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Lima Barreto evoluiu até 0 socialismo radical. Em sua con- digio humana, de humilhado e ofendido, os residuos acumu- lados longamente de indignagao e revolta constituiam o humus favordvel A germinag%o facil de teorias e doutrinas que mais profundamente pudessem determinar a obra de transformagio social com que sonhava. “% chegada no mundo — escrevia éle em 1918 — a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, nao politi- camente, que nada adianta; mas socialmente, que é tudo.” Embora sempre de maneira tulmutudria e confusa, as resso- ndncias de suas palpitagdes revoluciondrias percorrem-lhe t6- da a obra, de modo que, por ésse aspecto, apresenta um “ténus” singular em nossa literatura romanesca, anteriormente A eclosao do movimento modernista. A linha de idealismo em Lima Barreto descreveu muitas curvas, tornando-se por vézes ziguezagueante segundo os ca- prichos de seu espirito, 0 que reflete nao sé o que havia de negligente em sua personalidade como a auséncia de uma formagio filoséfica sistematizada. O que ésse autodidata de vida desarvorada absorveu em matéria de leituras, como se pode inferir de seus escritos e também do catélogo de sua biblioteca recentemente divulgado (1), nao era de natureza a lev4-lo a evitar o ecletismo filo- s6fico e estético que entao predominava de modo sedutor e inelutavel. Nesse fundo de idéias, que se atritavam, 0 revolucionaris- mo eslayo era o elemento agressivo e insdlito que, com ares de novidade e ainda nao absorvido convenientemente, sO po- dia tentar a duas espécies de espiritos: 0 do idealista sin- cero que precisava de uma sintese filosdfica e polities para orientar os seus sentimentos revoluciondrios e 0 do partidario (1) Francisco de Assis Barbosa, A Vida de Lima Barreto, José Olimpio Editéra, 1952. p. 343-370. [10] € literdrios, isto é, uma forma excepcional de escrever, rica de vocdbulos, cheia de énfase e arrebiques”. Evocando “os grandes mestres modernos, Balzac e os russos”, 0 romancista defende 0 principio de que o escritor, em vez disso, “deve ter uma maneira permanente de dizer, de se exprimir, de acérdo com o que quer comunicar ¢ transmitir”, designada- mente para “difundir as nossas grandes ¢ altas emogoes em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam tédas, pelas revelagdes das almas individuais e do que elas tém de comum e dependentes entre si”. O que Lima Barreto denominava a “maneira permanente de dizer”, no era o estilo retérico e pedante, mas devia ser necessiriamente algo que se impusesse como uma forca catalitica, pois o objetivo désse instrumento de expresso, re- temperada pela dor do mundo, visava a algo mais do que © objetivo comum de produzir literatura agradével. Em suma, o romancista pregava de maneira desenganada a literatura militante e, sob 0 conseqiiente pressuposto de que “todos os meios so bons quando o fim é alto”, propu- nha-se realizar esse ideal “em uma lingua inteligivel a todos, para que possam — frisava — chegar fdeilmente & compre- ensio daquilo a que cheguei, através de tantas angustias”. Quando Lima Barreto escreven esas palavras jé tinha publicado trés de seus romances e, também, afirmado numa carta a Gonzaga Duque, com referencia ao Isafas Caminha, que éste era um livro “propositadamente mal feito, brutal por vézes, mas sincero sempre”. De permeio com essa afir- magao, citava Taine e Brunetiére, que, ainda nessa altura, eram os mestres de critica e de orientagao estética. Seu primeiro romance publicado j4 deixava transparecer claramente as suas contradigdes de escritor. Precisamente o seu sésia intelectual, Isaias Caminha, confessa que procurava [13] “descobrir nos grandes romancistas o segrédo de fazer”, con- cluindo desarvoradamente: “de forma que nao tenho por onde aferir se as minhas Recordagdes preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literdria esti prejudicando completamente 0 seu pensamento. Que tortura! E nfo é sé isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecido, como uma mulher publica...” © teor dessa confissio é expressivo do estado de espirito do romancista que, se combate por um lado o fetichismo do estilo, por outro, se tortura com a idéia de que a sua obra nao preenchesse o fim a que se destinava devido a sua “inabilidade literaria”. Outro sésia espiritual, o personagem Gonzaga de Sa, tam- bém transfere essa tortura quando o leva a exclamar: “Se eu pudesse, se me fésse dado ter 0 dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando 4 massa um ideal de vigor, de violéncia, de férga, de coragem caleulada, que Ihe corrigisse a bondade ¢ a dogura deprimente”. Apesar désse desabafo, 0 personagem exclama em certa altura do monélogo que a maior férga do mundo é a dogura. Mas, a verdade é que os sdsias morais do romancista se in- surgiam contra essa férga que encontravam em si mesmos, pois também ITsaias Caminha, sentindo-se barrado na vida, exclama: “O caminho da vida parecia-me fechado completa- mente por mos mais fortes que as dos homens. Nao eram éles que nfo me queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha dogura, eram os defeitos de meu ca- rater que nao sabiam abrir um”. Essa reagdo através de seus duplos, era positivamente um trago de sua sensibilidade mér- Dida. Outro desabafo désse intelectual frustrado é 0 de que [14] | e duplo, sem faltar significativamente a circunstancig de }, va-lo primeiro a embriagar-se. A cena se desenrola ee tortura de Floc para escrever algumas tiras na sala de = dagio do jornal, Foge-lhe a inspiragao e, apés varias tents. tivas iniiteis, o artista, j4 com a fisionomia contoreida, pede que Ihe tragam bebida. O paginador passa-The a garrafy _ 0 desgragado sorve um grande gole. E, j4 veremos o tesy). tado pela narrativa: “Aproximou-se a pena do papel e esore. yeu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendey trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia comecou a adquirir uma expressio de desespéro indescritivel. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumaya agora um cigarro sobre outro; nfo ia até o fim, atirava-o em meio do chao, acendia um outro. Bebeu, foi 4 janela, debrugou-se ¢ 0 paginador voltou: — Seu Couto! — Homem! J& vail Vocé pensa que isto é mAquinal? Voltou a escrever. A pena estava emperrada, nao desli- zava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena con- tinnava a resistir. Depois de vinte minutos, 0 paginador vol- tou: — Espere um pouco, disse 0 critico. O operdrio saiu. Floc estéve um instante com a cabega entre as maos, parado, tragicamente silencioso; depois, levan- tou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto pat um compartimento préximo. Houve um estampido € 0 ruido de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, &% 3 paginador e dois operdrios, éle ainda arquejava. Em a morren. Havia um filéte de sangue no ouvido & 08 semicerrados tinham uma longa e doce expresso de sofsimen" to e perdao. Cafdo para o lado estava o revélver, BMY ro e brilhante na sua niquelagem, estipidamente indife ay aos destinos e as ambigées”. } [16] Nao importa que o romancista haja se inspirado em ou- tro para a criagio do personagem. O Floc que havia em Lima Barreto morreu simbdlicamente, naquele momento, mas nunca deixaria de insinuar-se em suas aspiragées estéticas que © idealismo do reformador social jamais péde alijar de si mesmo totalmente, Aquéle suicidio, por via de transferéncia, se importava numa tentativa de auto-exterminagio da personalidade esté- tica que o romancista nao pédde viver e realizar plenamente, também era um fenédmeno de reagdo antiburguesa e, sobre- tudo em seus romances, essa reacio adquire alguns aspectos curiosos. Um déles é a da repulsa & sociedade, dita distinta ou aristocrittica, que o menosprezava ou simplesmente o igno- rava, exacerbando-lhe de qualquer maneira 0 ressentimento racial. Em suas reagées désse cardter no era sacudido apenas por aquela “convulsdo da personalidade” que, citando um au- tor russo, transferiu a Isaias Caminha, exibindo-o encolerizado perante as injusticas, os sofrimentos, as humilhagdes e as mi- sérias da existéncia. Esse era o lado noturno de sua perso- nalidade que o arrastava irresistivelmente para 0 mundo dos- toievskiano. O humor sarcdstico mitiga-lhe, porém, freqiientemente, essa convulsio e, stbito, apresenta-se o picaro onde estava o homem colérico e intratavel. Sua relagéo com o romancista das Memérias de um Sargento de Milicias estabelece-se jus- tamente por ésse Angulo. Querendo caracterizar a inclinagao daquele romancista para o género, Mario de Andrade lem- brava que éle préprio havia sido um picaro. Féra menino peralta, o que explica a simpatia indulgente em que envolveu sua criagdéo romanesca désse mesmo carater. Lima Barreto foi igualmente uma enearnagao de picaro, mas, esgragadamente, por efeito de um destino malogrado. Sua figura projeta-se {a7 historia literdria com algo de grotesoo « trigico, sobretudo om suas crises de ae mental, F ‘os seus papeis péstumos, acl “Se a Pequeno conto Picdonite eat, mo. qual trate Ge uml ine eae mado Castrioto, freqiientador a Bi Ne © que de repente cai numa decadéncia visivel de tipo io rua. 0 nte é como se fdsse 0 de um auto-retrato: : ‘Enquanto Sle in dizendo isso, reparei-lhe as feigbes © 0 traje. Estava magro, esquilido, encarquilhado, $6, da sua fisionomia antiga, The restavam os olhos vivos. A roupa avelhantada, polvilhada de poeira, denunciava um pouco caso de quem anda sériamen- te atrapalhado com as coisas do pensamento. As botas tor- tas pareciam dois jacarés prestes a luta. Em tudo, éle deno- tava uma angistia comovedora”. Significativamente, ésse conto esté assinado com o pseu- dénimo “Lazarillo de Tormes”, 0 que mostra as relagoes do autor com o picaro espanhol. “Parece que dentro de nés ha muita coisa de mais, mo- Jas, um mecanismo que nos empurra”, diz um de seus per sonagens de romance, titere de um destino tao arrepelado como o déle. Essa concepedo fatalista da existéncia humana é a que anima a tragédia grega, mas, em Lima Barreto, influiu sempre no espirito de humour de seus personagens picarescos. 4 _Entimn, para o romancista, a vida era um conto do vt Gario, idéia que se reflete em suas criagdes, adequando-se » Bono te urbana em que éles se movimentam de maneia muito significativa, Conto do vigdrio a sedugao de Clara dos Anjos embaida, na sua confianga inexperiente, pelas lébias do Seresteiro ricago, mas o ressentimento do romancista explo © tema com o designio de mostrar os efeitos deletérios 1% desigualdade xacial sébre as classes desfavorecidas. no fundo da nossa [18] Com algo do populismo, no sentido que ésse térmo ad- quiriu na época, consubstancialmente &s fermentagdes de rei- yindicago social, o realismo picaresco, nesse romance, como em outras obras de Lima Barreto, faz-se notar por um tipo de humour As vézes agressivo que converte os retratos em caricaturas grosseiras, qual a que se atribui 4 intengao de ridiculizar Joo do Rio. H4 muito de amargo e punitivo nesse livro que, embora desfechado especialmente contra os burgueses, também en- yolye a gente humilde, como, por exemplo, quando o roman- cista mostra que “a gente pobre 6 dificil de se suportar mittuamente”. Mas, isso é mais raro na sua ficgéo. O que nela prevalece é 0 espirito de revide contra os poderosos, os proprietarios de jornais, os politicos, os burgueses, enfim. Uma de suas melhores realizagées de humour vingativo, na diregao do picaresco, é a da cena em que o sedutor de Clara dos Anjos, j4 nao podendo viver na cidade que o repulsa por causa de seus crimes e misérias, resolve desfa- zer-se de seus galos de briga e pela primeira vez ir traba- Thar, bem longe. Acompanhemos até certo ponto a narrativa désse episédio, desde 0 momento em que a mie de Cassi se exaspera com a idéia do filho: “Tomou a extrema resolugao de vender os galos de briga. O dinheiro que apurasse, depositaria na Caixa Econémica, pa- ta té-lo sempre a mao, quando fésse necessario fugir. A mae, vendo carrogas chegarem 4 porta e as gaiolas e capoeiras sai- rem, a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-Ihe © que havia: — Nada, mamie. Vou para fora, trabalhar... — Para onde, Cassi? — Vou para Mato Grosso, empregar-me na construgaio de uma estrada de ferro. — Como trabalhador de picareta, meu filho? [19]

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