetos e transformá-los em símbolos, esses
gaúchos estabelecem fronteiras, limites e identidades. A demarcação da
diferença é feita pela invenção de símbolos e pela sua utilização numa narrativa
ritual extremamente rica, dinâmica e variada.
Semanalmente, são realizadas as Sextas Nativas. Os eventos
acontecem todas as sextas-feiras no Galpão. A Sexta Nativa é um momento
para reforçar os laços entre o„s freqüentadores do CTG. O público é composto
por freqüentadores e freqüentadoras da entidade. O evento começa por volta
das vinte e uma horas. É servido um jantar, cujo prato principal é o arroz
carreteiro. O evento conta também com música ao vivo, onde são cantadas
músicas gauchescas, executadas e dançadas por membros do CTG. As
pessoas comem, cantam e dançam.
As danças são várias. Existem aquelas dançadas individualmente e as
dançadas em duplas. Essas pessoas, performando um passo de dança,
comunicam e transmitem mensagens. A partir da dança podemos perceber
alguns meandros da cultura tradicionalista. Comecemos pelo papel assumido
pelos homens na execução dos ritos.
Ao assistir uma performance de dança num CTG, notamos claramente
a diferenciação de papéis entre homens e mulheres. A mulher só dança com
seu par, ou seja, ela dança como acompanhante do homem. Seus movimentos
são limitados e exigem menos habilidade e destreza físicas. Ao contrário, o
repertório masculino é amplo. O homem pode dançar como acompanhante
da mulher nas danças em pares ou pode dançar individualmente numa espécie
de confronto com um outro. Eles dançam a chula e a dança de facões, esta
realizada com grandes facas que chegam a soltar faíscas quando se tocam.
São nessas danças individuais que vamos nos deter agora, em especial, na
chula.
A chula é uma dança eminentemente masculina. Em cada apresentação
de chula existem dois dançarinos que dançam simulando uma disputa. Durante
a apresentação, os dançarinos mantêm entre si o contato visual, provocando
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seu adversário por meio de expressões faciais e gestos com a mão sugerindo
desafio. As performances são individuais. Cada dançarino dança ao seu tempo.
O acompanhamento musical é feito por um violão e uma gaita. O andamento
melódico pode ser lento ou mais agitado, conforme a coreografia apresentada.
A coreografia é executada sobre uma lança que não pode em momento
algum ser tocada pelos dançarinos. A dança varia de passos mais simples
aos mais complexos, como dançar nas pontas dos pés ou com os joelhos,
cambalhotas, saltos, etc. Dançar a chula exige destreza, equilíbrio,
condicionamento físico e uma postura corporal específica. Tais habilidades
podem impressionar os espectadores. A própria pesquisadora não pode
esconder seu “espanto” ao assistir pela primeira vez uma apresentação de
chula, por ocasião de um Rodeio Gaúcho em Brasília, já citado anteriormente.
E por causa dessa emoção, utilizando o linguajar tradicionalista eu quase me
soltei porteira afora. Como tenho um gosto especial pela dança, me deixei
levar pela tamanha habilidade de um dançarino. Seus movimentos eram
precisos e suas acrobacias perfeitas. Absorvida pelo momento, ao final da
apresentação, sem pestanejar, bati palmas de modo eufórico. Quando olho
ao redor, estava literalmente dentro da torcida do adversário do dançarino
que tanto me empolgava. De repente, me senti como um colorado que, por
engano, num domingo de Grenal comemora um gol no meio da torcida do
Grêmio.
Emoções à parte, imagens estão sendo construídas e comunicadas
no momento da dança pelo modo como a coreografia é executada. Altivez
seria a palavra certa para descrever a postura corporal dos dançarinos. O corpo
está completamente ereto e o peito projetado para frente. Dos pés, passando
pelo olhar até o alto da cabeça, o movimento é ascendente. A dança encena
um dos valores máximos de seus executores. A chula é uma encenação da
masculinidade e do caráter fogoso e bravio do homem gaúcho.
Nos ritos, os homens recebem cuidados especiais e parecem estar
no centro das atenções. Eles usam bombachas,9camisas de mangas compridas
brancas, lenços amarrados ao pescoço, cintos c botas de couro. Além desses
9. “Calções muito folgados, apertados nos tornozelos por botões e enfeitados nas costuras
laterais com pregueados variados" (MEYER. 197?. p. 143). Alguns pesquisadores afir
mam que a vesti uenta foi introduzida no Rio Grande do Sul pelo mercantilismo inglês, que
não fornecera seus “pantalones” , fabricados para o exército turco, em u./.ão do término
antecipado da Guerra da Criméia (cf. COSTA, 1988: GOLIN. 1983).
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O vestido deverá ser, preferencialm ente, de uma peça (...); Saia de armar:
quantidade livre (sem exagero). (...) O vestido pode ser de tecido estampado ou
liso, sendo facultado o uso de tecidos sintéticos com estamparia miúda ou 'peti-
pois’; Vedado o decote; sapato com salto cinco, ou meio salto, que abotoe do lado
de fora, por uma tira que passa sobre o peito do pé. (...) Facultado o uso de brincos
de argola de metal. Vetado os de fantasia ou de plástico (...) E permitido o uso
discreto de maquiagem facial, sem batons roxos, sombras coloridas, delineadores
em demasia (...) Livre a criação de vestidos, quanto a cores, padrões e silhuetas,
dentro dos parâmetros acima enumerados."’
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chimarrão. Sigo para o local onde duas pessoas estavam responsáveis pela
venda dosángressos. Pago meu ingresso e ouço: “A sua mesa é a de número
um. Aí lá vão ter outras pessoas. É uma mesa grande e lá você se entrosa”.
Um peão e uma prenda arrecadavam os ingressos na entrada do Galpão.
Todas essas pessoas tinham um crachá com os dizeres: “Equipe do Costelâo”.
A sensação ao entrar e ver aquela quantidade de mesas de tábuas e longos
bancos de madeira lotando o salão foi a que um grande banquete comunitário
me esperava - os organizadores do evento dizem que o espaço tem condições
de abrigar mil e duzentas pessoas confortavelmente sentadas. “Puxo”
conversa com um homem sentado em minha mesa. Ele não freqüenta o
CTG. mas é gaúcho. Diz não perder um Castelão. Logo, chega mais um
grupo. Não eram gaúchos, mas um deles era descendente de alemães. Uma
longa conversa sobre a colonização alemã no Brasil tem início.
Normalmente, as pessoas vão em “bandos” para o Costelão. Explico:
vão acompanhadas por grupos de amigos, colegas de trabalho ou pela família.
Metade das mesas, que comportam cerca de vinte pessoas, é preenchida
por indivíduos que mantém alguma relação de parentesco ov de amizade
entre si. A platéia do Costelão não é composta unicamente por gaúchos ou
por pessoas que freqüentam o CTG. Grande parte dos presentes não é
natural do estado do Rio Grande do Sul. No entanto, muitos estão ali porque
foram convidados por gaúchos.
Afora as pessoas pilchadas, desfilam pelo salão homens com camisetas
de times de futebol do Rio Grande do Sul ou com frases do tipo: “Nesse
peito bate um coração gaúcho”. Do início ao fim, o evento é preenchido
com músicas tradicionalistas que lembram aos ouvintes: “Deus é gaúcho”
ou “Patrão velho, muito obrigado, por este céu azul (...) por ter me feito
gaúcho”. As interrupções ficam por conta de um locutor que anuncia
“presenças ilustres” como ex-patrões, antigos fundadores do CTG e políticos
gaúchos como Pedro Simon e Olívio Dutra.
As treze horas começam a chegar os “costelões”. Cada costela pesa
aproximadamente quinze quilos. Os espetos são trazidos e fincados em
grandes toras de madeira, dispostas numa das extremidade^ das mesas.
Quando as costelas são servidas, as pessoas correm para a carne e acontece
um momentâneo alvoroço. Momentâneo porque a quantidade de carne é
enorme e chega a sobrar. Ao fim do almoço as pessoas carregam as sobras
em sacolas de plástico. Após a refeição, seguem-se apresentações de dan
ças típicas.
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cometidos pelo sacerdote e inquieta com seu sotaque “diferente”, fiz alguns ,
comentários sobre a missa e fui informada de que ele não era gaúcho. Minha
inquietação aumentou diante da revelação. Como um padre não sendo gaúcho
e muito menos tradicionalista se dizia “mais faceiro que ganso novo cm
taipa de açude" c rezava:
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Patrão celestial, venho chegando, enquanto cevo o amargo das minhas confidências
porque, ao romper da madrugada e ao descambar do sol. preciso campcrcar por
outras invernadas e repontar do céu a força e a coragem para o entrevero do dia
que passa. Eu bem sei que qualquer guasca, bem pilchado, dc faca, rebenque e
esporas, não se afirma nos arreios da vida, se não se estriba na proteção do céu
(...) Perdoa-me, Senhor, porque, rengueando pelas canhadas da fraqueza humana,
de quando em vez, quase sem querer eu me solto porteira a fora... Eta. potrilho
chucro (....) Que a Tua vontade leve a minha de cabresto para todo o sempre até
a querência do céu. Amém.
Quais seriam seus motivos? Por que estaria ali? Sua presença no
Galpão seria em razão das redes de relações travadas entre ele e alguns
freqüentadores do CTG. O que tornava a sua performance eficaz - mesmo
não podendo se valer do uso de um sotaque especial - era o roteiro que tinha
nas mãos. Apesar dos erros, o sacerdote mostrava-se atento em seguir
corretamente o script. Os tradicionalistas não se preocupam apenas em criar
um cenário especial para a ambientação de seus eventos, mas também em
elaborar “documentos oficiais” que prescrevem as ações, garantindo a fluidez
do rito.
Seja falando um linguajar específico, performando uma dança ou
promovendo um banquete, os freqüentadores do CTG criam um ideal de
unidade. Essas situações tornam-se assim, sinais diacríticos. Pela execução
de uma série de eventos, os participantes do CTG vêem a possibilidade dc
angariar popularidade e de manter a entidade em atividade.
Missas Crioulas, Sextas Nativas, Castelões são tipos específicos dc
comunicação. São, por excelência, atos performáticos. São atos que traduzem
ensaios disciplinados de atitudes consideradas pelos seus executores como
corretas (TAMBIAH, 1985, p. 132). São lutas por representações de imagens.
São momentos em que processos de identificação são construídos,
manipulados e afirmados. Nos Centros de Tradições Gaúchas, os gaúchos
por meio de seus ritos, imaginam e simulam a si mesmos.
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