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LEIA TAMBEM Paizéo e Fim de Valério Caluéte — J. GUILHERME DE ARAGAO Depois do romance Os Passos do Escolhido, estreado em Portugal, J. GUILHERME DE ARAGAO dé seguimento a sua linha novelistica rara e personalissima com este romance de alta tensao. Frente a um evento catastrético, morte a vista, 0 persona- gem revive 0 portentoso cosmorama de seu universo: valentias sertanejas, herdis, assassinos ¢ mértires matutos, profetas de inverno, histérias de trancoso, legendas dos sertées; — 0 Reci- fe, centro de aco romanesca, com evocacées holandesas, ras- gos de bravura, inteligéncia e cavalheirismo na Revolucgao de 30, a onitica sociedade de salvacio “A Cidadela”, 0 “Sete-E: Jo”, confraria de sete numes salvadores de ameacados de mor- te; 0 fabuloso tedlogo georgiano Pops de Maceid, 0 desabride jornal “O Farol”, os parapsicélogos da terra e de fora; Paris, are6pago do mundo e centro de angelitude ¢ de diabologia, mas sobretudo teatro do “homem pior do que 0 diabo e melhor do que 0 anjo”. Langamento: Julho de 1978 Preco: Cr$ 85,00 Em convénio com o Instituto Nacional do Livro / MEC. Pedidos a livraria de sua preferéncia ou Livraria AGIR Editora , Brillo Gomes, 125 Rua México, 98-B R. Repirito Santo, m5 Todo de Si sun) Teerones 242-0027 BORO LUIS DA CAMARA CASCUDO SES eT S°8F Rio ae danewo - RI elo Morente - MG Enderego telegratico: “AGIRSA’ Atendemos pelo. Servigo de Reembolso Postal Seo: Para os que se interessam por questées de histéria, etnografia ¢ folclore brasileiro, LUis DA CAMARA Cascupo é um nome téo conheci- do entre nés e no exterior que seria va qualquer tentativa de apresentacao. Autoridade inconteste nestes as- suntos, seus trabalhos sempre ti- veram a melhor aceitagio entre os estudiosos do assunto © 0 piiblico em geral, sendo sempre aguarda- dos com interesse. ‘Meleagro é uma das mais in- aressantes de suas obras, jé que & fruto de vinte anos de ‘investiga- ‘cdo pessoal. De fato, 0 autor, ter- minando em 1928 seu curso juri- dico no Recife, onde estudara os Xang6s, iniciow pesquisas no mun- do da feitigaria na cidade de Na- tal, preferindo fixar-se na Magia cléssica, acompanhando ¢ identi cando 6s processos tradicionais da Encantagao para o Amor, a Sorte ¢.a Moléstia, Antigo estudante de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, 1918-1919, vira o tempo em que as atividades mégicas eram quase piiblicas, Teve 0 cuidado de nfo confundir seus estudos com a parte religiosa, exotérica, dos cul- tos afro-brasileiros, orientando-se para a andlise da Magia Branca que era e é exercida pelos negros e as vezes considerada como de exportacéo africana. Estudioso do assunto, com boa biblioteca, com- pletou 0 estudo do campo feiticei- Fo com os comentérios pessoais deduzidos dos préprios elementos colhidos. Essa é a face mais su- gestiva de Meleagro, como livro de informacio preciosa ¢ honesta, “auténtica obra de ciéncia”, como (continua na 2+ orelha) L wraria e Sebo das Lewes Rue Darzan, 209 Tel 2973-7720 LUIS DA CAMARA CASCUDO MELEAGRO PESQUISA DO CATIMBO E NOTAS DA MAGIA BRANCA NO BRASIL 2! edigio APA DE HELENA GEBARA DE MACEDO 1978 Livraris AGIR Editora i RIO DE JANEIRO i ) C38im 78-0808 Copyright © de Luis da Camara Cascudo ‘Todos os dirsites desta edisfio ficam reservados a ARTES GRAFICAS INDUSTRIAS REUNIDAS S.A. (AGIR) Rua dos Invalides, 198, Rio de Janeiro ~ RI. CIP-Brasil., Catalogago-na-tonte Sindieato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Caseudo, Luis da Camara, 1898. ‘Meleagro: pesquisa do Catimbs e notas da magia branea no Brasil / Luis da Camara Caseudo, — 2:8 ed. — Rio de Janeiro: Agir, 1978, Adendos: I: noticias de macumbeiros. IL: Cignela catimbozeira de Felinto Saldanha, Bibliografia. 1. Magia — Brasil, I. Titulo. I, Titulo: Pesquisa do Catimbs e notas da magia branea no Brasil, ODD — 138.49801 DU — 138.4081) Zivraria AGIR Evifora B, Briullo Gomes, 123 Rua México, 9b-B R. Bepirito Santo. BAS (ioledo da Bib. Man) Deteco letonesa so aa Gee RE? SEES c. Postar sz1-zc a, Sto Patio | a Ris getanoio —.RI Belo thetieonle |e i202 Dora te 325 eterone? 922-2098 Galea Postal 7 OE Endereco telegrafico: "AGIRSA” Notre pénétration dépend de notre faculté de voir et de concevoir, ‘FROBENIUS. Je menseigne point, je raconte. MoNtAIGNE, Essais, 111, II. SUMARIO Preficio (A. de Silva Mello} Vinta e seis anos depois .. we ‘Meleagro Que 6 Catimbs? Nome ¢ fungio Elementes étnicos no Catimbs. 0 cachimbo, Instrumentos. A cha ve simbéliea see “Sean” de Catimbs. Funcionamento, Os prepares ... ‘Transe © possessio . © “mestre”. A “semente”. Reinados e aldeias. Deveres do “mes- tre”, As “mestras”. O taba do ménstruo, Continéncia sexual. A vingem Sessio de Catimbs 7 ‘“Fechar 0 corpo’ Pé dineito sobre pé esquerdo. Chave do sacéxio Mawolhado, Quebranto, Amuletos ........ Catimbs nao 6 Macambs nem Candom! Flora medicinal do Catimbs. Banko de cheito. Remédios tradicio- nais. Fumigagées, As entradas. O sangue, A saliva, O sopzo. Os ares... Feitigo, despacho, canjeré, colsateita, hd, ruamba, O sal. Cha de rasto. Aveia. Remédioa repugnantes. Eneruzilhadas, No hha para trés, Solera da Fosts, Horas propcias @ male fieas, horas abertas Envultamento “Ovagies fortes”, Modelos clisticos, Oragées para beber @ ora ‘es para engolir. Materisl eolhido pelo Santo Oficio Mestres invisiveis e suas biogvafias, As “linhas” © as misieas Post-Seriptum e conclustes ADENDO: I — Noticias de macambetros, IX — Ciéneia ca- timbozeiva de Felinto Saldanha . au 5 19 25 35 a 4a ce 6a B 8T 98 9 1 ar 165 185 199 PREFACIO MELEAGRO é um livro esplendidamente honesto, sd- dio pelo que contém do passado, valioso pela observactio do presente, O autor nele esiuda a magia branca, analisando-a desde as velhas civilizagées da Grécia e de Roma, até nossos dias. Ele nos mostra ai 0 que é 0 Catimbd e as diferencas que apresenta em relacéo & Macumba e ao Candombie. Estuda tanto 0 mawolhado, 0 quebranto, os amuletos, quanto 0 feitigo, o despacho, « coisa-jeita, o eb6, a muamba, Ocupa-se largamente da jlora medicinal dos feiticeiros, de remédios repugnantes, de fumigacdes; do emprego do sangue, da saliva, do sopro nos sortilégios da magia, indo até o enwiltamento, o transe, a possessdo, a intervengio de espiritos. Um dos grandes valores do trabalho é de analisar 0 estado da questo entre nds no momento atual, baseado em vinte anos de invastigaco pessoal, que mostra, de maneira muito caracteristica, quanto anda desorieniada a Populacho do nosso pais, quanto se torna ela vitima de exploragdes grosseiras, baseadas em velhos processos de magia. Camara Cascudo revelanos a percentagem maior, “oitenta por cento dos ‘trabalhos’ é para ‘as esquerdas’, contra alguém”, Somente os restantes vinte por cento sto para. solicitar “remédios ou conselhos ou ‘trabathos' para amores ou negécios, para vida atrapalhada”, E acrescenta que a sessio decisiva é a seasto privada, promovida com fins especiais e encomendada por clientes respeitaveis, que pagam até contos de réis pelo “trabalho”. Mostra ainda que, durante a guerra, de 1939 a 1945, a cidade de Natal abrigou homens do mundo inteiro, vindos de todos 08 Estados da Unido & que encontrara “muito norte-ame- 2 ‘Luis DA cAataRa ciscuDO ricano, vermelho e louro, com a farda edqui prestigiosa, ao lado dos ‘mestres’, explicando em linguagem dificil o ‘sett Ca80, 0 seu problema, 0 seu desejo ¢ as esperancas da realizaco maravilhosa por intermédio do ‘Mestre do ‘Além’”. Alguns fizeram relag6es mais intimas, dando di- nheiro, presentes, melhorando indumentdria e casa do ca- timbozeiro preferido, Um destes macumbeiros aprendeu a dizer bai-bai e oquét... Num caso de prisdo de um deles, foram encontrados retratos ¢ cartas de pessoas conhecidas, ‘que procuravam desfazer ou conseguir casamento, terminar amizades extraconjugais e outros servicos, embora tenha ele proprio explicado 2 Poticia que “nada sabe fazer, néo The cabendo a culpa se muita gente acredita nos seus po- deres ocultos”. Séo observagbes dessa natureza que prectsam tor- nar-se, melhor conhecidas e ser divulgadas, pois somente assim nos poderemos libertar desse extraordinério acervo de ignordincia e exploracdo, que tanto tem entravado o progresso da civilizagdo. Vivemos ainda em pleno pertodo dureo da magia, quando jd devia estar ela, de hd mutto, na pré-historia, entre os elementos mais vetustos da ar- queologia. As superstiches e a magia estéo cheias de dow cumentos de valor sem diivida alguma mais apropriados para mostrar @ trajetdria do espirito humano através do tempo e do espaco do que essa horrivel e desinteressante Historia da Humanidade, que néo se tem ocupado quase senéo de guerras e da estipida sucessio dos poderosos. Muito importante é a perspicdcia psicoldgica que 0 autor despendeu na interpretagdo do curandeirismo como pro- cesso de tratamenio de larga difuséo. Ele mostra que muitas vezes é 0 préprio médico, pelas suas injecdes, seus remédios caros, @ sua linguagem rebarbativa, 0 seu ar displicente, a sua indumentdria, a sua pressa, que de- sanimam, fazendo dele afastar-se 0 doente, Este quer ser tratado com afeicéo, com docura, com amizade, como faziam os médicos de tempos passados e os charlaties de todos os tempos. Na verdade a parte humana, individual, de confianca, de simpatia, de compreensdo’ representa Papel poderoso na trama terapéutica, tao desleixada pela medicina atual! Isso constitui um grave erro, que nao escapou a Camara Cascudo, quando analisa 0 fator psi- coterdpico no curandeirismo e nos tratamentos cientificos. MELEAGRO 13 Pode-se coneluir que a arte de curar perden nele um grande médico, tal a compreensdo que revela em torno desses problemas tdo profundos e delicados, MELEAGRO € obra de grande significacio, antes de tudo obra de estudo e investigacéo, autontica obra de ciéncia, que adquirird o seu lugar definitive dentro da questdo, mesmo quando passar esta para o terreno ar- queologico dos nossos conhecimentos. Acontecerd isso algum dia? Sou tao otimista que quase ouso acredité-lo! Quando? Talvez no dia em que howver paz universal e o homem delzar de ser esse horroroso ¢ imbecil animal que se serve do catimbé para manobrar males ocultos e vice sob 0 perigo da bomba atémica, que ele proprio inventou. De qual forma, MELEAGRO constituird sempre do- cumento de alto valor: honesto, objetivo, sdbio tanto pela erudicdo do autor quanto pelo seu espirito critico e de ‘investigacao. # partindo desse ponto de vista que, humildemente, ‘me anime: a tracar este pequeno prefacto, lembrando que @ medicina ainda anda impregnada de magia, que tot @ sua forma mais primitiva e. perigosa. A. DA SILVA MELLO (1886-1978) | | VINTE E SEIS ANOS DEPOIS... Creio que antes de 1928 estaria eu dando campo a0 Catimbé em Natal, contagiado pelas reportagens de Jodo do Rio as religides suplementares na Capital Federal. Em 1928, dezembro, Mirio de Andrade (1893-1945), meu héspede, “fechou o corpo” com um Mestre freqiientador de nossa. chaécara. Pagou vinte mil réis e narrou a proeza em crénica que nfo consegui reconquistar. Denunclaria a téonica catimbozeira natalense hé 49 anos, fase das minhas Ansias perquiridoras. Terminado em dezembro de 1949, a Editora AGIR publicou em 1951 MELEAGRO, no- me pedante para justificar feitico da Grécia em mio afrl- cana, No se falava ainda em Umbanda, mesmo na ci- dade de Salvador, onde ful garboso “calouro” de Medi- cina em 1918, residindo na Baixa do Sapatelro, Edison Carneiro, baiano investigador devoto, n&o registra 0 vo- cAbulo no Candomblé da Bahia, 1948 © em A Linguagem Po- pular da Bahia, 1951. Redigiu o verbete “Umbanda” para © meu Diciondrio do Folelore Brasileiro. Depois de 1960 6 que @ Umbanda abordou Natal, instalando-se com tal abundancia e prestigio que o Prof. Sérgio Santiago, com ‘observagao local, publicaria o penetrante O Ritual Um- bandista, Natal, 1973, com autonomia de exame. Vivem presentes entidades coordenadoras, a Uniiio Espirita de ‘Umbanda e a Federagao de Umbanda, com um milhar de terreiros no Rio Grande do Norte e possiveis 400 em Natal, hhavendo distribuicdo de convites impressos para assistir ‘ao “presente de Iemanja” na Praia do Meio, ultima noite do ano, A origem foi a oferenda a Ino Leucotéia, prote- tora dos portos, com santudrio em Epidauro Limera, La- 16 ‘wuts DA CAMARA cAscuDO cénia, Grécia, com a resposta afirmativa se mergulhasse a oferta, (Pausanias, Description de la Gréce, III, 28,58.) ‘Neste MELEAGRO verifica-se minha familiaridade com os “Mestres”, Dizé-los “Catimbozeiros” era agressio. Reinava o amével sincretismno acolhedor entre os “Mestres do Além”, africanos, indigenas, mestigos nacionais. Alguns ‘Mestres tinham ido a Belém do Pard, afinal as armas na Pajelanga, entao prestigiosa. Os Mestres africanos refuga- vam o tratamento de “Pajés”. Bruno de Menezes (1893- 1963), paraense insubstituivel, cantava toada alusiva: Néo me chame de Pajé! Nao me chame de Pajél Sou filho do Rei de Mina e sou Bardo de Gorét Companheiro saudoso fol o poeta Antonio Damas- ceno Bezerra (1902-1947), na primeira década espiona ¢ perguntadeira. Fez-se intimo dos mais arredios “Mestres’, embora fosse “acostado” por “Mestres do Além” que & nenhuma outra criatura humana confiaram integracao, ‘“Macunaima”, por exemplo. Sabia que gonzé enfeiiado nao tine bem. Jamais deformou, com imaginag&o deco- rativa, uma informacdo basilar e formal, Minha creden- cial era defender na Policia a liberdade dos colaborado- res, como intermedigrios miraculosos. O sébio Prof, Silva Melio (1886-1973), visitando Natal, exaltou-me a tarefa, esorevendo depois o preficio consagrador e afetuoso. Reuni a legitimidade © no o efeito publicitério subie- aitente. Last but not least: — resiste 0 Catimbé, 0 macum- beiro? Resiste 0 catimbozeiro, sem a mesa, sessdes € “acostamentos” ptiblicos, sem @ cantiga das ‘linhas mé- gicas. Duram ainda, imperturbaveis e funcionais, velhos e velhas, rosnando rezas, feiticeiros mitidos, com solucdes interinas e alivios de sugestao, tendo clientes hereditétios e propaganda clandestina, Confiam-lhes o problema, re- solvido ou enfrentado no siléncio do escuro cimplice, noite sem lua, com parcimoniosos “preparos” e realizacéo cautelosa: —' Cemitério, encruzilhada, boca da barra do rio Potengi, coqueiros de Jenipabu, Morro Branco, praia deserta onde néo haja luz eléirica, rodovia de Macaiba, até Peixe-Boi e Guarapes, lugar de’ mato-fechado; retalho MELEAGRO W de roupa interior, ceroula de homem e calca de mulher, unhas dos polegares, cabelo da nuca, do peito, do ptibis (do bigode e barba jd sao ineficazes), bocado de comida semimastigada, fruta mordida, sobejo de agua, preferen- cialmente de vinho ou cachaca, o pio é infeiti¢ével, afas- tando alma-do-outro-mundo. Confidéncias de 1975, com sigilo e cem cruzeiros. A informante faz “vendas” para as feiras, bolinhos e fritos. Disseme que catimbozeiro “home” estava dificil por causa do “olho da Policia”. Mu- ther velha engana melhor. Parece ser inofensiva e fraca. Médico nfo elimina curandeiro nem a Umbanda 20 ca- timbozeiro, ultimo fiel ao Feitigo Medieval, herdeiro dos milénios da Credulidade. Nenhuma alteracfo nesta reedigio, constituindo pai sagem imdvel e veridica da época e no diagrama de pet curso, “atualizado” e falso as velhas constatacdes origi- nérias. Convenco-me de haver manejado Feitigo europeu € asiético, tanto assim que as pesquisas n’Africa de 1963 nao determinaram incluso, Desatraco a jangadinha potiguar, acenando adeus, adeus.., Natal, janeiro de 1977. LUIS DA CAMARA CASCUDO Melengro — Museu do Vaticano — Mirmore da época imperial encontrado em 1600 diante da Porta Portese, Roma. MELEAGRO © Catimbd, no Nordeste do Brasil, permanece inalte- rado na confianga popular, espalhando receitas vegetais, fazendo “despachos”, tecendo amor, provocando a morte. Macumbas ¢ Candomblés, sonoros de dangas, muisicas, festas de iniciacéo atraindo povo e ampliando prestigio, Jevando suas melodias e ritmos aos microfones, seus ba- palorixis dando conversa nos jornais, com fotogratias nas revistas ¢ livros, nao fazem recuar o velho Catimb6, clan- destino, humilde, obstinado na sua existéncia secular. ‘© “mestre” do Catimbé é uma constante etnogrética do supreendente poderio psicolégico, Mantém seu am- Diente, simpatias, adeptos e confiangas. Nao ha indumen- tria bonita, bailado cutucando os nervos, negras balan- cando na cadéncia entorpecedora dos atabaques. O Ca- fimbs vai vivendo, apesar de tudo, com a segurangs de uma predileco popular irresistivel. ‘Nome, organizagio, funcionamento, tudo esté escuro, misturado, confuso. 12 'uma soma de influencia e conver- géncia, como todos os cultos. A-feigéio mais decisiva é da felticarla européia, o “mestre” @ seu Prestigio, a consulta sem obrigagao de adesio. Auséncia de iniciag&o, reunioes festivas, aprendizado ostensivo e sistemético. Os brasis doram sua flora, tuxauas cheios de mistérios, ensinando remeédios ou indo flechar os inimigos, com flechas invi- siveis que matam. O negro trouxe a parte mais triste e dolorosa. Seus “mestres” foram todos catimbozeixos mortos, ex-escravos, vidas sem histéria, tornados sobe- ranos nos reinos do’ Vajued e de Juremal. Viveram, como a maioria dos colegas vive ainda, nas casinhas de palha, = 20 wuis DA CAMARA CascUDO de taipa oscilante, fugindo, tremendo das visitas policiais, arrastados como'bichos curiosos diante das maquinas fotogréficas para a identificacdo criminal e jamais aten- dendo curiosidade elegante e jornalistica. ‘A bruxa européia néo recebia espiritos do outro mundo, orientadores. Nem mesmo Ihes citava a existén- cia. Havia Satands, mestre de encantamentos, presidente do Sabat, ou ninguém mais. A bruxa ouvia a consulta e respondia, aconselhando, receitando, Quando trabalhava, era sozinha, nos filtros de amor, nas figurinhas de cera para 0 envultamento, a agua clara e doce que mataria prelados e prineipes. Passara o tempo ornamental em que as pitonisas mastigavam folhas de loureiro e eatra- vam em transe, estrebuchando nas tripodes abertas em cima das bocarras fumegantes de onde subia para sua garganta a voz assombrosa-do deus oracular. ‘Negros e indigenas tém seus deuses falando pela boca dos sacerdotes, mais compreensiva e claramente que as outras castas e colegiadas sacras. Nao possuimos do- cumentacéio para conhecer a existéncia desse proceso na Africa, quinhentista. J4 se podia ter dado uma influéncia européia. O pé europeu batia aroie do setentriéo afr cano desde tempo velho imemorial. O século XVI é 0 da penetracdo portuguesa regular, as entradas brancas. © Arabe, espalhador de lendas e ‘complexos do Oriente, andava na terra negra como familiar antes do branco. At6 onde infiuiu o drabe? Até onde espalhou o branco & semente de sua projecéo? Até onde descea o romano? Ninguém sabe. H4 muita afirmativa que ¢ intuicéo ou inteng&o. Na literatura oral, hoje téo sistematizada e s3- ida, encontra-se estoria popularissima em Londres tam- bém popularissima nas tribos mais antigas ¢ metidas do sertéo africano. Vezes um viajante traz conto atricano, todo cioso da preciosidade, e descobre que é uma fébula de Esopo ou um episédio do Romance da Raposa, que toda Europa sabe dormindo contar e repetir. Aconteceu a Buttner, a Callaway, a Ellis, a Bleek. African foli-lore is not a tree by itself, but a branch of one universal tree, sentenciou Heli Chatelain, veterano no desertéo negro. © Catimbé reine, reconhecfveis na sua uniso como velos num mesmo bloco de mérmore, as participagbes de brancos, negros, amerindios. A bruxaria de Gregos e MELEAGRO 2 de Romanos revive processos perpétuos de encantamento Gisiarcados em rezas catdlicas usadas pelo portugués de casa armoriada e pelo preto fiel a Xango. O envulta- mento, o eterno toium ex parte, registrado nos Didlogos de Luciano de Samosata, encontrados nos tijolos assirios que estéio no Museu Britanico, vivo em todos os periodos da magia goeciana, a magia negra, segue fiel a si mesmo, como foi fixado em Grécia e Roma, e como esta presen: temente nos outros continentes. ‘A Pajelanga amazOnica néo é um elemento decisivo para 0 Catimbé como no o € 0 cerimonial da bruxa cu- ropéia com os cartapacios de Sao Cipriano e da bruxa de Evora, ciéneia do Pajé americano ou do Quimbanda de ‘Angola. © Catimb6 é bruxaria sem recorrer ao diabolismo medieval. E a parte néo-oficial, néo-ritualistica das rell- giGes negras, americanas e européias. Esté condenado pelos coneilios da Igreja Catdlica, pelas instrucdes de todas as Policias. Também um Pai-deTerreiro que se preze nao dd a um “mestre” de Catimbé o tratamento de colega, nem mesmo a simples tolerncia de quem exerce atividade paralela, a distfncia entre um chauffeur de a- minhio e um piloto de Constellation. Uma Mae-deSanto ndo verd uma catimbozeira com olhos mansos de quem a sabe fiel aos encantos de Iemanjd ou Oxosse. Uns ¢ outras enxergario o intruso, 0 adventicio, hostil, desco: fiado, zombeteiro, um culto irregular ¢ maldito, sem Ii- gacéio e coeréncia, sem hierarqula ¢ gradagées, vivendo pela exploragéo do Medo, origem dos deuses petronianos. (© Catimbs € 0 melhor, é 0 mais nitido dos exemplos desses processos de convergéncia afro-branco-amerindia, As trés éguas descem para a veriente comum, reconheci- veis mas insepardveis em sua corrida para o Mar. Cetimb6, sindnimo de feitico, de muamba; catimbo- zeiro, pseudénimo popular do feiticeiro e do bruxo, é ti- tulo de quem mestra a “mesa”, usando a “marca” fume- gante ou isoladamente atende aos clientes, vendendo “ora- Goes fortes”, fazendo muambas na intengéo do amor 22 Luis DA CAMARA CASCUDO da morte. Com ou sem o pequenino ritual do Catimbd, © nome continua, ligado a profissio ou a celebridade do “mestre”. Ofuscado pelo Candomblé e pela Macumba, 0 Catimbé reside no meio dos mocambos pernambucanos, paianos e catiocas. Restringe o “espaco vital”, economi- zando as “forgas”. Mas no se confunde nem abdica. Cer- tamente os orixds aparecem, vez por outra, com sem-ce- riménia notdvel, numa “mesa” de Catimbé. Mas a agdo € mais literdria e, muito confidencialmente, ereio que 0 orixé gegé-nago num Catimbo 6 um indice negativo de sinceridade e boa técnica. Nao sei o que pensaré Mestre Carlos, Pinavarugu ou Xaramundi olhando para Xango, ‘Omolu ou Oxosse. Hse as Meninas de Saia Verde com- preenderdo Iemanjé. Sel que Nand, Anamburucu, aderiu ao Catimbé poraue nao the deram’alegrias nos bailados oblacionais do Candomblé Ensinam os sabedores que a lei da Contigiiidade Sim- pética, formulada por Huber e Mauss, fundamentada no totum ex parte, explica a Feitigaria, pai e mae do Catimbo. © que pertenceu 20 Todo continua’a ele idealmente ligado mesmo depois da separagio. A coisa¢eita, ebd, muamba, canjeré, mandinga, para eflcdcia segura nfo dispensaré parte do todo humano, roupa, cabelo, unha, dente, saliva, sangue, stor, urina. ‘A segunda lei € que o feito é semelhante & Causa que 0 produziu. Imitando-se o fendmeno, reproduz-se a causa originéria. Sio as Simpatias, universais e podero- sas na supersticgo, a Magia Imitativa de Frazer. Essas duas leis justificam a técnica da Transferéncia, do Transporte, do Transplante. E possivel transmitir so- frimentos fisidos e morais 20s vegetais, animais e mine- rais, Tanto 6 possivel fixar a febre malérica numa arvore, como esquecer uma mégoa contandoa & terra, tronco de pau, buraco aberto na estrada, talqualmente ocorren 20 ‘eabeleireiro do rei Midas. ‘Assim um objeto ter o segredo alheio ¢ mesmo a vida humana. ‘Nas estdrias populares hé muito gigante que guarda sua vida num recanto misterioso, dentro de um ovo, dentro de uma ave, dentro de um peixe, dentro de uma caixa, no fundo do mar. Quando abrirem a caixa, tirarem o /MELEAGRO 23, peixe, agarrarem a ave ¢ quebrarem 0 ovo, 0 gigante mor- rerd. ‘Os folcloristas ingleses ¢ norte-americanos chamam-na External Soul, Life External, tema conbecido em todas as Jiteraturas orais do Mundo, desde a Russia, onde o feiti- ceiro Koshchéi tinha sua imortalidade escondida num ovo, até o Brasil, onde o Bicho Manjaléu ocultava a vida numa vela acesa. ‘Toda ciéncia felticetra, toda esséncia do Catimbé re- side nesses prinefpios. Fixar a vida, transferia, completa ou parcial, para um objeto, tornélo a representacdo in- tegral da sensibilidade, da vontade humana, comandada, dirigida, anulada pelo “mestre de mesa”, feiticeiro, “mos- tre” do Catimhé, é a esséncia, fim, realidade. Meleagro, principe etélio, teve ao nascer a vida ligada a um tigho que ardia na lareire. Altéia guardou a acha que escondia a existéncia do filho, tornando invulnerd- vel, insensfvel, imortal. Anos depois 0 Heréi, compa. nheiro de Jasio na conquista do Velocino de Ouro, matou © javali gigantesco que Minerva mandara devastar a terra de Calidon. Atalanta, princesa da Arcadia, dera o pri- meiro golpe e 0 etélio ofereceu-the a cabeca do monstro, como troféu. Plexipo e Toxeu, tios maternos do Herdl, protestaram e foram abatidos pela langa do sobrinho. ‘Altéia, sabendo do massacre dos irmios, arrebatada pela eélera, atirou ao fogo o tigdo que era a vida do filho. Quando a acha se consumiu, Meleagro faleceu. .. ‘Homero, ILIADA, TX, conta o fata de um modo, e Ovidio, METAMORFOSES, VIII, de outro. Comum, tra- dicional e popular é a verséo ovidiana, fixada em moedas e bronzes. E, além dos versos lindos, na oralidade que no desapareceu, perpetuou-se. Quem matou Meleagro foi a Magia que vive no Ca- timbs. Desde 1928 estudo esse mundo ae catimbozeiros. ‘Alguma relacio foi publicada, com os enganos e deducbes Iniciais, Anos repessei informagao e convivio na espécie. 24 Luts DA CAMARA cAsCUDO Dou aqui o resultado final, servigo de contronto, dia- grama de percurso, um depoimento sem imaginag&o, de bonne foy, lecteur. L. da C.C. Av. Jungueira Alves, 377, Cidade do Natal. Dezembro de 1949, QUE © CATIMBG? NOME E FUNGAO © meu “ald” 6 sobre 0 Catimbs. xf nome que corresponde & Pajelanga amaz6nica mas difere dos Candomblés da Bahia ¢ Macumbas do Rio de Janeiro. A denominagéo tem-se alastrado pelo Nordeste sem que afaste o emprego de outros titulos como os Xangds do Recife ¢ Maceié, muambas, canjerés, feitigos, colsa-feita, despacho, ebd, Catimbd é'0 feltigo e 0 pro- cesso de preparé-lo, Sua drea é 0 Brasil. Podia dizer que se trata do “baixo espiritismo” onde Mestre Carlos atende pelos processos deturpados de Allan Kardec. Os “mestres” do Catimbé abundam e tém sino- nimia vasta. Catimbozeiros, macumbeiros, feiticeiros, muambeiros. Depressa a clientela aparece e se alarga, como ondas concéntricas, tanto a fama cresce quanto se distancia da verificacio.1'O velho feitico, a bruxaria, estd, 1 FATOS POLICIAIS. Catimbozeiras nas malhes da Pol Foram presos no dia 8 do corrente, pelo Delegado do 8° Distrita, quando realizavam uma sesso do ‘Catimbé nas proximidades. do Morro Branco, o individuo José Francisco da Silva ea mulher Fran- cisea do Nascimento. Pela mesma autoridade foram intimados a comparecer & referida Delegacia, a fim de prestarem declaragbes, por acusacéo da pritica de Catimbd, as seguintes pessoas: Beneve nuta Maria Gomes, residente na Baixa da Coraja; Rite Duarte da Silva, residente & Avenida Dois; Elvira dos Santos, residente também 4 Avenida Dois, n.9 677; Joana Marla da Conceicio, residente em Lagoa Seca; Jogo Ascendine, residente & Avenide Dez, n° 523; Luis Franga’e Silva, residente & Rua Amaro Barreto; Joao de Sales, residente Travessa Seis; Diomedes Dantas, também residente & ‘Travessa Seis; Lufs Bento dos Santos e sua mulher, Francisea Ferreira dos Santos, residente no Quilémotro Cinco; ¢ Francisco Ribeiro do Nascimento, residente & Avenida Trinta e Um, em poder 26 Luis DA CAMARA CASCUDO sondo examinado e tratado pelas f6rmulas espiritas © 0 curado vem aos jornais agradecer, publicando o diag- néstico.? O Catimbs 6 um processo de feiticaria branca, com © cachimbo negro e o fumo indigena. Certo? © uma reu. nifo de elementos que vivem noutros ambiontes de bru- xara. O cachimbo seria a caracteristica se nao figurasse também na Pajelanca amaz6nica, E se néo estivesse firme nos labios do pajé curador, desde o século XVI. Hé 0 mosmo por todos esses Estados do Nordeste ¢ Norte do Brasil. Depois do Maranhio a influéncia da Pa- jelanca € grande e jé influem as diferenciagbes locals, Yitos, nomenclatura, receitudrio. Os Caruanas atuam, oS “médiuns” tomam nome de “ave” e os animais fabuldsos do “fundo das éguas” incorporam-se, falam, receitam, Em ‘vez de Karamundi, Mestre Carlos, Heron, as Meninas da Saia Verde, falam e orientam bichos ilustres e comuns como a Cobra Grande, a Mée do Lago, o Jacarétinga des- cidos por uma corda fantdstica. O Pajé fuma e bebe tafié que chamamos “cauim” no Nordeste. Essa zooletria é poderosa, projetando no astral os xerimbabos didrios. Os ichos ficam encarnados no Pajé, somente nele, cantando, dangando, bebendo, dando ordens. Mas o Catimbé lanca uma cabeca de ponte na Pajelanga pela assisténcia do nordestino que emigrou. O nordestino acredita na Peje- Janca, firmemente, mas vai lentamente espalhando suas recordagdes do Catimbé, um negro, um curador, afas- tando os bichos, sugerindo indigenas flecheiros, nomes de wos, mistérios, forgas novas de encantados. Hé deducao apenas nessa conclusio. A Pajelanca amazdnica tem, deve ter, bibliogratia que ignoro. Para o sul, depois do Recife, onde os Candomblés tomam 0 nome prestigioso de Xango, o Catimbs vive bem, de alguns destes toi apreendida grands quantidade de material undo ‘nas “sesn6es."” (A REPUBLICA, Natal, 18 do setembro de 1938). 2" Ver um “Agradecimento” publicado na GAZETA DN ALA- GOAS, Maceid, 26 de junko de 1988. "0 meu inedmodo, segundo disse © ilustre espirite, tratava-se de bruxavia, ete.’, informa o feliz con sulente, Num exemplar do CORREIO DA MANHA, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1915, um “Cartomante Afrieano”” desfax todos os mates de feitiaria em um hreve de felicidade © Jogo, MELEAGRO 7 fingindo ter aderido, parcialmente, ¢ fazendo “mesa de consulta”, ensinando oragées, receitas de folhas, raspas, raizes, frutos, fumando a “marca” e recebendo os en- eantados negros, brancos e indigenas, sem danga, sem dailado, sem tambor, sem chocalho. ‘0 préprio Pai-de- Terreiro, 0 Babalorixd, acaba aprendendo certos processos do Catimbé e vai usando, um e outro, como pode, aten- dendo 20s pedidos. Fm vez do agogs na mio do Baba- lorixé, ritmando os cantos, aparece o cachimbo grande, fumegando, chamando os encantados do Catimbd. Até certo ponto hé no Catimbé um sineretismo in- tenso e contintio, agora rumando Espiritismo sem dou- trina ética. Hé a reminiscéncia da magia branca e eu- ropéia, a persisténcia do Bruxo, do Felticeiro, do Mago onipotente. ‘Quando um Pai-de-Terreiro recebe consultas e age isoladamente, para fazer “despacho”, responder porgun- tas, orientar, recorre tanto quanto possivel 20 Catimbo. Cita os orixés imponentes, 0 assombroso Exu, Iemanja poderosa, Omolu, Oxosse, Ogu brigador, Xang6 tempes- ‘tuoso. Mas sentimos que o Catimbé traz ao “preparo” as memérias dos filtros, a bruxaria dos brancos distantes, 0s misteriosos poderes disciplinados & disposicio da von" tade_pessoal. No Rio Grande do Norte, onde estudei o Catimbd, o nome 6 relativamente moderno. Durante o século XIX a noticia oral do Feiticeiro vinha através do medo da cién- ela do indigena, do nativo inadaptado e guardador de se- gredos miraculosos. Dizia-se “feitico”, como em Lisboa, ou “beber-jurema”, “adjunto da jurema”. Os indigenas, catequizados por fora, ficaram por den- tro com sua erenca, E, quando possfvel, satisfaziam 0 ritual defeso, dancando a danca de Jurupari ao som dos maraeds e roncos dos instrumentos sagrados que davam a morte as mulheres curiosas.? Uma festa secreta dessa indiada, no século XVIII, dizia-se “adjunto da jurema”. Adjunto € reunido, sesso, agrupamento. Faziam a bebida com a jurema e bebiam-na no meio de cerimOnias que 3 Luis Camara Cascudo, GHOGRAFIA DOS MITOS BRASI- LBIROS, Jurupari, 30-110, Rio de Janeiro, 1947; José Olimpio, edi- tor. 20 'ed, 1978,

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