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-“Este texto pretende explorar estes múltiplos sentidos e usos da interculturalidade, com
ênfase especial no campo educativo, para fazer, assim, distinção entre uma
interculturalidade que é funcional ao sistema dominante e outra, concebida como
projeto político de descolonização, transformação e criação. Argumentarei que a
educação intercultural, em si, somente terá significado, impacto e valor quando for
assumida de maneira crítica, como ato pedagógico-político que procura intervir na
refundação da sociedade, como dizia Paulo Freire (2004: 18) e, assim, na refundação de
suas estruturas, que racializam, inferiorizam e desumanizam.” (p. 1)
-“A partir dos anos 90 existe na América Latina uma nova atenção à diversidade étnico-
cultural, uma atenção que parte dos reconhecimentos jurídicos e de uma necessidade
cada vez maior de promover relações positivas entre distintos grupos culturais, de
confrontar a discriminação, o racismo e a exclusão, de formar cidadãos conscientes das
diferenças e capazes de trabalhar conjuntamente no desenvolvimento do país e na
construção de uma sociedade justa, equitativa, igualitária e plural. A interculturalidade
se inscreve neste esforço.” (p. 2)
-“Não obstante, o problema com esta perspectiva é que, tipicamente, oculta ou minimiza
a conflitividade e os contextos de poder, dominação e colonialidade contínua em que se
leva a cabo a relação. Da mesma forma, limita a interculturalidade ao contato e à
relação – muitas vezes somente individual –, encobrindo ou deixando de lado as
estruturas da sociedade - sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas - que
põem a diferença cultural em termos de superioridade e inferioridade. Por isso mesmo, é
necessário problematizar e ampliar a perspectiva relacional, considerando duas
perspectivas adicionais, que dão contexto e sentido ao uso da palavra e conceito de
interculturalidade na conjuntura atual, evidenciando assim seus significados, usos,
intencionalidades e implicações sociais e políticas.” (p. 2)
-“Isto faz parte do que vários autores têm definido como “a nova lógica multicultural do
capitalismo global”, uma lógica que reconhece a diferença, sustentando sua produção e
administração dentro da ordem nacional, neutralizando-a e esvaziando de seu
significado efetivo, tornando-a funcional a esta ordem e, assim, aos ditames do sistema-
mundo e à expansão do neoliberalismo (Muyolema, 1998). Neste sentido, o
reconhecimento e o respeito à diversidade cultural se converteram em uma nova
estratégia de dominação, que aponta não para a criação de sociedades mais equitativas e
igualitárias, mas ao controle do conflito étnico e à conservação da estabilidade social
com a finalidade de impulsionar os imperativos econômicos do modelo
(neoliberalizado) de acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos historicamente
excluídos em seu interior. Sem dúvida, como discutiremos adiante, a onda de re-formas
educativas e constitucionais dos anos 90 – as quais reconhecem o caráter multiétnico e
plurilinguístico dos países e introduzem políticas específicas para os indígenas e
afrodescendentes – são parte desta lógica multiculturalista e funcional.” (p. 3)
-“A interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por construir. Por
isso, se entende como uma estratégia, ação e processo permanentes de relação e
negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e
igualdade. Porém, ainda mais importantes, é seu entendimento, construção e
posicionamento como projeto político, social, ético e epistémico - de saberes e
conhecimentos-, que afirma a necessidade de mudar não só as relações, mas também as
estruturas, condições e dispositivos de poder que mantêm a desigualdade,
inferiorização, racialização e discriminação.” (p. 3)
-“Por tanto, seu projeto não é simplesmente reconhecer, tolerar ou incorporar o diferente
dentro da matriz e estruturas estabelecidas. Pelo contrário, é implodir – a partir da
diferença - as estruturas coloniais do poder como desafio, proposta, processo e projeto;
é re-conceitualizar e re-fundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que põem
em cena e em relação equitativa lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar,
atuar e viver. Por isso, o foco problemático da interculturalidade não reside somente nas
populações indígenas e afrodescendentes, mas em todos os setores da sociedade,
inclusive no dos branco-mestiços ocidentalizados (Rivera, 1999).” (p. 3)
-“As re-formas educativas dos 90 foram parte desta nova onda multiculturalista de corte
neoliberal. Apesar de seu impulso vir de demandas sociais por uma educação
diferenciada, que poderia elevar a qualidade educativa e responder, entre outras coisas,
ao étnico e diverso no âmbito nacional, estas re-formas - tanto em sua prática como em
sua conceitualização se esforçaram mais por adequar a educação às exigências da
modernização e do desenvolvimento que por interculturalizar o sistema educativo. E
ainda que a interculturalidade aparece como eixo transversal ou marco para introduzir a
diversidade e o reconhecimento do “outro” nestas re-formas, sua intencionalidade não
tem sido refundar ou repensar os sistemas educativos, mas adicionar e acomodar um
discurso da diversidade e interculturalidade - entendida como convivência, tolerância,
respeito e reconhecimento da diferença cultural – sem maior mudanças.” (p. 6)
-“Este problema pode ser observado, entre outros âmbitos, na produção de textos
escolares, na formação de professores e nos currículos usados nas escolas. Sob o
pretexto da “interculturalidade”, as editoras de livros escolares assumem uma política de
representação que, enquanto incorpora imagens de indígenas e negros, reforça
estereótipos e processos coloniais de racialização (Granda, 2004). Na formação docente,
a discussão sobre interculturalidade se encontra em general limitada ao tratamento
antropológico da tradição folclórica. Na classe, a aplicação é, no máximo, marginal.” (p.
6)
-“Dentro das políticas educativas emergentes no século XXI, podemos testemunhar dois
distintos eixos de mudança. O primeiro se encontra nos vínculos crescentes entre
educação e “desenvolvimento humano integral”, reflexo, segundo minha forma de ver,
de um interculturalismo funcional já amadurecido.” (p. 7)
-“Com base nos trabalhos de Max Neef e Amartya Sen, entre outros (adotado pela
ONU, UNESCO e a maioria dos Ministérios de Educação e Cultura latino-americanos),
o “desenvolvimento humano integral” responde à necessidade de um desenvolvimento
mais humano em contextos de crise, nos quais cada indivíduo contribui para o
desenvolvimento social do Estado, Nação e sociedade. Sua meta principal é melhorar a
qualidade de vida e o nível de bem-estar do ser humano em escala individual e social,
potencializando a equidade, o protagonismo, a democracia, a proteção dos recursos
naturais e o respeito à diversidade étnico-cultural. Aqui, o bem-estar é entendido
segundo duas categorias: a ontológica - ser, ter, fazer, estar -, e a axiológica -
subsistência, proteção, afeto, entendimento, lazer, participação e criação -. Chegar a este
bem-estar depende dos indivíduos, não da sociedade em si nem tampouco de uma
mudança da estruturação social. Depende da maneira como as pessoas tomam controle
de suas vidas. Assim, sua idéia central é que cada indivíduo contribui para o
desenvolvimento da sociedade, e que os indivíduos podem chegar a superar o problema
do desenvolvimento limitado.” (p. 7)
-“Lembrar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes nas discussões
políticas postas em cena pelos movimentos sociais, sublinha seu sentido contra-
hegemônico, sua orientação com relação ao problema estrutural-colonial-capitalista, e
sua ação de transformação e criação.” (p. 10)
-“Esta colonialidade do poder - que ainda perdura – estabeleceu e fixou uma hierarquia
racializada: brancos (europeus), mestiços e, borrando suas diferenças históricas,
culturais e linguísticas, “índios” y “negros” como identidades comuns e negativas. A
suposta superioridade “natural” se expressou, como diz Quijano, “numa operação
mental de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, sobretudo em
relação às relações intersubjetivas”; veja-se que as categorias binárias oriente-ocidente,
primitivo-civilizado, irracional-racional, mágico/mítico-científico e tradicional-moderno
justificam a superioridade e inferioridade, - razão e não-razão, humanização e
desumanização (colonialidade do ser) -, e supõem o eurocentrismo como perspectiva
hegemônica de conhecimento (colonialidade do saber) (Quijano, 2000: 210-211). É tal
operação a que põe em dúvida, como sugere Césaire, e valor humano destes seres,
pessoas que por sua cor e suas raízes ancestrais, ficam claramente “marcadas” (Césarie,
2006); isto é ao que Maldonado-Torres se refere como “a desumanização racial na
modernidade […], a falta de humanidade nos sujeitos colonizados” que os distancia da
modernidade, da razão e das faculdades cognitivas (Maldonado-Torres, 2007: 133, 144).
Como bem disse Bautista, “O mito racista que inaugura a modernidade, mito que anulou
sua pretensão de razão crítica, nunca lhe permitiu um verdadeiro diálogo com o resto do
mundo, apenas o monólogo da razão moderno-ocidental consigo mesma” (2009).” (p.
11)
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