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ANDRE MARTINET Professor de Linguistica Geral na Sorbona Director de Estudos ma «Ecole Pratique des Hautes Etudes (Paris) ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL Tradupdo adaptada para leitores de lingua portuguesa por Jonct Morau-Barsosa Doutor em Letras pela Sorbona “hy arting Fontes Eos hte BRASIL Yee CAPITULO 1 GUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA ..1 A LINGUISTICA, DISCIPLINA NAO PRESCRITIVA \ uNouistTicA € 0 ESTUDO CIENT{FICO da linguagem sumana. Diz-se que um estudo é cientifico quando se baseia na_obser- acio dos factos e se abstém de propor qualquer escolha entre ais factos, em nome de.certos principios estéticos ou morais. Cientifico» opéde-se portanto a «prescritivo». No caso da_lin- uistica, importa especialmente insistir no cardcter cientifico nao prescritivo do estudo: como~O object desta ciéncia cons- ituiuma”actividade humana, ¢ grande a tentagdo de abandonar » dominio da observacao imparcial para recomendar determinado omportamento, de deixar de notar 0 que realmente se diz para yassar a recomendar o que deve dizer-se. A dificuldade de distin- cuir a linguistica cientifica da gramatica normativa lembra de extrair da moral uma auténtica ciéncia dos costumes. ‘Aostra-nos a historia que até ha pouco a maioria dos autores ue se ocuparam da linguagem ou das linguas o fez com itengdes prescritivas, declaradas ou evidentes. Ainda hoje, maioria das proprias pessoas cultas quase ignora que existe ama ciéncia da linguagem distinta da gramatica escolar e da ictividade normativa exercida, por exemplo na imprensa, por _ronistas mundanos e puristas. Mas, perante casos como os de rende-se livros, haviam muitas lutas, a pessoa que eu lhe disse 0 tome, etc., o linguista contemporaneo ignora tanto a indigna¢4o do purista conservador como 0 jubilo do iconoclasta revolu- sionario. Casos como esses representam para ele simples factos explicar dentro dos usos em gue aparecem. O seu inibe de apontar. as censuras ou apreciacées tro- sistas a que tais «barbarismos» ou «solecismos» se prestam na boca de uns, nem a indiferenga em que deixam outros; mas ale abstém-se de tomar partido a favor ou contra, porque nao $ esse o seu papel. 4 ELEMENTOS DE LINGUISTICA Gppa, 2 CARACTER VOCAL DA LINGUAGEM A linguagem gue 0 linguista estuda € a do homem. Seria ath desnecessario precisa-lo, dado o valor quase sempre metaforicg dos outros usos da palavra linguagem: a «inguagem dos an). mais» € invengio dos fabulistas, a «linguagem das formigas, ¢ mais hipotese que resultado da observagdo, a «linguagem das flores» € um cédigo como tantos outros. Na fala corrente, «linguagem» designa propriamente a faculdade de que os homens dispdem para se compreenderem por meio de signos vocais. Detenhamo-nos um pouco neste cardcter vocal da linguagem. Ha milhares de anos que nos paises civilizados se usam com frequéncia signos picturais ou graficos correspondentes aos signos vocais da Iinguagem: é a chamada escrita. Antes de inven- tado o fondgrafo, qualquer signo vocal“ou éfa imediataments ouvido ou se perdia para sempre. Pelo contrario, 0 signo escrito conservava-se enquanto se conservassem 0 seu suporte — pedra, pergaminho, papel —e os tracos nele deixados pelo bisturi, pelo estilete ou pela pena: dai o adagio uerba uolant, scripta manent. O caracter definitivo da coisa escrita deu-lhe conside- ravel prestigio, € foi nessa forma que nos chegaram, e ainda hoje chegam, as obras literarias (assim chamadas gragas exacta- mente 4 escrita), em que assenta a nossa cultura. As escritas alfabéticas representam os signos por sucessdes de letras, bem separadas umas das outras nos textos impressos. Aprendemos na escola a reconhecé-las, e quem quer que a frequentou sabe de que letras se compée o signo escrito zambém; distinguir os componentes do signo vocal que ele representa ja Ihe sera nO entanto mais dificil, senéo impossivel. E que, na realidade, eet apo para que os alfabetizados identifiquem 0 sign? equivalente grafico e para Ihes impor ao espirito © ultimo como sendo o unico representante valido d° complexo. sto ee, esauegamos que os signos da linguagem humand durante centen, vocais, que foram exclusivamente voce!’ dos home, ‘as de milhares de anos, ¢ que ainda hoje a maiorla ns sabe falar sem saber escrever nem ler,_Nos apren” A LINGUISTICA, A LINGUAGEM BE A LINGUA 5 demos a falar antes de aprender a Ie a leitura que vem acres~ centar-se, sobrepor-se, a fala, © nao esta dau Embora, na pratica, Ihe seja anexo, 0 estudo da eserita constitui disciplina distinta da linguistica, e por isso o linguinta abstrai, em prins cipio, da gratia: sé a leva em linha de conta na medida em que ela influencia a forma dos signos vocais = 0 que alinal poucas yezes acontece. 1.3 4 LINGUAGEM, INSTITUICAO HUMANA Ouve-se por vezes falar da linguagem como duma_ faculdade humana, e nds proprios ja acima empregamos este termo, sem no entanto The havermos atribuido. valor rigoroso. Talvez as relagdes entre 0 homem ¢ a linguagem de que ele se serve sejam demasiado especificas para que possamos integrar deliberada- mente a linguagem num tipo mitis vasto de fungdes definidas. © que nao pode dizer-se ¢ que cla resulte do exercicio natural de algum Orgdo, como por mplo a respiragio ou a marcha, que constituem, por assim dizer, a razdo de ser dos pulmées e das pernas. E certo que se fala de orgiios da fala, de aparelho fonador, mas logo se acrescenta, em gel al, ser outra a fungdo primaria de cada um daqueles Orgios, de cada um dos elementos deste aparelho: a boca serve para ingerir os ali- mentos, as fossas nasais para respirar, etc. FE possivel que a circunvolugado cerebral em que se pretendeu localizar 0 centro da fala (em virtude de terem relagdo com a afasia as lesdes que nela intervéem) se relacione com o exercicio da lingua- gem. Mas nada prova que tal seja a sua fungdo primeira € essencial. Somos assim levados a situar a linguagem entre as INSTI“ TuIgdes humanas, maneira de ver que apresenta inegavels van- tagens: as instituigdes humanas resultam da vida em sociedade, € 0 mesmo sucede com a linguagem, que é essencialmente um instrumento de comunicagio. As instituigdes humanas supdem © exercicio das mais diversas faculdades, podem encontrar-sé » muito espalhadas e ser até, como a linguagem, universais, sem se identificarem nas varias comunidades. A familia, por _ exemplo, caracteriza talvez todos os grupos humanos, mas apre- ve. ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL ponto para outro com diferentes caracteristicas; também a linguagem, idéntica nas suas fungoes, difere de comu- nidade para comunidade, de maneira que so pode funcionar entre os membros de determinado grupo. Como nao consti- tuem dados primarios, essenciais, mas sim produtos da vida em sociedade, as instituigdes nado sdo imutaveis, mas sim sus- ceptiveis de variar sob a pressao de necessidades diversas ea influéncia de outras comunidades: havemos de ver que as coisas ndo se passam doutro modo com as diferentes modalidades da linguagem que as linguas representam. senta-se dum 1.4 as FUNCOES DA LINGUAGEM A natureza do fendmeno linguistico nao fica contudo intei- ramente esclarecida quando consideramos a linguagem como uma instituigdéo. Dizer que uma lingua é um instrumento ou utensilio é utilizar uma designacdo que, apesar de metaforica, tem a vantagem de chamar a ateng’o para o que distingue a linguagem de muitas outras instituigdes. A fungdo essencial do INSTRUMENTO que € a lingua reside na COMUNICAGAO: por exemplo, © portugués é, antes de mais, o utensilio que permite aos indi- viduos «de lingua portuguesa» entrarem em relagdo uns com + os outros. Se as linguas se modificam ao longo dos tempos, veremos que € essencialmente para se adaptarem da maneira mais econdmica 4 satisfagéo das necessidades comunicativas dos grupos que as falam. Nao se esqueca todavia que, além de| assegurar a com- preensdo mitua, a linguagem exerce ainda outras fungdes. Em Primeiro lugar, serve ela] por assim dizer,/de suporte ao pensa- Mento, € tanto que podemos até perguntar se mereceria pro- priamente © nome de pensamento uma actividade mental que se ndo exercesse no Ambito uma lingua; mas é ao psicologo € nao ao linguista que compete responder a tal pergunta. Por outro lado, muitas vezes 0 homem se serve da lingua para se* EXPRIMIR, OU Seja, para analisar o que sente, sem se preocupar grandemente com as Teacgdes de eventuais ouvintes, e assim cman ao mesmo tempo um processo de se dhomar AOS SCUS , olhos ¢ aos dos outros, sem pretensdes de comunicar o que quer A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 7 que seja.) Também poderfamos falar duma {fungio estética’ da linguagém, tanto mais dificil de analisar quanto € verdade que se confunde de perto com as fun s comunicativa € expressiva. Em ultima analise, é realmente na comunicagao, isto é, na com> preensio mUtua, que temos de reconhecer a fungdo central do instrumento que é a lingua*)Nao é por acaso que se troga dos individuos que falam sozinhos e do soliléquio, ou seja, da uti- lizagéo da linguagem para fins puramente expressivos. Para nado se expor a censuras, quem quiser exprimir-se deve procurar um publico, diante do qual representara a comédia do comércio linguistico. Alias, tudo indica que a lingua de cada um se cor- romperia rapidamente se ndo fosse a necessidade de se fazer compreender, ¢ é esta necessidade permanente que conserva em bom estado 0 utensilio. l a thine (nr kor And OWA 1“ 1.5 seRdo AS LINGUAS NOMENCLATURAS ? © De acordo com um conceito ingénuo mas muito espalhado, a lingua seria um repertorio de palavras, quer dizer, de produ- Ges vocais (ou graficas), cada uma delas correspondente a uma coisa: a determinado animal, digamos 0 cavalo, corresponderia no repertorio particular conhecido como «a lingua portuguesa» determinado produto vocal, ortograficamente representado por cavalo. As diferengas entre as linguas reduzir-se-iam a dife- rencas de designagéo —o «cavalo» diz-se em francés cheval, em inglés horse, em alemao Pferd—, e assim aprender uma lin- gua segunda consistiria apenas em aprender nova nomenclatura, ponto por ponto paralela a anteriormente conhecida, com excepgiio de alguns «idiotismos», isto €, de casos em que nado funcionaria, ou funcionaria mal, tal paralelismo. As proprias produgdes vocais compor-se-iam normalmente, em todas as linguas, dos mesmos sons, € as unicas diferencgas de lingua para lingua residiriam, neste dominio, na simples escolha dos sons € na maneira de os combinar em cada palavra. Confirma esse ponto de vista, quando pensamos nas letras € nao nos sons, 0 emprego do mesmo alfabeto nas mais diversas linguas: cavalo, cheval, horse, Pferd escrevem-se efectivamente com letras dum s6 alfa- beto —c, a, ve Jem cavalo e cheval, o em cavalo € horse, e em ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERar Pferd, h em cheval e horse, r em horse & Pfer d. vez pronunciadas as palavras, 0 Ouvido se da conta Como, uma We ndo sio apenas de escolha € disposicao qe aia ices fala-se do chamado «sotaque» — que seria apa re marginal, sobreposto a articulagiio normal a a uagem, cuja imitagdo, ao aprender-se uma lingua Sige pareceria, senio indecente, pelo menos ridicula, cheval, horse & 1.6 4 LINGUAGEM NAO pECBMCA A REALIDADE Essa nogiio de lingua-repertério baseia-se na ideia simplista de que, antes de vistas pelos homens, todas as coisas se organiza- riam em categorias de objectos perfeitamente distintas umas das outras, cada uma das quais deveria receber uma designagéo em cada lingua. Se, com efeito, tal acontece, até certo ponto, no que diz respeito as espécies vivas, por exemplo, deixa de ser exacto quando passamos a outros dominios: podemos consi- derar natural a diferenga entre a agua que corre e a que nao corre, mas, dentro das duas categorias assim estabelecidas, quio arbitrérias sdo as subdivisSes em oceanos, mares, lagos, pin- tanos, charcos, ou em rios, ribeiras, ribeiros e cursos de agua! Para os Ocidentais, que compartilham uma mesma civilizagao, o Mar Morto é um mar e o Grande Lago Salgado um lago; mas nem todos distinguem entre o rio, que desagua no mar, e a ribeira, que desagua noutro curso de Agua. Passando a outro dominio, vemos que o francés usa 0 mesmo termo bois para designar um lugar plantado de arvores, a madeira em geral, a madeira de construgdo e a madeira destinada a arder, sem falar de empregos mais Particulares como bois de cerf «haste de Phe pipes conn ° lugar plantado de arvores por a arder bora eres Por madeira, ea madeira destinada designa a drvore eg A ee Possui uma palavra tre, que tmmer, a madeira de ae cira_em geral, e, concorrendo com vra para designar o Constructo, mas nao se serve de tal pala- Osque, ra 0s principais sentidos do fr. bois, 0 pai Tate bosque, madera, lena, 0 italiano entre * ename, o alemao entre Wald, Gehdlz, Holz, A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 9 ‘9 russo entre les. dérevo, drovd, e todas estas palavras so suscep- tiveis de aplicacfo a coisas que o francés designaria de modo diferente de «bois»: o al. Wald € as mais das vezes forét, 0 russo 0 € © din. tre correspondem normalmente ao fr. arbre. Os Portugueses, os Franceses e em geral os Ocidentais distin- guem no espectro solar as cores violeta, azul, verde, amarelo, cor-de-laranja e vermelho, que nao se encontram todavia no proprio espectro, constituido por um continuo que vai do violeta ao vermelho. Ora este continuo é diversamente articulado pelas linguas. Sem sairmos da Europa, verificamos que 0 bretdo e 0 galés designam com a mesma palavra glas a porcdo do espectro correspondente aproximadamente as zonas portuguesas do azul e do verde. O que nds chamamos verde aparece com frequéncia dividido em duas unidades, uma das qiais corresponde ao que designamos por azu/ e a outra ao que designamos por amarelo. gS E certas linguas contentam-se com duas cores fundamentais, ~s grosso modo equivalentes as duas metades do espectro. As con- sideragdes precedentes mantém-se validas em aspectos mais abstractos da experiéncia humana: palavras como ingl. wistful, al. gemiitlich, russo nicevd nao correspondem em francés a nada de preciso; fr. sagesse é dificilmente traduzivel em portugués, e muitas linguas nao conhecem equivalente exacto para ptg. saudades). E até palavras consideradas equivalentes, como ptg. tomar, fr. prendre, ingl. take, al. nehmen, russo brat’, ndo se empregam sempre nas mesmas circunstancias, isto €, nao se_ situam nos mesmos campos seméanticos. Na realidade, cada lingua organiza 4 sua maneira os dados da experiéncia, e€ por , isso aprender uma lingua nova nao consiste em colocar novos rotulos em coisas conhecidas, mas sim em habituarmo-nos a, analisar doutro modo os objectos das comunicag6es linguisticas. j s ta, Umnguns aan z0 1.7 capa LINGUA POSSUI OS SEUS SONS Nao se passam diferentemente as coisas no dominio dos sons da linguagem. A vogal do ingl. bait néo é um e pronunciado com sotaque inglés, nem a de dif um i deformado por idéntica Tazio: compenetremo-nos de que, na zona articulatoria em Que © portugués distingue um i e um e «fechado» (de vi € ¥é, 10 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL © inglés trés tipos vocalicos, representados bait e irredutiveis ao i, e portugueses, ortografada s, cuja pronuncia caste. a inicial do ptg. chdo e do fr. chien, ortugueses ou franceses: de certas modalidades articulatorias, © francés € © portugues servem-se de dois tipos (fr. chien e sien, pts. chao e séo), enquanto 0 espa- nhol utiliza apenas um, que nao se identifica com qualquer daque- les dois. Casos como estes ocorrem alias dentro duma mesma lingua, quando passamos dum que para o efeito se comportam como linguas diferentes: o ptg. normal (o que se fala, por exemplo, em Lisboa ou Coimbra) pronuncia do mesmo modo palavras como paco e passo, porque nao distingue entre 0 que a ortografia representa por ¢ € ss; estas duas grafias correspond -os-Montes, a duas articulagoes diferentes (e por isso pago e passo nao se confundem na pronuncia local). O chamado «sota- por exemplo), opde nas palavras beat, bit € A consoante espanhola lhana Iembra um pouco nio é nem um s nem um ch p que» estrangeiro ou Jocal resulta da identificagao abusiva de ; unidades fonicas de linguas, dialectos ou falares diferentes. Tad perigoso e erroneo é ver na inicial do ptg. tomar, do fr. tout, do ing. take, do al. Tat e do russo uz variantes do mesmo tipo, como o seria considerar que ptg. tomar, fr. prendre, ingl. take, al. nehmen e russo brat’ correspondem a uma mesma realidade pré-existente a estas designagdes. 1.8 4 DUPLA ARTICULAGAO DA LINGUAGEM Diz-se por vezes que a linguagem humana é articulada. Embora Os que assim se exprimem nem sempre sejam capazes de definir exactamente © que pretendem dizer, nao ha duvida de que aquela formula alude a uma caracteristica efectiva de todas as vie convém explicar a nogao de articulagdo linguis- on paneer que ela se manifesta em dois planos, diferentes: com sito, as unis Tesultantes de uma primeira articulaco gare Por sua vez em unidades doutro tipo. a eaie ee da linguagem, as experiéncias @ : aa sidades que se pretende revelar a outrem, analisam-se numa série de unidades, cada uma delas possuidora dialecto ou dum falar para outro, | lem no entanto, no falar de Tras- ° A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA ih t « de uma forma vocal ¢ de um sentido. Se eu tiver dores de cabeca, * posso manifestar 0 meu sofrimento por meio de gritos, os quais, © & quando involuntarios, relevam da fisiologia, e quando mais ou = menos voluntirios se destinam a dar a conhecer a quem me rodeia os meus sofrimentos. Mas nem neste segundo caso nos © encontramos perante uma comunicagio linguistica. Os gritos {..'sdo inanalisaveis € correspondem a0 conjunto, inanalisado, da sensagio de dor. Inteiramente diversa si a situagdo se eu § pronunciar a frase tenho «na dor de cabega: nenhuma das cinco * unidades sucessivas que a compdem (tenho, uma, dor, de, cabega) corresponde ao que na minha dor ha de especitico, € cada uma © delas pode figurar noutros contextos para exprimir outra coisa ™ (enho em, por exemplo, tenho muitos livros, dor em dor de coto- velo, cabeca em cabeca de prego). Para compreendermos melhor © que de econémico ha nesta primeira articula: tara supor = o que seria um sistema de comunicagAo em que a cada situagdo, 8 a cada.dado da experiéncia, correspondesse um grito proprio: como estas situacdes e estes dados da experiéncia sto em ni- d mero praticamente infinito, um sistema constituido por gritos sO poderia prestar os servigos que prestam as linguas se com- ,, portasse um ntimero de signos distintos tio consideravel que a memoria humana ndo conseguiria reté-los. Alguns milhares de unidades do tipo de tenho, dor, cabeca, de, uma, com largas possibilidades combinatérias, permitem-nos comunicar mais coisas do que varios milhdes de gritos inarticulados diferentes. — ». A primeira articulagdo é 0 modo por que se ordena a expe- a riéncia comum a todos os membros de determinada comuni- dade linguistica. S6 comunicamos linguisticamente dentro dos 4 limites de tal experiéncia, pela forga das circunstincias limitada 4 ' ao que é comum a consideravel numero de individuos, e a ori- \ ginalidade do pensamento s6 pode manifestar-se na disposigdo inesperada das unidades. Incomunicavel na sua unicidade, ana- lisa-se a experiéncia pessoal numa sucesso de unidades pouco especificas e conhecidas de todos os membros comunitarios. + A especificidade s6 aumenta pela adjuncdo de novas uni- , dades, por exemplo de adjectivos ao substantivo, de advérbios ao verbo, ¢ de modo geral de determinantes a determinados. A yay Y rhs cAede we al ELEMENTOS DE LINGUISTIC Gppay | 12 : : | Como vimos, cada uma das See Primeira articulacsg tem um sentido ¢ uma forma vocal ( nica). Nao Podemos \ analisa-las em uridades sucessivas Mais Pequenas dotadas de sentido: € 0 conjunto cabega que significa «cabegan, e pao 7 a de eventuais sentidos de cada um dos segmentos em que podemos dividi-lo — ca-, -be- e “64, por exemplo. Mas a forma vocal é analisavel numa sucessao de unidades, que contribuem todas para distinguir cabega de outras unidades, como cabaga e cabeco, A isso chamamos @ SEGUNDA ARTICULAGAO da lin. guagem. No caso de cabega, ha seis unidades desse tipo, que podemos representar pelas letras k « b es a, convencionilmente colocadas entre barras obliquas: /kx’besa/. Por aqui vemos como , também a segunda articulagdo é economica: se a cada unidade, significativa minima correspondesse uma produgao vocal espe- cifica e inanalisivel, teriamos de distinguir milhares delas, 0 que seria incompativel com as latitudes articulatorias ¢ a sensi- bilidade auditiva do ser humano. Gragas a segunda articulagio, podem as linguas contentar-se com algumas dezenas de produtos - fonicos distintos uns dos outros, que se combinam para se obter a forma vocal das unidades de primeira articulagdo: assim em cabega aparece duas vezes a unidade que represen- | tamos por a—a mesma que reencontramos em mesa, nos artigos a e uma, etc. som: 1.9 as UNIDADES LINGUISTICAS BASICAS Um enunciado como tenho uma dor de cabega, ou uma parte desse enunciado que, como tenho uma dor ou dor ou cabeca, faz sentido, designa-se por sIGNo linguistico. Qualquer signo linguistico comporta um siGNiFIcaDo, que constitui o seu sen- i ou valor e que Tepresentamos entre aspas («tenho uma dor - oo «cabega»), e um SIGNIFICANTE, gragas 20 qual (/‘teau uma a ara e-aue transcrevemos entre barras obliquas que a lingua, ia le kx’besa/, /‘dor/, /kx’besa/). E ao significante significado oa an costuma chamar signo. Com os seus so signos, ¢ a cante, as unidades da primeira articulagdo sucessdes de 810s minimos por ndo poderem analisar-s¢ &™ Signos menores. Nao existe termo univ A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 13 aceite para designar tais unidades; pela nossa parte, chama- mos-lhes MONEMAS. Como os outros signos, 0 monema é uma unidade de duas faces: a face significada (sentido ou valor) ¢ a face sigmificante, que fonicamente a manifesta e se compde de unidades de segunda articulagdo, ditas FONEMAS. Ha no enunciado de que nos vimos servindo certo nimero de monemas que ocasionalmente coincidem com 0 que, na linguagem corrente, se chamam «palavras»: uma, de, dor. Mas nao se conclua dai que monema & o equivalente crudito de palavra. Numa palavra como comemos ha tres monemas, que sio com- /kum/ designativo de certo tipo de acgilo, -e- /e/ designativo do modo verbal, ¢ -mos /mus/ indicativo de ser a accdo praticada pelo locutor ¢ por mais alguém: comparem-se, por exemplo, comeste /ku’meste/ (/kum/, /e/, /ste/) © comamos /ku’momus/ (/kum/, /7/, /mus/). A tadigio distingue com- de -e- @ -mos, dizendo que por um lado temos um semantema e por outro morfemas, mas esta terminologia oferece © incon- veniente de sugerir que sé 0 semantema teria sentido, por cposicéio ao morfema que o nao teria, 0 que niio é exacto, Na medida cm que for necessario manter a distingdo, sera preferivel falar de LEXEMAS a propdsito dos monemas que se situam no léxico e ndo na gramatica, e conservar a designagdo de MoRFEMAS para 0$ Monemas que, como -e- € -mos, aparecem nas gramaticas. Os monemas como contra, que tanto figuram no léxico como na gramatica, devem classificar-se entre os morfemas. Note-se que um lexema como com- figura tradicionalmente no léxico com a forma comer, isto 6, acompanhado do morfema de infinitivo -er. 1.10 FoRMA LINEAR E CARACTER VOCAL Todas as linguas se manifestam pois na forma linear de enun- ciados, que representam 0 que por vezes se diz em frances «a chaine parlée». Essa FORMA LINEAR da linguagem humana deriva em Ultima andlise do seu CARACTER VOCAL: os enunciados vocais decorrem necessariamente no tempo e¢ séo necessaria- mente captados pelo ouvido como sucessdes. Inteiramente Pad ELEMENTOS DE LINGUISTICA GER, 14 diverso € 0 caso da comunicac4o de tipo Pictural € portanto captada pela vista: € certo que 0 pintor pinta um por um gs elementos do seu quadro, n i : ou como um todo ou dirigindo sucessivamente a atengdo para as varias partes que 0 constituem, segundo uma ordem varia. el e indiferente para oO valor da mensagem. E um sistema visual de comunicagdo, como a sinalizacdo das estradas, nio é linear mas sim bidimensional., O caracter linear dos enun- ciados explica @ sucessividade dos monemas e fonemas. Em tais sucessdes, tanto valor tem a ordem dos fonemas como a seleccZo de que cles sao objecto: o ptg. rumo /‘Rumu/ com- porta os mesmos fonemas que murro /‘mugu/, mas os dois signos sdo distintos; idéntico € 0 caso do fr. mal /mal/ ¢ lame /lam/|, por exemplo. Quanto as unidades de primeira articulacdo, as coisas ndo se passam bem assim: € verdade que 0 cagador matou o ledo nao significa 0 mesmo que 0 ledo matou o cagador, mas nao € raro poder-se deslocar um signo dum ponto para outro do enunciado sem que dai resulte apreciavel modificagaéo de sentido, como sucede em ele vird amanha & amanha ele vird. Por outro lado, aos lexemas agregam-se com frequéncia mor- femas que, por indicarem a fungao daqueles no enunciado, ou seja, as suas relagdes com os outros signos, Ihes permitem figurar em yarias posigdes sem realmente se afectar 0 sentido do enunciado. Tal é muitas vezes 0 caso em latim, em que puerum, caracterizado como objecto pelo segmento -um, pode figurar indiferentemente antes ou depois do verbo: puerum uidet OU uidet puerum «vé a crianga». 1.11 4 DuPLA ARTICULACAO E A ECONOMIA Em todas as linguas até hoje descritas existe o tipo de orga- nizagio que acabamos de esbogar e que parece impor-se as comunidades humanas como sendo o que melhor se adapta as necessidades e disponibilidades do homem. $6 a economia resultante das duas articulagées permite obter um instrumento de comunicagio de emprego geral, gracas ao qual se pode trans- mitir tanta intormacdo por tao baixo prego. Além da economi: suplementar que representa, oferece a segunda articulagao a mas 0 espectador recebe a mensagem | A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 15 vantagem de tornar INDEPENDENTE DO VALOR DO SIGNIFICADO ‘A FORMA DO SIGNIFICANTE correspondente e de assegurar assim maior estabilidade a forma linguistica. £ ébvio que, numa lingua em que a cada palavra correspondesse um grito particular ¢ inanalisavel, nada impediria as pessoas de modificarem varios gritos da maneira que lhes parecesse mais adequada para des- crever com exactidéo 0 objecto designado. Mas como seria impossivel chegar a acordo undnime em casos de tal natureza, dificilmente se preservaria a compreensdo no meio da instabi- lidade crénica em que depressa se cairia. Mantém viva essa compreensiio a existéncia da segunda articulagao, que liga a. sorte de cada componente do significado (de cada um dos seg- ! mentos /m/, /a/, /I/ de ptg. mal, por exemplo) nao ao sentido do significado correspondente, neste caso «mal», mas sim & . ‘sorte dos componentes doutros significantes da lingua —o /m/ de mar, 0 /a/ de gato, o /I/ de sal, etc. Nao quer isto dizer que 0 /m/ ou 0 /I/ de mal nao possam modificar-se no futuro, mas sim que, se tal acontecer, forgosamente se modificarao também, t ao mesmo tempo e do mesmo modo, o /m/ de mar ¢ o [lf de sal. i 4 1.12 cADA LINGUA TEM A SUA ARTICULACAO PROPRIA Se todas as linguas praticam a dupla articulacio, todas elas “+ diferem na maneira como os respectivos utentes analisam os dados da experiéncia e se servem das possibilidades que Ihes oferecem os Orgdos da fala. Por outras palavras, CADA LINGUA ARTICULA A SEU MODO enunciados e significantes. Nas mesmas circunstincias em que um portugués diz tenho uma dor de cabega, dira um francés j‘ai mal a la téte e um espanhol me duele la cabeza. Em portugués e em francés, 0 sujeito do enunciado seré neste caso o locutor, enquanto em espanhol sera a cabeca que sofre; a expressdio da dor sera nominal em portugués ¢ em francés mas verbal em espanhol, e a atribuigéo da dor ira para a cabega em francés, para o paciente em espanhol, ao passo que © por- tugués precisa a natureza da dor por meio de um determinante. Pouco importa que, em lugar de tenho uma dor de cabega © Jai mal d la téte, 0 portugués e o francés possam dizer respec- tivamente ddi-me a cabega ¢ la téte me fait mal: 0 decisivo 6 z ’ dor yor y TOA f 16 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL que, em dada situacdo, o portugués, 0 francés e o espanhol podem recorrer a analises diferentes. Comparem-se, na mesma ordem de ideias, lat. poenas dabant, ptg. sofriam castigos, fr. ils étaient punis; ptg. é proibido fumar, fr. défense de Sumer, ingl. smoking prohibited, russo kurit’ vosprescdetsja, ptg. é favor ndo estacio- nar, fr. priére de ne pas stationner; al. er ist zuverlassig, fr. on peut compter sur lui, ptg. pode contar-se com ele. : Ja sabemos que as palavras duma lingua nio tém equiva- lentes exactos noutra, o que naturalmente acompanha a varie- dade das analises dos dados da experiéncia. E possivel que das diferengas de analise resultem maneiras diferentes de considerar um fenodmeno e que concepgdes diferentes dum fendmeno con- duzam a diferentes andlises da situagdéo: nao podem distin- guir-se um do outro os dois casos. Quanto 4 classificagéo dos significantes, nio nos baseemos nas grafias para julgar os factos, ainda que essas grafias corres- pondam a transcrigGes e nado a representagdes ortograficas. Par- tindo de /z ¢ mal a la tet/ e /me duele la kabeOa/, nado se suponha que o /a/ de /kabeQa/ corresponde 4 mesma realidade linguistica que o de /mal/: como o francés distingue o /a/ de mal do [al de male, a articulagdo do primeiro € relativamente pouco pro- funda, ao passo que o /a/ de cabeza, tinica vogal aberta do espa- nhol, dispéde de maiores latitudes. E por razées de natureza economica que se transcrevem com os mesmos caracteres os fo- nemas de linguas diferentes. “1.13 noMero pos MONEMAS E Dos FONEMAS O numero de enunciados possiveis em cada lingua & tedrica- mente infinito, por ser ilimitado o numero de monemas suces- sivos que um enunciado pode comportar. Com efeito, é uma LISTA ABERTA a dos monemas de cada lingua; na ‘ determinar com preci istinatie oes Pngua, Porque a cada passo surgem ni azem criar novas designagée: Conta Palavras que hoje em de dai Plena a ado & capaz 2 Serene mas muitas de palaveas oo 7 memas susceptiveis de aparecer como Palavras inden eces ades novas que k A LINGUISTICA, A LINGUAGEM B A LINGUA 7 dlentes (por exemplo, Pur cwey flor, estrada de auto-estrada, Tr. timbre-poste, andonante), quer de monemas que sO aparecem fem composigdy (por es, ae de pty. auro-estrada, Pls telégrafo, Tr, telegrephe), Donde resulta que, apesat do contributo de esineneias COMO PUL MAK, Ke tr, -ows, e de sufixos como ptg. vaso, ft. -dtre, os mronenws sho de longe menos AUMeTOsOS que v as palavras Pelo contririo, o inventirio dos fonemas duma lingua constitui fama Lista YECHADA, O castethano, por exemplo, distingue 24 fonemas, nem Mais Nem Menos UM. O que (orna por vezes deli- cada a resposta d perginta sQuantos fonemas tem esta lingua?» @ 0 facto de, por se falarem em vaste dominios, as linguas de civilizagde ndo oferecerem perferta unidade e variarem mals ou Menes com as rege 5 classes sociais ou a geragio a que pertence quem as fala, Variagdes dessas no impedem por via de regea a compree iso, mas podem provocar diferengas no inventario dss unidades — distintivas (fonemas) ¢ significativas (monemas ov signes miais vastos). Assim, © espanhol falado na América apresenta muitas vezes 22 fonemas em vez dos 24 do castelhano. A variedade de francés que 0 autor utiliza comporta 34 fonemas, mas ndo é raro encontrar, Nos parisienses nascidos depois de 1940, um sistema de 31 fonemas (do qual, por. ser mais simp! nos serviremos na transcrig&io dos exemplos fran- ceses). E jit aludimos atras a uma variedade de portugués que conhece dois fonemas, ortografados se ¢, aos quais no portu- nués normal corresponde um sd; essa variedade distingue também entre © que a ortografia representa por x e por ch, confundidos no falar normal, Na transcrigio dos exemplos portugueses, € © sistema do falar normal de Lisboa que teremos presente. 1.14 ove f Una LINGUA? Podemos agora tentar uma formulag&o que revele o que enten- demos por lingua: UMA LINGUA f UM INSTRUMENTO DE COMUNICACAO SEGUNDO oe DE MODO VARIAVEL DE COMUNIDADE PARA COMUNIDADE, ANALISA A EXPERINCIA HUMANA EM UNIDADES PROVIDAS DE O morta” hee 7 AD Abr yt W~ pale 18 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL CONTEUDO SEMANTICO E DE EXPRESSKO FONICA — OS MONEMAS: ESTA EXPRESSAO FONICA ARTICULA-SE POR SUA VEZ EM UNIDAD DISTINTIVAS E SUCESSIVAS—— OS FONEMAS—, DE NUMERO FIXo EM CADA LINGUA E CUJA NATUREZA E RELACOES MUTUAS TAM. BEM DIFEREM DE LINGUA PARA LINGUA. Implica isso: 1.° que reservamos 0 termo /ingua paiva desig. | nar um instrumento de comunicagéo duplamente articulado ¢ de manifestagdéo vocal; 2.° que, abstraindo dessa base comum, | e como indicam as formulagdes de modo varidvel e diferem da nossa definigdo, NADA HA DE PROPRIAMENTE LINGUISTICO QUE NAO POSSA DIFERIR DE LINGUA PARA LINGUA. E no espirito deste segundo coroldrio que se deve entender a afirmagdo de serem «arbitrarios» ou «convencionais» os fendmenos lin- guisticos. 1.15 A MarGEM DA DUPLA ARTICULAGAO | | | Todas as linguas apresentam o tipo de organizagio que aca- | bamos de descrever, 0 que nao significa que ndo possam recorrer @ processos que ndo entrem no ambito da dupla articulagao. Assim, em portugués ou francés, por exemplo, é frequente mar- car-se 0 caracter interrogativo do enunciado por uma simples subida melédica da voz na ultima palavra, o que permite dis- tinguir ptg. ele saiu (afirmacio) de ele saiu? (pergunta), ou fr. il pleut de il pleut? Como este ultimo enunciado equivale a est-ce qu'il pleut?, a subida de voz em il pleut? desempenha o mesmo Papel que o signo /esk/, ortografado est-ce que. Podemos por- tanto dizer que, exactamente como est-ce que, tal curva mel6- dica € um signo, de significado «interrogacdo» e significante constituido pela subida da voz. Mas, ao contrario do signifi- cante de est-ce que, que respeita a segunda articulagdo com os seus trés fonemas sucessivos e a primeira por se inserir na =o ae © significante da curva melédica nao utro tanto: com efeito, este ultimo i Particular no enunciado (sobrepée-se, ie ae dades das duas articulagdes), Sucessio de fonemas. Os factos Por assim dizer, as uni- ‘em se deixa analisar numa linguisticos que n&o Tespeitam & A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 19 articulagio em fonemas dizem-se por vezes supra-segmentais € formam um capitulo intitulado prosOpiA, distinto da FONEMA- TICA que trata das unidades da segunda articulagao. 1.16 CARACTER NAO DISCRETO DA ENTOACAO Existe uma oposic¢do fundamental entre a diferenca melédica que distingue a afirmagdo il pleut da pergunta il pleut? e a dife- renga entre dois fonemas: a fisiologid dos orgdos da fala provoca normalmente no inicio do enunciado uma subida da voz corres- pondente a uma tensio progressiva ¢ nas proximidades do fim uma descida da voz correspondente a uma progressiva distensdo. Se nao se realizar esta distensdo, o auditor tera a impressao de que o enunciado nao terminou e que requer qualquer comple- mento, na forma de resposta a uma pergunta, por exemplo. E assim que se pode fazer de il pleut? um equivalente de est-ce quil pleut? Mas tal nao significa que a subida da voz no fim do enunciado interrogativo corresponda um valor bem definido, por oposicdo a outro valor, igualmente bem definido, da des- cida que ela apresenta no final do enunciado afirmativo, porquanto a significagdo exacta do enunciado variaraé com 0 grau de altura ou de profundidade atingido: uma nota muito baixa implica uma afirmagéo brutal, mas a assergdéo sera tanto menos categérica quanto menos rapida for a descida _ melédica; e 4 medida que a curva for subindo passaremos insen- sivelmente a afirmagdcs matizadas de menor ou maior duvida e dai a perguntas cada vez mais dubitativas. Nao se trata pois, de modo algum, de algo como uma escada que se sobe degrau a degrau, onde a escolha de certo nivel conduzisse a um enun- ciado radicalmente diverso dos outros, mas sim de uma situagado em que qualquer modificagéo da curva melédica implica uma modificagéo paralela e proporcional do sentido do enungiado. 1.17 As UNIDADES DISCRETAS + 9 kov YO) A situagdo modifica-se inteiramente quando de duas direcgdes diferentes da ‘curva entonacional passamos a dois fonemas. Em portugués, palavras como pata /‘pata/ bata |’bata/ distin- 20 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL | | | guem-se apenas porque numa ocorre 0 fonema /p/ no lugar em que na outra ocorre /b/. Reduzindo progressivamente as vibragdes das cordas vocals, podemos passar insensivelmente da articulagdo caracteristica de /b/ a de /p/, © que mostra que, fisiologicamente, a continuidade € aqui idéntica 4 que ja encon- traramos na subida da voz. Mas, ao passo que qualquer modi- ficagéio nesta alterava de algum modo, talvez minimo mas decerto real, o valor da mensagem, nada disso acontece com as vibragdes que caracterizam /b/ por oposigao a /p/: enquanto elas se conservarem perceptiveis, a palavra pronunciada sera compreendida como bara; mas, a partir de certo momento (que pode aliés variar como © contexto e com a situacio), 0 ouvinte compreendera «pata», isto é, a inicial deixara de se identificar como /b/ para passar a identificar-se como /p/, ¢ por isso 0 sen- tido da mensagem sera completamente diverso. Se 0 locutor | articular mal, se houver barulho no ambiente, se a situagdo nao me facilitar 0 papel de ouvinte, poderei hesitar em interpretar © que ouvi como é uma linda bata ou como é uma linda pata; mas sou obrigado a escolher uma ou outra das duas interpre- tagdes, e ndo ha evidentemente possibilidade de admitir uma mensagem intermédia. Assim como nao podemos imaginar nada que fosse um pouco menos que «bata» e um pouco mais que «pata», assim também nao podemos conceber qualquer realidade linguistica que nado fosse completamente /b/ ou que fosse quase jp/: todo o segmento de um enunciado reconhecido como portugués sera necessariamente identificavel como /b/, ou como /p/, ou como qualquer outro dos fonemas da lingua. Tudo isto se resume dizendo que os fonemas sdo UNIDADES DISCRETAS. : ° caracter discreto dos fonemas estava jA naturalmente implicito na indicagao acima dada de que, em cada lingua, eee ee i: erafia alfabética, que ee oo ee onematica, conservou 0 crito hesitar em interpretar ial Felegine Waa stag elas sabemos que cla é ou u ou x. A i eae ae de cada letra como uma de ‘entre eae ee Para cada uma das quais o tipografo aa fe upidades, poe de caixa propria, A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 21 nao a interpretacio subjectiva dos pc is fonemas sucede 9 mesmo que com os textos bem impressos, nos quais as diferengas entre os varios aa sio tio reduzidas que em nada dificultam a identificagao de todos eles como repre- sentantes da mesma unidade grafica: quanto mais facilmente se identificarem como correspondendo a mesma unidade fonica as sucessivas realizagdes dum mesmo fonema, mais claro sera xR o enunciado em que figuram. Concorda isto com o que atras § dissemos da solidariedade que une o /m/ de male o /m/ de mar: como se vé da identidade de transcrigdo, trata-se de uma s6 unidade — unidade que nos interessa realizar sempre do mesmo modo se quisermos facilitar a compreen: do que dizemos. , Q Discretas s40 pois as unidades cujo valor linguistico em nada, & lafectam as variagdes de pormenor determinadas pelo contexto _ ou por diversas circunstancias. Tais unidades s40 indispensaveis = ao funcionamento de qualquer lingua. |Os fonemas sao uni- 9 dades discretas. Os tragos prosddicos “de entoagdo de que © falamos nao o sdéo. Mas discretos como os fonemas séo outros tragos também ditos prosddicos por nao se integrarem na segmentagado fonematica: referimo-nos aos Tons. de numero limitado em cada lingua. Nao ha tons em portugués, nem em francés, nem na maioria das linguas europ. ias; 0 sueco possui dois, o chinés setentrional quatro, 0 vietnamés seis. | 1.18 LinGua E FALA, CODIGO E MENSAGEM < Dizer que uma lingua possui, por exemplo, 34 fonemas equi- vale a dizer que é entre 34 unidades de segunda articulagdo que em cada ponto do enunciado o locutor tem de escolher para produzir o significante correspondente a mensagem que pre- tende transmitir: /b/ e nao /p/ ou /t/ ou quatquer outro fonema francés na inicial de biére se quiser afirmar: est une bonne biére «é uma boa cerveja». Mas dizer que um enunciado comporta 34 fonemas significa que ele apresenta 34. segmentos SucessiVOS, identificados todos e cada um com determinados fonemas, sem que as 34 unidades sucessivas sejam todas diferentes umas das outras: 0 enunciado c’est une bonne biere fs et tin bon bier/ . desta, para Ihes definir o sentido. 22 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL comporta 12 fonemas, na medida em que © constituem doze segmentos suces cada um dos quais identificavel com determinado fonema; mas esse enunciado utiliza duas vezes o fonema /n/, duas o fonema /b/, duas o fonema /e/, € assim sé se serve de nove fonemas distintos. O mesmo diremos das uni- dades linguisticas mais complexas que 0 fonema, com a dife- renga de que nio podemos precisar 0 mimero de monemas ou de palavras duma lingua: no fr. /e gargon a pris le verre «o criado pegou no copo» ha seis monemas sucessivos Mas apenas cinco monemas diferentes (Je aparece duas vezes); no ptg. livros de historias de fadas, aparece trés vezes 0 monema «plural» € duas © monema «de». F indispensavel distinguir cuidadosamente, por um lado, os factos linguisticos de qualquer natureza que aparecem nos enun- ciados, e por outro lado os factos linguisticos enquanto pertenga dum repertorio de que dispde quem pretende comunicar algo. Nao compete ao linguista determinar em que parte do corpo humano se conservam a disponibilidade do locutor esses factos linguisticos; mas cumpre-lhe admitir a existéncia de uma orga- iVOS nizacao psico-fisiologica que, durante a aprendizagem da lingua materna na infancia ou de uma lingua segunda mais tarde, se condicionou de modo a permitir, de acordo com as normas da lingua, a analise da experiéncia que se quer comunicar, ¢ bem assim a selec das unidades necessarias a cada ponto do enunciado. E esse condicionamento que com propriedade constitui a chamada lingua. A lingua s6 se manifesta no discurso, ou, se se preferir, nos actos de fala; mas o discurso, os actos de fala, no sto a lingua. A tradicional oposigao entre LINGUA ¢ FALA Pode também exprimir-se em termos de CODIGO ¢ MEN- Seo alee, Tepresenta a organizac&o que permite redigit sagem; &€ com ele que se confrontam os varios elementos ie : bi ingio, {Ao Util, entre lingua e fala Pode levar a crer gunda possui organizagio independente da primeira, inguistica da lingua. Ora, temos de que a fala se limita a concretizar a organi 86 pelo exame da fala ¢ do comportamento que zasio da lingua: | | A LINGUISTICA, A LINGUAGEM E A LINGUA 23 ela determina nos ouvintes podemos chegar a conhecer a lingua, e para tanto necessitamos de abstrair dos factos que, como o timbre da voz de cada individuo, nado sdo lingufsticos, isto é, nao fazem parte dos habitos colectivos adquiridos durante a aprendizagem da lingua. 1.19 CADA UNIDADE SUPOE UMA ESCOLHA Dos factos linguisticos, uns revelam-se a0 simples exame dos enunciados e outros apenas pelo confronto de enunciados dife- rentes. Todos eles constituem factos de lingua. Cousideremos 0 enunciado fr. c’est une bonne biére /s et iin bon bier/. Supondo a andlise em monemas e fonemas realizada conforme indica a transcrigo, revela-nos esse enunciado alguns tragos nado des- piciendos da estrutura da lingua: /bon/ pode figurar depois de jiin/ e antes de /bier/; o fonema /r/ pode figurar em posic¢éo final de enunciado e o fonema /n/ em final de monema; etc. Todas estas latitudes fazem parte das regras segundo as quais a experiéncia humana se analisa em francés, e pertencem a lingua. Relativamente a outros factos, elas oferecem ao linguista a vantagem de se lhe revelarem ao simples exame da repartigéo das unidades dentro do enunciado. Mas, se podemos dizer algo das latitudes combinatérias de /bon/, € porque reconhecemos neste segmento do enunciado o representante de uma unidade particular distinta de /iin/ e de /bier/. Para chegarmos a este resultado, tivemos de verificar que, no contexto a que pertence, /bon/ correspondia a uma seleccdo, a uma escolha especifica entre certo nimero de epitetos possiveis: a comparacao com outros enunciados franceses mostrou que nos contextos em que figura /bon/ se encontram também /ekselat/ (excelente), /movez/ (mauyaise), etc., 0 que indica haver o locutor afastado mais ou menos inconscientemente todos os competidores susceptiveis de ocorrer entre /iin/ e /bier/, mas que no caso presente nfo convinham. Dizer que o ouvinte, portugués por exemplo, com- Preende o francés implica que ele identifica por experiéncia as varias selecgdes que o locutor teve de fazer ao longo do seu enunciado, que reconhece /b2n/ como constituindo uma selec- SAo diferente da de /iin/ e da de /bier/, e que a escolhe de /bon/ PUacr le & $ 5G vA 24 ELEMENTOS DE LINGUISTICA GERAL em vez de /movez/ pode influenciar-lhe © comporta- mento. O mesmo sucede com os fonemas: se podemos dizer algo das latitudes combinatérias de /n/ em /bon/, € porque reconhe- cemos em /n/ uma unidade distintiva particular, distinta entre outras do /9/ precedente. Também aqui verificamos corresponder /n/ a uma selecgdo especifica, por isso que, sem divida incons- cientemente, o locutor teve de afastar /t/, que daria /b9t/ (isto é, outra palavra, botte), /s/ que daria /bos/ (bosse), /1/ que daria /bol/, ou /f/ que daria /bof/, pronunciavel mas inexistente. E claro que ndo sdo gratuitas as varias selecgdes operadas pelo locutor ao longo do discurso. E evidentemente a natureza da experiéncia a comunicar que o leva a escolher /bon/ em vez de /movez/ e /bier/ em vez de /limonad/; é por o sentido reclamar /bon/ que ele tem de escolher, como Ultimo segmento deste monema, /n/ em vez de /t/, /s/ ou /I/. Mas havera alguma escolha nao determinada? Nao ‘se suponha que a escolha dos monemas € mais «livre» que a dos fonemas. 1.20 conrrasTEs E OPOSICOES Estd-se a ver que, signos ou fonemas, as unidades linguisticas se relacionam umas com as outras de dois modos distintos. Temos por um lado as relacdes dentro do enunciado, que sdo directamente observaveis e se chamam SINTAGMATICAS, como, Por exemplo, as relagdes entre /bon/ e os seus vizinhos /in/ e /bier/, ou entre /n/ € 0 /9/ que o precede em /bon/ ou 0 /ii/ a que ele se segue em /iin/; convém reservar para elas a designacao de contrasts. Por outro lado, temos as relacdes entre unidades capazes de figurar num mesmo contexto e que, pelo menos nesse contexto, se excluem mituamente (relagdes PARADIGMATICAS, que designamos por oPosi¢dEs): bonne, excellente, mauvaise, a podem figurar NOs Mesmos contextos, encontram-se em ie a : ae © © mesmo sucede com os adjectivos designa- » Susceptiveis de aparecer entre le livre...e...a disparu; entre /n/, /t/, Is/, /l/, que pod : : shh uniem opneaa 6 POR fl depos Ponared: : xe dol ~ amidase + Flake denny,

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