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~ J MAGEM AncIA E =) BEIGU sTENCIA TOSEEBA Lg oe ae C2) Te Uta) a a ee TENCIA 7 Metta i r= ‘anner 11 17 30 ag 4p 51 fz ma mg a1 g5 117 122 129 137 14 155 163 169 164 189 209 ap Apresentacao 1. Olhar além dos olhos Outros cinemas na aurora do cinema Fantasmas e canibais Do banal ao radical 2. Dadosfera O que vemos nos olha Estéticas da vigilancia Biopoliticas porosas 3. Agora distribuida A cidade como interface Claustrofobia de massa 4. Eugenia maquinica Racismo algoritmico Inteligéncias artificiais sao reais 5. Meméria botox O futuro das rugas O futuro das ruinas 6. Politicas do ponto br ao ponto net Retéricas visuais da Memeflix nacional Necropoliticas do caos Janelas do Capitaloceno, visdes do Chthuluceno Indice onomdstico Sobre a autora Digitalizado com CamScanner ‘ACovid-19 foi definida como a “doenga do Antropoceno’,” expres- sando sua correla¢ao com o desequilibrio ecolégico. Até onde se sabe, um novo coronavirus, 0 SARS-CoV-2, agente causador da doenga, teria sido transmitido de morcegos para humanos, con- forme indicam pesquisas cientificas,” irradiando-se a partir do mercado de carne de Hankou, em Wuhan, onde sao comerciali- zadas mais de 75 diferentes espécies de animais. O fato de serem comerciantes desse mercado os primeiros contaminados pelo coronavirus nao é, portanto, uma coincidéncia. Repete-se ai um ciclo de zoonoses que desembocam em outras endemias e pande- mias, como a da sindrome respiratéria aguda grave (severe acute 1 Cristina O'Callaghan-Gordo e Josep M. Anté, “Covid-19: The Di- sease of the Anthropocene”. Environmental Research, v.87, 1ag0. 2020. 2 Apesar de algumas teorias aventarem a possibilidade de 0 saxs- -cov-2 ter comecado a infectar humanos apés um acidente em la- boratério, estudos cientificos indicam que a origem da doenga esta relacionada ao contexto das zoonoses. Denis Jacob Machado et al., ‘undamental Evolution of All Orthocoronavirinae Including Three Deadly Lineages Descendent from Chiroptera-Hosted Coronaviruses: SARS-Cov, MERS-Cov and SARS- Cov-2". Cladistics, 26 abr. 2021; Ben Hu ‘Characteristics of saRS-Cov-2 and Covid-1g”. Nature Reviews Microbiology, n. 3, v.19, mar. 2021, pp- 141-54; Najmul Haider etal., “Covid-19-Zoonosis or Emerging Infectious Disease?”. Frontiers in Public AES Health, v.8, 26 nov. 2020. Digitalizado com CamScanner drome, Sars), em 2002, que atingiu Primeiramente os comerciantes de animais selvagens da provincia det Guangdong, Em sintese, 0 que esta na ralz do problema sao Processos extrativistas e 0 contato desregrado entre humanos © especies selvagens, tendo como consequéncias a perda de biodiversidade eo aumento das doengas infecciosas. . aoe seara que se com- preende oporqué daalcunha antropocénica atribuidaa Covid-ig, Conceito formulado pelo quimico Paul Crutzen (Prémio Nobel de 1995), 0 Antropoceno éa era geoldgica modelada pela acio humana. Ainda rodeado de muitas imprecisdes, visto que nio hd acordo sequer sobre as balizas cronolégicas da sua origem, é¢ dificil desvinculé-lo da Revolucao Industrial do século x1x, com 0 inicio da extracao sistematica do petrdleo e de outros recursos naturais para a producao energética ¢ de matérias-primas. A despeito das polémicas cientificas, o termo Antropoceno ganhou popularidade porque pressupde uma tomada de cons- ciéncia global de que “a Terra esta se tornando sensivel a nossas aces e nés, humanos, em certa medida, estamos nos transfor- mando em geologia”. Essa perspectiva geo-histérica ¢ contes- respiratory SY tada por tedricos como o historiador da arte Thomas J. Demos, que, seguindo 0 geégrafo Jason W. Moore, prefere denominar nossa era Capitaloceno, termo que nos permite “chamar a vio- Iéncia pelo nome’ e abordar criticamente o impacto social e eco- némico das mudangas climaticas.* Essa postura critica significa, no campo estético, ainda segundo Demos, renunciar ao prazer 3 Bruno Latour, Diante de Gaia: Oito conferéncias sobre a natureza do Antropoceno, trad. Maryalua Meyer. Sao Paulo: Ubu Editora, 2020, p.183- 4 Thomas]. Demos, Against the Anthropocene: Visual Culture and En- vironment Today. Berlin: Sternberg, 2020, p. 86; jason W. Moore (0r8-) Anthropocene or Capitalocene?: Nature, History, and the Crisis of Capital ism. Oakland: pat Press, 2016. Digitalizado com CamScanner contemplativo que as imagens da devastagio da natureza suge- rem, O autor chama atenco para o modo como 0 paradigma da visualidade da revista National Geographic se tornou domi- nante nas abordagens do Antropoceno. No seu repertério, so comuns imagens aéreas cujas abstracdes geométricas ocultam a miséria e os efeitos das industrias de mineraciio, petrdleo e car- vaona vida das populacées que habitam essas dreas.* A esse tipo de visio, Demos contrapée obras de artistas como Angela Meli- topoulos, Ursula Biemann, Terike Haapoja e dos duos Allora & Calzadilla, Public Studio, formado por Elle Flanders e Tamira Sawatzky, e Teddy Cruz e Fonna Forman.® O fato é que, em um momento como o da pandemia do coronavirus, a compreensao de um ecossistema planetario, no qual meio ambiente, satide publica e as dinamicas socioeconé- micas e culturais estejam contempladas, tornou-se urgente. A discussio estética, nesse contexto, é igualmente central. Pan- demia global, a Covid-19 é também uma pandemia de imagens. Nela se consolidou um novo vocabulario visual, fundado em estéticas da vigilancia e da extroversao da intimidade, cru- zando a aceleracio do cotidiano, pela digitalizacio da vida, com a perda de horizontes plasmada pela resiliéncia da Covid-19. Entre as cameras térmicas e as bibliotecas pessoais que ocupa- ram as lives, naturalizamos experiéncias culturais que até 0 inicio de 2020 nos eram estranhas ou no minimo raras.” Essas 5. Ibid., pp. 60-64. ; 6 Id., Beyond the World's End: Arts of Living at the Crossing. Durham: Duke University Press, 2020. 7 Para uma anélise detalhada dessas questoes, ver Giselle Beiguel- rman, Coronavida: Pandemia, cidade e cultura urbana, Sio Paulo: Escola BP da Cidade, 2020. Digitalizado com CamScanner experiéneias tornaram familiar uma multiplicidade de lingua. gens, acomegar pela sintese computadorizada do préprio vinug Varios centros de pesquis desenvolveram processos de erizacio da: prio dos ilustradores Alissa Eckert e Dan Higgins, dos Centros de Controle e Prevengiio de Doengas (Centers for Disease Control and Prevention, cnc) dos Estados Unidos,* a que se tor- now a mais conhecida. f fato que essa especialidade no campo do design (design de virus) no é novidade. Mas a popularidade alcangada pela “arte-final” do coronavirus de Eckert e Higgins é inédita. Rechonchudo e ligeiramente enrugado, o coronavirus desenhado nos cnc respondia ao desafio de criar uma marca, uma identidade que pudesse funcionar em qualquer meio,’ con- ferindo visualidade a um “microsser” de cerca de 120 nandme- tros de didmetro, muito além da capacidade de captacao do olho humano, que alcanga no maximo quatrocentos nanémetros. O sucesso do projeto, que comecou em um microscépio eletrénico e terminou no software de computacio grafica Auto- desk 3D Max, teve a escala da magnitude da pandemia. Com o apelo quase de uma criatura de Monstros s.a. (2001), do estudio Pixar, essa sintese computadorizada do coronavirus tomou 0 mundo, vista e apropriada de incontaveis formas, nas mais diversas plataformas. Tornou-se a tal ponto familiar e aderente ao circuito midiatico que suas origens laboratoriais se apagaram. imagens captadas em microscépios eletrénicos, 8 Centers for Disease Control and Prevention, “Details - Public Health Image Library (prr11)", disponivel em: phil.cdc.gow/Details. aspx?pid=233, 9 Cara Giaimo, “The Spiky Blob Seen Around the World”. The New LEE York Times, 1 abr. 2020, disponivel em: nyti.ms/svilol0. Digitalizado com CamScanner Nao menos significativas da pandemia das imagens sao as do presidente Jair Bolsonaro, Cujas fotos, sem mascara € pro- yocando aglomeracoes, expressam sua abordagem politica do coronavirus, ea visdo, via drones, das escavadeiras abrindo alas para vitimas que sucumbiram & doenca em cemitérios populares. Essas sio algumas das imagens que constituem os enunciados politicos das retéricas visuais da Covid-1g no Brasil. Entendé-las, no entanto, pressupée revisitar alguns momentos marcantes da relacao entre imagem e politica na atualidade. RETORICAS UISUAIS OA MEMEFLIX NACIONAL Foi-se o tempo em que a visualidade da politica se concentrava nas m4quinas de propaganda do Estado e em campanhas de “santinhos” impressos, fotos e videos dos candidatos em comi- cios, carregando criancinhas em favelas, tomando café em bares da periferia e inaugurando obras.'° Hoje estamos diante de um novo arco de produgao simbélica, que inclui a tomada das telas detvno horario nobre, infiltracées ativistas na primeira pagina dos jornais e muitos memes. Poucos momentos explicitaram tao bem essa nova con- dicdo como os que antecederam a prisao do ex-presidente Luiz Indcio Lula da Silva, no dia 7 de abril de 2018. No tempo-espa¢o do Sindicato dos Metalirgicos em Sao Bernardo (sp), onde Lula 10 A respeito das retéricas visuais recorrentes nas imagens do poder politico, ver Roland Barthes, “Fotogenia cleitoral’, in Mitologias boszl, trad. Rita Buorgeminio e Pedro de Souza. Rio de Janeiro: Difel, 1985, pp. 102-03; Lilia Moritz Schwarcz,“O dirigente, acrianca ¢0 Futur: Zum, 11 dez. 2020, disponivel em: revistazum.com- br/colunistas/o ABE dirigente-a-crianca-e-o-futuro/. Digitalizado com CamScanner 48 horas, a foto do ex-presidente carregado pela mul. is de um discurso histérico de 54 minutos, Viralizoy, De autoria de um até entio desconhecido Joven de dezoito an, ; Francisco Proner, foi compartilhada incontaveis vezes no Insta. ram e no Facebook e estampou o noticiario de veiculos tradi ‘uardian e o The New York Times, sobrepondo- ficou por tidio, depo nais, como o The Gt -se as narrativas oficiais sobre 0 caso. O fenémeno de recontextualizagao dessa imagem est4 longe de ser um fato isolado e responde a uma ldgica de apro- priagdes que é caracteristica das formas como se encadeiam os jogos politicos estéticos nas redes, da esquerda a direita. Nao se trata aqui de abrir uma discussio sobre a histéria da apropriacao na arte contempordnea desde a pop art. Tampouco de explorar as praticas do sampler e do remix, que pautam a cultura eletré- nica e digital desde os anos 1970, e as particularidades das estéti- cas dos bancos de dados, tao fulcrais no contexto da net art." O foco aqui sao as imagens que saem de uma midia para outra, da TV as interfaces das redes sociais. Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vao se convertendo em miultiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representagdes vigente e seus mecanismos de organiza¢ao simbélica. Quando essas rupturas acontecem, desestabilizam a orde- nac4o interna dos meios de comunicacao de massa, e esse € uM dos tracos mais interessantes da ecologia midiatica atual. A invaséo do triplex do Guaruja (sp) pelo Movimento dos Traba- u_ Para uma reflexdo sobre cada um desses temas, ver Claudia Gian netti, vi Mostra 3m de Arte Digital: WhatsAppropriation (catilogo). Si Paulo: £103, 2015; Eduardo Navas, Remix Theory: The Aesthetics of Sampling. Vienna: Ambra, 2012; V. Vesna (org,), Database Aesthetics, 1PM op.cit., 2007, Digitalizado com CamScanner thadores Sem Teto (mrst), ocorrida no dia 16 de abril de 2018, explicita ess relagio. Na ocasiio, trinta pessoas ocuparam aa rés horas 0 apartamento atribuido ao ex-presidente Lula, que olevow a ser condenado a doze anos de prisao. Mais do que fun- conar como plano de tomada do apartamento, a ocupacao-re- lampago do triplex foi porta-voz dos argumentos contrarios & sua condenacio. Os veiculos de divulgacao do protesto, contudo, nao se yesumiram As redes sociais, cada vez mais confinadas a bolhas, algoritmicamente dirigidas, e nas quais os grupos tendem a falar entre sie para si. O protesto invadiu a pauta dos principais noticiarios da TV e teve sua mensagem estampada na primeira pagina dos jornais mais relevantes do pais. “Se é do Lula, énosso. Se nao é, por que prendeu?””? Essa era a mensagem que os mani- festantes carregavam nas suas faixas e que se infiltrou nos veicu- los midiaticos tradicionais. Nesse contexto, a aco politica torna-se happening e a regra do jogo passa a ser a consciéncia de estar “dentro” de uma futura imagem. Como assinala a pesquisadora Esther Hambur- ger, essas infiltragdes midiaticas “ocorrem em agoes politicas performaticas que antecipam, até certo ponto provocam, a reverberacio de imagens que inundam circuitos transnacionais, usualmente preenchidos por contetidos produzidos por corpora- bes especializadas na produgio de noticias’. 12 “MTsr invade triplex em Guaruja que é atribuido a0 ex-presidente Lula”, Jornal Nacional, 16 abr. 2018, disponivel em: globoplay.globo. com/v/6667552/. a. 13. Esther Império Hamburger, “Guerra das Imagens’. Rapsédia, n. 12, IPL 8)an. 2018, p. 39. Digitalizado com CamScanner tava enunciado com bastante forca nas ages (2007), do grupo Frente 3 de Fevereiro, _ quese torna socialmente transversal 7 amps dejunho de 2013. Afinal, como nao aa rar que bis ; le oe momentos mais marcantes foi a travessia da ponte oes de Oliveira, em Sio Paulo, no dia17 daquele a a até entao incomum nos protestos, a ponte estaiada é o cenario que se entrevé ag fundo em varios programas jornalisticos da Rede Globo. Foi, por isso, 0 local escolhido pelos manifestantes para gritar palavras de ordem contra a emissora e pressiona-la a mudar o tom sobre os protestos contra o aumento de tarifas publicas. As declaracdes da jornalista Patricia Poeta, no Jornal Nacional daquela noite, em defesa da cobertura até entao realizada, inseria indiretamente os manifestantes no quadro e consumava o sentido da ponte ocu- Algo que ja es! Zambi Somos Nés pada, como imagem e dispositivo politico.*® Os registros do performiatico desfile de moda dos estu- dantes secundaristas na ocupacio da Assembleia Legislativa do Estado de Sao Paulo (Alesp),© em maio de 2016, em protesto contra a corrup¢ao na compra da merenda escolar, evidenciam, nesse contexto, uma transformacao radical em curso. Ela diz Tespeito aos meios de ver e dar visibilidade aos conflitos e as rei- 14 Refiro-me particularmente & aco realizada na final da Copa Liber- tadores da América, no Estédio do Morumbi, quando o grupo Frente3 de Fevereiro, ue estava nas arquibancadas, estendeu a bandeira com 0s dizeres “Onde estao os negros?”, cujas imagens foram transmitidas Nes seca televcv, em cadeia nacional. Daniel Lima, Zumbi Somos ae a isponivel €m: youtu.be/og7mizixqjM?t=1478. ‘ jn, on ntS%8S de junho de 2013 ~ Jornal Nacional - Meméria’s 37 inn, 523: disponivel em: glo.bo/3zeWasG. IPB dape, ae ealizam Alesp Fashion Week em ocupagio”. Vai" 16, dispontvel em: vaidape.com.br/?p=16551- Digitalizado com CamScanner me yindicagdes, Sem deixar de iluminar a diversidade dos corpos e sua dissidéncia dos padrées normativos, No limite extremo desses processos, ocorre uma inversio dos procedimentos que marcaram as relagées entre arte, politica emidia nos anos 1970, durante a ditadura, quando as artes poli- tizavam as midias esteticamente. As infiltragbes em jornais fei- tas por Cildo Meireles (1970), Paulo Bruscky e Daniel Santiago (a partir de 1974), ou no noticiario, como fez o grupo 3N6s3, na jntervengao urbana Ensacamento (1979), sao alguns exemplos desse tipo de artivismo. Em ages como a “Alesp Fashion Week”, dispara-se outro vetor: éa politica que ganha, via midia, dimen- sbes estéticas. Everdade que a relagao entre imagem e politica nao é nova. Central nos totalitarismos dos anos 1930, constituiu o pilar de sustentagao da sociedade do espetaculo conceituada por Guy Debord. Contudo, a associacao entre imagem e politica agora é de outra ordem. Mais que lugar e meio de transmissio de ideias elinguagens, a imagem ¢ 0 prdprio campo das tensoes politicas.*” Ena imagem, e nao a partir dela, que os embates se proje- tam socialmente. Na explosio de fotos, videos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territérios de disputa mais importantes da atuali- dade. Bolsonaro e seus apoiadores introjetaram rapidamente essa dinamica, um dos ingredientes mais importantes de sua eceita de sucesso rumo ao Palacio do Planalto, calibrados pelas 17 Guy Debord, A sociedade do espetdculo, trad. Francisco Alves e Al- ves Monteiro. Lisboa: Afrodite, 1972. A respeito da discusso sobre a relacio entre estética e politica na atualidade, ver Jacques Ranciére, A partitha do sensivel: Estticae politica [2000}, trad. Monica Costa Netto. ‘J Sio Paulo: Editora 34, 2009, pp: 12-13- Digitalizado com CamScanner ociais.* Que o digam os manifestantes bolson, S Si a aa “facebook, Facebook, WhatsApp, WhatsAp, grita indos Ministérios, no dia 1° de janeiro de 2019, Esplanad tai 7 redes sociais se t a Nio ¢ de agora que as redes so ornaram. lugares rele. ‘Aristas PHL na antes 10s processos politicos, . isso esta longe de ser uma exclu. sividade dos apoiadores do pre dente Bolsonaro. Muito se falou sobre a importancia das redes sociais em movimentos como a Primavera Arabe, 0 15-M espanhol e o Occupy Wall Street, que aconteceram em 2011, ¢ as Manifestagdes de Junho de 2013 no Brasil.’® No calor da hora, chegou-se a identificar a Primavera Arabe como a primeira revolucio feita pelo Twitter.” Pode-se dizer que ha exagero nessas colocagées, mas nao ha exagero algum em afirmar que, sem os recursos do Facebook e do Twitter, essas manifestacdes nao ocorreriam da forma como ocorreram, Sua capacidade de divulgacao global, alcance social e dissemina- ¢&o esta diretamente relacionada a essas redes sociais. Discorri sobre essas questdes em outras publicacées,?! mas enfatizo aqui que o caso da chegada de Bolsonaro A presidén- 18 Para um contraponto as imagens compartilhadas pelos bolsona- rista nas redes, ver o Calendério dissidente da pesquisadora Didiana Prata, que reine imagens ativistas de 2018 até o fim de 2020. Disponi- vel em: calendariodissidente.fau.usp.br. 19 VerManuel Castells, Redes de indignagaio e esperanca, trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, e Fabio Malini e Henti- que Antoun, A internet e a rua: Ciberativismo e mobilizagao politica nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013 20 Henry Jenkins, “Twitter Revolutions?”, Spreadable Media (blog), 20" disponivel em: spreadablemedia.org/essays/jenkins/#.YLPIGUIKHPZ- Importante sublinhar que o teérico de midia Henry Jenkins reconsiderot algumas posigées expostas nesse ensaio algunsanosdepois. apy 71, Refiro-me a "Redes reais: arte eativismo na era da vi rancia ee Partilhada”, Rapsédia, n, 12, 2018, pp. 65-78 e "Territorializa atin ae Digitalizado com CamScanner cia desloca 0 eixo desaas analises. No seu spectro, como vere- mos, as redes sociais sio 0 espaco primordial de construgio e realizagio da politica, Nessa perspectiva, a saudagio inédita m qualquer posse presidencial, levada a cabo pela militancia bolsonarista para Tecepclonar aimprensa, em Brasilia, naquele dia, fazia jus ao estilo do novo titular do posto, Jair Messias Bolsonaro, ¢ indicava um redirecionamento das relagées entre ainternet ¢ as ruas. Nas suas redes sociais, 0 presidente deixa daro que elas nao foram apenas meios de acesso ao poder. Mais que veiculos de comunicacio pessoal, as redes sao seu principal canal institucional e o lugar de construgao de sua imagem. Ima- gem que éa linguagem pela qual esta sendo escrita a histéria ofi- cial de seu governo. Com mais de 35 milhdes de seguidores, distribuidos entre suas contas no Twitter, Facebook e Instagram, o 38° presidente da Republica é um dos principais lideres mundiais nas redes.”” Eisso é resultado de um trabalho milimétrico e militante, labu- tado entre teclados, cameras e muitas, muitas lives, nas quais ganhou forca um regime visual que faz toda a diferenca nas regras do jogo politico que o presidente Bolsonaro protagoniza. Durante a campanha presidencial, suas imagens atravessaram. 0s mais diversos ambientes: de gabinetes a salas de estar, pas- sando pela cozinha, a churrasqueira da casa, caixa automatico eaté seu leito na UTI quando ele esteve hospitalizado. nna Karenina da era da mobi- ‘ dad agenciamento nas redes (em busca da Ann cn), Noman 20" lidade)’, in Giselle Beiguelman ¢ J. La Fer l6gicos, op. cit., pp. 247-70. ais popular 22 Em margo de 2023, Jair Bolsonaro figurava come oe xia entre os lideres mundiais nas redes sociais, de Se Politicas, dis Indice de Popularidade Digital referente a Personal v/ipd.php2ca id=183- APE. ponivel em: ipdquaest.com.br/app Digitalizado com CamScanner Em conjunto, 0s registros da campanha constituem um legado fmpar de imagens precdrias, por vezes fora de foco, fei. | tas com chimeras imal posicionadas, iluminagao descuidada ¢ Angulos distorcidos. Nos videos, ao fundo, frequentemente apa- reciam, de wn lado, wma menor, 0 candelabro judaico que é também parte da liturgia evangélica, ¢, do outro, uma moringa de barro, simbolo tao singelo da cultura nacional. Sobre a mesa, objetos variados: papéis com anotagbes, notas fiscais, livros de c/ou sobre o politico britanico Winston Churchill, tratados antimarxistas ¢ celulares diversos. O importante era transmi- tiruma certa ideia de desarrumacio geral, com cara de cenario improvisado, para naturalizar a cena e ganhar ares de informa- lidade e espontaneidade. Retomacse ai a estética amadora consolidada pela apropria- ao da linguagem do video caseiro que explodiu com o YouTubee | que surge como estratégia de aproximacio do “mundo real”. Essa | estética pretende se contrapor ao imagindrio tecnicamente per- feito do padrao de qualidade hollywoodiano (ou da Rede Globo), | pela supressio de mediagdes. Como se a imagem produzida fosse um decalque do real, sem nenhuma interferéncia dos meios que a produzem e de quem os instrumentaliza. E nessa idealizada contraposi¢ao que reside a eficacia da estética amadora.” As vésperas do primeiro turno, 0 entio candidato falou de casa com seus seguidores na avenida Paulista. Com sombra no rosto, contra a luz, em um video gravado em pé no jardim, 23, Sobre o tema das estéticas amadoras, ver Ilana Feldman Marzochi, Jogos de cena: Ensaios sobre o documentdrio brasileiro contemporine0- Tese de doutoramento. Sao Paulo, Escola de Comunicagao e Artes, Uni versidade de So Paulo, 2012; Felipe da Silva Polydoro ¢ Bruno Sides sk pee ‘A apropriagao da estética do amador no cinema eno telejornal- sD. 34, ¥.17, dez. 2014, pp. 89-98. Digitalizado com CamScanner entando ver as imagens que The mostravam em outro celular, polsonaro levou seus eleitores ao delirio, Ao longo de toda a campanha eleitoral, diante das (préprias) cameras, 0 candidato polsonaro ria, ficava sério, desafiava “a midia”, Preparava o pio com leite condensado do seu café da manhi, ia ao agougue e fazia churrasco. Aparecia no barbeiro, posava coma filha, des- cansava no sofa e compartilhava mimos recebidos de seguidores anénimos. De camiseta esportiva, shorts, e mesmo de terno e gravata, j4 no posto de presidente, ele no fala com seu eleitor, ele o exprime. E, ao exprimi-lo, como mostrou o semidlogo Roland Barthes (1915-80) décadas atras, transforma-o em um heréi, convidando o eleitor a eleger-se a si préprio.** Essa frequéncia vibratéria nao se desfez com a eleicio. Pelo contrario. Da vitéria no primeiro turno em diante, ela sé cresceu. Em um dos seus picos de audiéncia, Bolsonaro quebrou todos os protocolos, postando a primeira foto oficial como presidente no seu perfil pessoal no Instagram. Seguiram a postagem mais de 1 milhio de likes. Nao que isso seja um acontecimento incomum. As respostas as postagens de Bolsonaro séo sempre acompanha- das de varios milhares de likes e aplausos aos seus feitos. Trata-se de um verdadeiro ritual mobilizatério, uma estra- tégia de comunicagio intensa que mais parece uma campanha eleitoral sem-fim. Mesmo depois dea administracao das redes do Presidente e de seus ministros passar a ser subordinada a a taria Especial de Comunicacao Social (Secom) da Presidéncia da Republica, deixando de veicular imagens da sua intimidade fo na Av. Pau 24, Via transmissdio de celular, Bolsonaro fala com populacd lista, 2018, disponivel em: youtu.be/HowxneOnl0l - ee : oe it.» P-173- 25, R. Barthes, “Fotogenia eleitoral”, in Mitologias, op. cit. P. Digitalizado com CamScanner doméstica para incorporar 0 padriio da foto oficial, mas sem per- der o eli motivaciona : I justamente esse cl motivacional que afasta sua retdrica visual do midialivrismo. Apesar de o presidente creditar sq vitéria A independéncia dos grandes conglomerados de comunj- cagio,”* uma prerrogativa de coletivos e redes como Jornalistas Livres e Midia Ninja, sua visualidade amadora em nada dialoga com o midialivrismo. Nas praticas como a do Midia Ninja, por exemple, a ténica recai em um novo cinema insurgente, como chamou Ivana Bentes, e nado em uma estética amadora. Preva- lece ai uma “dramaturgia do grito”, forjada no corpo a corpocom o presente, em que a camera se torna parte “de um animal-ciné- tico, que filma enquanto combate e foge”. Uma camera colada A respiracdo de quem produz a imagem de dentro dos aconteci- 1, que fundamenta sua retérica visual, mentos, “em regime de urgéncia e precariedade”.”” Foi Barthes quem primeiro definiu 0 campo de uma reté- rica das imagens em texto que data de 1964,”* situando sua inter- pretacao a partir do inventario de seus conotadores (0 conjunto de associagSes que se acrescentam ao sentido original de uma palavra), Expande-se, com base nessa compreensio, o enten- dimento da retérica para além do discurso verbal, permitindo 26 Naprimeira entrevista coletiva depois da vitéria no segundo tumo, Jair Bolsonaro declarou: “Eu cheguei aqui gracas as midias sociais, ¢ quem vai fazer a selecdo de qual imprensa vai sobreviver ou nao é@ Populaco”. “Em coletiva, Bolsonaro fala sobre fusio de ministérios¢ Previdéncia’, Jornal Nacional, disponivel em: glo.bo/2SqWDHw. 27 Ivana Bentes, Midia-multidéo: Estéticas da comunicacaio e biopoliticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015, pp. 22-23. 28 Samuel Mateus, Introdugao d retérica no séc. x1. Covilha: LabCom- _ 17 2018, P.178; Roland Barthes, O dbvio e o obtuso {1982}, trad: L&8 ’s. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1990, p. 40. Digitalizado com CamScanner mm. ue se incorporem A anilise “as convengées pelas quais [0 dis- curso] é criado nos artefatos visuais ¢ nos processos pelos quais jnfluenciam os espectadores”.” Nessa interpretaciio, as imagens transcendem o seu valor estético e funcionam como elementos simbélicos constitutivos de um sistema de comunicacio, possibi- litando que sejam pensadas no ambito da experiéncia cultural e entendidas como constructo resultante de um trabalho coletivo. “Como uma pratica”, escreveu o filésofo Arthur C. Danto (1924-2013), “a retérica tem a funcio de induzir o ptiblico a tomar determinada atitude em relacdo ao assunto de um dis- curso, isto é, de fazer com que as pessoas vejam a matéria sob determinado Angulo.” E esse angulo, no caso do presidente, é estratégico. Sua retérica visual opera como um fator compensa- tério, que supre tudo aquilo que sua oratéria nao entrega. Nao espanta que tenha se tornado um protagonista na torrente de memes e projecdes nas fachadas de prédios de varias cidades que marcaram a pandemia do coronavirus no Brasil. Imagem caracteristica da internet, os memes sao imagens feitas para serem compartilhadas. Irénicos, expressam uma cultura de consumo rapido, que adere a temas do momento. Os mais disseminados sao os que trazem imagens acompanhadas de textos curtos em letras garrafais, tecnicamente chamados de image-macro.** Agregadores de linguagem, constituem 0 que Jacques Ranciére chamou de “frase-imagem’”. Um formato em 29 Sonja K. Foss, “Framing the Study of Visual Rhetoric: Toward a Transformation of Rhetorical Theory”, in Defining Visual Rhetorics. London: Taylor & Francis e-Library, 2008, p. 303- 30 Arthur C. Danto, A transfiguragéio do lugar-comum, trad. Vera Pe- reira, Sao Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 25- 31 Para uma tipologia dos memes, ver Viktor Chagas, nada a ver com isso’: Cultura politica, humor € intertext “Nao tenho ualidade nos ang Digitalizado com CamScanner to nao funciona como complemento explicativo da a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos se produzir um terceiro sentido.*? que o tex imagem nem encadeiam para ! O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo bidlogo inglés Richard Dawkins, em O gene egoista (1976).*3 Alguns dos atributos que ele associou aos memes, espe- cialmente quanto a forma de propagagio e ao poder de contes- tagio, explicam a popularizagao do conceito. Mais citada que lida, na teoria de Dawkins 0 meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitacao, sempre sujeito 4 mutagio e A mis- tura, e que funciona como resisténcia critica. Isso porque nos d4 0 poder “de nos revoltarmos contra nossos criadores” e de “nos rebelar contra a tirania dos replicadores [os genes] egoistas”.** Foi nos anos 2000 que o termo ganhou forca e a com- preensdo que temos dele na atualidade, explodindo nas redes sociais, pelo fluxo de compartilhamento, no Twitter, no Face- book eno Instagram. Nesse contexto, os memes expandiram-se, incluindo nao sé 0 mundo pop, como também o da publicidade eo da politica, instituindo outra forma de comunica¢io visual, desvinculada do universo evolucionista de Dawkins. Para além das piadas com celebridades, torcidas de futebol, novelas e afins, os memes transformaram-se em uma espécie de comentario a queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, consti- tuindo um noticidrio paralelo, baseado em imagens. Se antiga- memes das eleigdes 2014”, in xxv Encontro Anual da Compés. Goinia: Universidade Federal de Goids, 2016, p. 18, nota16. 32. Jacques Ranciére, O destino das imagens, trad. Ménica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, pp. 56-57. 33. Richard Dawkins, O gene egoista, trad. Geraldo H. M. Florsheim- Belo Horizonte: Itatiaia; Sdo Paulo: Edusp, 1 ais-18. i : Edusp, 1979, pp. 215-18. UBD 34 Ibid., p. 222. Be Digitalizado com CamScanner mente yalia o slogan: “Aconteceu, virou Manchete’, associado & primeira revista Romani do grupo Bloch, dizer: “Aconteceu, virou meme”. Migrantes e fluidos, compostos dos residuos que saem de yma midia para a outra, da TV As interfaces das redes sociais, os memes so instancias midiaticas de alta circulaco que produ- zem 0 apagamento dos seus rastros nos processos de desloca- mento e apropriacao continua. De baixa resolucio, bastardos e sem assinatura, so imagens pobres, no sentido dado por Hito Steyerl & expressio,*° que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representacao dominantes. hoje o correto seria Contudo, na atualizacao das mesmas imagens que sao uti- lizadas recorrentemente, muitas vezes por grupos antagénicos, com novas legendas, revela-se uma contracio do repertério visual que é criado nas redes. Conjugada ao imediatismo, a con- cisdo e 4 volatilidade dos memes, essa repeti¢ao expressa, tam- bém, a impossibilidade de discussao e reflexao que impera no modelo atual de redes sociais. Isso ganha maior relevancia na medida em que os memes passam a ser um instrumento politico ecada vez mais usado nas campanhas eleitorais.°° A eleicao presidencial dos Estados Unidos de 2016 deu a medida desse impacto. A producio de memes esteve presente desde as primarias do Partido Democrata, em fevereiro de 2016, €m apoio ao candidato de esquerda Bernie Sanders contra ns lary Clinton, e marcou a disputa entre Hillary e Trump até ° final do pleito. Nao por acaso, a eleicao entrou para a histéria da 35H. Steyerl, “In Defense of the Poor Image", op cit PP. 3145. 36 Geert Lovinkce Mare Tuters, “They Say We Can't Meme: PITS of dea Compression”, Non.Copyrit, 1 fev. 2018 disponivel it!" copyriot.com/they-say-we-cant-meme-politics-of-idea-comP! Digitalizado com CamScanner Jauueoguveg woo opez|jen1big a Grande Guerra dos Memes de 2016.” No Brasil esso que culminou no impeachment da pres sidente Dilma Rousseff que 0 USO de memes tomou o debate poli. : evem assumindo protagonismo cada vez maior rama arena politica de tal forma que 9 internet como foi ao longo do proc tico nacional Os memes domit ente Michel Temer chegou a proibir, em maio de 2017, 9 uso de sua imagem fora de contextos jornalisticos e de divulga- cio de agdes presidenciais. Notificagées foram enviadas a alguns sites e paginas humoristicas. O efeito foi bombastico e reverso, Em vez de serem controlados, imediatamente multiplicaram-se os memes com a figura do presidente. Reportagens nacionais e ais?” maximizaram os efeitos, culminando com o presid internacion: “troco” do Partido dos Trabalhadores (PT), que na época resolveu liberar todas as suas fotos disponiveis no Flickr para esse fim. 0 veto foi uma tentativa de reagir 4 forma como as redes se pro- nunciaram a respeito da delacao da empresa JBS, que implicava o presidente Temer na Operagao Lava Jato. O governo recuou nessa tentativa de controle, mas, para além desse fato pontual, ficava claro que estavamos diante de um novo contexto, nao sé da histéria da politica, como também das imagens. Pesquisadores como a israelense Limor Shifman e, no Bra- sil, Viktor Chagas’ destacam que os memes da internet séo um 37 Ibid. 38 Viktor Chagas et al., “Political Memes and the Politics of Memes: A Methodological Proposal for Content Analysis of Online Political Memes", First Monday, n. 2, v. 24, 4 fev. 2019. 39 Simon Romero, “Their Government in Chaos, Brazilians Feat the Joke Is on Them”, The New York Times, 27 maio 2017, dispontvel em nyti.ms/3pLquMn, 40 Viktor Chagas, A cultura dos memes: Aspectos sociolégicos e dimen 182 tie $6es politicas de um fendmeno do mundo digital. Salvador: Edufba, 20205 Jauueoguveg woo opez|jen1big genero midiatico que assume miiltiplas formas, mas que sio sempre marcados pelo humor, com potencial para subverter as midias tradicionais, e que se desenvolvem em razio de sua dimensio social nas redes. Outros tedricos, como os hol landeses Geert Lovink e Mare Tuters, chamam atencao Para sua capaci- dade de quebrar os limites do politicamente correto, indo muito além do que as midias de massa poderiam suportar. Nesse flanco, abrem espaco para uma nova geracio de imagens de édio que tém se tornado recorrentes nas redes sociais. Nelas, con- tetidos racistas, antissemitas, anti-islamicos e homofébicos sio comuns. Da direita a esquerda, os memes ganham importancia eseu formato de frase-imagem contamina 0 espectro estético da politica e interfere no debate contemporaneo. Caso emblematico desse fendmeno ocorreu em janeiro de 2018, via post no Facebook feito pela deputada federal Cristiane Brasil. Indicada ao Ministério do Trabalho, Brasil decidiu gravar um video no qual se defendia, a bordo de uma lancha, acompa- nhada de amigos marombados, em trajes de banho, visivelmente alcoolizados, da acusacao de ter respondido a agGes trabalhistas. O argumento, um tanto quanto nonsense para quem seria o titular da pasta do Trabalho, é que “todo mundo tem agées trabalhistas”.* Aexplosao de memes que se seguiu a divulgaco do video acabou Por abortar sua trajetéria rumo a Esplanada dos Ministérios. Um dos bordées mais conhecidos da internet para abrir 0 Compartilhamento de um meme sobre o Brasil é: “Regras: ndo hi regras”. Se existia alguma dtivida sobre a precisao da frase, 0 Limor Shifman, Memes in Digital Culture. Cambridge: m1 Press, 2013 41 ‘Cristiane Brasil faz video se defendendo de agdes trabalhistas”, Fax ang °° 29jan. 2018, dsponivel em: facebook com/radiohandelrantes/ videos/1693301400726350. para sempre. O affair Cristiane Brasil, no entanto, era sé um premincio de outras séries inusitadas, como a batalha verbal entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes ¢ Luis Roberto Barroso,” que virou até um poema, com ada” por Maria Bethania (“Gilmar, Pessoa video a desfez yma versio “interpret horrivel’) eum funk (‘mc Gilmar e Mc Barroso ‘). Internacionalmente conhecido como um centro produtor eirradiador de memes," 0 Brasil tornou-se, com 0 coronavirus, nao apenas simbolo da pior politica de gestao da pandemia, mas uma verdadeira Memeflix. Nao seria imponderdvel pensar que quem contara a histéria da nossa “coronavida” séo os memes, Dificil lembrar todas as surpresas que vivemos ao longo desse periodo. Da adaptacio ao isolamento social as declaracées do presidente Bolsonaro, os memes fizeram a crénica de todos os momentos em uma espécie de jornalismo visual em tempo real. Nele, o cotidiano, os novos costumes ¢ a intensidade dos reve- ses politicos do pais foram registrados, acrescentando novas camadas 4 pandemia das imagens vivida a reboque do confina- mento pandémico. NECAOPOLITICAS D0 CADS Apesar de sua centralidade para entender o contexto politico brasileiro e as criticas ao governo Bolsonaro, os memes nao 42 “Vocé é uma pessoa horrivel’, diz Barroso a Gilmar Mendes em sessio do srt", vejapontocom, 2018, disponivel em: youtu.be/TS1U4s FOIE, 43. Viktor Chagas et al., “Political Memes and the Politics of Memes A Methodological Proposal for Content Analysis of Online Political 184 Memes’, op. cit, - jitalizado com CamScanner Di

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